Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
68/08.1TACDR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: DIFAMAÇÃO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO
Nº do Documento: RP2014021268/08.1TACDR.P1
Data do Acordão: 02/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A lei não pune o uso de expressões difamatórias quando estas são proferidas prosseguindo interesses legítimos e o agente prove a verdade das mesmas, ou creia de boa-fé na sua veracidade [art. 180.º, n.º 2, do Cód. Penal].
II – Para que aja uma crença justificada na verdade dos factos e boa-fé é necessário que a convicção do agente decorra de uma busca de provas minimamente objetiva (investigação jornalística) para, de acordo com as regras da experiência comum, ficar convencido da verdade do que escreve.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 68/08.1TACDR.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
No Tribunal Judicial de Castro Daire, Secção única, procedeu-se ao julgamento em Processo Comum (n.º68/08.1TACDR) e perante Tribunal Singular do arguido B…, devidamente identificado nos autos, pela prática de um crime de difamação agravado, previsto e punido pelos artigos 180º, 1, 182º, 183º, 2 e 184 do Código Penal.
A queixosa, mais tarde constituída assistente, C…, formulou pedido de indemnização civil, o qual foi admitido contra o arguido acima identificado, no montante de 7.500,00 euros e juros de mora contados da citação até integral pagamento.
Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida a seguinte decisão (transcrição):
“(…)
Quanto à parte criminal:
Condena-se o arguido B…, pela autoria material de um crime agravado de difamação, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180º, n.º 1, 182º, 183º,n.º 2 e 184, por referência à al. l) do n.º 2 do art. 132º, todos do Código penal, na pena de multa de 250 (duzentos e cinquenta) dias à taxa diária de € 5,00 (quatro), o que perfaz o montante de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).
Condeno o arguido nas custas do processo, fixando a taxa de justiça em 3 UC.
Quanto à parte cível:
Julgo o pedido de indemnização civil formulado por C…, parcialmente provado e, nessa medida procedente e, em consequência, condeno o demandado B… a pagar à demandante, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de € 1.5000,00 (mil e quinhentos euros);
A esta quantia acresce juros, à taxa legal, devidos desde a data da presente decisão, até integral pagamento.
Custas cíveis pela demandante e demandado na proporção do respectivo decaimento.
(…)”
Inconformado com tal condenação, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, terminando a motivação com as conclusões seguintes (transcrição):
a) Não houve qualquer intuito do arguido em ofender, a sua missão é informar, e foi isso que fez, com rigor, com isenção e espírito livre. Não praticou qualquer crime nem há qualquer indício de crime, por mais pequeno que seja. Há apenas jornalismo sério e de serviço público.
b) A sentença não valorou factos importantes como sejam o processo cuja certidão está presente neste processo e que acusa e pronuncia a assistente por factos constantes na notícia, havendo assim a objectiva crença na verdade que está na notícia;
c) O Tribunal deu crédito a testemunhas que foram contraditórias, logo, uma delas teve de mentir, ao invés não deu qualquer crédito ao arguido;
d) O Tribunal não deu como provado que houve intenção de enxovalhar, sendo que esta era a única possibilidade de haver uma coerente condenação. Houve falta de provas para tal facto, e assim, há falta de provas para a condenação do arguido.
e) O Tribunal aponta uma indemnização quando não qualquer prova, por mínima que seja, de quaisquer custos pessoais, profissionais, ou morais da assistente. Não houve qualquer prova disso mesmo. Teve o direito de resposta a que tinha direito, usou-o, e aproveitou-o até para confirmar alguns dos factos da notícia.
f) O Tribunal não valorou o direito de defesa da assistente que confirma alguns dos factos da notícia e deita por terra o próprio pedido cível que salienta que não havia qualquer verdade na notícia.
g) O Tribunal da Relação do Porto decidiu que há mais arguidos solidariamente responsáveis pela indemnização cível, contudo, cremos ser essa decisão redundante pois não haverá, a nosso ver, direito a qualquer tipo de indemnização pois não foi cometido qualquer crime.
h) A lei de imprensa, a Constituição da República portuguesa, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, balizam claramente a actividade do jornalista, e muito relevante para este caso é mesmo o artigo 31º,n.º 4 da lei da imprensa que refere que “tratando-se de declarações correctamente reproduzidas, prestadas por pessoas de4vidaemnte identificadas, só estas podem ser responsabilizadas (…)”. Assim deveria ser. Responsabilizem quem em Tribunal diz que não falou mas que efectivamente, nunca negaram no local próprio, terem afirmado.
