Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
117/06.8IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: CASO JULGADO
FRAUDE FISCAL
Nº do Documento: RP20140319117/06.8IDPRT.P1
Data do Acordão: 03/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O efeito consuntivo do caso julgado ocorre mesmo naquelas situações em que os factos integradores da conduta criminosa tenham (mas não deveriam ter) permanecido estranhos ao conhecimento do juiz que primeiramente deles conheceu.
II – É assim tanto em situações de continuação criminosa como nos casos em que a parte da conduta que não foi conhecida pelo juiz está, conjuntamente com a que o foi, coberta por um único dolo do agente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 117/06.8IDPRT.P1
Tribunal Judicial de Lousada
2.º Juízo

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório.
B… e C…, Ld.ª recorreram da sentença proferida no processo em epígrafe que os condenou, o primeiro como autor material de um crime de fraude qualificada, previsto e punido pelos artigos 103.º e 104.º, n.os 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com a obrigação de pagar à administração tributária, no mesmo período, a quantia de € 73.594,72 e a segunda pela prática de um crime de fraude qualificada, na forma continuada, Ld.ª, na pena de 400 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, pedindo a revogação dela e a sua absolvição dos crimes de fraude fiscal por que foram condenados, concluindo a motivação com as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo fez uma incorrecta aplicação do direito.
2. Os recorrentes entendem que foram violadas as seguintes normas jurídicas: artigos 374.º, n.º 2; 379.º, n.º 1, al. a); 375.º, n.º 1 e 410, n.º 2, al. a) do CPP; artigo 103.º, n.º 2 do RGIT; artigos 13.º e 18.º da CRP e artigos 71.º e 79.º do C.P.
3. A douta sentença também não concretizou de onde resultou a sua convicção relativamente a cada um dos factos que considerou provados, tendo manifestado a sua convicção de uma forma genérica relativamente a todos os factos constantes da acusação (cfr. folhas 10, 11 e 12 da sentença).
4. A prova produzida, quer documental quer testemunhal, afigura-se insuficiente para dar como provados os factos. Desde logo, o depoimento da única testemunha inquirida, inspector tributário, gravados no sistema integrado de gravação digital da aplicação informática em uso no Tribunal, nas sessões de julgamento de 24.05.2013 e 17.6.2013, é insuficiente, por não demonstrarem qualquer conhecimento directo dos factos, limitando-se ou a reproduzir o teor dos documentos juntos aos autos ou a emitir meras opiniões e juízos de valor sem qualquer suporte ou fundamento bastante. No que à prova documental se refere, saliente-se que da douta sentença nem sequer consta quais os concretos documentos que conduziram à convicção do tribunal sobre a prova de cada um dos factos. Não se mostra feita a indicação completa das provas, nem, em absoluto, o exame crítico das mesmas provas, que formaram a convicção do tribunal. Constando dos autos várias dezenas de documentos, o tribunal a quo remete para todos eles. Desconhece-se para que efeitos relevaram os documentos isto é, para que concretos factos provados contribuíram, directa ou indirectamente, isoladamente ou em conjunto com outros meios de prova, para a formação da convicção do tribunal porque a fundamentação da sentença não o diz. A falta do exame crítico das provas, imposto pelo art. 374.º, n.º 2, do C. Processo Penal, e a consequente insuficiência da fundamentação determina, nos termos do art. 379º, nº 1, a), do mesmo código, a nulidade da sentença.
5. A sentença posta em crise não se encontra devidamente fundamentada no que se refere à convicção do tribunal o que acarretará a nulidade da sentença por fundamentação insuficiente nos termos do disposto no artigo 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) do C.P.P.. De facto, o tribunal para além de apresentar apenas dois argumentos que conduziram à formação da sua convicção de que existiu um conluio dos arguidos tendente à emissão de facturas falsas, apresenta esses dois argumentos de forma genérica e sem explicação do seu conteúdo, ou seja, remete-nos para argumentos vagos e inconclusivos. Diz-se na sentença: “não podemos deixar de relevar as discrepâncias existentes entre as contabilidades da D…, Ld.ª e da C…, Ld.ª, relatadas pela testemunha e conjugadas com os documentos juntos aos autos, referentes a pagamentos e meios de pagamentos pretensamente utilizados.”. Perguntamos: de que discrepâncias em concreto fala a sentença? Quais os pagamentos e meios de pagamento que demonstraram essas discrepâncias? Foram os relatados pela testemunha e conjugados com os documentos juntos aos autos, mas o que relatou a testemunha efectivamente a este propósito? No que concerne aos meios de pagamento usados, a sentença nada concretiza, ou seja, não esclarece que discrepância é essa entre os meios de pagamento.
