Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1267/06.6TBAMT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LUÍS LAMEIRAS
Descritores: FALTA DE CONSCIÊNCIA
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INCAPACIDADE ACIDENTAL
VONTADE DO TESTADOR
COACÇÃO MORAL
ÓNUS DA PROVA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RP201212191267/06.6TBAMT.P2
Data do Acordão: 12/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 516º, 635º, 638º, 655º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
ARTº 246º, 257º, 2199º, 2180º, 255º, 2201º, 342º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A falta de consciência da declaração negocial, que previne o artigo 246º do Código Civil, é aquela que supõe um declarante discernido, capaz de entender o sentido dela mas que, todavia, se não apercebe (não tem a consciência) de que a está a emitir;
II – Diferente dessa é a hipótese de incapacidade acidental, em que exactamente o declarante se acha, por qualquer causa, privado daquele discernimento, da aptidão para compreender o sentido da declaração (artigos 257º, nº 1, e 2199º do Código Civil);
III – A expressão da vontade do testador tem de revestir uma forma cumprida e clara, quer dizer, inequívoca, sem permitir suspeita de mínima dúvida acerca de qual foi a sua vontade segura; sendo o negócio nulo quando assim não aconteça (artigo 2180º do Código Civil);
IV – Se a declaração negocial do testador é motivada pelo receio de um mal de que este haja sido ameaçado com o fim de a obter, e essa ameaça comporta um juízo de reprovação à face da ordem jurídica, ocorre coacção moral e o negócio é anulável (artigos 255º e 2201º do Código Civil);
V – Em qualquer das hipóteses de vício capaz de corromper o negócio jurídico testamentário, enumeradas de I – a IV –, é essencial a substanciação mediante factos de cada uma das fatti specie respectivas; sendo ónus do interessado em obter a respectiva invalidade a alegação desses factos e a sua prova consistente (artigos 342º, nº 1, do Código Civil e 516º do Código de Processo Civil);
VI – Sem embargo de uma concludente prova contrária, devem em regra ser considerados como provados os factos que sejam percepcionados pelo notário e, como tal, atestados no acto público notarial (artigos 371º, nº 1, 372º, nºs 1 e 2, e 347º, do Código Civil);
VII – O princípio da livre apreciação da prova, que alicerça o julgamento da matéria de facto, sustenta-se em critérios racionais e objectivos, em juízos de ilações e inferências razoáveis, mas sempre de mera probabilidade (artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil); e conduz a um juízo positivo de prova quando, em face dos instrumentos disponíveis, do seu conteúdo, consistência e harmonia, se afigure aceitável à consciência de um cidadão medianamente informado e esclarecido, que a realidade por eles indiciada já se possa ter como efectivamente assumida;
VIII – A avaliação dos depoimentos das testemunhas, realizada de acordo com os ditames referidos em VII – (artigo 396º do Código Civil), deve assentar em dois pólos, via de regra; de um lado, na razão de ciência de evidenciada (artigo 638º, nº 1, final, do Código de Processo Civil); do outro, no maior ou menor afastamento (ou comprometimento pessoal) que, com a controvérsia em discussão, se afigure existir (artigo 635º, nº 1, final, do Código de Processo Civil); sendo estes factores que, além do mais, permitem escrutinar o nível da credibilidade que lhes pode ser conferido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo nº 1267/06.6TBAMT.P2
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. Apelantes
- B… e esposa
- C…, residentes na … nº …, .º dt.º, em Vila Nova de Gaia;
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. Apelados
- D…, residente no …, lote .., …, em Amarante;
- E… e esposa
- F… , residentes na Rua … nº .., em Oeiras;
- G… e marido
- H…, residentes na Rua Rodrigues Lapa nº 3, 2º dt.º, Amora, no Seixal.
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SUMÁRIO:
I – A falta de consciência da declaração negocial, que previne o artigo 246º do Código Civil, é aquela que supõe um declarante discernido, capaz de entender o sentido dela mas que, todavia, se não apercebe (não tem a consciência) de que a está a emitir;
II – Diferente dessa é a hipótese de incapacidade acidental, em que exactamente o declarante se acha, por qualquer causa, privado daquele discernimento, da aptidão para compreender o sentido da declaração (artigos 257º, nº 1, e 2199º do Código Civil);
III – A expressão da vontade do testador tem de revestir uma forma cumprida e clara, quer dizer, inequívoca, sem permitir suspeita de mínima dúvida acerca de qual foi a sua vontade segura; sendo o negócio nulo quando assim não aconteça (artigo 2180º do Código Civil);
IV – Se a declaração negocial do testador é motivada pelo receio de um mal de que este haja sido ameaçado com o fim de a obter, e essa ameaça comporta um juízo de reprovação à face da ordem jurídica, ocorre coacção moral e o negócio é anulável (artigos 255º e 2201º do Código Civil);
V – Em qualquer das hipóteses de vício capaz de corromper o negócio jurídico testamentário, enumeradas de I – a IV –, é essencial a substanciação mediante factos de cada uma das fatti specie respectivas; sendo ónus do interessado em obter a respectiva invalidade a alegação desses factos e a sua prova consistente (artigos 342º, nº 1, do Código Civil e 516º do Código de Processo Civil);
VI – Sem embargo de uma concludente prova contrária, devem em regra ser considerados como provados os factos que sejam percepcionados pelo notário e, como tal, atestados no acto público notarial (artigos 371º, nº 1, 372º, nºs 1 e 2, e 347º, do Código Civil);
VII – O princípio da livre apreciação da prova, que alicerça o julgamento da matéria de facto, sustenta-se em critérios racionais e objectivos, em juízos de ilações e inferências razoáveis, mas sempre de mera probabilidade (artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil); e conduz a um juízo positivo de prova quando, em face dos instrumentos disponíveis, do seu conteúdo, consistência e harmonia, se afigure aceitável à consciência de um cidadão medianamente informado e esclarecido, que a realidade por eles indiciada já se possa ter como efectivamente assumida;
VIII – A avaliação dos depoimentos das testemunhas, realizada de acordo com os ditames referidos em VII – (artigo 396º do Código Civil), deve assentar em dois pólos, via de regra; de um lado, na razão de ciência de evidenciada (artigo 638º, nº 1, final, do Código de Processo Civil); do outro, no maior ou menor afastamento (ou comprometimento pessoal) que, com a controvérsia em discussão, se afigure existir (artigo 635º, nº 1, final, do Código de Processo Civil); sendo estes factores que, além do mais, permitem escrutinar o nível da credibilidade que lhes pode ser conferido.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório

1. A instância da acção.
1.1. C… e esposa C… propuseram acção declarativa,[1] em forma ordinária, contra (1.º) D…, (2.º) E… e esposa F… e (3.º) G… e marido H…, pedindo (I) que se declare nulo o testamento celebrado em 1 de Fevereiro de 2000 por I… que não tinha à data da sua outorga consciência de ter emitido uma declaração negocial com efeitos jurídicos ou, subsidiariamente, que se declare nulo por ter sido outorgado sob coacção moral e em qualquer caso que se declare a falsidade desse testamento por não traduzir a realidade do que se terá passado ou percepcionado pela testadora e (II) que se declare nulo o testamento celebrado no mesmo dia por J… que não tinha à data da sua outorga consciência de ter emitido uma declaração negocial com efeitos jurídicos ou, subsidiariamente, que se declare nulo por ter sido outorgado sob coacção moral aproveitando-se a especial fragilidade do testador.
Em síntese, o que alegam é que o casal I… e J…, já falecidos, tiveram os filhos B…, D… e E…; e que aqueles outorgaram testamentos instituindo herdeiros da totalidade da quota disponível os filhos D… e E…. Ora, à data da outorga a I… estava incapacitada de entender o sentido da declaração, encontrando-se senil, abalada mentalmente e sem ter consciência perfeita das coisas; atirava coisas pela janela, puxava cortinados sem razão, despia-se, referia-se ao marido dizendo que ele o não era, cantava e dançava pelos caminhos, gritava, falava com as flores; sendo sabido que já não estava em juízo perfeito. Ademais, ouvia mal e carecia de acompanhamento; tudo do conhecimento de amigos e familiares. Por outro lado, não era crível que quisesse ter preterido o filho B…, a quem sempre manifestou carinho especial e a quem se referia afectuosamente; sendo corrente, entre familiares e amigos dos falecidos, o espanto perante o teor dos testamentos. Acontece é que a I… passou a depender completamente da filha D…, só se compreendendo o testamento na sequência de actuação desta; que terá preparado toda a escritura e conduzido a mãe ao cartório; esta, contudo, sem poder ter consciência de aí emitir declaração juridicamente vinculante. Em suma, o testamento enferma de nulidade absoluta ou, ao menos, de anulabilidade (artigos 246º e 2199º do Código Civil). A vontade verbal da testadora só pode ter sido emitida em termos monossilábicos, de sim e não, e nunca ter traduzido uma vontade esclarecida; ocorrendo também por isso nulidade (artigo 2180º do Código Civil). O testamento está viciado de falsidade já que a declaração que contém não traduz a realidade. Mas mais; ao menos, houve pressão ilegítima da filha D…; o que consubstancia coacção moral; e por isso anulabilidade. De seu turno, também o J… estava debilitado em termos mentais; e sem poder entender e querer quando celebrou o testamento; que assim é também nulo (artigo 246º). Também o pai nutria excelente relação com o filho B…, de grande carinho e consideração; e muito em especial em relação a esse concreto filho; não sendo crível que ele quisesse preteri-lo em benefício dos irmãos; por isso, não teve por certo a consciência de ter emitido a declaração que ficou a constar no testamento ou, ao menos, não tinha livre exercício da sua vontade. Por fim, a filha D… fizera saber que cuidava dos pais, mas que estes a haviam de compensar patrimonialmente; e há-de ter sido o aproveitamento da especial situação de dependência dos testadores a justificar a outorga dos testamentos. Mas a verdade é que os pais nutriam mais afeição pelo B… do que pela D…; sendo comuns as discussões desta com o pai; houve aproveitamento da fraqueza e debilidade dele para o levar a outorgar o acto; o que acarreta anulabilidade, por ter sido feito sob pressão ilegítima.

1.2. Os réus contestaram a acção. Os testadores não foram alvo de processo de interdição por anomalia psíquica; por isso, não são nulos os testamentos. A questão é meramente de anulabilidade; a qual tem um prazo de caducidade de dois anos; há muito ultrapassado. Os testadores sempre manifestaram publicamente gratidão à D… e ao E… por serem os únicos filhos que os auxiliavam e acarinhavam; e comentaram o facto do testamento, justificado por essa gratidão. O B… soube do testamento; contactou pessoas para serem testemunhas no processo para anulação dos actos; e deixou passar mais de dois anos. Há caducidade da acção. Por outro lado, ambos os testadores estavam de perfeito juízo; a I… totalmente lúcida e consciente, com boa imagem e sem problemas de psiquiatria; o J… de igual modo sempre consciente, lúcido e auto-suficiente, sem doenças graves ou incapacitantes (ouvia apenas um pouco mal); ambos outorgando os testamentos de livre e espontânea vontade; o que fizeram possuídos de normal capacidade de avaliar as consequências e de ponderar os interesses. Deslocaram-se pelos próprios meios ao cartório notarial e aí exprimiram por palavras de forma clara e inequívoca as suas vontades, no pleno gozo das faculdades, com capacidade de querer e entender, e em termos que não deixaram ao notário a mais ligeira dúvida sobre a sanidade de espírito de ambos. Em suma, procede a excepção e os réus devem ser “absolvidos da instância”; ou assim se não entendendo a acção improcede “absolvendo-se os réus do pedido”.

1.3. Os autores apresentaram réplica. No essencial, para acentuar que a acção é de nulidade, a qual só caduca ao fim de dez anos (artigo 2308º, nº 1, do Código Civil), que ainda não correram; mas que, ainda assim não fosse, a acção estaria em prazo. Os testamentos foram feitos em segredo; o carinho especial era nutrido pelo filho B…; os testadores muitas vezes exasperavam com a D…; e era com felicidade que recebiam as visitas dos autores; a estes nunca foram falados os testamentos; o processo sucessório foi tratado na íntegra pela D…; os autores só recentemente souberam dos testamentos, há muito menos de dois anos. Em suma, é improcedente a excepção que foi deduzida.

1.4. A instância declaratória desenvolveu-se; e com vicissitudes.

Os autores foram convidados a aperfeiçoarem a petição; o que fizeram. E os réus pronunciaram-se impugnando a matéria aperfeiçoada.

Foi julgada a matéria de facto e proferida a sentença final; mas aquela foi anulada por acórdão de 20 de Dezembro de 2011 (v fls. 477 a 493).

Repetiu-se o julgamento anulado; e produziu-se outra sentença (v fls. 519 a 525), esta a considerar que os autores não provaram os factos constitutivos do direito invocado; dessa forma a julgar prejudicado o conhecimento da excepção da caducidade; por fim, a julgar a acção improcedente e a absolver os réus dos pedidos formulados pelos autores.