Terminou pedindo a sua absolvição do crime e do pedido cível, por ser inocente e não haver prova de qualquer crime.
*
Respondeu a assistente, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O MP junto do tribunal “a quo” respondeu também ao recurso, pugnando igualmente pela manutenção da decisão recorrida.
Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A sentença recorrida deu como assentes os seguintes factos:
“(…)
A) De Facto:
1. Factos provados:
Discutida a causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1. O arguido B… escreveu um artigo de notícia publicado no jornal D… de 2 de Maio de 2008, com larga circulação nacional, intitulado “Autarquias. Suspeitas de corrupção, financiamento ilegal de partido, administração danosa e peculato na Câmara Municipal … estão a ser investigados pela Inspecção-Geral de Administração Local e pela Polícia Judiciária. A Presidente da Câmara nega ter favorecido empreiteiros” e em título destacado com letras garrafais anuncia: “Inspecção - Geral e Polícia Judiciária investigam …”
2. Naquele artigo, o arguido B… teceu comentários relativos ao exercício de funções de C… enquanto Presidente daquela Câmara -a saber, designadamente:
3. “A Inspecção-Geral da Administração Local (IGAL) e a PJ estão a investigar a Câmara … no distrito de Viseu por suspeitas de corrupção, peculato, administração danosa e financiamento ilegal de partido político. Os factos foram participados à IGAL depois de terem sido publicamente denunciados em reuniões da Câmara”.
4. “O alegado financiamento ilegal ocorreu quando um empreiteiro de … depositou, durante a campanha eleitoral para as autárquicas de 2005, 25 mil euros na conta pessoal de E…, que, após as eleições, foi nomeado adjunto da autarca C….”
5. “Estes factos foram denunciados inicialmente pela oposição centrista, numa autarquia que desde sempre tem sido governada pelo F…. Segundo contou ao D… um destacado militante do F… de …, «a empresa G…s abordou primeiro o número dois da lista, mas H… recusou receber qualquer donativo em numerário. Posteriormente, o dinheiro acabou depositado na conta do E…».
6. Este facto é confirmado por I…, dirigente da oposição …, presidente da junta de freguesia de … e irmão do adjunto da autarca. «O meu irmão recebeu o dinheiro, algum do qual foi usado na campanha e o remanescente deu à C…»
7. Foi o deputado J… quem primeiro denunciou o caso durante as reuniões da câmara abertas ao público, no ano passado. A empresa G… foi acusada pelo deputado de «com uma licença de construção para dois blocos ter construído 4».