6. De assinalar ainda que não é corretor afirmar-se, na sentença recorrida que, a testemunha E… tenha dito que “a arguida C… apenas tinha facturas provindas da F…, Ld.ª, e que vendia à D…, Ld.ª. O que a testemunha disse (cfr. gravação no sistema informático Habilus Media Studio no dia 24.5.2013) foi coisa bem diferente e traduziu-se no seguinte: “Na acção inspectiva detectaram que a C… tinha no objecto social o comércio de máquinas, mas a sua actividade era o comércio de vestuário e que as únicas facturas de 2003 e 2004 que tinha sem ser de vestuário, provinham da F… e foram emitidas para outra empresa do Arguido J… e para a D….”. Mais uma vez a sentença mostra-se deficientemente fundamentada. Apesar de não constar da fundamentação da sentença, aquela testemunha referiu que a C… funcionava como uma empresa tampão, uma empresa que cumpre as suas obrigações fiscais e que serviria de passagem, de intermediário entre a F.. e a D…. A testemunha referiu ainda que a C… aplicou uma pequena margem de lucro entre o que comprou e o que vendeu e que a D…, em 2004, até comprou mais do que vendeu (contrariamente ao que sucedeu em 2003). Referiu ainda que a C… não obteve nenhuma vantagem patrimonial nem em termos de IVA (a C… deduziu IVA e liquidou IVA) nem de IRC, referiu também que o Estado saiu prejudicado com a D…, cfr. depoimento da testemunha gravado no sistema integrado de gravação digital da aplicação informática em uso no Tribunal, na sessão de julgamento de 24.05.2013.
7. A douta sentença não fundamenta convenientemente a conclusão de que “fica demonstrado o conluio dos arguidos, para através das empresas que dominavam, emitir facturas falsas entre si, no sentido de beneficiar a D…, Ld.ª, em detrimento do Estado.” No que tange ao conluio dos arguidos, a convicção do tribunal assentou no depoimento da testemunha inspectora tributário. Sucede que esta testemunha quando questionado: “Para que existam estas facturas que não correspondem a serviços efectivamente prestados é preciso um acordo dos sujeitos passivos de imposto, é preciso estarem todos de acordo em fazer este trajecto das facturas?”, respondeu: “na acção inspectiva resultou que o L… e o J… estavam em conluio” e quando questionado: “e a C… e o Sr. B…?”, respondeu: “da acção inspectiva os depoimentos contradizem-se …”, aí foi interrompido e questionado novamente: “Não falando dos depoimentos, mas na sua análise, dos elementos contabilísticos?”, disse: “sim, analisando o circuito documental e a suposta movimentação vê-se que efectivamente houve esse conluio ao nível de toda a documentação para surtir os efeitos que pretendiam obter.”, cfr. depoimento da testemunha gravado no sistema integrado de gravação digital da aplicação informática em uso no Tribunal, na sessão de julgamento de 24.05.2013. O que significa que, no entender da testemunha, terá existido um conluio documental. Como está bem de ver, o conluio documental não é suficiente para se concluir do conluio real e efectivo, ainda mais dos três arguidos. Mesmo que se admita – por mero exercício de raciocínio - ser verdade que os arguidos C… e B…, como a própria testemunha julga, tenham servido como empresa tampão, daí não poderá resultar, com toda a certeza, que aqueles arguidos o fizeram com esse conhecimento e com a intenção e consciência de causar, com a sua conduta, qualquer prejuízo patrimonial ao Estado, mormente através da diminuição do lucro tributável para efeitos de IRC da empresa D…. A sociedade arguida D… e o arguido J… foram os únicos que obtiveram lucro e, nessa medida, tinham interesse na emissão de facturas falsas e em servir-se da empresa C… para alcançar esse propósito, mas tal facto não poderá implicar a colaboração intencional da C… nessa prática até porque nem a C… nem o arguido B… obtiveram qualquer vantagem patrimonial.
