Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002131
Parecer: SA00021993
Nº do Documento: PSA261020020029300
Descritores: CONVENÇÃO EUROPEIA
AUXÍLIO MÚTUO EM MATÉRIA PENAL
PROTOCOLO ADICIONAL
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA EM MATÉRIA PENAL
DIREITO INTERNACIONAL
RECEPÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL
Numero Oficio: 2698
Data Oficio: 07/03/2002
Pedido: 07/11/2002
Data de Distribuição: 09/26/2002
Relator: FERNANDES CADILHA
Sessões: 00
Data Informação/Parecer: 10/26/2002
Sigla do Departamento 1: MJ
Entidades do Departamento 1: MIN DA JUSTIÇA
Privacidade: [09]
Indicação 2: ASSESSOR:MARTA PATRÍCIO
Área Temática:DIR CONST * DIR FUND * ORG PODER POL / DIR INT PUBL * TRATADOS
Legislação:CONST76 - ART8 N1 N2 ART277 ART278 N1 ART279; DL 144/99 DE 1999/08/31 - ART3 N1 N2 ART4 N1 ART146 N1 N2 N3
Direito Comunitário:
Direito Internacional:CONV EUR DE AUXÍLIO JUDICIÁRIO MÚTUO EM MATÉRIA PENAL - ART3 ART4 N1
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões: 1.ª Em face do princípio de prevalência dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português, enunciado no artigo 4º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, a entrada em vigor na ordem interna do 2.º Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, e especificadamente do seu artigo 8º, não gera qualquer incompatibilidade com o disposto no artigo 146º, n.º 2, daquele diploma, que, no tocante aos procedimentos abrangidos por tal Convenção, apenas tem valor de norma supletiva;
2.ª Uma alteração legislativa com vista a harmonizar o citado dispositivo da Lei n.º 144/99 com o artigo 8º do Protocolo Adicional apenas poderá justificar-se por razões de uniformização jurídica, apresentando o inconveniente de eliminar uma cláusula de salvaguarda dos interesses dos intervenientes no processo mesmo no âmbito das relações com Estados estrangeiros não contratantes.

Texto Integral:
Senhor Procurador-Geral da República,
Excelência:




1. A Senhora Ministra da Justiça dignou-se remeter à Procuradoria-Geral da República uma informação do Gabinete para as Relações Internacionais, Europeias e de Cooperação, referente ao 2.º Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, solicitando a emissão de parecer quanto à pertinência de uma eventual alteração legislativa em vista a compatibilizar o disposto no artigo 146º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, com o regime do artigo 8º do referido Protocolo ([1]).

Cumpre assim emitir parecer.

2. O 2.º Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, a que se refere o presente expediente, pretende completar o regime constante do artigo 3º da mesma Convenção, estatuindo no seu artigo 8º, sob a epígrafe “Procedimento”, o seguinte:

“Não obstante o disposto no artigo 3º da Convenção, quando um pedido especifica uma formalidade ou um determinado procedimento imposto pela legislação da Parte requerente, ainda que essa formalidade ou procedimento não sejam conhecidos da Parte requerida, esta parte dará satisfação ao pedido desde que não seja contrário aos princípios fundamentais do seu direito, salvo disposição em contrário do presente protocolo.”

O mesmo regime é, aliás, coincidente com o do artigo 4º, n.º 1, da Convenção Relativa ao Auxílio Mútuo em Matéria Penal entre os Membros da União Europeia, assinada em 29 de Maio de 2000, e a que o Estado Português se encontra já vinculado ([2]).

Entretanto, a Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, que aprova o Regime de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, no tocante ao auxílio judiciário mútuo em matéria penal, ao definir os princípios comuns aplicáveis às diferentes formas de auxílio, contempla já uma disposição destinada a determinar o direito aplicável relativamente a pedidos formulados por Estados estrangeiros, a qual apresenta, porém, uma formulação mais restritiva que a do referido artigo 8º do 2.º Protocolo Adicional.

