Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002164
Parecer: P001082002
Nº do Documento: PPA160120030010800
Descritores: DEFICIENTE DAS FORÇAS ARMADAS
MILITAR DA GNR
MANUTENÇÃO DA ORDEM PÚBLICA
RISCO AGRAVADO
NEXO DE CAUSALIDADE
INCAPACIDADE GERAL DE GANHO
Livro: 00
Numero Oficio: 6780/CG
Data Oficio: 10/23/2002
Pedido: 10/25/2002
Data de Distribuição: 11/07/2002
Relator: MÁRIO SERRANO
Sessões: 01
Data da Votação: 01/16/2003
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Sigla do Departamento 1: MDN
Entidades do Departamento 1: SE DA DEFESA E ANTIGOS COMBATENTES
Posição 1: HOMOLOGADO
Data da Posição 1: 01/16/2003
Privacidade: [02]
Indicação 2: ASSESSOR:TERESA BREIA
Conclusões: 1ª) O acidente sofrido por um militar da Guarda Nacional Republicana em exercício de funções, no decurso de uma acção para execução de um mandado judicial de apreensão de uma viatura e respectivos documentos, e que consistiu em ferimentos causados por um tiro com arma de fogo disparado inadvertidamente na sua direcção por um seu colega (quando este apenas pretendia impedir a continuação de uma agressão física cometida sobre aquele pelo indivíduo visado com a diligência), não é qualificável como acidente ocorrido na manutenção da ordem pública, nos termos do segundo item do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro;
2ª) A actuação descrita na conclusão anterior também não caracteriza um tipo de actividade com risco agravado enquadrável no nº 4 do artigo 2º, com referência ao nº 2 do artigo 1º, ambos do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro.

Texto Integral:
Senhor Secretário de Estado
da Defesa e Antigos Combatentes,
Excelência:


I


Dignou-se Vossa Excelência enviar à Procuradoria-Geral da República o processo relativo ao Cabo INF (...) da Guarda Nacional Republicana, (...) para ser submetido a parecer do Conselho Consultivo, ao abrigo do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro.

Cumpre emiti-lo.
II

1. Recebido no Ministério da Defesa Nacional o processo de qualificação do Cabo da G.N.R. (...) como deficiente das forças armadas, o respectivo Departamento de Assuntos Jurídicos elaborou informação ([1]), que se conclui do seguinte modo:

«Termos em que se propõe seja o processo remetido à Procuradoria-Geral da República a fim de ser submetido a parecer do Conselho Consultivo, nos termos do nº 4 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20.1, e da alínea a) do artigo 37º da Lei nº 47/86, de 15.10, a fim de se apurar do eventual enquadramento do acidente em questão no conceito de “risco agravado” ou no conceito de “manutenção da ordem pública”, conforme previstos no nº 2 do artº 1º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20.1, e, nomeadamente, ao esclarecimento da distinção entre os dois conceitos referidos, tal como têm vindo a ser entendidos pela PGR.»

No anterior desenvolvimento da informação afirmara-se, designadamente, o seguinte:

«18. Dos factos descritos resulta que o acidente em causa não é susceptível de integrar as situações de “acidente em campanha”, ou “em circunstâncias directamente relacionadas com campanha” ou “na prática de acto humanitário ou de dedicação à causa pública”.

19. Restam as situações de “manutenção da ordem pública” ou de “risco agravado” equiparável ao daquelas situações.»

E mais adiante:

«23. Atenta a matéria de facto assente nos autos, somos de parecer que deve a mesma ser objecto de apreciação pelo Conselho Consultivo da PGR, a fim de se apurar se o acidente em causa poderá integrar uma das duas situações referidas».

Vossa Excelência acolheu a sugestão formulada.


2. Coloca-se, portanto, a questão de saber se o acidente sofrido pelo requerente pode constituir fundamento para a sua qualificação como deficiente das forças armadas, seja por via do item “manutenção da ordem pública” do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76, seja pela via subsidiária da equiparação prevista no nº 4 do artigo 2º do mesmo diploma – sendo certo que esta última corresponde ao domínio essencial da intervenção deste corpo consultivo na matéria, dada a exigência legal de parecer obrigatório da Procuradoria-Geral da República sobre os casos nele compreendidos (artigo 2º, nº 4, in fine, do Decreto-Lei nº 43/76) ([2]).
III