8. Muito menos razoável parece que o conluio, a existir, tenha envolvido todos os arguidos, nos moldes que resultam da sentença. A admitir-se, por mera hipótese, que tenha existido esse conluio entre os arguidos, nunca esse conluio seria triangular, como resulta da sentença, mas quanto muito, bipolar. Não podemos olvidar que a sociedade arguida C… e o arguido B… nada têm a ver com as facturas emitidas pela F… a favor da D… e melhor descritas em 9. dos factos provados e vice-versa. A contribuição que a sociedade arguida C… e o arguido B… poderiam ter dado para o enriquecimento da sociedade D… e consequente empobrecimento do Estado, terá que se encontrar tendo por base unicamente o montante das facturas emitidas pela C…, no ano de 2004, a favor da D… e melhor descritas no ponto 10. dos factos provados e nunca considerando a totalidade das facturas emitidas pela C… e pela F… a favor da D…, como considerou o tribunal.
9. O Tribunal ao não considerar separadamente as facturas emitidas pela C… e pela F… para apuramento da concreta vantagem patrimonial obtida pela sociedade arguida D…, tal como foi feito em 9. e 10. dos factos provados, cria um vazio na determinação do valor exacto dessa vantagem e no apuramento da questão fulcral consistente em saber se a vantagem patrimonial importa em montante superior ou inferior aos 15.000,00€ que funcionam como limite para a criminalização. Ora, não se apurando o montante concreto do prejuízo do Estado/benefício dos arguidos, tal circunstância teria que ser decidida a favor dos arguidos no sentido de não se verificar a condição objectiva de punibilidade de apuramento de um benefício igual ou superior a 15.000,00€.
10. Acresce que temos que atender que o prejuízo patrimonial do Estado e correspondente benefício para os arguidos corresponde ao apuramento de crédito de imposto de IRC devido pela D… em consequência da rectificação do lucro tributável (com a eliminação dos custos indevidos), mas subtraindo-se o valor liquidado e eventualmente pago a título de IVA pelas entidades emitentes das facturas falsas, desde logo, no entender do tribunal, as sociedades comerciais C… e F…, sendo jurisprudência uniforme dos Tribunais Tributários que não é devido IVA liquidado por facturas que se alicerçam em negócios inexistentes. Assim, para apuramento do crédito de imposto devido e não pago, o tribunal deveria subtrair os montantes de IVA entregues ao Estado pela C… ao emitir a factura e não devidos, para se apurar o concreto prejuízo patrimonial do Estado e correlativo benefício dos arguidos para concluir se o montante encontrado, nos moldes descritos, superam ou não a importância de 15.000,00€ que consubstancia uma condição de punibilidade da conduta dos arguidos.
11. Além do mais, a sentença recorrida não explica como apurou o valor a pagar pelos arguidos relativo à prestação tributária e acréscimos legais e do montante dos benefícios indevidamente obtidos, valor esse a cujo pagamento sujeitou a suspensão da execução das penas: 73.594,72€, sendo certo que esse valor não coincide com o somatório efectuado das parcelas descritas em 15 dos factos provados (parcelas essas que em princípio indicar-nos-iam o montante da vantagem patrimonial). Sendo a sentença completamente omissa na fundamentação do apuramento daquele montante encontra-se, também nesta parte, ferida de nulidade, cfr. artigo 375.º, n.º 1 e 379.º, n.º 1, al. b).
12. Acresce ainda que, o montante encontrado pelo douto tribunal a cujo pagamento fica sujeita a suspensão de execução da pena de prisão (73.594,72€), foi-o igual para cada um dos arguidos. Aqui não se atendeu à contribuição que cada um deles possa ter dado para a obtenção da vantagem patrimonial global em sede de IRC pela sociedade arguida D…, nomeadamente não se considerou qual a parcela desse montante global que se deveu à actuação supostamente ilícita da C… e qual a parcela desse montante que resultou da emissão de factura alegadamente falsas por parte da F…. A condenação de todos os arguidos no pagamento do mesmo valor independentemente da consideração do contributo que cada um deles, isoladamente, possa ter dado para a obtenção pela D… daquela vantagem patrimonial redunda na violação do princípio da proporcionalidade e da igualdade previstos nos artigos 13.º e 18.ºda Constituição da República Portuguesa, o que fere de nulidade a sentença.