2. A instância da apelação.
2.1. Os autores inconformaram-se; e interpuseram recurso.
Elaboraram alegação; que finalizaram com estas sínteses conclusivas:

i. A factualidade, dada como provada pelo tribunal “a quo” é, á luz das regras de experiência comum e dos critérios de normalidade incompatível com a solução apontada, no sentido da total desvalorização do quadro clínico apresentado pela faleci-da I...;
ii. Considerando capaz de querer e entender alguém tão debilitado, no caso a I..., que à data da outorga do testamento não era sequer capaz de controlar as suas necessidades fisiológicas;
iii. O entendimento tido pelo juiz “a quo” violou o principio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 655º do Código de Processo Civil;
iv. Face a tudo o que se expendeu devem ser alteradas as respostas dadas à matéria de facto levada á base instrutória;
v. Passando a matéria constante dos quesitos 19º, 20º, 21º, 25º, 26º, 31º, 32º, 36º, 41º, 46º, e 47º a ser considerada “provada”;
vi. E face a esta factualidade impõe-se solução de direito diferente da encontrada pelo juiz “a quo”;
vii. Impõe-se uma solução de direito que reconheça o direito pelo qual pugnam os autores;
viii. A sentença recorrida entre outros violou os artigos 659º, nº 3, e 668º, nº 1, alíneas c) e d), todos do Código de Processo Civil.

Em suma; a sentença recorrida deve “ser anulada e substituída por outra que declare a acção totalmente procedente”.

2.2. Não foi apresentada resposta.

3. Delimitação do objecto do recurso.

3.1. É a parte dispositiva da sentença, nos segmentos desfavoráveis ao recorrente, que delimita o objecto do recurso; fixando as conclusões da alegações as concretas questões decidendas que urge reapreciar (artigo 684º, nº 2, final, e nº 3, do código de processo).

Na hipótese, o assunto circunscrito para reavaliação é principalmente o de saber se os factos contidos nos quesitos 19º a 21º, 25º, 26º, 31º, 32º, 36º, 41º, 46º e 47º da base instrutória, no essencial indemonstrados em 1ª instância, antes merecem um positivo juízo probatório, em particular tendo em conta, (1) o confronto com os factos contidos nas alíneas h) e j) matéria assente e nas respostas aos quesitos 15º a 17º, 19º, 20º e 34º, (2) a avaliação do relatório médico, a respeito da falecida I… (doc fls. 34), (3) a avaliação dos depoimentos das testemunhas, propostas pelos apelantes, K… e L… (v fls. 511 a 512 e 402), e das propostas pelos apelados, M… e N… (v fls. 410 a 411), e, por fim, (4) a configuração de tudo nos ditames emergentes das regras de experiência comum e dos critérios da normalidade da vida.
Decorrentemente, qual seja o ajustado enquadramento normativo.

II – Fundamentos

1. O quadro jurídico-normativo que a acção convoca.

É primordialmente de impugnação da decisão de facto que o recurso interposto, na acção, trata. É contudo importante ter presente o pano de fundo do alcance dos factos; precisamente a questão de direito que deva considerar-se controvertida (artigo 511º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Se bem a compreendemos é a seguinte, em breve síntese, a situação envolvente que os autores têm em vista. Em Fevereiro de 2000 I… e J…outorgaram, cada um, seu testamento; a I… estava incapacitada de entender o sentido da declaração, sem consciência dela, não manifestou vontade esclarecida, expressou-se em termos monossilábicos, agiu sob pressão ilegítima de uma sua filha, sob coacção moral, tudo a gerar a falsidade do acto que não traduz a realidade;[2] o J… estava mentalmente debilitado, sem poder entender e querer a declaração, sem consciência dela, sem livre exercício da vontade, e sob pressão ilegítima da filha. A I… veio a falecer em Setembro de 2000; o J… em Agosto de 2002.

As normas jurídicas expressamente convocadas, para acompanhar esta situação, são as dos artigos 246º, 2180º e 2199º, todos do Código Civil.

Vejamos então. E desde logo para dizer que a falta de consciência de declaração, a que se refere o artigo 246º, não é aquela que é suposta às circunstâncias apontadas pelos autores (e apelantes); já que o campo de aplicação normativo aí se restringe ao declarante que esteja dotado de discernimento, isto é, da capacidade necessária para entender o sentido da declaração; por isso se podendo distinguir do âmbito previsto para a incapacidade acidental, do artigo 257º do mesmo diploma, esse sim pensado para a hipótese de privação daquele discernimento.[3] É, de facto, um tipo de deficiência psicológica, semelhante ao deste artigo 257º, aquele que os apelantes, no caso, pretendem fazer evidenciar.
A incapacidade acidental a respeito do negócio testamentário contém-se exactamente no artigo 2199º; sendo ela definida como o estado daquele que no momento da feitura do acto se acha incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tem o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória. O que aqui se encara é portanto a situação em que está afectada a capacidade de entender e de querer, seja por virtude de anomalia psíquica não declarada, seja por virtude de algum outro acesso gerador de algum tipo de privação do ajustado exercício de vontade.[4]
Diferente também é o alcance do artigo 2180º reportado à expressão da vontade do testador; que pretende salvaguardar a genuinidade das declarações imputadas ao disponente, a respectiva consistência, de molde a garantir que as mesmas sejam o reflexo certo o autêntico do que realmente se quis.[5] E daí a exigência de que o testador exprima cumprida e claramente a sua vontade, com a rejeição de que apenas o faça por sinais ou monossílabos em respostas a perguntas feitas.
Os apelantes (autores da acção) evocam ainda a coação moral; esta que, para o testamento, vem mencionada no artigo 2201º; e que, em geral, o código define no artigo 255º, como a circunstância consistente no receio de um mal de que se é ilicitamente ameaçado com o fim de obter a declaração e que, precisamente, a condiciona e a determina.

Uma outra nota ainda; a de que, circunscrita a plataforma jurídica potenciada pelos factos, vê-se que, excepcionada a hipótese da dubitativa expressão da vontade do testador, que é sancionada com o vício de nulidade, todos os demais casos indicados de afectação do negócio testamentário o atingem com a anulabilidade; o que transporta, a respeito destes, para o prazo de caducidade de dois anos a contar do conhecimento do testamento e da causa do vício, como estabelecido pelo artigo 2308º, nº 2, do Código Civil.

Pois bem; a sentença não conheceu (por julgar prejudicado) da caducidade; e concluiu, por inverificados, os factos constitutivos do direito.

