Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002255
Parecer: P000352003
Nº do Documento: PPA15052003003500
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL
COIMA
DESTINO DO PRODUTO DAS COIMAS
CUSTAS
ESTABELECIMENTO DE RESTAURAÇÃO E BEBIDAS
COMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA
SUBSIDIARIEDADE
COFRE GERAL DOS TRIBUNAIS
INTERPRETAÇÃO DA LEI
VIGÊNCIA DA LEI
REVOGAÇÃO DA LEI
LEI ESPECIAL
CLÁUSULA DE AUTODEFESA
Texto Integral:
Senhor Conselheiro Procurador-Geral da República,
Excelência:


I

O Senhor Chefe do Gabinete de Sua Excelência o Secretário de Estado da Administração Interna, na sequência da prolação de decisões judiciais divergentes sobre o destino do produto das coimas aplicadas a estabelecimentos de restauração e bebidas que disponham de espaços ou salas destinadas a dança, por violação do disposto no Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, e na Portaria n.º 26/99, de 16 de Janeiro, solicitou ao Senhor Chefe do Gabinete de Vossa Excelência, através de ofício datado de 28 de Maio de 2001, que fossem dadas instruções aos senhores procuradores da República e procuradores-adjuntos para interporem recurso de todas as sentenças judiciais que decretem a reversão para o Cofre Geral dos Tribunais do produto das coimas resultantes da aplicação do disposto no Decreto-Lei n.º 231/98 e diplomas regulamentares.

Em face do exposto Vossa Excelência solicitou informação ao Gabinete.

Na Informação n.º 93/2001, Processo n.º 360/2001, L.º 115, de 18 de Outubro de 2001, emitida para dar resposta a essa determinação, equaciona-se a problemática exposta pelo Senhor Chefe do Gabinete de Sua Excelência o Secretário de Estado da Administração Interna e sugere-se a audição deste corpo consultivo.

Uma vez que na informação referida estava igualmente em causa um anterior pedido do mesmo Senhor Chefe de Gabinete, endereçado à Procuradoria-Geral da República em 9 de Abril de 2001, solicitando que fossem dadas instruções aos magistrados do Ministério Público para interposição de recurso das “sentenças desfavoráveis ao Estado” nos casos relativos à impugnação das decisões das autoridades administrativas que apliquem coimas a estabelecimentos de restauração e bebidas que disponham de espaços ou salas destinadas a dança, por falta do sistema de segurança privada estabelecido no Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, e na Portaria n.º 26/99, de 16 de Janeiro, Vossa Excelência determinou que fosse recolhida informação junto das Procuradorias-Gerais Distritais “sobre os casos de que tenham conhecimento de impugnação judicial de aplicação de coimas por infracção ao disposto nos diplomas referenciados e qual o seu resultado”, tendo diferido a sua pronúncia quanto à necessidade de recorrer a parecer do Conselho Consultivo para momento ulterior.

Obtida a informação pretendida, o Gabinete elaborou a Informação n.º GA020117, Processo n.º 360/2001, L.º 115, de 20 de Novembro de 2002, em que analisa as questões suscitadas à luz dos elementos informativos entretanto enviados e reafirma a necessidade e o interesse de que o assunto respeitante ao destino das coimas cobradas em juízo seja apreciado por este corpo consultivo.

Anuindo à sugestão, dignou-se Vossa Excelência submeter a parecer do Conselho Consultivo “a questão de se saber se o regime da norma do artigo 131.º, n.º 1, alínea a), do Código das Custas Judiciais, na parte em que faz reverter para o Cofre Geral dos Tribunais a receita das coimas ou multas de qualquer natureza, ressalvadas as excepções ali previstas, se deve sobrepor ao regime decorrente do n.º 4 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho”.

Cumpre, assim, emitir parecer.

II

1. O Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho[1], regula o exercício da actividade de segurança privada[2], constituindo as violações ao disposto nesse diploma contra-ordenações e revertendo o produto das respectivas coimas em 60% para o Estado e em 40% para o Ministério da Administração Interna.
Na verdade, dispõe no seu artigo 33.º :
“Artigo 33.º
(Competência)
1 – São competentes para o levantamento dos autos de contra–ordenação previstos no presente diploma as entidades referidas no artigo 29.º.
2 – É competente para a instrução dos processos de contra-ordenação o secretário-geral do Ministério da Administração Interna.
3 – A aplicação das coimas e sanções acessórias previstas no presente diploma compete ao Ministro da Administração Interna.
4 – O produto das coimas referidas no número anterior reverte em 60% para o Estado e em 40% para o Ministério da Administração Interna.
5 – Na execução para a cobrança coerciva da coima, responde por esta a caução, garantia bancária ou seguro-caução prestado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 25.º.
6 – Na Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna é mantido, em registo próprio, o cadastro de cada entidade a que foram aplicadas sanções, nos termos do presente diploma.”

Por seu turno, a Portaria n.º 26/99, de 16 de Janeiro, ao abrigo do estatuído no n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, regulamentou as condições objectivas em que os estabelecimentos de restauração e bebidas que disponham de espaços ou salas destinados a dança ou onde habitualmente se dance, são obrigados a dispor de um sistema de segurança privada, bem como os meios, humanos e técnicos, considerados indispensáveis ao normal funcionamento desses meios de segurança.

As infracções às respectivas normas constituíam contra-ordenações, sendo que, nos termos da alínea g) do n.º 9 da citada Portaria, “a decisão dos processos de contra-ordenação é da competência do Ministro da Administração Interna, que a pode delegar nos termos da lei”, e segundo o disposto na alínea h) do n.º 9 da mesma Portaria “o produto das coimas reverte em 60% para o Estado e em 40% para o Ministério da Administração Interna”.

Entretanto, o Decreto-Lei n.º 263/2001, de 28 de Setembro, sucedeu à Portaria n.º 26/99, de 16 de Janeiro, na definição das condições objectivas em que os estabelecimentos de restauração e bebidas são obrigados a dispor de um sistema de segurança privada, bem como os meios, humanos e técnicos, considerados indispensáveis ao normal funcionamento desses meios de segurança.

As infracções às normas do citado diploma constituem, igualmente, contra-ordenações puníveis com coima, sendo a decisão dos processos de contra-ordenação da competência do Ministro da Administração Interna, que a pode delegar nos termos da lei (n.º 2 do artigo 7.º), e revertendo o correspondente produto em 60% para o Estado e em 40% para a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna (n.º 3 do artigo 7.º).

2. Muitos outros diplomas legais fixam o regime de repartição das importâncias das coimas aplicadas por infracção às normas neles estabelecidas.

A título exemplificativo indicam-se alguns desses diplomas.

Assim, o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25 de Outubro, cujo capítulo IV, subordinado ao título “Da divisão da multa e da coima”, se mantém em vigor, isto segundo o disposto na alínea a) do artigo 2.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias), determina nos artigos 61.º, 63.º e 64.º inseridos no aludido capítulo:
“Artigo 61.º
(Distribuição da multa e da coima)
1 – ..................................................................................................
2 – ..........................................................................................................
3 – A importância da coima será dividida e distribuída nos seguintes termos:
a) 25% para a Fazenda Nacional;
b) 25% para o autuante;
c) 50% para a Direcção-Geral das Alfândegas ou para a Guarda Fiscal.
4 – Sendo vários os autuantes, a parte que caberia a cada um deles será subdividida em fracções iguais, independentemente da respectiva categoria.
5 – A parte da multa e da coima relativa à Fazenda Nacional será logo convertida em receita efectiva.
“Artigo 63.º
(Redução)
Os funcionários técnico-aduaneiros e os agentes da fiscalização externa que, no desempenho de quaisquer inspecções, inquéritos, sindicâncias e outras comissões análogas, participem alguma infracção têm direito a metade da percentagem referida na alínea b) do n.º 3 do artigo 61.º.
“Artigo 64.º
(Limite da participação nas coimas)
1 – Se as pessoas que têm direito à partilha estabelecida nos artigos anteriores forem funcionários, não poderão receber por cada processo importância que exceda o vencimento anual que lhes competir, retirada a parte emolumentar.
2 – A parte excedente ao vencimento anual do funcionário reverte para a Fazenda Nacional.”

O Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, cujo artigo 58.º se mantém em vigor, nos termos da alínea b) do artigo 2.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias), prescreve naquele normativo:
“Artigo 58.º
(Divisão do produto das coimas)
1 – O produto das coimas será dividido nos termos do Decreto n.º 12 101, de 12 de Agosto de 1926, e do Decreto n.º 12 296, de 10 de Setembro de 1926, com as alterações introduzidas pelo artigo 12.º do Decreto n.º 15 661, de 1 de Julho de 1928, e distribuído de harmonia com a demais legislação aplicável.
2 – O disposto no número anterior aplicar-se-á, ainda que a coima seja aplicada pelo tribunal comum, nos casos previstos na lei.”

Importa conhecer as normas para que remete o preceito transcrito.

Segundo o artigo 1.º do Decreto n.º 12 101, de 12 de Agosto de 1926, “A importância das multas impostas por transgressão das leis e regulamentos administrativos, fiscais e judiciais é dividida: 75% para o Estado e 25% pelos funcionários que participarem ou descobrirem a transgressão”.