1. Os documentos que acompanham o pedido de parecer fornecem os seguintes elementos de facto:

a) No dia 18 de Junho de 1983, cerca da 1 hora, uma força da G.N.R., composta pelo requerente e mais quatro soldados, no decurso de uma acção policial de fiscalização de trânsito (“Operação OCA 22”), detectou uma viatura de transporte de gado, em relação à qual existia um mandado de apreensão emitido por juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, pelo que foi determinada a paragem do veículo e a entrega dos documentos da viatura pelos seus ocupantes;

b) Os ocupantes da viatura, (...) e mulher, (...), recusaram a entrega dos documentos, embora tenham aceitado seguir no veículo até ao posto da G.N.R. de Santarém, mas no caminho acabaram por se dirigir para a localidade da sua residência, Vale da Água, naquele concelho;

c) Ali chegados, o jeep da G.N.R. parou imediatamente atrás da outra viatura, enquanto a referida (...) tentava fugir para o interior de sua casa, no que foi logo impedida pelo Cabo (...), o que motivou a intervenção do marido daquela, que se envolveu de seguida em luta física com o agente da autoridade;

d) Nessa ocasião, o soldado (...), integrado no grupo da G.N.R. em presença, e que empunhava uma espingarda G-3, fez dois disparos com a arma, que pretendia serem “para o ar” e com o intuito de “intimidar o civil”, mas pelo menos um dos tiros foi efectuado ainda durante o movimento ascendente da arma e veio a atingir o Cabo (...), no seu braço direito;

e) Na sequência de assistência hospitalar, foi constatado, conforme relatório médico de 30 de Junho de 1983, que o requerente apresentava «orifício de entrada na face posterior interna e saída na face anterior interna do 1/3 médio do braço direito», com «lesões nervosas»;

f) A 13 de Dezembro de 1984 foi declarado, em relatório final do Serviço de Saúde da G.N.R., que do acidente resultou para o requerente «incapacidade parcial que permite ao militar desempenhar serviços que dispensam plena validez»;

g) Por despacho de 20 de Outubro de 1987, do Comandante-Geral da G.N.R., foi considerado o acidente como tendo ocorrido «em serviço e em consequência do mesmo»;

h) Na ficha de avaliação de incapacidade permanente do Serviço de Saúde da G.N.R., datada de 27 de Abril de 1994, foi atribuída ao requerente a desvalorização de 67,63%, correspondente a «paralisia do nervo mediano do braço direito, paralisia do nervo mediano no punho direito, paralisia do nervo cubital no antebraço direito, paralisia do nervo cubital no punho direito, hipostesias e parastesias» – o que obteve confirmação da Junta Superior de Saúde e homologação superior.


2. Ainda a propósito da matéria de facto, convém salientar que no processo foi suscitada a hipótese de o disparo ter sido efectuado pela referida (...).

Na participação inicial do Comandante do Posto da G.N.R. de Santarém, diz-se que «a (...) logo que lhe foi possível fugiu para casa e foi munir-se de uma pistola, que disparou contra o Cabo (...)». E em informação final do Serviço de Justiça do Comando-Geral da G.N.R., datada de 10 de Maio de 1994, ainda é retomada essa versão dos acontecimentos, ao afirmar-se que o requerente «foi ferido a tiro de pistola pela proprietária do veículo».

No entanto, logo no depoimento do Soldado (...), em 21 de Junho de 1983, este declarou que «empunhou a espingarda G-3 que tinha, ficando-lhe apontada para o chão; de seguida elevou-a, rodando-a, para a apontar para o ar; (...) foi durante este movimento, e julgando que tinha a arma apontada para o ar, que disparou dois tiros», esclarecendo, mais adiante, que «os disparos que fez, em relação ao Cabo (...) foi a uma distância de cerca de 10 ou 12 metros, e com a intenção de intimidar e dissuadir o civil Diamantino de agredir o Cabo (...)» e «se atingiu alguém foi resultante de acto involuntário».

Tendo em conta essas declarações, bem como a circunstância de não ter sido produzida prova da existência de quaisquer outros disparos, veio o instrutor do processo, no seu relatório final, a concluir que o mencionado Soldado (...) «com a espingarda G-3 disparou 2 tiros de intimidação e, em simultâneo, movimentou esta, elevando o cano, que estava na direcção do chão, para o ar. Tudo o indica, durante este movimento atingiu aquele militar no braço direito e o civil já referido».

Aliás, à mesma conclusão chegou o Juiz de Instrução do Serviço de Polícia Judiciária Militar, no processo de instrução instaurado contra o Soldado (...) pelas lesões causadas no Cabo (...) e no aludido (...), conforme resulta do seu despacho final, em que se pronuncia sobre a ocorrência nestes termos ([3]):

«Das diligências efectuadas durante a instrução, não é possível concluir que o arguido Gonçalves tenha tido intenção de atingir a integridade física das vítimas.