8. Segundo o deputado, «a obra foi embargada pela IGAT, mas quando a autarca tomou posse foi desembargada. Também na urbanização da K…, os lotes foram alterados após intervenção da autarca, possibilitando maior área de construção». Nas actas das reuniões pode ler-se que «a empresa G… financiou a campanha do F… e agora está a receber o retorno»
9. «A IGAL foi ainda denunciado o roubo de sobressalentes automóveis e lubrificantes por parte dos funcionários do armazém municipal. De acordo com a citada fonte, «a autarca acusou os trabalhadores de serem ladrões mas nunca participou criminalmente o sucedido». Mas na mira da Inspecção-geral da Administração Local surge uma obra particular feita a expensas municipais: a colocação de uma vedação numa quinta privada, pertencente a um antigo inspector de finanças»
10. «Por esclarecer está ainda o assalto ao edifício da Câmara Municipal … que, conforme o D… então noticiou, foi assaltado sem vestígios de arrombamento. Um outro desaparecimento diz respeito ao disco duro do servidor da autarquia, que não dispõe de cópia de segurança, o que «impossibilita que a câmara recupere a informação», adianta o dirigente social-democrata»
11. «Nos tribunais civis correm vários processos interpostos por candidatos excluídos a concursos de admissão de pessoal promovidos pela câmara municipal»
12. Por fim, termina sob um outro sub título: O mistério do granito, escrevendo: “No início do ano, a câmara municipal levou a efeito a demolição de um antigo posto de transformação da EDP, propriedade municipal, nas L…. As pedras resultantes da demolição, «200 m2 de pedras de granito com elevado valor, acabam na casa do arquitecto municipal que foi candidato pelo F… à freguesia …), conforme foi denunciado à justiça. Ao que apurou o D…, as pedras foram transportadas com recurso a dois camiões da autarquia para a residência do arquitecto. Quando C… confronta o responsável municipal pelo departamento de obras, é informada do sucedido e nada faz. M..., presidente da Junta de … terá também questionado a autarca: «Queríamos ficar com as pedras para ficarem na freguesia e serem leiloadas, ficando nós com as receitas»
13. O arguido B…, antes da publicação deste artigo, não se dirigiu aos serviços camarários no sentido de ser informado ou mesmo poder consultar os documentos respeitantes às situações referidas no texto.
14. O arguido agiu com a intenção de escrever e ver publicado em órgão de comunicação social as expressões constantes do texto atrás reproduzido, nomeadamente as referidas acima em 4., 6., 7., 8., 9. e 12. dos factos provados, bem sabendo que as mesmas eram susceptíveis de ofender a honra e consideração da assistente.
15. O arguido actuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
Do pedido de indemnização civil formulado pela demandante:
16. O conteúdo do artigo foi escrito sem que o demandado procurasse informar-se previamente sobre os temas abordados, designadamente consultadas actas das reuniões de Câmara a que faz referência.
17. O conteúdo do texto publicado magoou profundamente a ofendida.
18. Sentiu a ofendida necessidade de desmentir publicamente e insistentemente as notícias, face às muitas e repetidas perguntas que, após a publicação do artigo lhe foram feitas.
19. O artigo foi republicado em “blogs” e páginas da internet e aproveitado por algumas pessoas para fazer fotocópia do mesmo que espalharam por todo o concelho.
20. Na mesma página da notícia divulgavam-se outras situações (com autarcas) já julgados em tribunal ou com julgamento a decorrer.
21. A ofendida ficou triste, aborrecida, incomodada e indignada, tendo sentido necessidade de desmentir todo o conteúdo da notícia.
Das condições pessoais do arguido:
22. O arguido não tem antecedentes criminais.
23. É jornalista, vive com mulher e filha com 2 anos em casa arrendada, auferindo como “free-lancer” um valor mensal na ordem dos €400,00/mês.
2.2. Com interesse para a decisão da causa não resultou provado:
Que a intenção directa do arguido ao escrever as expressões constantes da notícia fosse a de enxovalhar a ofendida.
3. Motivação da convicção do Tribunal
Como dispõe o art. 127.º do Código de Processo Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
O julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo de que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.
Ora, no caso dos autos, quanto aos factos dados como provados em 1. a 12. e 20. o Tribunal, fazendo uma análise crítica e com recurso a juízos de experiência comum, formou a sua convicção da leitura do teor do documento que consta de fls. 10 do 1.º Volume e bem assim nas declarações do arguido que confessou parcialmente os factos, admitindo ter sido o autor do escrito.
O arguido não confessou que tivesse escrito e feito publicar o escrito com intuito difamatório, antes procurou justificar, em termos que não tivemos como credíveis, porque contrários aos critérios de normalidade, a imputação dos factos acima descritos (e constantes da notícia publicada pelo D…) à então presidente de Câmara …, invocando a preocupação com as metodologias a que, concretamente, ou nunca fez referência concreta ou, quando as fazia, eram desmentidas categoricamente em audiência pela visada na notícia (a assistente) e pelas testemunhas que apareciam indicadas como fonte na notícia; ou invocando a preocupação com interesses superiores para denúncia dos factos, que também não concretizou.