Por seu lado, o artigo 1.º do Decreto n.º 12 296, de 10 de Setembro de 1926, com as alterações introduzidas pelo artigo 12.º do Decreto n.º 15 661, de 1 de Julho de 1928, determina que “A parte das multas que, nos termos do artigo 1.º do Decreto n.º 12 101, de 12 de Agosto de 1926, pertence aos funcionários da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, por transgressão das leis e regulamentos fiscais, será distribuída: 10% para o Cofre de Previdência (...) e 90% para o funcionário que tomar conhecimento do facto e tiver levantado o auto ou participado a transgressão”.

Outro exemplo é o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, que alterou o regime jurídico do cheque sem provisão aprovado pelo Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro:
“Artigo 14.º
(Contra-Ordenações)
1 – .............................................................................................................
2–................................................................................................................
3 – .............................................................................................................
4 – .............................................................................................................
5 – A instrução do processo de contra-ordenação e a aplicação da coima competem ao Banco de Portugal.
6 – O produto das coimas aplicadas é distribuído da seguinte forma:
a) 40% para o Banco de Portugal;
b) 60% para o Estado.”

Doutro passo, o n.º 1 do artigo 15.º do Regime das Contra-Ordenações Laborais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/99, de 4 de Agosto, comanda:
“Artigo 15.º
(Destino das coimas)
1 – Em processos cuja instrução esteja cometida à Inspecção-Geral do Trabalho, metade do produto das coimas aplicadas reverte para o Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho, a título de compensação de custos de funcionamento e despesas processuais, tendo o remanescente o seguinte destino:
a) Fundo de Garantia e Actualização de Pensões, no caso de coimas aplicadas em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho;
b) 35% para o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e 15% para o Orçamento do Estado, relativamente às demais coimas.
2 – ............................................................................................................”

O artigo 130.º do Decreto-Lei n.º 338/2001, de 26 de Dezembro, que regulamenta a Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro (Lei de Bases Gerais da Caça), ordena:
“Artigo 130.º
(Destino do montante das coimas)
A afectação do produto das coimas aplicadas reverte para as seguintes entidades:
a) 60% para o Estado;
b) 10% para a entidade autuante;
c) 20% para a entidade que instrui o processo;
d) 10% para a entidade que aplica a coima.”

São ainda paradigmáticos o Decreto-Lei n.º 369/99, de 18 de Setembro, que acolheu o novo regime de distribuição do produto das coimas por infracções rodoviárias, e o novo Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro.

Aliás, o preâmbulo do primeiro diploma enunciado é bem esclarecedor no que se refere ao enquadramento da problemática em apreciação:

“O Decreto-Lei n.º 138/89, de 29 de Abril, afectou parte das receitas provenientes das sanções pecuniárias por infracções ao Código da Estrada, seu Regulamento e legislação complementar às entidades que têm a seu cargo a fiscalização da actividade rodoviária, tendo o regime de distribuição dessas receitas sido estabelecido através das Portarias n.os 425/89, de 12 de Junho, e 55/90, de 23 de Janeiro. Estes diplomas, porém, previram a afectação de receitas apenas às forças de segurança, quando é certo que a competência para a fiscalização do trânsito e o consequente levantamento de autos de contra-ordenação não se restringem àquelas forças, sendo de realçar as atribuições das câmaras municipais nesse domínio.
Por outro lado, alguns diplomas publicados posteriormente estabeleceram sistemas diferentes de repartição do produto das coimas, nem sempre prevendo a afectação de receitas às entidades fiscalizadoras[3]. Acresce que, estando atribuída aos governos civis competência em matéria de decisão de autos de contra-ordenação, se justifica a distribuição de parte do produto das coimas àquelas entidades, o que também não está previsto no regime legal em vigor.
Convém uniformizar o regime legal em tal matéria, tornando-o coerente e garantindo uma equitativa distribuição de receitas entre as entidades com intervenção na fiscalização, processamento e decisão das contra-ordenações rodoviárias.”

Nessa conformidade, estipula o artigo 1.º do citado Decreto-Lei n.º 369/99:
“Artigo 1.º
1 – As receitas provenientes das coimas por contra-ordenações ao Código da Estrada, seus regulamentos e legislação complementar e cujos processos sejam instruídos pela Direcção-Geral de Viação revertem:
a) Em 40% para o Estado;
b) Em 30% para a entidade em cujo âmbito de competência fiscalizadora for levantado o auto de contra-ordenação;
c) Em 20% para a Direcção-Geral de Viação;
d) Em 10% para os governos civis.
2 – A afectação de receitas prevista nas alíneas b) a d) do número anterior abrange as coimas cobradas em juízo.
3 – Para os efeitos previstos na alínea b) do n.º 1 do presente artigo são entidades fiscalizadoras as referidas no n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-–Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e no n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 327/98, de 2 de Novembro.
4 – O montante mencionado na alínea d) do n.º 1 é distribuído anualmente por despacho do Ministro da Administração Interna.”

Por sua vez, o n.º 2 do artigo 406.º do novo Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, dispõe:
“Artigo 406.º
(Coimas, custas e benefício económico)
1 – .............................................................................................................
2 – O produto das coimas e do benefício económico apreendido nos processos de contra-ordenação reverte integralmente para o Sistema de Indemnização dos Investidores, independentemente da fase em que se torne definitiva ou transite em julgado a decisão condenatória.”

3. O complexo normativo descrito e analisado, aponta no sentido de que a expressa intenção dos inúmeros diplomas legais que prevêem contra-ordenações e fixam o regime de repartição das importâncias das coimas aplicadas por infracção às normas neles estabelecidas é a de garantir uma equitativa distribuição de receitas entre as entidades com intervenção na fiscalização, processamento e decisão das contra-ordenações.

Releva notar, sobretudo, que alguns diplomas procuram salvaguardar o regime específico de afectação do produto das coimas face a intervenções legislativas posteriores que possam estabelecer sistemas diferentes de repartição dessas receitas, afirmando, em autodefesa desse regime próprio, que o destino das importâncias das coimas mantém-se independentemente do tipo de processo ou fase processual em que a coima é aplicada e qualquer que seja o momento do respectivo pagamento.

Concretizando:
– A divisão do produto das coimas “aplicar-se-á, ainda que a coima seja aplicada pelo tribunal comum, nos casos previstos na lei”, afirma-se no artigo 58.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro;
– “A afectação de receitas prevista (...) abrange as coimas cobradas em juízo”, segundo o n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 369/99, de 18 de Setembro;
– “O produto das coimas (...) reverte integralmente para o Sistema de Indemnização dos Investidores, independentemente da fase em que se torne definitiva ou transite em julgado a decisão condenatória”, nos termos do n.º 2 do artigo 406.º do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto–Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro.

Nesta indagação revela-se, por isso, de interesse conhecer o regime geral do direito de mera ordenação social e o respectivo processo, para clarificação das regras de competência respeitantes ao processamento das contra-ordenações e à aplicação das coimas, respectivo pagamento e eventuais procedimentos de execução.

III

1. O ilícito de mera ordenação social, consagrado a partir de 1979 [4], recebeu expresso reconhecimento constitucional na alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º, na alínea q) do n.º 1 do artigo 227.º, no n.º 3 do artigo 282.º e, ainda, no n.º 10 do artigo 32.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

De realçar que a alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º citado, consagra a competência exclusiva da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, para legislar sobre o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo e que de acordo com o disposto no n.º 10 do artigo 32.º aludido, “nos processos de contra-ordenação (...) são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.

2. O Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro – Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo[5] – acolhe o regime geral vigente no âmbito do direito de mera ordenação social.

Vamos examiná-lo na íntegra, privilegiando os aspectos que se relacionam de perto com o tema da consulta.

Em primeiro lugar, convém possuir uma visão sistemática do diploma, que está dividido em duas partes, integradas por capítulos, a saber:

I PARTE (Da contra-ordenação e da coima em geral – artigos 1.º a 32.º):

– Capítulo I (Âmbito de vigência – artigos 1.º a 6.º);
– Capítulo II (Da contra-ordenação – artigos 7.º a 16.º);
– Capítulo III (Da coima e das sanções acessórias – artigos 17.º a 26.º);
– Capítulo IV (Prescrição – artigos 27.º a 31.º);
– Capítulo V (Do direito subsidiário – artigo 32.º).

II PARTE (Do processo de contra-ordenação – artigos 33.º a 96.º):

– Capítulo I (Da competência – artigos 33.º a 40.º);
– Capítulo II (Princípios e disposições gerais – artigos 41.º a 47.º);
– Capítulo III (Da aplicação da coima pelas autoridades administrativas –
artigos 48.º a 58.º);
– Capítulo IV (Recurso e processo judiciais – artigos 59.º a 75.º);
– Capítulo V (Processo de contra-ordenação e processo criminal – artigos
76.º a 78.º);
– Capítulo VI (Decisão definitiva, caso julgado e revisão – artigos 79.º a
82.º);
– Capítulo VII (Processos Especiais – artigos 83.º a 87.º);
– Capítulo VIII (Da execução – artigos 88.º a 91.º);
– Capítulo IX (Das custas – artigos 92.º a 95.º);
– Capítulo X (Disposição final – artigo 96.º).

A I Parte do regime geral abre com a definição de contra-ordenação, “todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima” (artigo 1.º); segue-se a consagração do princípio da legalidade (artigo 2.º), a afirmação das regras de aplicação da lei no tempo (artigo 3.º) e no espaço (artigo 4.º), a determinação do momento da prática do facto (artigo 5.º) e do lugar da prática do facto (artigo 6.º).