Tudo nos leva a crer que a sua intenção era disparar para o ar e que ao pegar na arma, com a precipitação do momento e devido ao facto de ser de noite, tenha disparado o primeiro tiro baixo e atingido as vítimas.»

Atentos estes elementos, entende-se, pois, existirem dados seguros de o evento ter ocorrido como consta da matéria de facto supra descrita – pelo que será com base nessa factualidade que passaremos a apreciar a pretensão do requerente.


3. Importa, pois, com essa matéria de facto, averiguar se, no caso presente, se preenchem as condições para a pretendida qualificação como deficiente das forças armadas.
III

1. O Decreto-Lei nº 43/76 «reconhece o direito à reparação que assiste aos cidadãos portugueses que, sacrificando-se pela Pátria, se deficientaram ou se deficientem no cumprimento do serviço militar e institui as medidas e os meios que, assegurando as adequadas reabilitação e assistência, concorrem para a sua integração social» (artigo 1º, nº 1).

Em termos axiológicos, o respectivo regime legal funda-se no «reconhecimento do direito à plena reparação de consequências sobrevindas no cumprimento do dever militar aos que foram chamados a servir em situação de perigo ou perigosidade» e consagra «a materialização da obrigação de a Nação lhes prestar assistência económica e social, garantindo a sobrevivência digna, porque estão em jogo valores morais estabelecidos na sequência do reconhecimento e reparação àqueles que no cumprimento do dever militar se diminuíram, com consequências permanentes na sua capacidade geral de ganho, causando problemas familiares e sociais» ([4]).

2. Na delimitação do conceito de deficiente das forças armadas, o Decreto-Lei nº 43/76 estabelece, designadamente, o seguinte:

«Artigo 1º
Definição de deficiente das forças armadas

1. (...)
2. É considerado deficiente das forças armadas portuguesas o cidadão que:
No cumprimento do serviço militar e na defesa dos interesses da Pátria adquiriu uma diminuição na capacidade geral de ganho;
quando em resultado de acidente ocorrido:
Em serviço de campanha ou em circunstâncias directamente relacionadas com o serviço de campanha, ou como prisioneiro de guerra;
Na manutenção da ordem pública;
Na prática de acto humanitário ou de dedicação à causa pública; ou
No exercício das suas funções e deveres militares e por motivo do seu desempenho, em condições de que resulte, necessariamente, risco agravado equiparável ao definido nas situações previstas nos itens anteriores;
vem a sofrer, mesmo a posteriori, uma diminuição permanente, causada por lesão ou doença, adquirida ou agravada, consistindo em:
Perda anatómica; ou
Prejuízo ou perda de qualquer órgão ou função;
tendo sido, em consequência, declarado, nos termos da legislação em vigor:
Apto para o desempenho de cargos ou funções que dispensem plena validez; ou
Incapaz do serviço activo; ou
Incapaz de todo o serviço militar.
3. (...) ([5])
4. Não é considerado DFA o militar que contrair ou sofrer doenças ou acidentes intencionalmente provocados pelo próprio, provenientes de acções ou omissões por ele cometidas contra ordens expressas superiores ou em desrespeito das condições de segurança determinadas por autoridades competentes, desde que não justificadas.»

«Artigo 2º
Interpretação de conceitos contidos no artigo 1º

1. Para efeitos de definição constante do nº 2 do artigo 1º deste decreto-lei, considera-se que:
a) A diminuição das possibilidades de trabalho para angariar meios de subsistência, designada por “incapacidade geral de ganho”, deve ser calculada segundo a natureza ou gravidade da lesão ou doença, a profissão, o salário, a idade do deficiente, o grau de reabilitação à mesma ou outra profissão, de harmonia com o critério das juntas de saúde de cada ramo das forças armadas, considerada a tabela nacional de incapacidade;
b) É fixado em 30% o grau de incapacidade geral de ganho mínimo para o efeito da definição de deficiente das forças armadas e aplicação do presente decreto-lei.
2. O “serviço de campanha ou campanha” tem lugar no teatro de operações onde se verifiquem operações de guerra, de guerrilha ou de contraguerrilha e envolve as acções directas do inimigo, os eventos decorrentes de actividade indirecta de inimigo e os eventos determinados no decurso de qualquer outra actividade terrestre, naval ou aérea de natureza operacional.
3. As “circunstâncias directamente relacionadas com o serviço de campanha” têm lugar no teatro de operações onde ocorram operações de guerra, guerrilha ou de contraguerrilha e envolvem os eventos directamente relacionados com a actividade operacional que pelas suas características impliquem perigo em circunstâncias de contacto possível com o inimigo e os eventos determinados no decurso de qualquer outra actividade de natureza operacional, ou em actividade directamente relacionada, que pelas suas características próprias possam implicar perigosidade.
4. “O exercício de funções e deveres militares e por motivo do seu desempenho, em condições de que resulte, necessariamente, risco agravado equiparável ao definido nas situações previstas nos itens anteriores”, engloba aqueles casos especiais, aí não previstos, que, pela sua índole, considerado o quadro de causalidade, circunstâncias e agentes em que se desenrole, seja identificável com o espírito desta lei.
A qualificação destes casos compete ao Ministro da Defesa Nacional, após parecer da Procuradoria-Geral da República.» ([6])
3. A qualificação de um cidadão como deficiente das forças armadas pressupõe, basicamente ([7]):