Assim, a assistente, de forma que pareceu sincera e credível ao tribunal, lembrando-se do tom arrogante do arguido ao telefone, contou que respondeu apenas às questões formuladas pelo arguido relativas ao alegado financiamento partidário pela empresa G… (que alegou desconhecer) e relativas à construção imobiliária, lembrando-lhe que tudo tinham sido assuntos tratados em reunião de Câmara cujas actas estavam disponíveis para consulta.
Todas as demais testemunhas indicadas como fonte na notícia – I1... (e não I…, que referiu não ser presidente da Junta de Freguesia…, como aparece na notícia), M1… (e não M… como aparece na notícia), H…, E1… (e não somente E…, como aparece indicado na notícia) e J…, quando inquiridas em tribunal, ou, (de forma sempre espontânea e sincera) desmentiram na íntegra o teor da conversa com o jornalista ou pura e simplesmente informaram que em nenhum momento sequer chegaram à fala com o arguido (sendo que muitas delas o desconheciam), não tendo assim resultado demonstrado que os escritos da notícia inseridos entre aspas correspondessem a quaisquer declarações das fontes que o arguido identifica.
Consequentemente, não resultou provado que o arguido tivesse fundamento sério para, em boa fé, descrever os invocados comportamentos tidos pela assistente (exceptio veritatis).
Antes, resulta evidenciado da conjugação dos depoimentos destas testemunhas com os depoimentos da testemunhas N… (encarregado geral do armazém das obras da Câmara Municipal, agora aposentado) O… e P…, que nenhum dos factos levados à notícia foi levado a sério, mais lhes parecendo assunto que resultava da proximidade do início da campanha eleitoral das eleições autárquicas seguintes.
Quanto aos factos dados como provados em 13 resultou da análise das actas camarárias juntas a fls. 17 a 29 do 1.º Volume e das declarações de P…, secretário encarregue pela sua elaboração.
No aspecto subjectivo, tivemos em conta o iter criminis apurado.
Existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta (uma vez que o arguido não os confesse) como são todos os elementos de estrutura psicológica, os relativos ao aspecto subjectivo da conduta criminosa, assim, M. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Proc. Penal. Vol. II, 1981, pág. 292.
Em correcção e simultânea corroboração desta afirmação, diz-nos N. F. Malatesta, in A Lógica das Provas em Matéria Criminal, pág. 172 e 173, que exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita e, dessas coisas, passa-se a concluir pela sua existência.
Para verificação do elemento de índole subjectiva, não é necessário que o agente com o seu comportamento queira ofender a honra ou a consideração alheia, nem mesmo que haja previsto o perigo, bastando a consciência da genérica perigosidade da conduta ou meio de acção previstos.
Sendo o arguido um cidadão de condição social e económica média alta, culturalmente integrado e com formação superior, naturalmente conhecia o significado comunitariamente atribuído aos comportamentos que atribuiu à assistente. Sendo certo que, ainda que de forma indirecta, reconheceu que pretendia chamar à atenção dos munícipes ao comportamento da assistente enquanto presidente de Câmara, pelo que não se pode deixar de considerar que está preenchido o elemento subjectivo.
Relativamente às condições pessoais do arguido mencionadas a 23, o Tribunal atendeu às suas próprias declarações, que, neste particular, se afiguraram dignas de crédito.
Quanto à ausência de antecedentes criminais, foi decisivo o teor do certificado de registo criminal junto aos autos.
Quanto à matéria dos pedidos de indemnização formulados pela demandante:
Quantos aos factos dados como provados relativos ao pedido cível, foi decisivo o depoimento da P… e da própria assistente, condição que a não impediu de prestar um depoimento sincero, desinteressado, sem hesitações, revelador do constrangimento sofrido após a publicação da notícia.