Se bem que do contexto circunstancial dos factos articulados na petição inicial, se conjugado em particular com o contido na resposta ao quesito 54º da base instrutória (este não impugnado), já fosse permitido suspeitar do decurso de certo período de tempo, até à interposição da acção, a verdade é que acaba por não ser esse o assunto central a dilucidar.
Como dissemos estão em causa as matérias (1.ª) do discernimento dos testadores, (2.ª) do modo da expressão da sua vontade e (3.ª) do medo ou compulsão à feitura da declaração negocial testamentária. E é acerca destas que realmente importa escrutinar os factos concludentes que as integrem, revelem e evidenciem; não deixando margem de dúvida acerca da respectiva verificação.
É o ónus dos apelantes (artigo 342º, nº 1, do Código Civil); que numa óptica estritamente adjectiva se há-de reflectir no cumprimento do exigível esforço probatório, àquem do qual remanesce a hesitação inadequada (a dúvida razoável) mas além do qual se atinge a probabilidade bastante para a consolidação da certeza relativa, suficiente à prova judiciária (a ajustada convicção).
2. A impugnação da decisão de facto.

Afigura-se-nos importante lembrar, no assunto em causa, a importância dos factos instrumentais ou indiciários; quer dizer, aqueles que, sem preencherem, eles próprios, a previsão normativa de direito substantivo, contribuem todavia, mediante juízos probatórios, de ilações ou inferências, sustentados em regras de experiência, de habitualidade e de repetição corrente, para se aceder àqueles que o fazem; estando aí essencialmente em causa a prova por presunções judiciais (artigos 349º e 351º do Código Civil).
Em assunto sensível, como aquele consistente na descoberta de uma carência de discernimento, de uma declaração inexpressiva da vontade real, de um receio condicionante de certo comportamento, tais factores indiciários e circunstânciais são aptos a dar um proveitoso contributo. Naturalmente, com o apoio de outros instrumentos, reforçados por uma harmonia do que inequivocamente se possa achar evidenciado; e tudo de molde a solidificar a certeza provável de que, de facto, o vício, o desajustamento negocial, realmente ocorre.

Os factos questionados pelos apelantes (primordialmente de natureza indiciária) constam assim na base instrutória:

«…
19º
Nos tempos em que gozava de boa saúde I… sempre manifestou um carinho especial pelo autor marido, apesar de o mesmo residir em Lisboa?
20º
Dirigindo-se ao mesmo de forma extremamente afectuosa referindo-se-lhe como “o seu querido filho”?
21º
E nunca em momento algum, quer na saúde, quer na doença, deu sinais de algum dia querer beneficiar os outros filhos, ao nível da sua herança?
25º
À data em que foi outorgado o testamento qualquer declaração verbal emitida por I… só pode ter sido em termos monossilábicos, ou de sim e não?
26º
E nunca pode ter traduzido uma vontade esclarecida?
31º
J… mantinha à data da celebração do testamento e sempre manteve com o autor marido uma relação caracterizada por um grande carinho e consideração mútua, não obstante este residir em Lisboa?
32º
As vezes em que o autor marido visitava os falecidos pais era sempre motivo de alegria para os mesmos?
36º
E nunca em momento algum, quer na saúde, quer na doença, deu sinais de mostras de algum dia querer beneficiar os outros filhos, ao nível da sua herança?
41º
A ré D… por diversas vezes chegou a dizer em conversa com os autores e outros a propósito dos cuidados que tinha com os seus pais “eu olho pelos pais mas têm que me dar o andar e a reforma”?
46º
As discussões entre o falecido J… e a filha D… eram frequentes?
47º
A ré D… ter-se-á aproveitado da fraqueza e debilidades dos seus pais para levar J… a outorgar o referido testamento em seu proveito?»

Estes factos, todos obtidos da petição inicial, foram avaliados no tribunal “a quo”, e respondidos negativamente; à excepção dos contidos nos quesitos 19º e 20º, que aí mereceram a seguinte resposta, conjunta e restritiva:

«Provado apenas e com o esclarecimento que I… sempre manifestou carinho por todos os seus filhos, dirigindo-se aos mesmos como “queridos filhos”»

A motivação para esse juízo substanciou-se, no fundamental, nas dúvidas que se geraram a partir dos depoimentos de M… e N… (propostas pelos apelados), e bem assim por se entender o relatório médico (doc fls. 34) insuficiente para atestar a invocada incapacidade.

Vejamos então; não sem esquecer estar primordialmente em questão o escrutínio de uma comprovada falta de capacidade de cada testador e no preciso momento em que cada um lavrou o respectivo testamento.[6]

O quadro legal que se convoca para a avaliação da decisão de facto começa por assentar no princípio da livre apreciação probatória (artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil); com o significado de essa análise não estar sujeita a ditames pré-estabelecidos, antes se dever sustentar num convencimento racional e alicerçado em instrumentos objectivos capazes de persuadir com uma certeza razoável acerca de cada facto. À parte onerada se exige o dispêndio de esforço, proporcional a um certo nível de convencimento probabilístico, na certeza de que lhe há-de desaproveitar um certo patamar de dúvida, tido ainda por inadequado (não ajustado) a um juízo de certeza aceitável (artigos 346º do código civil e 516º do código de processo).
O patamar seguinte, da 2ª instância, é de reavaliação; e nessa óptica se circunscreve já ao escrutínio de concretos instrumentos de prova com a virtualidade de imporem decisão diversa sobre certos factos identificados (artigo 690º-A, nº 1, do código de processo). O tribunal “ad quem” reaprecia as provas (artigos 690º-A, nº 5, início, e 712º, nº 2, final, do código de processo); e formula o seu próprio juízo probatório, ora aderindo ao antes formulado pelo tribunal “a quo” se achar que, no geral, a convicção se sustenta objectiva e ajustadamente nos meios de prova disponíveis, ora reconvertendo-o na medida em que ache que estes meios, seguindo idêntico critério, conduzem a distinta ilação.