- um certo quadro genérico de serviço: cumprimento do serviço militar e defesa dos interesses da pátria;

- um certo resultado: diminuição permanente da capacidade geral de ganho em pelo menos 30%, devido a acidente verificado no desenvolvimento do serviço;

- e um certo acidente, ocorrido numa das situações estabelecidas no nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76, ou seja: em serviço de campanha; em circunstâncias directamente relacionadas com o serviço de campanha; como prisioneiro de guerra; na manutenção da ordem pública; na prática de acto humanitário; na prática de acto de dedicação à causa pública; ou no exercício das suas funções e deveres militares e por motivo do seu desempenho, em condições de que resulte, necessariamente, risco agravado equiparável ao definido nas situações previstas nos itens anteriores.

Os privilégios decorrentes do regime dos deficientes das forças armadas têm ínsita a ideia de recompensar os que se sacrificam pela Pátria, pelo que é insuficiente, para a sua aplicação, o simples exercício das funções e dos deveres militares.

O conceito de deficiente das forças armadas supõe o grau incomum de riscos corridos e sofridos: exige-se um risco agravado superior ao risco genérico inerente a toda a actividade militar, o que o torna incompatível com circunstâncias ocasionais e imprevisíveis – e esse específico agravamento do risco tem sido afirmado e exigido pelo Conselho Consultivo a propósito dos diversos itens do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76.


4. Este regime dos deficientes das forças armadas foi tornado aplicável «aos militares da Guarda Nacional Republicana, da Guarda Fiscal e da Polícia de Segurança Pública, e bem assim aos comissários e agentes desta Polícia» pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 351/76, de 13 de Maio.

É, pois, ao abrigo desse normativo que vem colocada a este Conselho Consultivo a questão da qualificação do requerente como deficiente das forças armadas.
IV

1. Atento o disposto no nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76, haverá que ponderar qual das situações típicas ali descritas se adequa ao caso em apreço.

Como se referiu, a situação de facto reporta-se a um militar da Guarda Nacional Republicana que foi vítima de disparo de arma de fogo, involuntariamente efectuado por um seu colega, no decurso de uma acção desenvolvida em serviço, daí resultando ferimentos que vieram a determinar uma desvalorização de 67,63%.


2. Perante os dados de facto recolhidos, afigura-se evidente não se encontrar, para o acidente em causa, analogia com acidentes ocorridos em serviço de campanha ou em circunstâncias com ele directamente relacionadas, ou como prisioneiro de guerra, ou na prática de acto humanitário ou de dedicação à causa pública – situações que correspondem aos primeiro e terceiro itens do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76.


3. Quanto ao segundo item – manutenção da ordem pública –, importa ter presente que à G.N.R. estão expressamente atribuídas tarefas de manutenção da ordem pública, conforme decorre do artigo 2º, alínea a), da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei nº 231/93, de 26 de Junho ([8]).

3.1. Esse conceito de manutenção da ordem pública foi já objecto de largo desenvolvimento no citado parecer nº 79/86, ao qual nos passamos a ater e em que se escreveu o seguinte ([9]):

«Do que até agora se recolheu parece lícito retirar uma conclusão: a Polícia de Segurança Pública actua na manutenção da ordem pública quando reage àquela tríade: tranquilidade, segurança e salubridade.

Por isso encontra-se na manutenção da ordem pública o guarda da P.S.P. que percorre as ruas da cidade, no seu giro habitual, pois a sua simples presença ou passagem é factor dissuasor da desordem, da intranquilidade e da insegurança.

Actua ainda na manutenção da ordem pública, o guarda da P.S.P. que põe termo a uma agressão física, que conduz à prisão um delinquente ou persegue um autor de um furto.