O Tribunal, após ter considerado o valor autónomo dos diversos depoimentos e bem assim da prova documental, fazendo uso de critérios de normalidade, reconstituindo os factos por si sós e relacionados entre si, considerou que, de acordo com as regras da experiência e dos critérios da normalidade, podem ser ordenados numa construção lógica, harmónica e coerente que permite, através da avaliação unitária do contexto (bem patenteado, sem incongruências, por todas as testemunhas), concluir que a conduta do demandado é susceptível de causar os danos que se referiram supra. O que permite, deste modo, atingir a verdade processual.

Quanto aos factos não provados:
A convicção negativa quanto aos factos dados como não provados deveu-se a falta de prova bastante, concretamente, por não terem sido ouvidas quaisquer testemunhas quanto aos mesmos, sendo certo que os documentos junto aos autos não são suficientes para deles fazerem prova. ”
2.2. Matéria de direito
O arguido insurge-se contra a sentença condenatória, por entender, em suma, que não cometeu qualquer crime. Na sua óptica, “há apenas jornalismo, sério e de serviço público”. Em termos mais concretos, destaca que o tribunal “não deu como provado que houvesse intenção de enxovalhar”, sendo que (a seu ver) esta era a única possibilidade de haver uma coerente condenação. Mais entende que o Tribunal não valorou factos importantes, destacando o “processo cuja certidão está presente neste processo e que acusa e pronuncia a assistente por factos constantes da notícia, havendo assim objectiva crença da verdade que está na notícia.” Considera ainda que não existe qualquer prova de “custos pessoais, profissionais ou morais da assistente”, o que inviabiliza a condenação no pedido de indemnização civil.
Vejamos as questões suscitadas que, no essencial, se reconduzem (i) à falta de prova da intenção de difamar; (ii) à existência de um estado de coisas que justificava a crença na verdade dos factos relatados e (iii) à falta de prova dos danos (pedido cível).
(i) Falta de prova dos danos (pedido cível), irrecorribilidade
Começaremos pela última questão – falta de prova dos danos, inviabilizando a condenação no pedido de indemnização civil – para afastar a mesma do objecto do recurso.
Com efeito, a sentença recorrida julgou o pedido de indemnização civil formulado por C… parcialmente procedente e provado e, em consequência, condenou o demandado B… a pagar à demandante, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de € 1.5000,00 (mil e quinhentos euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da decisão até integral pagamento.
Perante esta condenação, é claro que o recurso do arguido relativo à condenação no pedido de indemnização civil não é admissível. Com efeito, nos termos do n.º 2 do art. 400º do CPP, o recurso da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa alçada.
O valor da alçada do tribunal “a quo” é de € 5.000 euros, nos termos do art. 24º da Lei n.º 3/99, vigente na data da dedução do pedido cível e sucessivas alterações.
Dado que a decisão impugnada foi desfavorável para a recorrente em valor inferior a metade da alçada (2.500,00 euros), a decisão é, nessa parte, irrecorrível.
Deste modo, a parte da sentença relativa à indemnização civil é irrecorrível, pelo que não se conhecerá do recurso.
(ii) Falta de prova da intenção de “enxovalhar” (dolo genérico).
Neste segmento do recurso, o arguido defende a sua absolvição, por entender que não se provou a intenção de “enxovalhar” (dolo genérico).
É verdade que o tribunal a quo deu como não provado “Que a intenção directa do arguido, ao escrever as expressões constantes da notícia, fosse a de enxovalhar a ofendida” – ponto 2.2. da sentença (fls. 927 dos autos).
Por isso, o arguido entende não se ter provado a intenção de difamar a ofendida e, desse modo, não existir qualquer crime.
Mas não tem razão.
Efectivamente, deu-se como provado (ponto 14 da matéria de facto) o seguinte:
“14. O arguido agiu com a intenção de escrever e ver publicado em órgão de comunicação social as expressões constantes do texto atrás reproduzido, nomeadamente as referidas acima em 4. 6. 7. 8. 9. e 12. dos factos provados, bem sabendo que as mesmas eram susceptíveis de ofender a honra e consideração da assistente”.