Mas retornemos à hipótese concreta; onde são reconhecíveis três blocos de factos. O primeiro desses blocos retratado nos quesitos 25º e 26º; para induzir a ideia de que, quando outorgou o testamento, a I… explicitou a sua vontade em termos monossilábicos (ou de sim ou não), em modo incapaz de traduzir uma vontade esclarecida. Como antes dissemos, trata-se de tentativa de substanciar a disposição material do artigo 2180º, que quer garantir a certeza de vontade do testador mediante a salvaguarda de uma manifestação clara dela. Reparemos que, neste particular, nem é tanto uma questão de discernimento, que se supõe existir, mas mais de hesitação (algum tipo de dúvida ou de indecisão) que indiciado por uma falta de explicitação segura do desejo, da intenção, do outorgante, é o suficiente para contaminar a genuinidade e a valia do acto. Ora, nenhum instrumento probatório disponível é capaz de sustentar, na hipótese, este tipo de realidade. As várias ópticas que os apelantes avançam não afectam este tipo de facto e tendem, diferentemente, a fazer suspeitar (é, pelo menos, essa a assumida intenção) daquele discernimento de cada um dos testadores. Mais; a forma pública de cada um dos testamentos não deixa sequer margem a dúvida. Em um e outro se certifica que cada um dos testadores compareceu no cartório notarial e aí “declarou fazer este seu primeiro testamento da seguinte forma: institui por herdeiros da sua quota disponível seus dois filhos (…)” (docs fls. 167 a 169 e 171 a 173); circunstância que, sem embargo de uma prova concludente que apesar de tudo é ainda possível (artigo 347º do Código Civil), não deixa de constituir uma presunção fortíssima de que a manifestação de vontade não ocorreu nos questionados termos monossilábicos, ou de sim e não (artigo 371º, nº 1, início, do Código Civil).[7] E ademais, ainda neste particular, mesmo qualquer das testemunhas, que os apelantes agora invocam para sustentar a impugnação de facto em recurso, a K… e a L…, ouvidas à matéria, uma e outra afirmaram não saber da realidade do facto. Em suma; não merecendo reparo o juízo antes formulado a respeito desses quesitos 25º e 26º.
Agora o segundo bloco de factos, retratado pelos quesitos 19º a 21º e 31º a 36º, precisamente com o carácter instrumental, que antes referimos, tendentes a induzir a ideia de um preferencial carinho de cada um dos testadores pelo filho apelante, sem qualquer sinal de especial protecção aos demais filhos apelados; por conseguinte, a fazer obter a inferência da desconformidade traduzida num testamento excludente daquele primeiro, em exclusivo benefício destes segundos. Como dissemos, tudo factos alegados para permitir indiciar a incapacidade, a inépcia psicológica dos testadores ao assim agirem; mas todos com juízo essencial formulado de não provado.
Vejamos; não sem esquecer que o esforço probatório convoca instrumentos de mínima consistência conducente à convicção. Ora, os apelantes começam por argumentar a incoerência com outros factos (estes inquestionados) julgados provados; o carinho dispensado pelos testadores a todos os filhos, sem excepção (resp ques 19º, 20º e 34º); e as questões de saúde evidenciadas (alíns h) e j) e resp ques 15º a 17º). Mas sem razão; já que a resp ques 19º e 20º é, ela própria, o produto de meios de prova tidos lugar e, com essa, é perfeitamente harmoniosa a resp ques 34º; por outro lado, a falta de controle de esfíncteres e a necessidade de usar fralda (alín j)) não é patologia que interfira com a aptidão psíquica de quem dela padeça; como os apurados acompanhamentos médicos, justificados pelos elencados padecimentos, e a trombose (cuja data aliás nem consta) (resp ques 15º a 17º) não constituem, ao menos só por si, circunstâncias decisivas na revelação de alguma incapacidade; sendo, por fim, certo que o acidente vascular cerebral é já posterior à outorga testamentária (alín h)). A seguir, os apelantes mencionam o relatório médico que os autos contêm a respeito da I…, com expressa referência a internamentos e a “antecedentes de demência senil” (doc fls. 34); sendo, neste particular, perfeitamente ajustada a avaliação formulada no tribunal “a quo”, e reflectida na motivação (v fls. 517):

«… tal relatório médico não é suficiente a atestar a incapacidade alegada pelos autores. Com efeito, a referência que aí é feita a “antecedentes de demência senil”, naturalmente associada à idade, não é igual a atestar aquela incapacidade, sendo certo que os problemas de saúde que a falecida I… tinha também não implicam, necessariamente e sem mais, tal incapacidade»