13. De referir ainda que, na hipótese da presente sentença vir a ser confirmada pelo tribunal superior e se manterem as penas aplicadas e os montantes a pagar como condição da suspensão das penas de prisão e considerando que todos os arguidos, após trânsito em julgado da sentença, procedem ao pagamento das quantias apuradas naquela decisão: 73.594,72€, então, temos que a Administração Fiscal irá receber a quantia global de 220.784,16€ (73.594,72€ x 3). Ora, não resulta dos factos provados que o prejuízo patrimonial do Estado tenha sido naquele montante. Logo, a nosso ver, a manter-se esta decisão e caso a mesma viesse a ser executada e cumprida integralmente, iria, agora sim, ocorrer um enriquecimento injustificado do Estado.
14. A sentença condenatória também não contém os factos necessários para a decisão sobre a pena, nos quais se incluem os factos relativos à personalidade do arguido B… que foi julgado na ausência. Não foi possível ao tribunal obter nenhuma informação acerca da sua situação pessoal, profissional e social. Estando o arguido ausente, a prova dos factos pessoais - relevantes para a medida da pena - pode fazer-se em julgamento, através do relatório social ou por outro meio de prova lícito, não devendo o tribunal bastar-se com o teor do CRC. Resulta até da douta sentença que os arguidos se encontram “aparentemente inseridos”. Desconhece-se de onde retira o tribunal tal convicção. Assim, a douta sentença enferma do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão sobre a pena.
15. O arguido B… (cujo registo criminal aponta apenas uma condenação anterior) dispõe do prazo de 2 anos para pagar a mesma quantia que os demais arguidos (cujo registo criminal é extensíssimo), sendo certo que estes podem fazê-lo no prazo maior de 3 anos. Tal sucedeu porque foi considerado para todos os arguidos um período de suspensão da pena igual ao período de duração da pena. A nosso ver, nesta matéria, o tribunal violou o artigo 71.º do C.P. bem como os princípios da proporcionalidade e igualdade, o que fere de nulidade a sentença.
16. Também o mesmo se diga relativamente ao apuramento das responsabilidades das sociedades arguidas. Considera a douta sentença, a este propósito que “Atendendo à situação económica e social da arguida dada como provada julga-se adequado fixar em 5,00€ o quantitativo diário.” Nada resulta dos factos provados acerca da situação económica e social da arguida C… pelo que, se desconhece como foi feito o apuramento daquele valor. Uma vez mais verifica-se que existe insuficiência da matéria de facto para determinação da medida da pena, o que acarreta a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 375.º e 410, n.º 2, al. a) do C.P.P. e artigo 71.º do C.P.
17. Sem prejuízo de todo o exposto, e caso se venha a entender que a sentença não sofre de qualquer um dos vícios acima apontados, os arguidos vêm pugnar que ao caso sub judice sempre seria de aplicar o instituto do crime continuado. Por sentença datada de 17 de Setembro de 2012, proferida no âmbito do processo n.º 181/08.5IDPRT, do 2.º juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras e já transitada em julgado, foram os arguidos também condenados pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º 1 e 104.º, n.os 1 e 2 da Lei 15/2001, de 5 de Julho. Entendem os arguidos que há uma sequência temporal nas condutas dos arguidos uma vez que as facturas constantes de um e outro processo datam, todas elas, do ano de 2004: as farturas emitidas pela C… a favor da D… (empresa detida pelo arguido J…) datam de 24/1/2004, 8/3/2004, 7/7/2004 e 20/7/2004 e as facturas emitidas, no processo do tribunal de Felgueiras, pela C… a favor da K…, Ld.ª (empresa detida pelo arguido J…) datam de 6/1/2004, 2/7/2004 e 2/8/2004. As resoluções criminosas são tomadas por pessoas e não por empresas, ou seja, pese embora as empresas a favor das quais foram emitidas as facturas num e noutro processo sejam, de facto, entidades jurídicas diferentes: num caso a empresa D… e no outro a sociedade comercial K…, Ld.ª, a verdade é que ambas são geridas pela mesma pessoa física: o arguido J…. Assim, deveria o tribunal ter aplicado o artigo 79.º do C.P. e apurado qual das duas condutas que integram a continuação seria considerada mais grave, de forma a determinar a pena aplicável. Pelo que, o tribunal fez, uma vez mais, uma incorrecta aplicação do direito.