Conjugados os factos dados como provados e não provados resulta que o arguido sabia que as expressões usadas eram bastantes para ofender a honra e consideração da ofendida, embora se não tenha provado que a sua intenção directa fosse a de a enxovalhar.
Ora, como é hoje entendimento uniforme, o “animus difamandi” não integra o dolo relevante para a existência da infracção (do tipo) – cfr. Acórdãos da RP de 11/06/86, BMJ, 358/606, da RP de 03-02-88, BMJ 371/535, do STJ de 01-07-87, BMJ 369/593, da RL de 03-10-90, CJ, ano XV, t. 4, pág. 171, todos citados por SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, Jurisprudência Penal, pág. 410, sob o título “Difamação – Abuso de liberdade de imprensa – prova da verdade dos factos imputados – dolo genérico”.
O dolo (genérico) consiste na representação e vontade de realizar o tipo de ilícito, isto é, no conhecimento e vontade de levar a cabo todos e cada um dos elementos do tipo, tal como o art. 180º do C. Penal os delimita. Não é elemento subjectivo do tipo o “animus injuriandi vel diffamandi”, pois tal não consta do art. 180º do CP e, portanto, haverá dolo quando o agente utilize voluntariamente expressões cujo sentido conheça, e saiba que as mesmas são idóneas a ofender a honra ou a consideração da pessoa visada.
Já BELEZA DOS SANTOS, em “Algumas considerações sobre crimes de difamação e injúria, Direito Penal II, Edição da FDL, pág. 187”, referia a este propósito:
“…Como procuramos demonstrar, basta para tal efeito que o agente saiba que ofenderá aqueles valores e que o faz ilícita ou indiferentemente”. Isto porque (explicita o mesmo autor) “… pretender defender-se, querer esclarecer o público, desejar ensiná-lo, ter por fim narrar certos factos na imprensa ou, como testemunha no tribunal, não exclui necessariamente a vontade de, ao mesmo tempo, ofender a dignidade ou a reputação de certa ou certas pessoas.” Daí que (como sustentava o mesmo autos) “… se não tem uma causa de justificação, cometerá uma difamação ou uma injúria puníveis”.
É verdade que a motivação do agente é, neste tipo de ilícito, relevante. Mas essa relevância é a que decorre actualmente do art. 180º, 2 do C.P (como também sustentava BELEZA DOS SANTOS) e está subordinada a duas condições: a) que o agente prossiga um interesse legítimo e b) prove a verdade do que diz, ou, de acordo com as regras da boa-fé, tenha razões para crer na verdade do que afirma. Nestes casos, diz a lei, o agente não será punido.
Portanto, a articulação do n.º 1 e 2 do art. 180º do Código Penal mostra-nos que, para haver crime, basta o dolo genérico, isto é, o uso voluntário de expressões idóneas a ofender a honra e consideração da pessoa visada, a não ser que se prove que o agente prosseguiu interesses legítimos e disse a verdade, ou tinha razões para crer que o que disse era verdade.
Portanto, a questão que nos ocupa deve ser resolvida considerando irrelevante a matéria de facto dada como não provada no ponto 2.2. da sentença recorrida.
(iii) Pressupostos de aplicação do artigo 180º, 1 do C. Penal.
Importa apreciar, de seguida, a questão central deste recurso, ou seja, a questão de saber se o arguido fez apenas “jornalismo sério e de serviço público” ou, como concluiu a sentença, usou o “jornalismo” para, através dele, cometer um crime de difamação.
Vejamos então.