8 – Mas serão então subsumíveis à previsão do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76 os acidentes que os membros da P.S.P. venham a sofrer no exercício da função de manutenção da ordem pública?

A resposta não pode ser abrangente, desde que se recorde a razão de ser do diploma: recompensar os que se sacrificaram pela Pátria. Os que suportam um risco de tal modo agravado e anormal no exercício das suas funções merecem um regime de privilégio, como o que está contemplado no Decreto-Lei nº 43/76.

Só que esta agravação de risco não pode ser apenas pensada para aqueles casos-limite, em que a tranquilidade e a segurança dificilmente podem ser contidas pelas forças policiais e militares.

Tão-pouco se pensa ser de exigir as clássicas situações tumultuosas, de manifestações de rua, de aglomeração de pessoas contestatárias, etc., para invocar a aplicação do item “manutenção da ordem pública” previsto no diploma.

Difícil será teorizar e a casuística pode revelar-se perigosamente discricionária: pensa-se, no entanto, que a prudência máxima se contentará, pelo menos, com a inserção no conceito de “manutenção da ordem pública” previsto no Decreto-Lei nº 43/76 das situações em que o agente da P.S.P. actua correndo potencialmente o risco da própria vida, revelando abnegação e coragem, motivadoras de um sentimento de gratidão por parte da comunidade.

As regras da experiência dirão dessas realidades (…)»

3.2. Regressemos à matéria de facto acima descrita e apreciemo-la à luz das anteriores considerações.

Não oferecerá dúvidas que a actuação desenvolvida pelo Cabo (...) nos momentos que antecederam o acidente em causa se integra plenamente no quadro de tarefas e competências conferidas à G.N.R. Nessa ocasião, o agente policial encontrava-se em serviço e no exercício de funções.

Porém, nessa actuação estiveram implicadas, especificamente, atribuições de fiscalização do trânsito rodoviário e de colaboração com as autoridades judiciárias no cumprimento das suas decisões – e não propriamente uma incumbência de reposição da ordem e da tranquilidade públicas, não obstante o agente policial estar, no preciso instante do acidente, a procurar pôr cobro a uma atitude de desobediência das pessoas visadas pela sua actuação.

De todo o modo – e retomando a delimitação conceptual operada pelo parecer nº 79/86 –, não se afigura ocorrer, in casu, a situação de risco potencial para a vida do agente na concreta acção então desempenhada.

Tem aqui pleno cabimento o que se disse no citado parecer nº 1/97:

«O desenvolvimento da actividade policial envolve um risco específico, próprio da função policial, que normalmente excede o risco de outras actividades profissionais.

Apesar deste excesso, trata-se de um risco que, em condições normais do exercício da função, não ameaça directa e imediatamente a vida ou a integridade física dos agentes que o suportam, dados os concretos meios de defesa de que dispõem e a normal evolução da vida em sociedade (x).

Pode, porém, suceder que a rotina da função policial e o risco que lhe é inerente sofram, em termos objectivos, uma alteração que importe um agravamento relevante do risco, transformando o risco genérico num risco excepcional.

Ora, só este releva para a atribuição do estatuto de deficiente das forças armadas. Isto é, a natureza do estatuto de deficiente das forças armadas e o inerente regime de privilégios não se basta com os perigos normais, próprios do exercício das funções policiais, antes exige uma conduta relevante e de risco excepcional.»

Com efeito, no presente caso, não ocorre a aludida alteração qualitativa do risco.

O Cabo (...) integrava uma concreta força policial de cinco elementos, com superioridade de meios, que se confrontava com dois cidadãos que não revestiam especial perigosidade, desde logo por não se encontrarem armados. E, como se viu, o acidente foi provocado por um acontecimento fortuito e meramente ocasional, resultado de uma imprudência de um dos elementos do grupo policial, que disparou inadvertidamente a sua arma na direcção do seu colega.

Da acção desenvolvida pelo Cabo (...) em si mesma considerada, não resultou um agravamento relevante e excepcional do risco inerente ao exercício da função. E, por isso, não é possível a afirmação de um risco da própria vida e de um desempenho abnegado, corajoso e justificativo de um sentimento de gratidão por parte da comunidade.

Em suma: não se pode sustentar, especificamente para os efeitos do disposto no segundo item do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76, que o acidente tenha ocorrido na manutenção da ordem pública.