Consequentemente,
Houve uma incorrecta aplicação do direito: não se aplicaram correctamente os artigos 71.º e 79.º do C.P.;
houve insuficiência da prova testemunhal e documental para considerar provados os factos;
Houve insuficiência da matéria de facto na indagação das condições económicas e familiares dos arguidos B… e C…;
A sentença é nula porquanto:
- não se encontra devidamente fundamentada quanto à convicção do tribunal relativamente a cada um dos factos considerados provados;
- é omissa na explicação do montante a cujo pagamento sujeitou a suspensão da pena de prisão;
- não procedeu ao exame crítico da prova;
- violou o princípio da proporcionalidade e da igualdade na ponderação do mesmo montante a pagar por cada um dos arguidos;
- violou o princípio da proporcionalidade e da igualdade ao considerar para todos os arguidos um período de suspensão da pena igual ao período de duração da pena;
Nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 2, al. a) do C.P.P., no entender do Recorrente, são as seguintes as disposições legais violadas: artigos 374.º, n.º 2; 379.º, n.º 1, al. a); 375.º, n.º 1 e 410, n.º 2, al. a) do CPP; artigo 103.º, n.º 2 do RGIT; artigos 13.º e 18.º da CRP e artigos 71.º e 79.º do C.P.
Os recorrentes entendem que foram incorrectamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto: 8, 12, 13, 15, 18, 19, 20, 21 e 22.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pedindo que se lhe negue provimento e se mantenha a douta sentença recorrida, para tanto alinhando as seguintes razões:
1. O depoimento da testemunha E… foi devidamente valorado na sentença recorrida, pois funda-se naquilo que pôde percepcionar na análise inspectiva que fez da situação tributária dos arguidos.
2. Todos os documentos juntos, considerados como tal, deveriam ser, como efectivamente foram, tidos em consideração pelo Tribunal a quo.
3. Pelo que, entende-se que, quer a prova testemunhal produzida, quer a prova documental junta aos autos era suficiente para proferir a decisão do Tribunal a quo, conjugando-se tal prova com as regras da experiência e a lógica das coisas.
4. Tal prova permite concluir que os arguidos actuaram em co-autoria, mediante prévio conluio.
5. Para apurar a vantagem patrimonial obtida pela “D…” e o consequente prejuízo do Estado bem andou o Tribunal a quo ao considerar o valor global das facturas, pois, tratando-se de uma actuação concertada, visando tal objectivo único, as facturas emitidas pela “C…” e pela “F…” não poderiam ser consideradas separadamente.
6. Muito menos se poderia subtrair ao valor total das facturas falsas o valor liquidado e eventualmente pago a título de IVA pelas entidades emitentes, pois tratam-se de facturas falsas, que não dizem respeito a efectivos/verdadeiros fornecimentos de bens e/ou serviços; ilicitamente emitidas.
7. Tendo os arguidos actuado em conjugação de esforços e de intenções todos devem ficar obrigados ao pagamento do valor total da vantagem patrimonial obtida pela “D…” e ao correspondente prejuízo do Estado.
8. Ainda que do elenco dos factos provados não constem factos relativos à personalidade do arguido B… a obtenção de tais elementos, nomeadamente através da elaboração de relatório social, não alteraria a decisão proferida.
9. Também em relação à situação económica da sociedade arguida “C…”, pese não se extrair da factualidade dada como provada, sempre o Tribunal a quo teria, como teve, em consideração as condições financeiras mínimas de uma sociedade, adequando a tais condições a pena aplicada.
10. A pena de prisão aplicada ao arguido B…, bem como o período de suspensão da mesma foi o adequado, atendendo aos seus antecedentes criminais e às circunstâncias previstas pelo art.º 71.º do Cód. Penal, não podendo concluir-se inversamente apenas pelo facto de os outros arguidos terem um prazo superior para cumprir a obrigação de pagamento estabelecida como condição de suspensão da pena.