A nosso ver, é indiscutível que algumas das expressões usadas no texto publicado na imprensa ofendem a honra e consideração da ofendida e foram devidamente sublinhadas na sentença (fls. 933 dos autos), nomeadamente: o “alegado financiamento ilegal (do partido a que pertencia a assistente)”, imputando-lhe, na qualidade de Presidente da Câmara, o recebimento de dinheiro doado para a campanha eleitoral (“… o meu irmão recebeu o dinheiro, algum do qual foi usado na campanha e o remanescente deu à C…”); o favorecimento de terceiros (“A empresa G… foi acusada pelo deputado de “com uma licença de construção para dois blocos ter construído 4”; a obra foi embargada pelo IGAT, mas quando a ofendida tomou posse foi desembargada”); a intervenção da ofendida para possibilitar maior área de construção na urbanização K…; a alegação de que constava das actas das reuniões “que a G… financiou a campanha do F… e agora está a receber o retorno”; o surgimento de uma obra particular feita a expensas municipais (colocação de uma vedação numa quinta privada) e a utilização de pedras de granito resultantes da demolição de um edifício, propriedade municipal, na casa de um arquitecto municipal, o que foi do conhecimento da assistente que nada fez.
Todos estes factos estão narrados num contexto cujo sentido geral é o de que a ofendida exercia as suas funções favorecendo algumas pessoas e fechando os olhos a algumas situações. Sem dúvida alguma que tais imputações, ainda que sob a forma de suspeita, são ofensivas da honra e consideração da ofendida, na qualidade de Presidente da Câmara. Assim, quanto ao carácter objectivamente difamatório, ou seja, quanto à idoneidade objectiva das expressões usadas para lesar a honra e consideração da ofendida, não existe a menor dúvida.
A questão essencial, todavia, não é bem esta, uma vez que, nos termos do art. 180º, 2, do CP, a lei não pune o uso de expressões difamatórias quando as mesmas sejam proferidas prosseguindo interesses legítimos e o agente prove a verdade das mesmas, ou creia de boa-fé na sua veracidade. Esta é, em boa verdade, a questão central deste recurso: saber se se verificam (ou não) os pressupostos excludentes do n.º 2 do artigo 180º, do C. Penal.
Para a solução desta questão deve liminarmente excluir-se a hipótese de compatibilidade entre o direito ou a liberdade de informar e a prática de crimes. É verdade que a CRP, no art. 37º, 1, consagra a liberdade de expressão e informação, mas no seu n.º 3 admite expressamente a existência de infracções “cometidas no exercício desses direitos”, às quais manda aplicar os princípios gerais do direito penal e contra-ordenacional.
Nem poderia ser de outro modo.
A CRP garante uma pluralidade de direitos, mas não permite a invocação de uns para violar os outros. Não faz sequer sentido considerar que a própria CRP garante o direito de violar outros direitos (como parece óbvio).
Entre os vários exemplos, VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa”, 1976, pág. 276, questiona precisamente se é possível: “ (…) invocar a liberdade de expressão para, através de afirmações falsas, injuriar outra pessoa”. “Nestes casos, responde o autor citado, não estamos propriamente perante uma situação de conflito entre o direito invocado e outros valores (…) é o próprio preceito fundamental, é a própria Constituição que, ao enunciar os direitos, exclui esse tipo de situações”. No mesmo sentido, mas relativamente ao ilícito disciplinar cfr. Ac. do STA, de 15-01-2013, proc. 022/12.
No presente caso, está demonstrado que o arguido, com a publicação da notícia, visou antes de mais informar (como de resto também decidiu a sentença recorrida – cfr. fls. 936). E, portanto, consideramos preenchido o requisito previsto no art. 180º, n.º 2, al. a) do C.P, na medida em que o direito ou a liberdade de informar é, mais do que um interesse, um direito legítimo.
Contudo, e como vamos ver, não está preenchido o outro requisito previsto no artigo 180º, n.º 2, al. b) do C. Penal.
A sentença recorrida considerou este aspecto, nos termos seguintes:
“(…)
No caso vertente, resulta, apesar de tudo, que o artigo publicado tinha como escopo a realização de um interesse legítimo, o direito de liberdade de expressão decorrente da liberdade consagrada nesse domínio pela lei da imprensa, prevista na Lei 2/99, de 13 de Janeiro. Todavia, não resultou demonstrado que se tivesse provado a verdade dos factos imputados à assistente nem que o arguido tivesse fundamento sério para, em boa – fé, reputar tais factos coo verdadeiros, pelo que o comportamento do arguido para além de típico é, também, ilícito (…)” – fls. 936.