4. Resta, assim, considerar a verificação do último item: aqui a questão reconduz-se a apurar se o acidente de que foi vítima o requerente terá ocorrido no exercício das suas funções e deveres policiais e por motivo do seu desempenho, em condições de que resulte, necessariamente, risco agravado equiparável ao definido nas situações previstas nos itens anteriores.

Esta averiguação impõe a necessidade de precisar o alcance que se tem conferido ao correspondente segmento normativo do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76.

4.1. O Conselho Consultivo tem, de há muito, interpretado as disposições conjugadas dos artigos 1º, nº 2, e 2º, nº 4, do Decreto-Lei nº 43/76 no sentido de que o regime jurídico dos deficientes das forças armadas, para além das situações expressamente contempladas no primeiro preceito – de serviço de campanha ou em circunstâncias com ele relacionadas, de prisioneiro de guerra, de manutenção da ordem pública e de prática de acto humanitário ou de dedicação à causa pública –, só é aplicável aos casos que, «pelo seu circunstancialismo, justifiquem uma equiparação, em termos objectivos, àquelas situações de facto, dado corresponderem a actividades próprias da função militar ou inerentes à defesa de altos interesses públicos, importando sujeição a um risco que, excedendo significativamente o que é próprio do comum das actividades castrenses, se mostra agravado em termos de se poder equiparar ao que caracteriza aquelas situações paradigmáticas» ([10]).

Nessa linha, tem-se ainda afirmado que «implica esse regime não só que o acidente tenha ocorrido em serviço, mas também que a actividade militar que o gera envolva, por sua natureza, objectiva e necessariamente, um risco agravado em termos de poder equiparar-se ao que decorre em situações de campanha ou a elas por lei igualadas» ([11]).

4.2. Estando em causa a ocorrência de risco agravado, a qualificação como deficiente das forças armadas, a par de um juízo positivo sobre aquela ocorrência, exige ainda a verificação de outros dois pressupostos ([12]):

a) a existência de uma relação de causalidade adequada entre a actividade em cuja prática se produziu o acidente e a incapacidade sofrida, ou seja, «entre o acto (acontecimento, situação) e o acidente (lesão ou doença), e entre este e a incapacidade, deve existir um duplo nexo causal» ([13]), sendo indispensável apurar «no domínio da matéria de facto – estranho à competência deste corpo consultivo – que o acidente, ocorrido em situação de risco agravado», se encontra nessa dupla relação de causalidade ([14]);

b) a verificação de um grau de incapacidade geral de ganho mínimo de 30% [conforme o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 43/76].

O Conselho tem procedido ao tratamento jurídico separado de cada um dos três mencionados requisitos, o que se fundamentou, designadamente quanto a dois deles, nos seguintes termos:

«Com efeito, crê-se não serem legítimas dúvidas de que o juízo sobre o risco agravado deve manter-se independente da avaliação, nomeadamente, sobre a existência do duplo nexo causal entre o acidente e a actividade que o gera, por um lado, e a incapacidade originada, por outro.

Elementares razões metódicas radicando na recíproca autonomia dos dois requisitos e na intencionalidade finalística, inclusive, de possibilitar a apreciação da sua convergência na prática fundamentada do acto administrativo de qualificação DFA pela entidade competente, tudo isso exige a sua caracterização e elaboração jurídica separada.» ([15])

De igual modo, nos casos em que o coeficiente de incapacidade é inferior ao mínimo legal, também aí o Conselho não tem deixado de caracterizar a actividade causadora do acidente como portadora ou não de risco agravado, independentemente de vir a ser emitido parecer desfavorável à qualificação como deficiente das forças armadas por insuficiência daquele coeficiente ([16]).

4.3. Do ponto de vista da aferição do risco agravado, este Conselho tem ponderado que tal risco, necessariamente superior ao risco genérico da actividade militar, não se compagina com o que resulta de circunstâncias meramente ocasionais ou imprevisíveis.

Conforme se disse no parecer nº 242/00, «desde cedo se considerou risco agravado “um risco que em alguma medida se possa acrescentar àquele que decorre da actividade militar normal”, um risco “de grau equivalente aos das actividades operacionais expressamente contempladas” nos itens do nº 2 do artigo 1º (-) e actividade de risco agravado “uma actividade arriscada por sua própria natureza e não por efeito de circunstâncias imprevisíveis e ocasionais” (-)».