No segmento relativo à contra-ordenação em geral, delimita-se o âmbito da responsabilidade a pessoas singulares, pessoas colectivas e entidades equiparadas e estabelecem-se critérios de imputação das infracções (artigo 7.º), acolhe-se o princípio da culpa e da punibilidade da negligência nos casos especialmente previstos na lei (artigo 8.º), a figura do erro sobre a ilicitude (artigo 9.º), a inimputabilidade em razão da idade (artigo 10.º) e em razão de anomalia psíquica (artigo 11.º), caracteriza-se a tentativa (artigo 12.º), esclarecendo-se quando é punível (artigo 13.º) e quando é relevante a desistência (artigo 14.º), designadamente em caso de comparticipação (artigo 15.º), e afirma-se um conceito extensivo de autoria, que abrange a autoria imediata, co-autoria, autoria mediata, instigação e cumplicidade (artigo 16.º).

No respeitante à coima e sanções acessórias, fixam-se os montantes gerais das coimas (artigo 17.º) e os critérios de determinação da medida da coima (artigo 18.º), pormenoriza-se o regime do concurso de contra-ordenações (artigo 19.º) e do concurso de infracções, quando o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação (artigo 20.º), bem como o regime das sanções acessórias (artigo 21.º) e os pressupostos da sua aplicação (artigo 21.º-A), referindo-se os restantes normativos à perda de objectos perigosos (artigo 22.º), à declaração de perda de uma quantia em dinheiro correspondente ao valor dos objectos cuja perda se tornou inexequível (artigo 23.º), aos efeitos da perda (artigo 24.º), à perda de objectos perigosos ou do respectivo valor ainda que não possa haver procedimento contra o agente ou não lhe seja aplicada uma coima (artigo 25.º) e à perda de objectos perigosos pertencentes a terceiro (artigo 26.º).

Matéria particularmente importante é a da prescrição, estando agora clarificado o regime da prescrição do procedimento por contra-ordenação (artigo 27.º), da suspensão da prescrição (artigo 27.º-A) e da interrupção da prescrição (artigo 28.º), prevendo-se, ainda, os prazos de prescrição da coima (artigo 29.º), a suspensão da prescrição da coima (artigo 30.º), a interrupção da prescrição da coima (artigo 31.º) e a prescrição das sanções acessórias (artigo 32.º).

A I Parte encerra com a proclamação das normas do Código Penal como direito subsidiário no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-–ordenações (artigo 32.º).

A II Parte contempla a disciplina do processo de contra-ordenação.

O artigo 33.º assume a consagração expressa de que, em regra, o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às autoridades administrativas, “ressalvadas as especialidades previstas no presente diploma”, seguindo-se o enunciado das normas relativas à competência em razão da matéria (artigo 34.º), territorial (artigo 35.º), por conexão (artigo 36º) e resolução dos conflitos de competência (artigo 37.º).

A regra geral exposta sobre a competência para o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas admite especialidades.

Assim, o processamento da contra-ordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal, “quando se verifique concurso de crime e contra-ordenação, ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação” (artigo 38.º), sendo que, neste caso, a aplicação da coima e das sanções acessórias cabe ao juiz competente para o julgamento do crime (artigo 39.º).

Peculiar expressão desta especialidade é o dever da autoridade administrativa competente, “sempre que considere que a infracção constitui um crime”, de enviar o processo ao Ministério Público, que, por sua vez, se considerar que não há lugar para a responsabilidade criminal, devolverá o processo à mesma autoridade (artigo 40.º).

No Capítulo II relativo aos Princípios e disposições gerais interessa destacar a aplicação subsidiária ao processo de contra-ordenação dos preceitos reguladores do processo criminal, devidamente adaptados, “sempre que o contrário não resulte deste diploma” (artigo 41.º), e no que concerne aos aspectos estritamente processuais, a enumeração das medidas de coacção, meios de prova e meios de obtenção de prova não permitidos (artigo 42.º), o afloramento do princípio da legalidade (artigo 43.º), a supressão da ajuramentação das testemunhas (artigo 44.º), a possibilidade de consulta dos autos e de exame dos objectos apreendidos conferida às autoridades administrativas, quando o processamento da contra-ordenação couber às autoridades competentes para o processo criminal (artigo 45.º) e, finalmente, as regras sobre comunicação das decisões (artigo 46.º) e notificações (artigo 47.º).

O regime da tramitação do processo de contra-ordenação comporta, na fase organicamente administrativa, a investigação dos factos e a instrução material do processo, finda a qual é proferida uma decisão final, arquivando o processo ou aplicando uma coima.

Prevê-se, neste conspecto, a aquisição da notícia da contra-ordenação pelas autoridades policiais e fiscalizadoras, bem como a tomada de providências cautelares quanto aos meios de prova (artigo 48.º), a apreensão de objectos para efeito de prova (artigo 48.º-A), a identificação do agente de contra-ordenação pelas autoridades administrativas e policiais (artigo 49.º), a forma de efectivação do direito de audição e defesa do arguido (artigo 50.º), o regime do pagamento voluntário (artigo 50.º-A), a figura da admoestação, “quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique” (artigo 51.º), os deveres das testemunhas e peritos (artigo 52.º), a constituição e nomeação de defensor ao arguido (artigo 53.º), a iniciativa do processo de contra-ordenação e a competência da autoridade administrativa para dirigir a sua investigação e instrução, eventualmente com o auxílio das autoridades policiais e de outras autoridades ou serviços públicos (artigo 54.º) e a admissibilidade de recurso das decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem (artigo 55.º).

Quando o processamento da contra-ordenação é realizado pelas autoridades competentes para o processo criminal, as autoridades administrativas são obrigadas a dar-lhes toda a colaboração, devendo a acusação relativa à contra-ordenação ser comunicada às autoridades administrativas, que “serão ouvidas pelo Ministério Público se este arquivar o processo” (artigo 56.º), e sempre que o Ministério Público acusar pelo crime, a acusação abrangerá também a contra-ordenação (artigo 57.º).

O artigo 58.º trata dos requisitos da decisão que aplica a coima:
“Artigo 58.º
(Decisão condenatória)
1 – A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.
2 – Da decisão deve ainda constar a informação de que:
a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.°;
b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho.
3 – A decisão conterá ainda:
a) A ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão;
b) A indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.”

Interessa agora considerar a fase judicial de impugnação e recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima, a que vai dedicado o Capítulo IV.

As disposições atinentes regem sobre a forma e o prazo para interposição do recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa (artigo 59.º), o modo como deve contar-se esse prazo (artigo 60.º), o tribunal competente para conhecer do recurso (artigo 61.º), o envio dos autos ao Ministério Público, “que os tornará presentes ao juiz, valendo esse acto como acusação”, sendo que até ao envio dos autos, a autoridade administrativa pode revogar a decisão de aplicação da coima (artigo 62.º), a não aceitação do recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma (artigo 63.º), a decisão do caso mediante simples despacho judicial, que pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação, devendo neste caso “o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção” (artigo 64.º).

“Isto quer dizer que o tribunal que conhece do recurso de aplicação de coimas tem poderes de jurisdição plena: por um lado, não está limitado pela prévia definição do Direito, feita na decisão recorrida, e pode assim anulá-la. Por outro lado, pode mesmo substituir-se à Administração na aplicação da coima. Ou seja: não se limita, nos casos em que isso for necessário, a anular a decisão recorrida; pode, e deve, em vez disso, tomar, ele mesmo, uma decisão sobre a infracção. O tribunal conhece directamente dos factos em causa, da sua qualificação jurídica e avalia, com autonomia, o quantum da medida a aplicar, se for esse o caso.”[6]

Se o juiz considerar necessária a produção de prova para decidir o recurso, procede à marcação da audiência de julgamento (artigo 65.º).

Entretanto, conforme o disposto no artigo 65.º-A, o Ministério Público pode, com o acordo do arguido, a todo o tempo, e até à sentença em 1.ª instância ou até à prolação do despacho previsto no n.º 2 do artigo 64.º, retirar a acusação, devendo antes ouvir as autoridades administrativas competentes, “salvo se entender que tal não é indispensável para uma adequada decisão”.

Sendo designada audiência de julgamento, esta obedecerá às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito (artigo 66.º), estando previsto um regime processual próprio quer quanto à participação do arguido na audiência (artigo 67.º), à ausência do arguido (artigo 68.º), à participação do Ministério Público (artigo 69.º) e das autoridades administrativas (artigo 70.º), à desistência do recurso (artigo 71.º), às regras da prova (artigo 72.º) e à proibição genérica da reformatio in pejus (artigo 72.º-A), quer quanto às decisões judiciais que admitem recurso para a Relação (artigo 73.º), correspondente regime do recurso (artigo 74.º), âmbito e efeitos do recurso (artigo 75.º), sendo de sublinhar que a Relação apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões (n.º 1), podendo alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, salvo o disposto no artigo 72.º-A [alínea a) do n.º 2], anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido [alínea b) do n.º 2].

Tenha-se, todavia, presente que o tribunal não está vinculado à apreciação do facto como contra-ordenação, podendo, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, converter o processo em processo criminal, implicando a interrupção da instância e a instauração de inquérito, aproveitando-se, na medida do possível, as provas já produzidas (artigo 76.º).