O arguido põe em causa, no recurso, a motivação da convicção do Tribunal, mas, em boa verdade, com argumentos inconcludentes.
É na verdade inconcludente alegar que as testemunhas, cujos alegados dizeres estavam entre aspas, tiveram oportunidade de exercer o direito de resposta e desmentir tais afirmações e não o fizeram. Não o tendo feito, conclui o arguido, devem assumir tais ditos.
Ora não é assim.
As pessoas identificadas na notícia desmentiram na íntegra o teor da conversa com o jornalista, ou pura e simplesmente informaram que em nenhum momento sequer chegaram à fala com o arguido (fls. 923). O direito de resposta não é um dever e, portanto, não pode ser tratado como uma obrigação cujo não exercício transforma a mentira em verdade.
Tendo em conta o disposto no art. 412º, 3 do CPP, o recorrente, querendo impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, devia ter indicado os meios de prova que impunham decisão diversa. Tendo as testemunhas prestado declarações em audiência de discussão e julgamento, desmentindo categoricamente serem autoras das afirmações que lhes eram reportadas, a conclusão do julgador, como é evidente, só podia ser a que resultava de tais depoimentos.
É ainda insuficiente o facto de haver um processo-crime contra a ofendida, por factos semelhantes. Insuficiente, desde logo, porque os factos em causa no aludido processo (relacionados com a Q…) não são os mesmos factos do presente processo. Se o arguido estivesse apenas a noticiar os factos constantes da acusação ou da pronúncia de um processo-crime, estava efectivamente a relatar factos verdadeiros (isto é, que tinha havido uma acusação e uma pronúncia em tribunal); mas estando a imputar outros factos, para além daqueles, de nada vale justificar a sua boa-fé ou crença na verdade desses novos factos, com a existência de um processo-crime.
Dado que, no presente caso, os factos imputados à ofendida são diferentes dos factos constantes do processo-crime, bem andou o Tribunal a quo em não lhes atribuir qualquer relevância.
Finalmente, alega o arguido que se informou e falou com a assistente.
Também esta alegação é inconcludente. Com efeito, não basta o facto de ter telefonado à assistente para que se justifique a sua crença na veracidade dos factos que noticiou, muito menos quando no mesmo telefonema foi transmitido ao arguido a existência de actas disponíveis para consulta. Para que haja uma crença justificada na verdade dos factos e boa-fé, é necessário que a convicção do agente decorra de uma busca de provas minimamente objectivas (investigação jornalística) para, de acordo com as regras da experiência comum, ficar convencido da verdade do que diz/escreve.
Ora, o arguido não consultou as actas das reuniões da Câmara (cfr ponto 13 da matéria de fato), sendo que para a prova deste facto o Tribunal se limitou a consultar as actas juntas ao processo. Também não falou com as pessoas cujos dizeres citou e, com as que falou, elas desmentiram ter dito o que ali se lhes imputou. Ou seja, não há quaisquer razões objectivas para que uma pessoa normal, na posição do agente, dotado de espírito crítico e imbuído do sentido de informar apenas a verdade, fique convencida de que eram verdadeiros os factos que o arguido noticiou, em manifesto desacordo com o que as testemunhas citadas lhe disseram e invocando o conteúdo de actas que não consultou e que não documentavam o que afirmou.
É portanto certo e seguro que, efectivamente, não se provou que o arguido estivesse convencido da verdade dos factos que imputou à ofendida, ou tivesse fundamento sério para, em boa fé, os reputar de verdadeiros, pelo que não se verifica um dos requisitos de não punibilidade da conduta, previsto na al. b) do nº2 do art. 180º do C. Penal.
Impõe-se, assim, negar provimento ao recurso.
3. Decisão
Face ao exposto, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC.

Porto, 12-02-2014
Élia São Pedro
Donas Botto