Dispõe, com efeito, o artigo 146º da Lei n.º 144/99 ([3]):
“Artigo 146º
Direito aplicável
1 – O pedido de auxílio solicitado a Portugal é cumprido em conformidade com a lei portuguesa.
2 – Quando o Estado estrangeiro o solicite expressamente ou na decorrência de acordo, tratado ou convenção internacional, o auxílio pode ser prestado em conformidade com a legislação desse Estado, desde que não contrarie aos princípios fundamentais do direito português e não cause graves prejuízos aos intervenientes no processo.
3 – O auxílio é recusado se respeitar a acto não permitido pela legislação portuguesa ou susceptível de implicar sanções de carácter penal ou disciplinar.”

A dificuldade resulta, como se vê, da inclusão do segmento final do n.º 2 (e não cause graves prejuízos aos intervenientes no processo), que não consta do texto do artigo 8º do Protocolo, e a questão que se coloca é, pois, a de saber se este dispositivo se compatibiliza com o daquele artigo 146º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, ou, de outro modo, se é necessário operar uma alteração legislativa no direito interno de molde a permitir que se desencadeiem os procedimentos de ratificação do instrumento internacional.

3. As normas do direito internacional valem como fonte de direito directa e autónoma na ordem jurídica portuguesa. Controversa poderá ser a questão do seu lugar no sistema normativo, mormente por referência ao princípio da prioridade e prevalência da lei, tendo sobretudo em conta que a Constituição é omissa quanto a esse específico aspecto (artigo 8º).

Tudo está em determinar se as normas de direito internacional ocupam uma posição idêntica à da lei ordinária interna ou se dispõem de valor superior.

Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA ([4]), “basta que aquelas não tenham valor inferior à norma legal para que, em princípio, elas derroguem (ou prevaleçam sobre) as normas de lei interna anterior que as contrarie, por aplicação directa do princípio de que a lei posterior derroga a lei anterior. Mas só se lhes reconhecer valor superior à lei interna, um valor supra-legislativo, é que elas podem prevalecer sobre a lei interna posterior, de modo a tornar inválida ou ineficaz a lei que venha a contrariar uma norma de Direito Internacional Público vigente na ordem interna.”

No entanto, e não obstante a posição reticente destes autores, em relação ao direito internacional convencional particular, a doutrina inclina-se a aceitar que ele cede perante a Constituição, mas tem valor supralegal, isto é, prevalece sobre a lei interna anterior ou posterior ([5]). Essa parece ser a solução que ressalta da sujeição à fiscalização da constitucionalidade dos tratados internacionais, conforme o previsto nos artigos 277º, 278º, n.º 1, e 279º da Constituição, e da concomitante ausência de qualquer referência à hierarquia dos tratados na ordem interna, em face da actual formulação do artigo 8º, n.º 2 ([6]).

Nestes termos, na hipótese concreta, e sobretudo tendo em consideração um critério de posteridade (lex posterior derogat legi priori), haveria de concluir-se que a norma do artigo 146º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, no ponto em que estabelece um regime mais restritivo do que o previsto na correspondente disposição do 2.º Protocolo Adicional, teria de ceder perante este último preceito a partir do momento em que fosse recebido no direito interno ([7]).

4. Porém, se dúvidas pudessem subsistir quanto à aplicação deste critério interpretativo, elas dissipar-se-iam em face do princípio geral que emana do artigo 3º da referida Lei.

Dispõe este preceito:

“Artigo 3º
Prevalência dos tratados, convenções e acordos internacionais

1 – As formas de cooperação a que se refere o artigo 1º regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma.
2 – São subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal.”

Daqui resulta que as normas da Lei n.º 144/99, mormente em matéria de auxílio judiciário mútuo, tal com o direito processual comum, constituem mero direito supletivo quando se trate de procedimentos que se encontrem especialmente previstos em tratado internacional ([8]).

No caso vertente, após a recepção do 2.º Protocolo Adicional, e desde que o pedido seja formulado por um Estado parte da Convenção, as autoridades portuguesas ficam obrigadas a adoptar o procedimento convencionado por ser o directamente aplicável, ficando consequentemente excluído o recurso ao direito interno.