Por outro lado, o tribunal poderá apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime, passando o processo a obedecer aos preceitos do diploma legal em apreço (artigo 77.º).

A inter-relação entre os regimes de tramitação do processo de contra-–ordenação e do processo criminal emerge ainda do artigo 78.º que dispõe:
“Artigo 78.º
(Processo relativo a crimes e contra-ordenações)
1 – Se o mesmo processo versar sobre crimes e contra-ordenações, havendo infracções que devam apenas considerar-se como contra-ordenações, aplicam-se, quanto a elas, os artigos 42.°, 43.°, 45.°, 58.°, n.os 1 e 3, 70.° e 83.°.
2 – Quando, nos casos previstos no número anterior, se interpuser simultaneamente recurso em relação a contra-ordenação e a crime, os recursos subirão juntos.
3 – O recurso subirá nos termos do Código de Processo Penal, não se aplicando o disposto no artigo 66.° nem dependendo o recurso relativo à contra-ordenação dos pressupostos do artigo 73.°.”

O alcance do carácter definitivo da decisão da autoridade administrativa e do trânsito em julgado da decisão judicial que aprecie o facto como contra-ordenação ou como crime acha-se regulado no artigo 79.º, enquanto os artigos 80.º e 81.º se ocupam, respectivamente, da admissibilidade da revisão de decisões definitivas ou transitadas em julgado e do regime do processo de revisão.

Ainda numa perspectiva de relação entre os regimes de tramitação do processo de contra-ordenação e do processo criminal, observe-se que, de acordo com o estatuído no artigo 82.º, a decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima ou uma sanção acessória caduca quando o arguido venha a ser condenado em processo criminal pelo mesmo facto (n.º 1) e que o mesmo efeito tem a decisão final do processo criminal que, não consistindo numa condenação, seja incompatível com a aplicação da coima ou da sanção acessória (n.º 2).

O Capítulo VII, sob a epígrafe Processos especiais, contém regras processuais sobre a apreensão de qualquer objecto (artigo 83.º), a impugnação judicial da decisão de apreensão (artigo 85.º), a representação das pessoas colectivas e das associações sem personalidade jurídica no processo e a competência territorial para aplicação da coima e das sanções acessórias nos processos relativos a pessoas colectivas e das associações sem personalidade jurídica (artigo 87.º), sendo de notar que os artigos 84.º e 86.º foram revogados pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro.

Vejamos agora os procedimentos atinentes à execução da sanção.

O seu âmbito material inclui as normas relativas ao pagamento da coima (artigo 88.º), à definição do tribunal em que será promovida a execução, bem como do regime da tramitação do processo de execução (artigo 89.º), à possibilidade de substituição total ou parcial da coima aplicada por dias de trabalho a favor da comunidade (artigo 89.º-A), à extinção e suspensão da execução (artigo 90.º) e, finalmente, à competência do tribunal perante o qual se promove a execução para decidir sobre todos os incidentes e questões suscitadas na execução, nomeadamente, a respeito da admissibilidade da execução, das decisões tomadas pelas autoridades administrativas em matéria de facilidades de pagamento e suspensão da execução (artigo 91.º).

Resta atentar nas regras sobre a responsabilidade por custas.

O artigo 92.º estabelece os princípios gerais sobre as custas em processo de contra-ordenação, que se regem pelos preceitos reguladores das custas em processo criminal (n.º 1) e que abrangem, nos termos gerais, a taxa de justiça, os honorários dos defensores oficiosos, os emolumentos a pagar aos peritos e os demais encargos resultantes do processo (n.º 3).

O artigo 93.º refere-se à taxa de justiça, o artigo 94.º às custas e o artigo 95.º à impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa relativa às custas.

Por último, uma disposição final (artigo 96.º) sanciona a revogação do primitivo regime das contra-ordenações aprovado pelo Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho.

3. Dir-se-á, em resumo, que se em princípio a aplicação das coimas é da competência das autoridades administrativas, há casos em que as coimas são fixadas em tribunal, seja quando a competência para o processamento das contra-ordenações pertence em 1.ª instância às autoridades competentes para o processo criminal, seja na fase judicial de impugnação e recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima.

Por outro lado, o pagamento (cobrança) das coimas tanto pode ser feito à autoridade administrativa como ocorrer perante o tribunal competente.
Interessa em particular à problemática submetida à nossa apreciação, notar que o regime geral do direito de mera ordenação social não contém disposição específica sobre o destino da importância das coimas e que os preceitos reguladores do processo criminal, devidamente adaptados, são subsidiariamente aplicáveis ao processo de contra-ordenação.

Convirá, por isso, conhecer o regime acolhido no Código de Processo Penal no que respeita ao destino do produto das multas e das coimas aplicadas.
IV

1. O destino da importância das multas e das coimas aplicadas em processo penal está fixado através da regra geral estabelecida no artigo 512.º do Código de Processo Penal[7].

Na sua versão originária, o artigo 512.º, inserido na Parte Segunda, Livro X (Das execuções), Título VI (Da execução de bens e destino das multas), estipulava:

“Artigo 512.º
(Destino das multas)
Salvo disposição da lei em contrário, da importância de todas as multas e coimas aplicadas em processo penal, incluindo as multas resultantes da conversão da pena de prisão, reverte metade para o tesouro público, ou para o município respectivo quando se trate de multas cujo produto constitua receita das autarquias locais, e metade para os Cofres do Ministério da Justiça.” [8]

Este artigo foi alterado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, ficando com a seguinte redacção:

“Artigo 512.º
(Destino das multas)
Salvo disposição da lei em contrário, a importância das multas e das coimas aplicadas em juízo tem o destino fixado no Código das Custas Judiciais.”

O certo é que o texto originário deste normativo, mesmo antes da alteração introduzida em 25 de Agosto de 1998, já não se encontrava em vigor, pois o destino do produto das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo fora posteriormente determinado pelo artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro.

Por conseguinte, o destino das quantias especificadas no artigo 512.º do Código de Processo Penal encontra-se agora estabelecido no artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, e com as alterações do Decreto-Lei n.º 91/97, de 22 de Abril, e do Decreto-Lei n.º 304/99, de 6 de Agosto.

2. Neste contexto, importa captar a evolução das normas contidas no artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, e o sentido das alterações introduzidas no respectivo texto.

A versão originária deste artigo 131.º previa:

“Artigo 131.º
(Destino das receitas)
1 – Revertem para o Cofre Geral dos Tribunais[9]:
a) O produto das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo, ainda que por lei constituam receita do Estado ou de outras entidades;
b) As taxas de justiça criminal;
c) As taxas de justiça cível;
d) As quantias a que se refere o n.º 2 do artigo 57.º;
e) Os juros de mora, os juros das contas e as importâncias provenientes de actos avulsos;
f) 10% do produto da venda dos objectos apreendidos em processos criminais, acrescido das despesas que tenha adiantado.
2 – Das receitas mencionadas na alínea b) do número anterior, revertem 40% para o Serviço Social do Ministério da Justiça e 20% para o Instituto de Reinserção Social.
3 – Incumbe ao Cofre Geral dos Tribunais o envio trimestral das receitas referidas no número anterior às entidades a que se destinam.”

Este preceito corresponde ao artigo 231.º do anterior Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44 329, de 8 de Maio de 1962, que na alínea c) do seu n.º 1 mandava reverter para o Cofre Geral dos Tribunais “As multas e coimas fixadas em juízo, (...), na parte que por lei constitua receita do Estado”.

O novo Código das Custas Judiciais já não se refere ao destino das coimas e das multas fixadas em juízo, como acontecia no Código anterior, mas antes às coimas e multas cobradas em juízo, determinando agora que essas importâncias revertem integralmente para o Cofre Geral dos Tribunais, “ainda que por lei constituam receita do Estado ou de outras entidades”.

No entanto, a citada alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º vigorou pouco tempo, já que foi alterada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 91/97, de 22 de Abril, estabelecendo o seu artigo 2.º que “O presente diploma entra em vigor no dia imediato ao da sua publicação, produzindo efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1997”, ou seja, a alteração em causa produziu efeitos desde a data da entrada em vigor do novo Código das Custas Judiciais, cominada no artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 224-–A/96, de 26 de Novembro.

A motivação das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 91/97, de 22 de Abril, acha-se claramente exposta no respectivo preâmbulo, que esclarece:

“O Código das Custas Judiciais, aprovado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, em vigor desde o dia 1 de Janeiro do ano corrente, veio estabelecer, na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º, a regra, sem qualquer ressalva, da reversão para o Cofre Geral dos Tribunais das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo.
Visou-se a contrapartida para uma actividade que, transitando do âmbito das autoridades administrativas, passou a traduzir-se em actividade jurisdicional, geradora de despesas, nem sempre negligenciáveis.
De resto, embora em matéria cível, o princípio tendencial da justiça gratuita para o vencedor, introduzido no referido Código pelo artigo 4.º, faz recair sobre o Cofre Geral dos Tribunais o pagamento de reembolsos nos processos em que as partes vencidas sejam, entre outras, as autarquias locais.
Verifica-se, porém, que a citada disposição da alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º colide com a da alínea j) do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), que inclui nas receitas próprias dos municípios o produto das coimas e multas que lhes caibam.
Do mesmo modo, está consignado à acção social, constituindo receita do orçamento da segurança social, quer o produto das coimas aplicadas no seu âmbito (artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 64/89, de 25 de Fevereiro) quer o das multas resultantes de infracções ao respectivo regime penal (artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 140/95, de 14 de Junho). Face ao destino de tais verbas, importa manter a sua afectação.
Salvaguarda-se ainda o direito à participação no produto das coimas que legislação avulsa atribui aos autuantes.
Pelo exposto, enquanto não ocorrer uma reponderação da situação que permita que o Cofre Geral dos Tribunais participe, equitativamente, na arrecadação das receitas enunciadas em primeiro e segundo lugares, há que corrigir o que ora se dispõe no Código das Custas Judiciais, com retroacção dos efeitos entretanto produzidos à data do início da sua vigência”.

