Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
954/10.9TAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REMISSÃO
OBJECTO DO PROCESSO
Nº do Documento: RP20140326954/10.9TAVNG.P1
Data do Acordão: 03/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O RAI deve conter uma descrição factual que permita considerar preenchidos, quer o tipo objetivo, quer o tipo subjetivo do crime imputado ao arguido.
II – Se é certo que a remissão, in totum, para elementos (documentos, queixas, denúncias, peças processuais de outros processos, etc.) constantes dos autos não satisfaz a exigência de que o RAI (e a acusação) seja a narração precisa e discriminada dos factos constitutivos do crime, não será, contudo, de afastar essa possibilidade, desde que a descrição seja suficientemente clara e percetível para que o arguido fique a saber, com precisão, do que é pronunciado (ou acusado) e o objeto do processo fique definido e fixado.
III – No caso de RAI presentado pelo assistente é fundamental que ele defina o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão do Ministério Público de não acusar, pois é ale que define o objeto do processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 954/10.9 TAVNG.P1
Recurso penal (rejeição do requerimento de abertura de instrução)
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório

No âmbito do processo comum que, sob o n.º 954/10.9 TAVNG, corre termos pelo 1.º Juízo B do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, B…, devidamente identificado nos autos, na sequência da notificação do despacho do Ministério Público (fls. 245 e segs.) que se absteve de acusar e determinou o arquivamento do inquérito iniciado por uma denúncia por si apresentada, veio requerer a sua constituição como assistente e, simultaneamente, a abertura de instrução (requerimento a fls. 266 e segs.).
Porém, a Sra. Juiz de instrução rejeitou, liminarmente, o requerimento de abertura de instrução (de ora em diante, abreviadamente, RAI), por inadmissibilidade legal desta.
Não se conformou o denunciante, entretanto admitido a intervir como assistente, e recorreu dessa decisão para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
I. “Nos termos no disposto no artigo 287.°, n.º 3 do C.P.P (Requerimento para abertura de instrução) “o requerimento de abertura só pode ser rejeitado por extemporâneo, incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução;

II. Sendo que o requerimento de abertura de instrução peticionado pelo Assistente foi instaurado atempadamente e perante o Tribunal competente,

III. Mais tendo sido observado na elaboração do mesmo o disposto nos artigos 287.° do C.P.P.,

IV. Nomeadamente delimitando-se os factos sobre os quais a instrução deverá versar (não só por remissão - como pretende fazer crer o despacho ora em crise - mas também por descrição narrativa, sistemática e cronológica dos factos no próprio requerimento de abertura de instrução),

V. Os factos que se imputam ao Denunciado e que o Assistente pretende ver acusados,

VI. Pelo que a Instrução é perfeitamente exequível,

VII. E o respectivo requerimento não padece de qualquer irregularidade que implique a inadmissibilidade legal da instrução,

VIII. Finda a qual sempre poderá ser proferido, como pretende o Assistente, despacho de pronúncia do Denunciado com base nos factos que lhe são imputados e constante na queixa-crime e requerimento de abertura de instrução apresentados,

IX. Requerimento esse que deveria ter sido aceite e ordenada a abertura de instrução com a realização das diligências de prova indicadas no respectivo requerimento,

X. Pelo que, e ao decidir em contrário, o despacho que se recorre violou o disposto nos artigos 287.º, n.ºs 2 e 3 e 283.º, n.º 3 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal,