Em boa verdade, o que importava mostrar, e com a certeza devida, era que na data do testamento (artigo 2191º do código) a testadora estava atingida de alguma afectação que lhe limitava o uso adequado da mente, em termos de poder ajustadamente exercer aquela que era a sua vontade, o seu querer; e para tanto havendo de contribuir os índices e os sinais, mas com a devida ponderação, evidenciados a partir dos instrumentos da prova. Ora, nem os próprios testemunhos concretamente apontados pelos apelantes se podem ter por inequívocos e concludentes a este propósito. Vejamos; a livre apreciação probatória dos depoimentos das testemunhas (artigo 396º do código civil) deve ser equacionada tendencialmente na base de dois pólos; de um lado, sustentada na razão de ciência (artigo 638º, nº 1, final, do código de processo); por outro, a ponderar o comprometimento pessoal do próprio depoente (artigo 635º, nº 1, final, do mesmo código). Na hipótese, foi ouvida a K…, que disse conhecer o casal dos testadores, que passaram períodos em sua casa, mas sem nunca conseguir situar os factos no tempo concreto; para lá disso, no essencial, verbalizou que os pais tinham muito carinho pelo filho apelante, embora terminando a dizer quanto aos outros filhos achar que gostavam deles também; nunca o casal lhe falou no assunto de beneficiar algum dos filhos na herança; e por fim, directamente questionada acerca da condição psíquica em Fevereiro de 2000, disse, quanto à testadora esposa, não saber, não poder dizer, e, quanto ao testador marido, achar que estava lúcido e bem. Depois, foi ouvida a L…, que tomou conta do casal, crê que há mais de 10 anos e durante um período de 2 ou mais anos. Como se notou no tribunal “a quo” foi um sinal estranho, neste depoimento, embora verbalizando grande proximidade, até intimidade (tratava-os por avózinha e avozinho), que a testemunha esquecesse o nome do casal que, logo de início, não soube dizer (v fls. 517); por outro lado, o depoimento foi caracterizado por uma evidente (e expressada) animosidade para com a filha do casal (a apelada D…), com quem a testemunha se acha de relações cortadas por via de desentendimentos pessoais com aquela tidos entretanto lugar. Seja como for, disse que a I… andou uns tempos bem, deixando depois de dizer coisa com coisa, embora sem conseguir concretizar o significado disso, mais se preocupando em acentuar serem os berros da filha D… que perturbavam a idosa; que esta falava muito bem do filho apelante e mal da filha apelada; que nunca lhe foi manifestada a intenção de ir aquele ser preterido na herança; quanto ao J…, ainda que o achava muito correcto e que estava lúcido, bem como que se dava bem com todos os filhos. Ouvida também, a M…, funcionária polivalente (motorista, animadora, …) no centro de dia frequentado pelo casal testador (crê que a partir de 1998), com quem conviveu de perto; dizendo, ao mais importante, serem, um e outro, pessoas normais e equilibradas, lúcidas e capazes, apenas a I… de personalidade mais reservada; que a filha D… ía com frequência ao centro; que o casal, e em especial o marido, abertamente diziam que a filha D…, por ser quem tratava mais deles, iria ser beneficiada por esse apoio que lhes dava; por fim, e impressivamente, que o filho apelante telefonava para o centro e que o pai mandava dizer que não estava. Por fim, a testemunha N…, vizinha da filha apelada e que conheceu o casal, tendo a esposa sido sua cliente de cabeleireiro; no geral, a transmitir uma ideia de normalidade comportamental; verbalizando não saber sequer da existência do filho apelante, embora o casal fosse seu vizinho enquanto viveu com a filha, e que ouvia muitas coisas, designadamente que eles achavam que davam muito trabalho à filha e que, por isso, sempre diziam que ela havia de ficar com tudo, falando sempre que gostavam de beneficiar esta filha. Em suma; e no reporte aos quesitos quesitos 19º a 21º e 31º a 36º, com a índole que se lhe reconheceu, atenta uma atenuada consistência do depoimento dado da K…, uma postura da L…, envolvida em desentendimento capaz de comprometer a sua neutralidade no litígio, por conseguinte, o seu nível de imparcialidade, por outro lado, o peso relativo do verbalizado pela M… e pela N…, o que se afigura sensato e prudente é formular juízo semelhante ao do tribunal “a quo”. A única certeza que fica é realmente o carinho pelos (por todos) os filhos. E não mais. Quer dizer, não podendo concluir-se que os testemunhos evidenciados, que os apelantes especificaram, sejam idóneos, tenham virtualidade suficiente para impor uma convicção diferente dessa, capazes de sustentar um juízo integral e positivo de prova, como por aqueles sustentado.
Por fim, o terceiro bloco de factos, retratado pelos quesitos 41º, 46º e 47º, estes tendentes a retratar as ilegítimas pressões e o aproveitamento da debilidade e fraqueza dos testadores, conducente ao seu condicionamento. A seu respeito, disseram as testemunhas especificadas. A K… que ouviu por alguém (não sabe quem foi) que a D… dissera o que consta no ques 41º; que nunca ouviu discutir (ques 46º); e que não sabe a respeito do ques 47º. A L… acentuou a postura da filha D… no sentido de, na sua opinião, ela tentar fazer o máximo aos pais para ficar com tudo, embora questionada já não soubesse explicar o porquê de então, se assim era, apenas um dos irmãos (o apelante) ter sido o preterido, e não o outro (o apelado), este beneficiado exactamente como a irmã. A M…, como dito, que o testador marido, em especial, abertamente dizia haver de beneficiar a filha pelo trabalho que estava a ter. A N…, por fim, com um registo idêntico a este. Em suma; sem se poder realmente concluir, em consciência segura, que fosse tendo lugar o panorama de coerção e de constrangimento, que os apelantes traçaram, e que é o contido nos controversos quesitos 41º, 46º e 47º.

A prova não é (nunca é) certeza lógica, mas tão-só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica).[8] E isso significa que à vida em sociedade não escapa um certo nível de incerteza; havendo é que descortinar a partir de quando é que esse nível é aceitável; ou, ao invés, intolerável. Julgamos sempre que, se ao cidadão razoável e medianamente esclarecido não chocar tomar como certo um dado segmento de vida, é já consciencioso assumi-lo como provado; mas se ao invés a mesma consciência ainda ali se puder comportar como hesitante ou indecisa, só imprudentemente a prova pode ser assumida e afirmada.

A hipótese em crise é a de mostrar que o acto negocial testamentário está corrompido por uma afectação viciante de vontade livre e esclarecida dos outorgantes que o firmaram. E os apelantes invocam, a respeito, o relevo (que é certo) das regras de experiência comum e dos critérios de normalidade da vida.
Como pudemos vir esclarecendo, as provas não são concludentes no sentido de evidenciarem, dentro do critério probatório adequado, os segmentos de realidade controversos. Há indícios e sinais que se não ajustam. Seja como for, se a experiência do que é expectável que aconteça, do normal em situações do tipo, algum contributo se afigura capaz de dar, parece ser até em tendência divergente ao propugnado. É que, vejamos; os apelantes afirmaram, na petição inicial, com eles existir um especial afecto e carinho, a superar até o dispensado aos irmãos pelos pais testadores; na réplica sublinham que a feitura dos testamentos foi secreta e que só deles souberam recentemente, menos de dois anos antes de proporem a acção. Os testamentos datam de Fevereiro de 2000. A testadora ainda viveu até inícios de Setembro desse ano; só tendo sido internada em inícios de Agosto. O testador, entretanto, ainda viveu até Agosto de 2002. Se, como se afirma, havia até visitas e telefonemas, o normal e expectável (não esquecendo que o filho apelante era afinal “tudo” para aqueles pais) era que ao filho apelante, em algum momento, viesse a ser contado, por algum dos pais, a situação que ia ocorrer, ou que já ocorrera, não o deixando (ao filho particularmente acarinhado) puramente numa situação de ignorância, a ele prejudicial. Não é compreensível, ao mesmo tempo, o carinho particular, especial, votado a um dos filhos, e simultaneamente o segredo do testamento que o preteria. Não há, nos autos, indícios probatórios que permitam inferir, com um patamar mínimo de solidez, que a testadora esposa estivesse desprovida de capacidade mental, de discernimento, de incapacidade, no período que vai do precedente a Fevereiro de 2000, ao menos, até inícios de Agosto desse ano; e o mesmo se diga do testador marido que, por certo, não esteve impedido entre aquele Fevereiro e meados de 2002, de alguma coisa poder dizer ao seu filho a que dedicava maior predilecção.

Concluindo então; se a certeza absoluta é sempre uma miragem, também a relativa, na hipótese, se não afigura atingida. Os factos concretizados pelos apelantes não comportam compleição probatória suficientemente sólida que os sustente e alicerce. O tribunal “a quo” avaliou com justeza e ponderação as provas; e no âmbito dos limites circunscritos pela regra da livre convicção.

Como o que improcede a impugnação de facto; e se mantém o juízo probatório a que procedeu o tribunal da 1ª instância.