Nesta conformidade, o artigo 131.º passou a ter a seguinte redacção:


“Artigo 131.º
(Destino das receitas)
1 – Revertem para o Cofre Geral dos Tribunais:
a) O produto das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo, salvo se constituírem receitas do orçamento da segurança social, das autarquias locais ou percentagem a que, por lei, tenha direito o autuante ou o participante;
b) .........................................................................................................
c) .........................................................................................................
d) .........................................................................................................
e) .........................................................................................................
f) ..........................................................................................................
2 – .............................................................................................................
3 – Incumbe ao Cofre Geral dos Tribunais o envio trimestral das receitas referidas na alínea a) do n.º 1 e no número anterior às entidades a que se destinam, sendo, no âmbito do sistema de segurança social, competente, para tal efeito, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.”

Na sequência de diversos acórdãos do Tribunal Constitucional[10] que julgaram inconstitucional, por violação dos artigos 164.º, alínea b), e 228.º da Constituição da República Portuguesa, na versão de 1989, a norma constante da alínea a) do n.º 1 do citado artigo 131.º, na parte em que mandava reverter para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas cobradas em juízo, sem exceptuar as que o fossem nas regiões autónomas, o Decreto-Lei n.º 304/99, de 6 de Agosto, alterou o referido normativo no sentido de excluir da regra nele consagrada as multas e coimas que constituam receitas das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

O respectivo preâmbulo, justifica a alteração efectuada do seguinte modo:

“O Código das Custas Judiciais, aprovado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, instituiu, como regra, no n.º 1 do artigo 131.º, a reversão para o Cofre Geral dos Tribunais das coimas e das multas de qualquer natureza, cobradas em juízo.
O Decreto-Lei n.º 91/97, de 22 de Abril, excepcionou dessa regra as importâncias que constituam receitas do orçamento da segurança social, das autarquias locais ou percentagem a que, por lei, tenha direito o autuante ou o participante.
Verifica-se que do elenco dessa ressalva ficaram injustificadamente excluídas as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. Com efeito, segundo os seus Estatutos Político-Administrativos, são receitas das Regiões as multas e coimas cobradas no seu território [artigo 102.º, alínea b), da Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, quanto à Região Autónoma dos Açores, e artigo 67.º, alínea b), da Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, no que concerne à Região Autónoma da Madeira].
Pelo exposto, enquanto não ocorrer uma reponderação da situação que permita que o Cofre Geral dos Tribunais participe, equitativamente, na arrecadação do produto das coimas e das multas arrecadadas através do exercício da função jurisdicional, importa proceder à correcção da omissão praticada.”

Em consequência, o artigo 131.º passou a dispor como segue:

“Artigo 131.º
(Destino das receitas)
1 – Revertem para o Cofre Geral dos Tribunais:
a) O produto das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo, salvo se constituírem receitas das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, do orçamento da segurança social, das autarquias locais ou percentagem a que, por lei, tenha direito o autuante ou o participante;
b) .........................................................................................................
c) .........................................................................................................
d) .........................................................................................................
e) .........................................................................................................
f) ..........................................................................................................
2 – .............................................................................................................
3 – ............................................................................................................”

3. A indagação precedentemente desenvolvida permite concluir que a alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais vigente, estabelece a regra geral da reversão para o Cofre Geral dos Tribunais do produto das coimas de qualquer natureza cobradas em juízo, salvaguardando apenas os casos em que as importâncias das coimas constituam receitas legalmente atribuídas às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, às instituições de segurança social, às autarquias locais ou percentagem a que, por lei, tenha direito o autuante ou o participante das infracções em causa.

Visou-se com esta particular intervenção legislativa obter a adequada “contrapartida para uma actividade que, transitando do âmbito das autoridades administrativas, passou a traduzir-se em actividade jurisdicional, geradora de despesas, nem sempre negligenciáveis”, e que constituem encargos do Cofre Geral dos Tribunais, nos termos do artigo 147.º do Código das Custas Judiciais.

A lei é muito clara no sentido de que o autuante ou o participante a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º citado é o próprio funcionário ou agente que tomar conhecimento do facto e tiver levantado o auto ou participado a infracção e não a entidade em cujo âmbito de competência fiscalizadora for levantado o auto ou participada a contra-ordenação, como bem decorre, entre outros, do estatuído nos artigos 61.º, 63.º e 64.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25 de Outubro, o que melhor se compreende mediante o cotejo com o disposto no artigo 130.º do Decreto-Lei n.º 338/2001, de 26 de Dezembro, que determina a afectação do produto das coimas aplicadas para as seguintes entidades: a) 60% para o Estado; b) 10% para a entidade autuante; c) 20% para a entidade que instrui o processo; e d) 10% para a entidade que aplica a coima.

Nesse mesmo sentido aponta a distinção feita no próprio texto da referida alínea a) entre, por um lado, as receitas das Regiões Autónomas, do orçamento da segurança social e das autarquias locais e, por outro lado, a percentagem a que tenha direito o autuante ou o participante – a adopção do vocábulo “receitas” por contraposição a “percentagem” evidencia que, no primeiro caso, estão em causa verbas pertinentes ao orçamento de pessoas colectivas de direito público, enquanto, no segundo caso, verifica-se o recebimento de uma comissão pessoal na razão de uns tantos por cento, que não poderá exceder, nalguns casos, por cada processo, o vencimento anual que competir ao funcionário.

“São cobradas em juízo as coimas cujo quantitativo seja efectivamente recebido em tribunal em razão de condenação na primeira instância e nos casos excepcionais em que isso pode ocorrer no quadro da acção executiva ou em via de recurso.

“Isso significa, por exemplo, que a multa devida pelo não pagamento de portagens, se paga à entidade concessionária, reverte para ela e para o Estado, na proporção de 40% e 60%, respectivamente, nos termos do n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 130/93, de 22 de Abril, mas se paga em juízo toda ela reverte para o Cofre Geral dos Tribunais”.[11] - [12]

Já no caso das receitas provenientes das coimas por contra-ordenações ao Código da Estrada, seus regulamentos e legislação complementar e cujos processos sejam instruídos pela Direcção-Geral de Viação, que por força do disposto no n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 369/99, de 18 de Setembro, revertem em 40% para o Estado [alínea a)], em 30% para a entidade em cujo âmbito de competência fiscalizadora for levantado o auto de contra-ordenação [alínea b)], em 20% para a Direcção-Geral de Viação [alínea c)] e em 10% para os governos civis [alínea d)], uma vez que o n.º 2 do mesmo artigo estabelece que a afectação de receitas previstas nas alíneas b) a d) do seu n.º 1 abrange as coimas cobradas em juízo, resulta derrogado o regime de distribuição consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais vigente, pelo que 60% do produto das referidas coimas cobradas em juízo reverte para as entidades aludidas nas citadas alíneas b) a d) e só 40% para o Cofre Geral dos Tribunais.

O mesmo se passa, mutatis mutandis, no que concerne ao regime de divisão do produto das coimas previsto no n.º 2 do artigo 406.º do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto–Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, que “reverte integralmente para o Sistema de Indemnização dos Investidores, independentemente da fase em que se torne definitiva ou transite em julgado a decisão condenatória”, e que derroga, nesse preciso segmento, a norma contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais vigente.

V

1. É agora oportuno inserir um compasso de síntese com vista a delinear a exposição subsequente.

Como se referiu supra, o regime geral do direito de mera ordenação social não contém disposição específica sobre o destino da importância das coimas, aplicando-se subsidiariamente ao processo de contra-ordenação, os preceitos reguladores do processo criminal, devidamente adaptados.

Ora, o destino da importância das multas e das coimas aplicadas em processo penal está fixado através da regra geral estabelecida no artigo 512.º do Código de Processo Penal que, na versão originária, mandava reverter “metade para o tesouro público, ou para o município respectivo quando se trate de multas cujo produto constitua receita das autarquias locais, e metade para os Cofres do Ministério da Justiça”, e que passou a dispor, após a alteração introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que “salvo disposição da lei em contrário, a importância das multas e das coimas aplicadas em juízo tem o destino fixado no Código das Custas Judiciais”.

Por sua vez, o Código das Custas Judiciais, aprovado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, em vigor desde o dia 1 de Janeiro de 1997, veio estabelecer, na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º, a regra, sem qualquer ressalva, da reversão para o Cofre Geral dos Tribunais das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo, sendo que o Decreto-Lei n.º 91/97, de 22 de Abril, excepcionou dessa regra as importâncias que constituíssem receitas do orçamento da segurança social, das autarquias locais ou percentagem a que, por lei, tenha direito o autuante ou o participante.