XI. Despacho esse que, assim sendo, deverá ser revogado e substituído por outro que ordene a abertura de instrução e ulteriores termos da mesma…
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Apenas o Ministério Público apresentou resposta à motivação do recurso em que manifesta o entendimento de que “…os factos aludidos no requerimento de abertura de instrução da ora recorrente jamais integram as realizações típicas apontadas” e por isso “…a instrução não conduziria (…) à prolação de despacho de pronúncia”, pelo que entende ser de confirmar a decisão de rejeição do RAI.
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Nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do artigo 416.º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que considera que, “não bastando a mera reafirmação da denúncia” que deu origem ao inquérito, o tribunal a quo decidiu bem ao rejeitar o RAI.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, mas não houve resposta do recorrente.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II - Fundamentação
Sabendo-se que são as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, disponível em www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, está evidenciada a importância desse ónus a cargo do recorrente.
Apesar das onze conclusões formuladas pelo recorrente, é na conclusão 4.ª que este resume as razões da sua discordância relativamente ao despacho recorrido: considera que o objecto do processo está bem delimitado, não só pela remissão que fez para a denúncia, mas também porque no próprio requerimento de abertura de instrução faz uma “descrição narrativa, sistemática e cronológica dos factos”.
Assim, a questão que se impõe apreciar e decidir consiste em saber se o requerimento de abertura de instrução satisfaz as exigências legais quanto à descrição dos factos que hão-de definir o objecto do processo ou se, pelo contrário, havia razões para o rejeitar liminarmente, como aqui aconteceu, o que passa por determinar se na narração dos factos que aquele requerimento deve conter é possível remeter para a queixa ou denúncia apresentada.
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A decisão impugnada
Para uma correcta decisão da questão equacionada, importa conhecer a decisão posta em crise, que é do seguinte teor (na parte que para aqui interessa):
«A instrução requerida pelo assistente terá que configurar, como pacificamente é aceite, uma verdadeira acusação, indicando as razões de facto e de direito de discordância relativamente à posição do Ministério Público.
A lei limita os casos em que o requerimento de instrução pode ser rejeitado, dispondo o art. 287º/3 do CPP que tal só pode acontecer por extemporaneidade, incompetência do juiz ou inadmissibilidade legal.
Relativamente a este último caso - inadmissibilidade legal, temos que aqui cabem as situações em que o requerimento do assistente não conforma uma verdadeira acusação, faltando assim os pressupostos de que depende a sujeição a julgamento. Como refere Germano Marques da Silva, Curso Processo Penal III, pág.135, "faltando no processo o seu objecto ou o arguido o processo é inexistente". Refere mais à frente o mesmo autor, a propósito da instrução a requerimento do assistente que, "essencial é apenas que os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronúncia tenham sido objecto de inquérito, sob pena de nulidade processual e consequente inadmissibilidade legal da instrução". Significa isto pois que, se o requerimento de instrução formulado pelo assistente tiver factos que não tenham sido objecto de inquérito, estaremos perante a nulidade prevista no art. 119º al.d) do CPP (falta de inquérito), o que, como refere o autor supra citado, configura um caso de inadmissibilidade legal da instrução - op. cit. pág.140, nota de rodapé.
Do requerimento instrutório em apreço, não resulta nenhuma acusação nos termos descritos no art.º 283º, 5, remetendo o assistente, quanto aos factos, para a participação (ponto 8º), o que torna o requerimento vazio de conteúdo e insusceptível de definir o objecto do processo.
O assistente alega factos, descreve situações, mas não as elenca de forma cronológica e coerente, como faz na participação e esta peça não integra o “objecto do processo”.
Assim considerando o teor do requerimento de instrução, os fundamentos aduzidos no despacho de arquivamento, as razões acima aludidas e o disposto no art. 287º nº3, do CPP, rejeito o requerimento, por inadmissibilidade legal da instrução».
Como se constata, a Sra. Juiz de instrução considerou, por um lado, o requerimento de abertura de instrução “vazio de conteúdo e insusceptível de definir o objecto do processo” porque o assistente remete para a participação e por isso dele não resulta uma acusação, tal como exige o artigo 283.º, n.º 5[1], do Cód. Proc. Penal; por outro lado, em contradição com essa afirmação, admite que no mesmo requerimento o assistente “alega factos” e “descreve situações”, mas fá-lo deficientemente, pois não elenca esses factos “de forma cronológica e coerente”.