Não ocorre, portanto, em rigor, um conflito entre disposições do artigo 3º do Protocolo e do artigo 146º, n.º 2, da Lei n.º 144/99. O que sucede é que a norma do direito interno é inaplicável, visto que tem o mero valor de direito subsidiário que se destinaria a actuar apenas na falta de previsão expressa no direito internacional convencional.

5. Neste condicionalismo, sendo possível determinar, de modo inequívoco, o direito aplicável pelo recurso a critérios hermenêuticos, nada impõe a necessidade de efectuar uma alteração legislativa em relação ao citado artigo 146º, n.º 2.

Certo é que tal iniciativa poderia justificar-se por razões de uniformização jurídica. No entanto, nesse caso, teria a desvantagem de eliminar definitivamente da ordem jurídica interna uma cláusula de salvaguarda de interesses pessoais dos intervenientes do processo, a que o legislador nacional entendeu dar um específico relevo, impedindo que sua aplicação pudesse ter lugar nos pedidos formulados pelos Estados estrangeiros que não sejam partes na Convenção.

6. Termos em que se formulam as seguintes conclusões:

1.ª Em face do princípio de prevalência dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português, enunciado no artigo 4º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, a entrada em vigor na ordem interna do 2.º Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, e especificadamente do seu artigo 8º, não gera qualquer incompatibilidade com o disposto no artigo 146º, n.º 2, daquele diploma, que, no tocante aos procedimentos abrangidos por tal Convenção, apenas tem valor de norma supletiva;
2.ª Uma alteração legislativa com vista a harmonizar o citado dispositivo da Lei n.º 144/99 com o artigo 8º do Protocolo Adicional apenas poderá justificar-se por razões de uniformização jurídica, apresentando o inconveniente de eliminar uma cláusula de salvaguarda dos interesses dos intervenientes no processo mesmo no âmbito das relações com Estados estrangeiros não contratantes.


Lisboa, 26 de Outubro de 2002

O Procurador-Geral Adjunto


(Carlos Alberto Fernandes Cadilha)





[1]) Ofício n.º 2698, de 3 de Julho de 2002, que remete a informação n.º 358-GRIEC/AE-01, de 3 de Dezembro de 2001.
[2]) Aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 63/2001, de 6 de Outubro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 53/2001, da mesma data.
[3]) Na redacção dada pela Lei n.º 104/2001, de 25 de Agosto, que, no n.º 2, introduziu a expressão “ou na decorrência de acordo, tratado ou convenção internacional”.
[4]) Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra, pág. 86.
[5]) Em relação ao direito internacional geral ou comum, que o n.º 1 do artigo 8º da Constituição considera como fazendo parte integrante do direito português, independentemente de qualquer formalidade, autores há que lhe atribuem um grau supraconstitucional, que derivaria da própria natureza desse direito (constituído por regras consuetudinárias que se impõem a todos os Estados) e, ao menos implicitamente, do artigo 16º, n.º 1, ao estabelecer que “os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes (...) das regras aplicáveis de direito internacional” (ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, 3.ª edição, Coimbra, págs. 117-118).
[6]) Idem, págs. 121-122.
[7]) E assim se deverá entender em relação à disposição do artigo 4º, n.º 1, da Convenção Relativa ao Auxílio Mútuo em Matéria Penal entre os Membros da União Europeia, que derroga a citada norma do artigo 146º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, no tocante aos procedimentos abrangidos por tal Convenção.
[8]) Não invalida este entendimento a circunstância de na nova redacção dada pela Lei n.º 104/2001, de 25 de Agosto, se ter passado a admitir que a aplicação da legislação do Estado requerente, ao pedido de auxílio, o seja, não apenas a solicitação expressa desse Estado – como resultava da versão primitiva -, mas também por decorrência de acordo, tratado ou convenção internacional. Esta nova previsão não derroga o princípio de prevalência do direito internacional que consta do artigo 3º, unicamente torna extensiva a aplicação do regime alternativo em razão de norma convencional preexistente.