3. A discriminação dos factos provados.
Reavaliada a apreciação probatória são os seguintes os factos provados, agora consolidados, e ordenados por uma ordem, tendencialmente, lógica e cronológica:
i. J... e sua mulher, I..., casaram na Igreja Paroquial ..., em Lousada, sem convenção antenupcial (docs fls. 19 e 20) – alínea a) matéria assente.
ii. O autor marido com 18 anos de idade acompanhou o falecido J... quando este foi para Angola, como seu companheiro de trabalho para melhorar de vida – alínea l) matéria assente.
iii. I... sempre manifestou carinho por todos os seus fi-lhos, dirigindo-se aos mesmos como “queridos filhos” – resposta aos quesitos 19º e 20º da base instrutória.
iv. J... sempre manifestou carinho por todos os seus filhos – resposta ao quesito 34º da base instrutória.
v. Em 1 de Fevereiro de 2000, os referidos I... e J... outorgaram no Cartório Notarial de Amarante testamentos públicos que ficaram exarados a fls. 29 verso, a fls. 30 verso e a fls. 32, respectivamente, ambos no livro de testamento nº 90, os quais declararam constituir por herdeiros das respectivas quotas disponíveis os seus dois filhos D... e E... (docs fls. 167 a 169 e 171 a 173) – alínea g) matéria assente.
vi. À data da outorga do testamento, referido na alínea g) matéria assente, I... não conseguia controlar as suas necessidades fisiológicas, facto que originou que a partir de determinada altura tivesse de usar fraldas – alínea j) matéria assente.
vii. Entre 2.8.2000 e 11.8.2000, I... esteve internada por acidente vascular cerebral isquémico (doc fls. 34) – alínea h) matéria assente.
viii. I... teve uma trombose – resposta ao quesito 15º da base instrutória.
ix. Desde 1992 que era seguida na consulta externa de medicina interna do Hospital ..., por padecer de diversas patologias em especial de acidentes isquémicos cerebrais lacunares, ou seja, falta de tensão arterial no cérebro– resposta ao quesito 16º da base instrutória.
x. O que veio a redundar no acidente vascular cerebral referido na alínea h) matéria assente – resposta ao quesito 17º da base instrutória.
xi. A ré D... era quem nos últimos tempos das vidas de I... e J... deles cuidava, tratando da sua alimentação e procedendo aos mais variados cuidados da sua higiene – alínea i) matéria assente.
xii. O casamento aludido na alín a) matéria assente foi dissolvido por morte de I..., que faleceu no Hospital ... em 2 de Setembro de 2000 (doc fls. 21) – alínea b) matéria assente.
xiii. J… faleceu em 7 de Agosto de 2002 no Hospital … (doc fls. 22) – alínea c) matéria assente.
xiv. Sucederam aos referidos I... e J... como únicos herdeiros legitimários os seus três filhos, designadamente o autor B... e os réus D... e E... (doc fls. 134 a 136) – alínea d) matéria assente.
xv. Em 22 de Novembro de 2002, no Cartório Notarial de Amarante, na qualidade de cabeça de casal nas heranças abertas por óbito dos ditos I... e J..., a ré outorgou escritura pública de habilitação de herdeiros, na qual mencionou expressamente os aludidos testamentos (doc fls. 134 a 136) – alínea m) matéria assente.
xvi. O autor marido deslocou-se ao funeral dos pais – resposta ao quesito 53º da base instrutória.
xvii. Um mês ou dois meses depois do óbito do pai, o autor marido contactou, pelo menos, uma pessoa, falando-lhe de problemas com a irmã D..., em virtude de os seus pais o terem deserdado – resposta ao quesito 54º da base instrutória.
xviii. Na Repartição de Finanças de Amarante foram instaurados dois processos de liquidação de imposto sobre sucessões e doações por óbito de cada um dos referidos I... e J... – resposta ao quesito 56º da base instrutória.
xix. E em cada um desses processos a ré D... apresentou os respectivos testamentos – resposta ao quesito 57º da base instrutória.
xx. No dia 8 de Junho de 2005 faleceu O..., marido da ré D..., com quem era casado no regime de comunhão geral de bens (doc fls. 23) – alínea e) matéria assente.
xxi. Sucedendo-lhe, para além da viúva, a filha única do casal, a ré G..., casada civilmente com H..., em 11 de Janeiro de 1985 e, posteriormente, catolicamente em 4 de Maio de 1985 (doc fls. 27) – alínea f) matéria assente.

4. O mérito (jurídico) do recurso.

4.1. A essência do recurso de apelação que se acha interposto encontra-se na impugnação do trecho decisório da matéria de facto, e nos domínios que as alegações dos apelantes (os autores da acção) circunscreveram. Nessa parte, a decisão produzida no tribunal “a quo” mereceu ser confirmada; acarretando que os factos provados subsistam os mesmos, ali juridicamente perspectivados.

Ora, sob a óptica jurídica, disseram os apelantes nas sínteses conclusivas da alegação elaborada que, sendo acolhido o seu recurso de facto, se impunha uma solução de direito diferente da formulada pelo tribunal recorrido, essa a reconhecer o direito invocado; e que a decisão recorrida violara, entre mais, o artigo 668º, nº 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil.

4.2. Não se descortinam fundamentos mínimos a justificar a alteração da decisão de direito contida na sentença apelada, ao menos enquanto os factos provados sejam aqueles que nela constam igualmente enumerados.

Ainda assim, não é pertinente à hipótese invocar, nesta sede, as disposições contidas no artigo 668º, nº 1, do código de processo, que se referem a nulidades estruturais da sentença, a da alínea c) consistente na contradição lógica dos seus segmentos constitutivos (fundamentos e decisão), corolário da exigência legal de fundamentação, e a da alínea d) consistente respectivamente em omissão e em excesso de pronúncia, em preterição da norma delimitadora dos assuntos a decidir nela, contida no artigo 660º, nº 2, do código.
A sentença apelada não padece de nenhum destes vícios estruturais.

Entretanto, já precedentemente nos referimos ao regime jurídico julgado exacto. A incapacidade acidental que, na hipótese, considerada a natureza do acto dispensa a notoriedade do facto ou o seu conhecimento pelo declaratário, como é apanágio do regime comum (artigos 257º e 2199º);[9] supondo uma prova suficiente de que o testador padecia, no momento, de carência de discernimento.[10] A inajustada forma de expressão da vontade do testador (artigo 2180º); a supor a prova consistente de que a enunciação do querer não foi inequívoca e clara, ao invés porventura hesitante ou indecisa. Por fim, a coacção moral (artigos 255º e 2201º); supondo a prova de uma ameaça de um mal, reprovada pela ordem jurídica, passível de censura jurídico-normativa,[11] e feita com o fito de obter a declaração negocial do testador. Ora, os factos não integram nenhuma das fatti specie enumeradas nessas normas de direito substantivo.