Requerimento de abertura de instrução - estrutura e conteúdo.
O requerimento de abertura de instrução é a peça processual que consubstancia materialmente uma acusação, que define o objecto do processo e limita os poderes de cognição do juiz[2].
Sem que tenha de obedecer a esta ordem, o requerimento instrutório apresentado pelo assistente deve conter:
● uma exposição que, em síntese, contenha as razões, de facto e de direito, da discordância em relação à decisão de arquivamento (assim possibilitando o controlo da actividade do Ministério Público no inquérito)[3];
● a narração dos factos e a sua subsunção jurídico-penal, ou seja, a indicação das normas que os prevêem e punem como crime(s);
● a indicação dos actos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.
O ponto fundamental é a narração dos factos imputados ao(s) arguido(s) e a indicação das respectivas normas incriminadoras.
Com efeito, essa narração no requerimento instrutório “não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, e que fundamente a aplicação aos arguidos de uma pena” (Acórdão do STJ, de 25.10.006, www.dgsi.pt; Relator: Cons. Oliveira Mendes).
É o conteúdo do requerimento de abertura de instrução que vai definir as bases de facto (e de direito) da questão a submeter ao juiz e, portanto, que vai estabelecer os limites da vinculação temática, ou seja, tal como uma verdadeira acusação, vai condicionar e limitar a actividade do juiz e a decisão instrutória[4].
Assim sendo, como é, o requerimento instrutório deve conter uma descrição factual que permita considerar preenchidos, quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo do(s) ilícito(s) criminal(is) imputado(s) ao(s) arguido(s), constituindo motivo bastante de indeferimento do requerimento a omissão de factos que materializem os elementos objectivos e subjectivos das infracções imputadas[5].
Poderá essa descrição ser feita, no todo ou em parte, por remissão para a queixa ou para a denúncia apresentada?
O recorrente sustenta que se impõe uma resposta positiva e invoca em abono da sua posição os acórdãos desta Relação de 09.12.2004 (Des. Élia São Pedro)[6] e da Relação de Coimbra, de 17.09.2003 (Des. Serafim Alexandre).
Vinício Ribeiro (“Código de Processo Penal, Notas e Comentários”, 2.ª edição, Coimbra Editora, 792) manifesta-se discordante da posição defendida nesses arestos, contrapondo o entendimento de que, atenta a estrutura acusatória do processo penal e por força das garantias de defesa do arguido, o RAI tem de conter todos os elementos mencionados nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP, não podendo remeter para “elementos dos autos”, entendimento que refere ter arrimo no Acórdão do TC n.º 358/2004 e nos acórdãos da Relação de Guimarães de 19.12.2007 e de 23.11.2009[7].
No acórdão da Relação de Lisboa, de 14.12.2006 (Des. Ricardo Cardoso), decidiu-se que “a acusação deve ser uma peça auto-suficiente, pelo que não pode ser feita por remissão para uma certidão que deu origem ao processo”.
Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 743), admite que a acusação pode remeter para documentos juntos aos autos, “desde que as remissões não se refiram a factos constitutivos do crime”.
No acórdão desta Relação, de 01.04.2009 (Des. António Gama) considerou-se inadmissível “…efectuar uma acusação por total remissão para noventa e sete números de articulados juntos aos autos, sem qualquer referência expressa ao seu conteúdo – e, principalmente, sem referir explicitamente o seu significado, porque se não esclarece com precisão qual a conduta criminosa que deles se pretende extrair e que através deles se pretende comprovar”, adoptando-se, assim, a doutrina do Acórdão do TC n.º 674/99, segundo a qual “…efectuar meras remissões para documentos juntos aos autos, sem referência expressa ao seu conteúdo - e, principalmente, sem referir explicitamente o seu significado, porque se não esclarece com precisão qual a conduta criminosa que deles se pretende extrair e que através deles se pretende comprovar - não pode então constituir, como pretende o MP, uma mera «simplificação» da acusação e da correspondente pronúncia, ainda compatível com aquelas exigências de clareza e narração sintética dos factos imputados ao arguido e, consequentemente, com a virtualidade de permitir uma futura condenação também com base nesses factos apenas indirecta e implicitamente referidos, sem que se considere ter verdadeiramente ocorrido uma alteração dos factos, mas tão-só a sua «explicitação»”, pois “um tal entendimento afrontará irremissível e irremediavelmente as garantias de defesa do arguido e o princípio do acusatório, assegurados no artigo 32º da Constituição”.
Destaque merece, ainda, o Acórdão do STJ, de 06.12.2002, na parte em que se afirma que “se a narração, apesar de em dois concretos pontos se fazer integrada por remissão para outros tantos documentos juntos aos autos, que contextualiza, localiza e identifica com precisão, se mostra articulada, com desenvolvimento factual lógico e cronológico, descreve factos bem individualizados e procede à respectiva qualificação jurídica, satisfaz as garantias de defesa emergentes do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, já que faculta ao arguido a real dimensão do objecto do processo”.
Este breve excurso pela doutrina e pela jurisprudência permite-nos extrair a conclusão de que, se é certo que a remissão, pura e simples, in totum, sem mais, para elementos (documentos, queixas, denúncias, peças processuais de outros processos, etc.) constantes dos autos não satisfaz a exigência de que a acusação (e o requerimento instrutório do assistente, por remissão do n.º 2 do artigo 287.º para as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do Cód. Proc. Penal) seja a narração precisa e descriminada dos factos constitutivos do crime ou crimes imputados, não será, contudo, de afastar, de todo, essa possibilidade, desde que, ainda assim, a descrição seja suficientemente clara e perceptível, não só para que o arguido fique a saber, com precisão, do que é acusado/pronunciado, mas também para que o objecto do processo fique claramente definido e fixado.
No fundo, fundamental mesmo é que, como se diz no Acórdão do STJ, de 07.03.2007 (Cons. Henriques Gaspar), no caso de instrução requerida pelo assistente, o RAI defina o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão do Ministério Público de não acusar, pois, neste caso, é aquele requerimento que define o objecto do processo.
O recorrente começa o seu requerimento de abertura de instrução dizendo que “mantém, na íntegra, o teor dos factos participados a fls…” (n.º 8) e, apesar de não ter indicado as fls., não há dúvidas de que se refere à queixa formalizada a fls. 2 e 3, que é do seguinte teor:
“1. O participado é socio e gerente da sociedade ”C…, Lda", NIPC ………, com sede e instalações no …, …, Vila Nova de Gaia, como resulta da certidão junta (Doc. 1).
2. Foi igualmente sócio e gerente da mesma sociedade D…, pai de participante e participado, com última residência na Rua .., n.º …, Espinho, entretanto falecido em 04.10.1997, conforme certidão de óbito que se junta (Doc. 2).
3. Desde o óbito de D… que a sociedade vem sendo gerida pelo participado, coadjuvado pelo contabilista da empresa E…, com domicílio profissional no "F…, Lda", com sede na E. N. ., …, loja ., …, ….
4. Sucede que na sequência de um sinistro ocorrido na sede e instalações da sociedade identificada em 1., foi participado o sinistro à companhia de seguros G…, tendo esta procedido ao pagamento do valor de € 139.068,00 + € 65.957,00 à sociedade em 25.10.2005, conforme resulta dos documentos emitidos pela seguradora que se juntam e dão por integrados e reproduzidos (Docs. 3, 4, 5 e 6).
5. Como resulta de tais documentos, a sociedade deu quitação dos dois valores recebidos, tendo sido apostos em ambos os carimbos da gerência e as assinaturas de D….
6. Estas assinaturas foram reconhecidas no Cartório Notarial de Santa Maria da Feira da Notária H…, em 25.10.2005, por “semelhança com a do bilhete de identidade ……. de 18/02/83, Lisboa, na qualidade de gerente da sociedade comercial por quotas com a firma “C…, LDA” com sede na freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, com poderes para o acto, conforme certidão emitida pela Conservatória do Registo Comercial de Vila Nova de Gaia em 21/09/2005, que me foi exibida” (cfr. Docs. 4 e 6 juntos).
7. É manifesto estarmos perante assinaturas falsas atribuídas a D…, uma vez que aquele já havia falecido em 04.10.1997, ou seja, 8 anos antes dos actos constantes das datas dos dois documentos (25.10.2005).
8. Os reconhecimentos notariais são igualmente falsos, uma vez que nem o autor das assinaturas foi D…, nem este detinha, em 25.10.2005 a qualidade de gerente da sociedade ”C…, LDA”.
9. As assinaturas só podem ter sido feitas pelo participado que era quem, naquela data de 25.10.2005, se encontrava a gerir a sociedade “C…, Lda” e, por isso, era quem tinha acesso aos documentos da sociedade, aos carimbos dela, à apólice de seguros n.º ………. na G… e a todos os elementos necessários para tratar com esta seguradora dos assuntos relacionados com o sinistro.
10. Existe firme suspeita de que aquele valor de € 205.025,00 (€ 139.068,00 + € 65.957,00) da indemnização paga pela seguradora G… à sociedade ”C…, Lda" não entrou nos cofres desta, antes tendo sido embolsada pelo participado, que dela se apropriou em seu proveito, como certamente poderá ser esclarecido pelo identificado contabilista referido no ponto 3., que era quem analisava e procedia ao tratamento dos documentos da contabilidade da firma, quem tinha dever legal de certificar a veracidade dos documentos de participação das contas dos exercícios fiscais à administração fiscal.
11. Os actos e comportamentos do participado foram por ele assumidos voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.
Mas o recorrente não se ficou pela remissão para o conteúdo da queixa.
Como reconhece a Sra. Juiz de instrução, no requerimento de abertura de instrução, o recorrente descreve “factos e situações”, como facilmente se constata pela seguinte transcrição:
9.º
«Na verdade, e tal conforme foi dado como provado, na sequência de um incêndio ocorrido nas instalações da Sociedade “C…, Lda.", foi recebido pelo Arguido as quantias indemnizatórias assumidas e liquidadas pela Seguradora Fidelidade nos montantes de € 139.068,00 e de € 65.957,00»
10.º
«O qual, assinou, em nome de seu pai já falecido, os respectivos recibos de quitação»
11.º
«Tendo, assim, falsificado a assinatura daquele, em seu próprio benefício e fazendo suas aquelas quantias»
17.º
«Assim, tal quantia monetária não entrou no giro dos cofres a sociedade, mas antes integrou o património pessoal do denunciado»
18.º
«Com a intenção (lograda) de causar prejuízo aos demais sócios e herdeiros do seu falecido pai, obtendo para si, o benefício patrimonial ilegítimo acima indicado»
Estão aqui descritos, de forma suficientemente clara e precisa, factos susceptíveis de integrarem os elementos (objectivos e subjectivos) constitutivos do crime de falsificação de documento e é manifesto que o recorrente se refere aos documentos de fls.6 a 9 dos autos, dos quais resulta que a alegada falsificação, por abuso da assinatura de outrem, teria ocorrido em 25.10.2005.
Não se nega que a narração dos factos no RAI não prima pelo rigor e pela harmonia, mas é perfeitamente perceptível, o thema decidendum está definido de forma a não afrontar as garantias de defesa do arguido e o princípio do acusatório.
Aliás, é em relação ao despacho de pronúncia que o arguido terá de se defender, se for nesse sentido a decisão instrutória, e o que se impõe é que o Sr. Juiz de instrução supra as deficiências detectadas.
Como se faz notar no acórdão desta Relação de 07.11.2010, cabe ao juiz, em eventual despacho de pronúncia, ordenar, sintetizar e clarificar os factos descritos no RAI de forma desajeitada e confusa, não sendo esta deficiência motivo para rejeição do requerimento.
O que se tem entendido é que se justifica a rejeição liminar do RAI se este for totalmente omisso quanto à descrição dos factos que permitam integrar os elementos típicos (sejam os elementos objectivos, sejam os elementos subjectivos) do(s) ilícito(s) em causa.
O recorrente tem o direito de confrontar judicialmente a decisão do Ministério Público de não deduzir acusação.
*
O recorrente entende que o arguido deve ser pronunciado pelos crimes de falsificação de documento e de burla.
Porém, não indicou os preceitos legais que prevêem e punem esses crimes.
A falta de enquadramento jurídico-penal dos factos constitui uma nulidade, para uns, sanável, para outros, de conhecimento oficioso.
Em todo o caso, essa omissão não obsta à abertura da instrução (cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 17.03.2005, Proc. n.º 3472/03-9.ª).
Cabe aqui referir que o Sr. Conselheiro Maia Costa (“Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1003, de que é co-autor) defende que o assistente ou o arguido devem ser convidados a aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução quando falte algum ou alguns dos seus requisitos, fazendo notar que do AUJ n.º 7/2005, de 12.05.2005, decorre que essa hipótese, apenas, é arredada quando falta a narração dos factos no RAI.

IIIDecisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual será substituído por outro que admita o requerimento de abertura de instrução e declare aberta esta fase processual.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 26-03-2014
Neto de Moura
Vítor Morgado
_________________
[1] Terá querido referir o n.º 3 e não o n.º 5 do artigo 283.º do Cód. Proc. Penal.
[2] Cfr. os acórdãos do STJ de 08.10.2008 (Relator: Cons. Soreto de Barros) e de 24.09.2003 (Relator: Cons. Henriques Gaspar), acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[3] Como escrevem M. Simas Santos, M. Leal-Henriques e João Simas Santos em “Noções de Processo Penal”, Rei dos Livros, 2010, p. 395), “pretendendo-se infirmar ou neutralizar um despacho que pôs termo ao inquérito, há que, pelo menos, lhe apontar defeitos que justifiquem a inversão decisória requerida. Defeitos que só se poderão descortinar se o requerente fornecer ao juiz de instrução, no seu requerimento, dados para se apurar onde e como o M.P. errou”.
[4] Fala-se, a este propósito, em “acusação implícita” (Germano Marques da Silva, Op. Cit., 167) e em acusação alternativa, ou seja, aquela que, segundo o assistente, devia ter sido deduzida (e não foi) pelo Ministério Público (cfr. acórdãos do STJ, de 07.12.2005 e de 07.03.2007, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
[5] Assim, entre outros, os acórdãos do TRP, de 21.06.2006 e de 11.10.2006, e do STJ, de 07.05.2008 e de 22.10.2003 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
[6] Da mesma relatora, cfr. ainda o acórdão de 28.09.2005., Proc. n.º 0413508.
[7] Os acórdãos da Relação de Guimarães não estão disponíveis na base de dados do tribunal e por isso a eles não tivemos acesso. Quanto ao acórdão do Tribunal Constitucional, o que nele se decidiu foi que não é inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 287.º, n.ºs 2 e 3, e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de a narração dos factos constante do requerimento de abertura da instrução apresentada pelo assistente não poder ser efectuada por remissão para o auto de notícia ou para a denúncia. Não se decidiu, nem cabia na competência do TC fazê-lo, ser essa a interpretação correcta dessas normas.