Em momento posterior ocorre a publicação do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, diploma concretamente em causa, que regula o exercício da actividade de segurança privada e que estipula a reversão do produto das respectivas coimas em 60% para o Estado e em 40% para o Ministério da Administração Interna.

O mesmo regime de afectação do produto das coimas é acolhido na alínea h) do n.º 9 da Portaria n.º 26/99, de 16 de Janeiro, e depois no n.º 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 263/2001, de 28 de Setembro, que sucedeu àquela Portaria na definição das condições objectivas em que os estabelecimentos de restauração e bebidas são obrigados a dispor de um sistema de segurança privada, bem como os meios, humanos e técnicos, considerados indispensáveis ao normal funcionamento desses meios de segurança.

Ainda nesta sequência, julgada inconstitucional a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, na parte em que mandava reverter para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas cobradas em juízo, sem exceptuar as que o fossem nas regiões autónomas, o Decreto-Lei n.º 304/99, de 6 de Agosto, embora mantendo como regra a reversão para o Cofre Geral dos Tribunais das coimas e das multas de qualquer natureza, cobradas em juízo, veio alterar o referido normativo, excluindo da regra nele consagrada as multas e coimas que constituam receitas das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

É perante este quadro normativo que se coloca a questão de saber se o regime da norma do artigo 131.º, n.º 1, alínea a), do Código das Custas Judiciais, na parte em que faz reverter para o Cofre Geral dos Tribunais a receita das coimas ou multas de qualquer natureza cobradas em juízo, ressalvadas as excepções ali previstas, se deve sobrepor ao regime decorrente do n.º 4 do artigo 33.º do Decreto-–Lei n.º 231/98, de 22 de Julho.

2. A questão sobre que versa a consulta implica directamente com o problema da interpretação, vigência e revogação das leis.
Permitam-se, pois, as considerações genéricas que se seguem.

A interpretação jurídica tem por objecto descobrir, de entre os sentidos possíveis da lei, o seu sentido prevalente ou decisivo[13], sendo o artigo 9.º do Código Civil a norma fundamental a proporcionar uma orientação legislativa para tal tarefa[14].

A apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma “tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal”[15].

Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica[16].

O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim, como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

O elemento histórico abrange todas as matérias relacionadas com a história do preceito, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.

O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.

Isto posto.

Embora as leis, normalmente, tenham um carácter de estabilidade, se destinem a duração indefinida, a verdade é que podem deixar de estar em vigor já por terem sido revogadas, já por terem caducado[17].

Enquanto a caducidade ocorre por superveniência de um facto previsto pela própria lei (resulta, pois, de uma circunstância a ela inerente), a revogação pressupõe a entrada em vigor de uma nova lei, resultando de um outra manifestação de vontade do legislador, contrária à que serviu de base à vigência da lei – lex posterior derogat priori.

Com efeito, dispõe o n.º 1 do artigo 7.º do Código Civil, “quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei”.

E “a revogação pode resultar – conforme o n.º 2 do mesmo artigo – de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior”.

A revogação é expressa, se a nova lei individualiza concretamente a lei ou as disposições anteriores revogadas, ou tácita, se falta essa indicação expressa e a revogação resulta apenas da incompatibilidade existente entre uma nova lei e a lei anterior, conjugada com o princípio geral da prevalência da vontade mais recente do legislador[18] .

Esta incompatibilidade pode derivar de um conflito directo e substancial entre os preceitos das duas leis, ou da circunstância de uma nova lei estabelecer um novo regime, completo, das relações em causa, regulando toda a matéria já disciplinada pela anterior, pois daqui se deduz a vontade por parte do legislador de liquidar o passado, estabelecendo um novo sistema de princípios completo e autónomo.

Pode também a revogação ser total (ab-rogação) ou parcial (derrogação), ou seja, determinado diploma pode ser substituído no seu conjunto ou apenas em parte.

Registe-se, ainda, que a revogação tácita apenas se verifica na medida da contraditoriedade – a lei precedente é ab-rogada até onde for incompatível com a lei nova, pois onde essa contraditoriedade não tenha lugar é possível a coexistência e compenetração da lei anterior parcialmente revogada com a lei nova modificadora[19].

Como já advertiam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[20], quando a revogação não é expressa, torna-se por vezes difícil saber até que ponto a nova lei interfere com a legislação anterior. Por outras palavras, nem sempre a incompatibilidade entre duas leis é fácil e seguramente determinável.

No fundo, o problema reconduz-se, por via de regra, a uma questão de interpretação, isto é, de descoberta da vontade legislativa. Pôr a claro o sentido e alcance da lei (escopo do intérprete), traduz-se não apenas em revelar o sentido que se abriga por detrás da expressão, como ainda eleger o verdadeiro de entre os vários que possam estar cobertos pela mesma.
Mas, em qualquer das hipóteses, “a lei geral [posterior] não revoga a lei especial [anterior] – adverte o n.º 3 do citado artigo 7.º –, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”.

A elaboração jurisprudencial no curso dos séculos chegou à síntese de regras tendentes à remoção de conflitos normativos, mediante a harmonização de preceitos jurídicos aparentemente contraditórios – lex posterior derogat legi priori, lex specialis derogat legi generali, lex superior derogat legi inferiori, entre outras –, na base das quais “figura como postulado o princípio da unidade e da coerência (ausência de contradições) da ordem jurídica”[21].

Tais regras não constituem “uma evidência lógica” e a sua fundamentação pode inclusive deparar com “dificuldades de ordem teórica”, ficando “ainda em aberto o problema das relações internas entre as mesmas. Assim, pergunta-se, por exemplo: também a norma posterior de escalão mais baixo prefere à norma anterior de escalão mais elevado? Vale aqui a regra da lex superior ou a da lex posterior?” [22].

Na tipologia definida no n.º 2 do artigo 7.º vale, em primeira linha, o princípio de que a lei posterior tem precedência sobre a lei anterior, cuja motivação teorética anda ligada à ideia da “competência normativa actual do órgão” emitente da proposição jurídica, actualidade que se resolve num “poder de revogação” do mesmo órgão, de órgãos hierarquicamente superiores ou ainda de órgãos detentores de “competência concorrente” [23].

A maior força normativa de um acto significa, pois, que, dispondo vários órgãos de competência legislativa concorrente ratione materiae, a existência de diferenciação hierárquica entre eles tem como corolário lógico a impossibilidade de revogação, pela fonte inferior, da disciplina criada pela fonte superior, segundo o brocardo ubi maior, minor cessat.

Na base do critério da posterioridade, a fonte inferior só pode, pois, revogar validamente normas de nível igual ou inferior.

Em contraponto, a incompatibilidade, por seu turno, entre norma inferior e norma superior não importa, necessária e automaticamente, a invalidade ou ineficácia da norma inferior, sendo hipotizável e até real a possibilidade de normas de nível inferior coexistirem (conviverem) com normas contrárias de nível superior [24].

Diverso é o problema das relações revogatórias entre norma geral e norma especial, particularmente na hipótese de aquela ser posterior.

Impera neste caso o princípio, plasmado no n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil, lex posterior generalis non derogat legi priori speciali, significando, ultima ratio, que a “norma cuja previsão compreende em abstracto a específica previsão de outra não revoga esta, que deve supor-se mais perfeitamente aderente aos caracteres das concretas situações de facto”, tal como o fato por medida assenta melhor que o “pronto a vestir”, pelo sacrifício dos detalhes de cada constituição física imposto no segundo caso[25].

O respeito e a lógica intrínseca do princípio não pode, todavia, justificar a sua automática aplicação. Fala-se, inclusivamente, a propósito, de uma simples presunção ilidível face a elementos claros em sentido oposto.

Por isso, no relativo respeito, em regra, do princípio da especialidade, apenas se legitimará a sua desaplicação “quando a lei geral posterior não deixe lugar a dúvidas sobre a vontade legislativa de revogar a lei especial anterior” [26].

Compreende-se, na teorização desenvolvida, a particular injunção endereçada ao intérprete pelo n.º 3 do artigo 7.º do nosso Código Civil [27]: para que a lei especial anterior se considere revogada pela lei geral posterior são necessárias inequívocas indicações da vontade legislativa nesse sentido

“O problema é, pura e simplesmente, de interpretação da lei geral posterior, resumindo-se em apreciar se esta quer ou não revogar a lei especial anterior. Como problema de interpretação que é, deve ser resolvido mediante os critérios gerais de interpretação das leis, nada permitindo exigir que a lei geral posterior revogue expressamente a lei especial anterior, para que esta se considere revogada.”[28]

Para OLIVEIRA ASCENSÃO[29], aquela disposição impõe uma presunção no sentido da subsistência da lei especial; se não houver uma interpretação segura no sentido da revogação, ou se uma conclusão neste sentido não for isenta de dúvidas, intervém a presunção e a lei especial não é revogada.

Assim, na fixação dessa intenção, atento o emprego da palavra inequívoca, deve o intérprete ser particularmente exigente, o que se reconduz a “um problema (com frequência muito difícil) de interpretação ou de investigação do direito que se deve resolver com base no texto, na sua conexão, na evolução histórica e na história da formação legislativa, mas especialmente também de acordo com o critério do fim da disposição questionada e do valor do resultado de uma e outra interpretação”[30].