E assim, como se dissera no tribunal “a quo”, a acção naufraga.
E persistindo os mesmos factos, agora, naufraga também o recurso.

5. É o decaimento de cada uma das partes que condiciona a proporção da responsabilidade de cada uma pelo encargo das custas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do código de processo). Na hipótese, a improcedência total do recurso transporta para a esfera dos apelantes o encargo do seu pagamento integral.

6. Síntese conclusiva.
É a seguinte a síntese conclusiva que pode ser feita, a propósito do que fica de essencial quanto ao mérito do presente recurso:

I – A falta de consciência da declaração negocial, que previne o artigo 246º do Código Civil, é aquela que supõe um declarante discernido, capaz de entender o sentido dela mas que, todavia, se não apercebe (não tem a consciência) de que a está a emitir;
II – Diferente dessa é a hipótese de incapacidade acidental, em que exactamente o declarante se acha, por qualquer causa, privado daquele discernimento, da aptidão para compreender o sentido da declaração (artigos 257º, nº 1, e 2199º do Código Civil);
III – A expressão da vontade do testador tem de revestir uma forma cumprida e clara, quer dizer, inequívoca, sem permitir suspeita de mínima dúvida acerca de qual foi a sua vontade segura; sendo o negócio nulo quando assim não aconteça (artigo 2180º do Código Civil);
IV – Se a declaração negocial do testador é motivada pelo receio de um mal de que este haja sido ameaçado com o fim de a obter, e essa ameaça comporta um juízo de reprovação à face da ordem jurídica, ocorre coacção moral e o negócio é anulável (artigos 255º e 2201º do Código Civil);
V – Em qualquer das hipóteses de vício capaz de corromper o negócio jurídico testamentário, enumeradas de I – a IV –, é essencial a substanciação mediante factos de cada uma das fatti specie respectivas; sendo ónus do interessado em obter a respectiva invalidade a alegação desses factos e a sua prova consistente (artigos 342º, nº 1, do Código Civil e 516º do Código de Processo Civil);
VI – Sem embargo de uma concludente prova contrária, devem em regra ser considerados como provados os factos que sejam percepcionados pelo notário e, como tal, atestados no acto público notarial (artigos 371º, nº 1, 372º, nºs 1 e 2, e 347º, do Código Civil);
VII – O princípio da livre apreciação da prova, que alicerça o julgamento da matéria de facto, sustenta-se em critérios racionais e objectivos, em juízos de ilações e inferências razoáveis, mas sempre de mera probabilidade (artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil); e conduz a um juízo positivo de prova quando, em face dos instrumentos disponíveis, do seu conteúdo, consistência e harmonia, se afigure aceitável à consciência de um cidadão medianamente informado e esclarecido, que a realidade por eles indiciada já se possa ter como efectivamente assumida;
VIII – A avaliação dos depoimentos das testemunhas, realizada de acordo com os ditames referidos em VII – (artigo 396º do Código Civil), deve assentar em dois pólos, via de regra; de um lado, na razão de ciência de evidenciada (artigo 638º, nº 1, final, do Código de Processo Civil); do outro, no maior ou menor afastamento (ou comprometimento pessoal) que, com a controvérsia em discussão, se afigure existir (artigo 635º, nº 1, final, do Código de Processo Civil); sendo estes factores que, além do mais, permitem escrutinar o nível da credibilidade que lhes pode ser conferido.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar o recurso de apelação improcedente e, nessa conformidade:

1.º; manter a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido, nos segmentos correspondentes aos pontos de facto concretamente impugnados pelos apelantes;

2.º; decorrentemente, confirmar a sentença apelada, que julgou a acção improcedente e absolveu os réus dos pedidos.

As custas da apelação são, na sua íntegra, encargo dos apelantes.

Porto, 19 de Dezembro de 2012
Luís Filipe Brites Lameiras
Carlos Manuel Marques Querido
José Fonte Ramos
________________
[1] A data de interposição da acção foi a de 31 de Maio de 2006 (v fls. 2).
[2] Em bom rigor, a arguição da falsidade aqui mencionada exigiria, para o seu sucesso, uma prova sólida que permitisse reconhecer desvirtuado o que fôra certificado pelo oficial público (artigos 372º e 347º do Código Civil). Este complexo assunto, da prova que é necessária para aquele efeito, surge na hipótese de alguma forma atenuado, já que nesta é bastante clara a inexistência de instrumentos indiciários capazes de, com um mínimo de solidez, fazer preterir as percepções atestadas do notário que lavrou o testamento.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 2001 na Colectânea de Jurisprudência (STJ), ano IX, tomo III, páginas 61 a 65.
[4] Jacinto Rodrigues Bastos, “Direito das Sucessões”, volume II, 1982, páginas 161 a 162.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil anotado”, volume VI, 1998, página 289.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 2011, proc.º nº 4936/04.1TCLRS.L1.S1, em www.dgsi.pt.
[7] Era de facto, de todo em todo, expectável que o notário que lavrou testamento estivesse atento à explicitação da vontade do outorgante, a coberto das suas competências (artigo 4º, nº 1, do Código do Notariado). Nisto também radica a fé pública que é inerente à função notarial (artigo 1º, nº 1, do dito código).
[8] É o sintético e impressivo texto de Manuel de Andrade, em “Noções elementares de processo civil”, reimpressão de 1993, páginas 191 a 192.
[9] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 2003, proc.º nº 03B3008, e da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 2009, proc.º nº 344/2002.L1-1, ambos em www.dgsi.pt.
[10] Acerca deste vício de vontade em assunto de testamento, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Março de 2011, proc.º nº 509/04.TBPVZ.P1.S1, e das Relações de Lisboa de 29 de Junho de 2010, proc.º nº 4936/04.1TCLRS.L1-7, e do Porto de 7 de Outubro de 2004, proc.º nº 0434311, e de 14 de Novembro de 2011, proc.º nº 923/08.9TBCHV.P1, todos em www.dgsi.pt.
[11] É a condenação à face da ordem jurídica o que subjaz ao conceito de ilicitude que é referido no nº 1, do artigo 255º, mais do que propriamente a existência de um incisivo e concreto preceito da lei que suporte essa condenação (Luís Carvalho Fernandes, “Teoria geral do direito civil”, volume II, 4ª edição, página 234).