No aprofundamento do critério de aferição do risco agravado, previsto no nº 4 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 43/76, é de salientar o parecer nº 92/98 ([17]), em que se pode ler o seguinte:

«Nos termos do nº 4 do acima citado artigo, “o exercício de funções e deveres militares e por motivo do seu desempenho, em condições de que resulte, necessariamente, risco agravado equiparável ao definido nas situações previstas nos itens anteriores”, engloba casos especiais, aí não previstos, que, pela sua índole, considerado o quadro de causalidade, circunstâncias e agentes em que se desenrole, seja identificável com o espírito da lei e, por isso, justificando o alargamento do regime jurídico dos DFA aos casos que, embora não relacionados com campanha ou equivalente, mereçam, pelo seu circunstancialismo, o mesmo critério de qualificação.
(...)
Na apreciação de situações específicas, os casos concretos têm de ser analisados e ponderados e só pela consideração das circunstâncias em que os acidentes ocorreram, se poderá proceder à sua qualificação como envolvendo risco agravado equiparável ao risco do serviço de campanha.
Na verdade, “toda a actividade militar comporta, pelos fins que prossegue e pelos meios que emprega, um risco específico que pode ir, por vezes, até ao sacrifício da própria vida. Mas esse é um risco próprio da função militar, inerente ao desenvolvimento do respectivo serviço.
Excede, naturalmente, os limites dos riscos comuns aos demais cidadãos ou de outras actividades profissionais, mas para os militares não deixa de, em princípio, considerar-se um risco generalizado dentro da instituição.
Mas a qualificação de deficiente exige um risco agravado, isto é, um risco que em alguma medida se possa acrescentar àquele que decorre da actividade militar normal.
Esse acréscimo de risco deve ser avaliado face ao condicionalismo de cada caso, pelas circunstâncias determinadas e envolventes de natureza excepcionalmente perigosa mesmo no âmbito da vida militar, de grau equivalente ao das actividades operacionais expressamente contempladas no aludido preceito” (x1).
As exigências legais apontam para este entendimento. Na verdade, o alargamento do regime jurídico dos deficientes das forças armadas aos casos que, embora não relacionados com campanha ou equivalente, justifiquem, pelo seu circunstancialismo, o mesmo critério de qualificação, supõe o exercício de funções militares “que, pela sua índole, considerado o quadro de causalidade, circunstâncias e agentes em que se desenrole, seja identificável com o espírito” do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro. E, como já se referiu, o espírito da lei é o de compensar os que se sacrifiquem pela Pátria, concedendo um estatuto especial àqueles que tiveram de enfrentar situações de particular risco para a sua segurança pessoal e mesmo para a sua vida.»

4.4. Estas considerações são de aplicar, mutatis mutandis, ao exercício de funções e deveres policiais.

É perfeitamente concebível a ocorrência de situações em que, objectivamente, se verifique um agravamento relevante do risco genérico inerente ao exercício da actividade policial, que permita afirmar a existência de um risco agravado equiparável a serviço de campanha ou equivalente ([18]).

Revertendo ao caso concreto, se é sustentável a existência do duplo nexo de causalidade e ocorre uma incapacidade geral de ganho do requerente superior a 30% (concretamente, 67,63%), já se mostra insubsistente a afirmação de uma efectiva agravação do risco.

Antes o acidente se verificou em circunstâncias manifestamente fortuitas e imprevisíveis: um tiro de arma de fogo disparado involuntariamente na direcção do agente policial sinistrado por um seu colega, tiro esse que, se motivado pelo próprio contexto do desenvolvimento da acção (intentava-se um disparo para o ar como meio de intimidação, em ordem a impedir a continuação de uma agressão física ao colega), surgiu de forma inesperada – até mesmo incompreensível, dada a superioridade numérica dos agentes policiais e a desproporção de meios – e com um resultado normalmente improvável.

Refira-se, em abono desta solução, que idêntico juízo foi formulado por este Conselho Consultivo, por exemplo, no caso apreciado no parecer nº 78/99 ([19]), com alguma similitude ao ora em apreço, na medida em que ali se tratava também de ferimentos causados por disparo efectuado por um colega, no contexto de um acto funcional desprovido de especial risco ([20]). Aí se considerou que o acidente «foi produzido em circunstâncias meramente ocasionais, provenientes de um acto voluntário e isolado de terceiro, sem relação com qualquer risco específico próprio da actividade militar, não sendo, por isso, enquadrável no disposto no nº 4 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, com referência ao artigo 1º, nº 2, deste diploma legal».