3. Neste contexto, convém notar que o conceito de lei especial é um conceito relacional, ou seja, “não há normas em si mesmas gerais ou especiais, mas antes relações de espécie e género, ou de especialidade e generalidade, entre determinadas normas ou, ainda mais exactamente, entre determinadas matérias normativamente reguladas”[31].

“O conceito de que se parte para a distinção das normas em gerais e especiais refere-se, pois, ao seu domínio de aplicação, devendo assim considerar-se especiais aquelas cujo domínio de aplicação se traduz por um conceito que é espécie em relação ao conceito mais extenso que define o campo de aplicação da norma geral e que figura como seu género.

“Nisto consiste a relação lógico-jurídica de especialidade.”[32]

As normas especiais podem configurar-se como desenvolvimentos destinados quer a concretizar princípios gerais ou como complementos deles, quer a integrar os aspectos específicos não contemplados naqueles mesmos princípios, mas também podem apresentar-se, em um ou outro ponto, como desvio ou derrogação aos princípios gerais.

“Estas observações respeitantes à diversidade das funções das normas especiais (complemento, integração, derrogação) mostram como podem ser distintas, segundo tais funções, as relações lógico-jurídicas intercorrentes entre as normas gerais e as especiais. Tais relações serão de cumulação quando se trate de normas especiais complementares ou integrativas, mas já serão de conflito quando se trata das normas especiais derrogatórias.”[33]

“Na sua forma pura, o relacionamento entre lex specialis e lex generalis pressupõe uma antinomia ou contradição normativa, isto é, a imputação, por duas normas, de soluções diferentes (embora referíveis a um mesmo princípio geral) para um mesmo caso.”[34]

Com a norma especial não deve confundir-se a norma excepcional, que em relação a outra, considerada geral, representa um verdadeiro jus singulare, acolhendo um regime oposto ao regime-regra, por razões indissoluvelmente ligadas ao tipo de casos que a norma excepcional contempla[35].

“As normas gerais constituem o direito-regra, ou seja, estabelecem o regime-regra para o sector de relações que regulam; ao passo que as normas excepcionais, representando um jus singulare, limitam-se a uma parte restrita daquele sector de relações ou factos, consagrando neste sector restrito, por razões privativas dele, um regime oposto àquele regime-regra.”[36]

VI

1. A explanação precedente logrou revelar, no grau de exigência requerido, a pretensão revogatória da alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, em relação aos regimes anteriores reguladores do destino do produto das coimas, na medida em que veio consagrar a regra da reversão para o Cofre Geral dos Tribunais das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo, ainda que por lei constituam receita do Estado ou de outras entidades.

O preceito indicado quis não só implementar um modelo inteiramente inovador no que respeita ao destino das receitas cobradas em juízo, como também reconduzir todo o direito preexistente a esse princípio reitor.

O inequívoco sentido revogatório plasmado na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, foi posteriormente reforçado pelo preâmbulo do Decreto-Lei n.º 91/97, de 22 de Abril, que afirmando, como regra, a reversão para o Cofre Geral dos Tribunais das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo, alterou o referido normativo, excepcionando apenas as importâncias que constituíssem receitas do orçamento da segurança social, das autarquias locais ou percentagem a que, por lei, tenha direito o autuante ou o participante.

Essa conclusão qualificada, em termos de interpretação, é ainda acentuada pela natureza das alterações introduzidas a coberto do Decreto-Lei n.º 304/99, de 6 de Agosto, que manteve, como regra, a reversão para o Cofre Geral dos Tribunais das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo, limitando-se a adicionar ao rol das excepções consagradas na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, as multas e coimas que constituíssem receitas das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, isto na sequência do julgamento como inconstitucional da referida norma, na parte em que mandava reverter para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas cobradas em juízo, sem exceptuar as que o fossem nas regiões autónomas.

2. Reagindo ao escopo dessa particular intervenção legislativa, alguns diplomas posteriores vieram consagrar o que se poderá designar como uma cláusula de autodefesa do regime próprio de afectação do produto das coimas[37], estabelecendo que esse destino se mantém independentemente do tipo de processo ou fase processual em que a coima é aplicada e qualquer que seja o momento do respectivo pagamento.

Apresentam-se como casos paradigmáticos dessa concreta solução legislativa, por ordem cronológica, o disposto no n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 369/99, de 18 de Setembro, que acolheu o novo regime de distribuição do produto das coimas por infracções rodoviárias, ao prever que “a afectação de receitas prevista (...) abrange as coimas cobradas em juízo”, e o n.º 2 do artigo 406.º do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto–Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, ao estipular que “o produto das coimas (...) reverte integralmente para o Sistema de Indemnização dos Investidores, independentemente da fase em que se torne definitiva ou transite em julgado a decisão condenatória”.

Essas normas assumem a natureza de normas excepcionais, pelo que no respectivo âmbito de aplicação material, resulta derrogado o regime de distribuição do produto das coimas consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais.
3. Sucede que o Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, que regula o exercício da actividade de segurança privada e é posterior à entrada em vigor do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, ficou–se pela previsão do destino do produto das respectivas coimas em 60% para o Estado e em 40% para o Ministério da Administração Interna, não tendo adoptado qualquer cláusula de autodefesa do regime próprio de afectação do produto das coimas face ao disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais.

Idêntica postura foi assumida em sede de fixação do regime de afectação do produto das coimas pela alínea h) do n.º 9 da Portaria n.º 26/99, de 16 de Janeiro, e depois pelo n.º 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 263/2001, de 28 de Setembro, que sucedeu àquela Portaria na definição das condições objectivas em que os estabelecimentos de restauração e bebidas são obrigados a dispor de um sistema de segurança privada, bem como os meios, humanos e técnicos, considerados indispensáveis ao normal funcionamento desses meios de segurança.

Ora, na determinação do sentido e alcance da lei, o intérprete deverá presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil).

Se o legislador pretendesse consagrar nas normas apontadas do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, e dos respectivos diplomas regulamentares, um regime vocacionado para disciplinar a afectação do produto das coimas independentemente do tipo de processo ou fase processual em que a coima é aplicada e qualquer que fosse o momento do respectivo pagamento, certamente que utilizaria nesses preceitos outra formulação que não a mera referência à proporção a atender na divisão da importância das coimas aplicadas.

Assim aconteceu na redacção do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 369/99, de 18 de Setembro, que acolheu o novo regime de distribuição do produto das coimas por infracções rodoviárias, e do n.º 2 do artigo 406.º do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto–Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro.

É certo que “não deve o intérprete distinguir onde a lei claramente não distingue”, nem pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil).

No entanto, comanda o n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil, que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.

Vejamos.

O Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, no n.º 3 do seu artigo 33.º estabelece que “a aplicação das coimas e sanções acessórias previstas no presente diploma compete ao Ministro da Administração Interna”, determinando por seu turno no n.º 4 do mesmo normativo que “o produto das coimas referidas no número anterior reverte em 60% para o Estado e em 40% para o Ministério da Administração Interna”.

Resulta, assim, claro que o n.º 4 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, por consideração sistemática do estatuído no n.º 3 do mesmo artigo e nos regimes específicos contidos no n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 369/99, de 18 de Setembro, e no n.º 2 do artigo 406.º do Código dos Valores Mobiliários, deve ser entendido como norma reguladora do destino da importância das coimas aplicadas pelo Ministro da Administração Interna, ou seja, as coimas aplicadas na fase organicamente administrativa do processo de contra-ordenação.

Esse sentido ressalta ainda mais nítido por referência da apontada norma ao ordenamento jurídico global, concretamente, quando confrontada com o disposto no artigo 512.º do Código de Processo Penal e na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, na medida em que estas últimas disposições visam regular o destino da importância das multas e coimas aplicadas e cobradas em juízo, enquanto o n.º 4 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, apenas dispõe quanto à afectação das coimas aplicadas na fase organicamente administrativa do processo de contra-ordenação.

Quer isto dizer que é aparente a antinomia entre o disposto no n.º 4 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, e na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, já que é distinto o âmbito de aplicação material das normas em causa.

Em consequência, se a coima aplicada por violação ao disposto no Decreto-–Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, for paga perante a entidade administrativa com intervenção na fiscalização, processamento e decisão das contra-ordenações, reverte em 60% para o Estado e em 40% para o Ministério da Administração Interna, nos termos dos n.os 3 e 4 do seu artigo 33.º, mas se for paga em tribunal toda ela reverte para o Cofre Geral dos Tribunais, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais.

VII

Termos em que se formulam as seguintes conclusões:

1.ª – É inequívoco o propósito da norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, com as alterações do Decreto-Lei n.º 91/97, de 22 de Abril, e do Decreto-Lei n.º 304/99, de 6 de Agosto, no sentido de implementar um modelo inteiramente inovador no que respeita ao destino das receitas cobradas em juízo, reconduzindo todo o direito preexistente a esse princípio reitor;

2.ª – A norma contida no n.º 4 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, por consideração sistemática do estatuído no n.º 3 do mesmo artigo e nos regimes específicos contidos no n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 369/99, de 18 de Setembro, que acolheu o novo regime de distribuição do produto das coimas por infracções rodoviárias, e do n.º 2 do artigo 406.º do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto–Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, deve ser entendida como disposição reguladora da afectação da importância das coimas aplicadas na fase organicamente administrativa do processo de contra-ordenação;

3.ª – Esta interpretação resulta ainda por referência da apontada norma ao ordenamento jurídico global, concretamente, quando confrontada com o disposto no artigo 512.º do Código de Processo Penal e na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, disposições que visam regular o destino da importância das multas e coimas aplicadas e cobradas em juízo, enquanto o n.º 4 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, apenas dispõe quanto à afectação das coimas aplicadas na fase organicamente administrativa do processo de contra-ordenação;

4.ª – É aparente a antinomia entre o disposto no n.º 4 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, e na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais, já que é distinto o âmbito de aplicação material das normas em causa;

5.ª – Consequentemente, a coima aplicada por violação ao disposto no Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, se paga perante a entidade administrativa com intervenção na fiscalização, processamento e decisão das contra-ordenações, reverte em 60% para o Estado e em 40% para o Ministério da Administração Interna, nos termos dos n.os 3 e 4 do seu artigo 33.º, mas se for paga em tribunal toda ela reverte para o Cofre Geral dos Tribunais, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 131.º do Código das Custas Judiciais.









[1] A redacção dos seus artigos 5.º, 8.º, 10.º, 17.º, 19.º e 31.º foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 94/2002, de 12 de Abril.
[2] O exercício da actividade de segurança privada foi regulado, pela primeira vez, pelo Decreto-Lei n.º 282/86, de 5 de Setembro, o qual foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 276/93, de 10 de Agosto, vindo este a ser modificado pelo Decreto-Lei n.º 138/94, de 23 de Maio.
[3] Itálico nosso.
[4] O regime das contra-ordenações foi introduzido no ordenamento jurídico português pelo Decreto-–Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, que ficou desprovido de qualquer eficácia directa e própria após a publicação do Decreto–Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro, que revogou o n.º 3 do artigo 1º do Decreto–Lei n.º 232/79, preceito que equiparava às contra-ordenações, as contravenções e as transgressões previstas pela lei então vigente a que fossem aplicadas sanções pecuniárias.
[5] Rectificado por Declaração publicada no Diário da República, I Série, n.º 4, de 6 de Janeiro de 1983, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, rectificado pela Declaração publicada no Diário da República, I Série, n.º 251, de 31 de Outubro de 1989, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro.
[6] Cfr. JOAQUIM PEDRO FORMIGAL CARDOSO DA COSTA, O recurso para os tribunais judiciais da aplicação de coimas pelas autoridades administrativas, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 366, Abril-Junho 1992, pp. 59 e seguinte.
[7] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, alterado pelos Decreto-Lei n.º 387-E/87, de 29 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 212/89, de 30 de Junho, Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro, Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro e Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
[8] Os Cofres do Ministério da Justiça integram o Cofre Geral dos Tribunais e o Cofre dos Conservadores, Notários e Funcionários de Justiça, cujos recursos financeiros são geridos actualmente pelo Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça, criado pelo Decreto-Lei n.º 146/2000, de 18 de Julho (Lei Orgânica do Ministério da Justiça) e que sucedeu ao Gabinete de Gestão Financeira na administração financeira daquelas receitas, sendo os estatutos respectivos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 156/2001, de 11 de Maio.
[9] Cfr. os artigos 146.º e 147.º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-–A/96, de 26 de Novembro.
[10] Cfr. Acórdão n.º 162/99, Processo n.º 1086/98, de 10 de Março de 1999, Acórdão n.º 292/99, Processo n.º 102/99, de 12 de Maio de 1999, e Acórdão n.º 293/99, Processo n.º 103/99, de 12 de Maio de 1999, os dois últimos publicados no Diário da República, II Série, n.º 163, de 15 de Julho de 1999, pp. 10 272 a 10 276.
[11] Cfr. SALVADOR DA COSTA, Código das Custas Judiciais Anotado e Comentado, 5.ª edição, 2002, p. 488.
[12] No sentido de que a multa devida pelo não pagamento da taxa de portagem reverte em 40% para a entidade concessionária, mesmo que cobrada em tribunal, vejam-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Fevereiro de 1998, no B.M.J. n.º 474, p. 547, e na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIII, 1998, tomo 1, p. 237, e os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Março de 1998, número convencional JTRP00023095, de 18 de Março de 1998, número convencional JTRP00021115, de 18 de Março de 1998, número convencional JTRP00020655, e de 15 de Julho de 1998, número convencional JTRP00024259, sumariados nas Bases de Dados do Ministério da Justiça – www.dgsi.pt.
[13] A matéria da interpretação tem ocupado com frequência a actividade do Conselho Consultivo. Ver, por todos, o parecer n.º 12/81, publicado no BMJ, n.º 307, pp. 52 e seguintes, e Diário da República, II Série, de 3 de Setembro de 1981, o parecer n.º 92/81, publicado no Diário da República, II Série, de 27 de Abril de 1982, e no BMJ, n.º 315, pp. 33 e seguintes, o parecer n.º 103/87, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Junho de 1989, o parecer n.º 61/91, publicado no Diário da República, II Série, n.º 274, de 26/11/92, o parecer n.º 326/2000, de 29 de Maio de 2002, e o parecer n.º 12/2003, de 27 de Fevereiro de 2003.
[14] Reproduz-se o texto do preceito:
“Artigo 9º
(Interpretação da lei)
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
[15] JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11.ª edição, revista, Almedina, 2001, p. 392.
[16] Sobre esta problemática, cfr. KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, tradução, pp. 439 e seguintes; BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, pp. 175 e seguintes; FRANCESCO FERRARA, Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de MANUEL ANDRADE, 3.ª edição, 1978, pp. 138 e seguintes; JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, ibidem, pp. 377 e seguintes; JOÃO DE CASTRO MENDES, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa 1994, pp. 230 e seguintes.
[17] Na exposição que vai seguir-se, acompanha-se de muito perto, por vezes textualmente, o parecer n.º 55/92, de 22 de Outubro de 1993, bem como o parecer n.º 35/92, de 9 de Junho de 1994. Mais recentemente, veja-se o parecer n.º 22/2002, de 24 de Outubro de 2002.
[18] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Noções Fundamentais de Direito Civil, 4.ª edição, I volume, p. 405.
[19] FRANCESCO FERRARA, ibidem, p. 193.
[20] Obra e locais citados.
[21] KARL ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, 3.ª edição portuguesa, tradução e prefácio de BAPTISTA MACHADO, Lisboa, 1977, p. 256.
[22] ENGISCH, obra citada, pp. 256-257.
[23] ROLANDO QUADRI, Dell'Applicazione della Lege in Generale, in “Commentario del Codice Civile a cura di ANTONIO SCIALOJA e GIUSEPPE BRANCA”, artigos 10.º-15.º, Bologna/ Roma, 1974, p. 321, que vamos acompanhar de perto.
[24] ROLANDO QUADRI, obra citada., p. 323.
[25] ROLANDO QUADRI, obra citada, p. 327.
[26] ROLANDO QUADRI, obra citada, p. 328.
[27] Cfr. RODRIGUES BASTOS, Das Leis, sua Interpretação e Aplicação, 2.ª edição, Lisboa, 1978, p. 34, que citando MANUEL DE ANDRADE, Exposição de motivos, BMJ n.º 102, p. 149, esclarece que nos trabalhos preparatórios do artigo 7.º do Código Civil, “teve-se à vista” o artigo 15.º das «Disposizioni sulla legge in generale» do Código Civil Italiano de 1942.
[28] VAZ SERRA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 99.º, n.º 330, p. 334,
[29] Obra citada, pp. 518-522. Ver, também, do mesmo autor, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 4.ª edição, Verbo, 1987, p. 262.
[30] ENNECCERUS, KIPP e WOLFF, Tratado de Derecho Civil, tomo I, Parte Geral, tradução da língua alemã para castelhano por BLAS PÉREZ GONZÁLEZ e JOSÉ ALGUER, p. 226; conferir, ainda, o parecer n.º 150/79, de 8 de Novembro de 1979, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1980, e no BMJ n.º 224, p. 113, e o parecer n.º 173/80, de 6 de Novembro de 1980, publicado no BMJ, n.º 305, p. 164.
[31] DIAS MARQUES, Introdução ao Estudo do Direito, Volume I, 2.ª edição, pp. 315-321. Veja-se, também, VITTORIO ITALIA, Le Leggi Speciali, Giuffrè, 1983, pp. 19-34 e 59-75.
[32] Ibidem.
[33] Ibidem.
[34] SÉRVULO CORREIA, A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, Estudos em Memória do Professor Doutor JOÃO DE CASTRO MENDES, sem data [1995], pp. 240 - 241, citando BYDLINSKI, Juristische Methodenlehre und Rechtsbegriff, Viena-Nova Iorque, 1982, p. 465, OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 1987, p. 486, e SANTIAGO NINO, Introducción al Análisis del Derecho, Barcelona, pp. 272-278.
[35] BAPTISTA MACHADO, obra citada, pp. 94 e 95.
[36] Ibidem.
[37] ROLANDO QUADRI, obra citada., p. 329, ao tratar da caracterização do direito particular, por um lado, e do direito especial e excepcional, por outro, refere-se à atitude de autodefesa própria do direito especial (”Questo atteggiamento di autodefesa proprio dei corpi di diritto speciale...”).