Conclui-se, assim, que perante os elementos de facto conhecidos sobre o acidente sofrido pelo requerente, não é possível afirmar a existência de um risco agravado equiparável às situações de serviço de campanha ou equivalente, enquadrável no nº 4 do artigo 2º, com referência ao nº 2 do artigo 1º, ambos do Decreto-Lei nº 43/76 – o que impede a sua qualificação como deficiente das forças armadas.
V

Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1ª) O acidente sofrido por um militar da Guarda Nacional Republicana em exercício de funções, no decurso de uma acção para execução de um mandado judicial de apreensão de uma viatura e respectivos documentos, e que consistiu em ferimentos causados por um tiro com arma de fogo disparado inadvertidamente na sua direcção por um seu colega (quando este apenas pretendia impedir a continuação de uma agressão física cometida sobre aquele pelo indivíduo visado com a diligência), não é qualificável como acidente ocorrido na manutenção da ordem pública, nos termos do segundo item do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro;

2ª) A actuação descrita na conclusão anterior também não caracteriza um tipo de actividade com risco agravado enquadrável no nº 4 do artigo 2º, com referência ao nº 2 do artigo 1º, ambos do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro.





([1]) Com o nº 23515/2002, de 12 de Outubro de 2002.
([2]) Como se assinala no parecer nº 1/97, de 6 de Março de 1997, deste corpo consultivo – que se acompanhará de perto –, «esta dupla via foi, ao nível da doutrina do Conselho Consultivo, aberta pelo parecer nº 79/86, de 4 de Dezembro de 1986 (...): a partir da definição do conceito de manutenção da ordem pública (segundo item do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76) (...), passa a entender-se que, sendo caso disso, se deve apurar se uma concreta actuação policial lhe é subsumível, apenas na hipótese negativa se justificando ponderar a possibilidade de subsunção ao nº 4 do artigo 2º, referido ao quarto item do nº 2 do artigo 1º».
([3]) Refira-se que o processo veio a terminar por extinção do procedimento criminal, com fundamento em amnistia.
([4]) Do preâmbulo do Decreto-Lei nº 43/76.
([5]) O actual nº 3, cujo conteúdo não releva para a questão em apreço, foi introduzido pelo artigo 1º da Lei nº 46/99, de 16 de Junho, passando o anterior nº 3 a constituir o nº 4 ora transcrito.
([6]) A redacção do nº 4 resulta da Declaração de rectificação publicada no Diário da República, I Série, de 21 de Novembro de 1977 (2º Suplemento).
([7]) Segue-se de perto, nesta parte, o citado parecer nº 1/97.
([8]) Reza assim a citada disposição legal: «A Guarda tem por missão geral: a) Garantir, no âmbito da sua responsabilidade, a manutenção da ordem pública, assegurando o exercício dos direitos, liberdades e garantias».
([9]) Este parecer reporta-se a uma actuação de agente da Polícia de Segurança Pública, mas a análise é perfeitamente transponível para a situação dos militares da G.N.R., já que também a P.S.P. tem funções expressamente atribuídas de manutenção da ordem pública, de acordo com o artigo 2º, alínea b), da Lei de Organização e Funcionamento da Polícia de Segurança Pública, aprovada pela Lei nº 5/99, de 27 de Janeiro.
(x) Cfr. o já referido parecer nº 71/89 [de 23 de Novembro de 1989].
([10]) Orientação já expressa nos pareceres nºs 55/87, de 29 de Julho de 1987, e 80/87, de 19 de Novembro de 1987, e uniformente reiterada, o que voltou a ocorrer nos pareceres nºs 99/01, de 11 de Outubro de 2001, 167/01, de 6 de Dezembro de 2001, 116/01, de 20 de Dezembro de 2001, e 170/2001, de 31 de Janeiro de 2002, que se referem a título de mero exemplo.
([11]) Idem.
([12]) Sublinhando estes aspectos, v., por todos, o parecer nº 45/89, de 12 de Julho de 1989, e, mais recentemente, o parecer nº 242/00, de 17 de Maio de 2001.
([13]) Cfr. o parecer nº 45/89 citado.
([14]) Idem. Também assim o citado parecer nº 99/01.
([15]) Do parecer nº 242/00 citado.
([16]) Como informa aquele parecer nº 242/00. Referindo este entendimento, v. o mencionado parecer nº 99/01. E, em concretização desse critério, cfr., a título meramente exemplificativo, o parecer nº 520/2000, de 6 de Dezembro de 2001.
([17]) De 2 de Dezembro de 1998.
(x1) Parecer nº 122/76, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, 267, pág. 40.
([18]) Em aplicação deste critério, v. citado parecer nº 1/97.
([19]) De 21 de Dezembro de 1999.
([20]) Embora aí o risco fosse significativamente menor que no caso sub judicio, já que o evento ocorreu no decurso de uma formatura geral na parada de quartel da G.N.R., ainda que o disparo tivesse sido intencional.