11. A conduta dos recorrentes pela qual foram condenados nestes autos é diversa daquela pela qual foram julgados no Proc. n.º 181/08.5IDPRT do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras: a entidade a quem os arguidos emitiram as facturas é pessoa diversa, tratam-se de diferentes resoluções criminosas.
12. Não existindo uma situação exterior que facilite a execução do mesmo crime e que diminua consideravelmente a culpa dos arguidos, não se pode integrar a conduta pela qual os arguidos foram condenados nestes autos no mesmo crime pelo qual foram julgados e condenados no Proc. n.º 181/08.5IDPRT, afastando-se o crime continuado.
13. Em face do exposto, o Tribunal a quo fundamentou devidamente a decisão recorrida e bem andou ao decidir no sentido de condenar os arguidos/recorrentes e de lhes aplicar as penas que aplicou.
14. Não foram violadas quaisquer normas legais, mormente as indicadas pelos recorrentes.
15. Por conseguinte, o recurso deve ser julgado sem provimento, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.

Nesta Relação, a Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido do improvimento do recurso, para tanto louvando-se, em síntese, no seguinte:
… tal como resulta da matéria de facto dada como provada, o crime de fraude qualificada por que o arguido B… foi condenado foi praticado em co-autoria com os arguidos J… e L…, tendo todos agido em representação das sociedades arguidas de que são sócios-gerentes, pelo que o montante da vantagem patrimonial ilegítima é aquele que a sociedade D…, Ld.ª, obteve, em sede de IRC, em virtude da acção concertada de todos os arguidos, o qual está descriminado no ponto 15 da matéria de facto dada como provada, por reporte a cada declaração de IRC respeitante aos anos em causa.
Assim, a vantagem patrimonial obtida, face a cada declaração de IRC apresentada, é superior a € 15.000,00, pelo que não tem aplicação o disposto no n.º 2 do art.º 103.º do RGIT.
Por outro lado, sendo certo, conforme referem os recorrentes, que o montante dos benefícios indevidamente obtidos corresponde ao somatório das parcelas descritas no ponto 15 dos factos dados como provados, a sentença recorrida, ao impor ao arguido a condição de pagar à administração tributária a quantia de € 73.594,72, acabou por o beneficiar, já que o valor total daquelas parcelas ascende a € 86.943,36.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem qualquer sequela por parte do recorrente.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
***
II - Fundamentação.
1. Da decisão recorrida.
1.1. Factos julgados provados:
1. A sociedade D…, Ld.ª, com sede em …, Lousada e representada pelo seu sócio-gerente J…, foi constituída em 25.10.01, dedica-se à actividade de comércio por grosso de desperdícios de materiais (cfr. certidão junta a fls. 182 que se dá por reproduzida) e encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral de IVA e tributada em IRC segundo o regime geral de contabilidade organizada pelo Serviço de Finanças de Lousada.
2. O arguido J… é sócio e gerente em efectivo de funções da sociedade arguida “D…, Ld.ª, competindo-lhes as funções de gestão e administração, bem como a entrega das quantias devidas a título de IVA ao Estado Administração tributária pela referida sociedade.
3. A sociedade F…, Ld.ª, com o NIF ………, com sede em …, …, Felgueiras, e representada pelo arguido, sócio-gerente L…, foi constituída em Julho de 1997, dedica-se à actividade de fabrico componentes para calçado, produtos de borracha e plásticos (cfr. certidão junta a fls.203 que se dá por reproduzida) e encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal de IVA e tributada em IRC segundo o regime geral de contabilidade organizada pelo Serviço de Finanças de Felgueiras.
4. O arguido L… è sócio e gerente em efectivo de funções da sociedade arguida F…, Ld.ª competindo-lhes as funções de gestão e administração, bem como a entrega das quantias devidas a titulo de IVA ao Estado Administração tributária pela referida sociedade.
5. A sociedade C…, Ld.ª, com o NIF ……… com sede no …, …, ..° Dtº …, Lixa, pessoa colectiva n.º ……… e representada pelo seu sócio-gerente B…, foi constituída em Abril de 2003, dedica-se à actividade de comércio de máquinas, calçado, componentes para calçado e moldes (cfr. certidão junta a fls. 182 que se dá por reproduzida) e encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral de IV e tributada em IRC segundo o regime geral de contabilidade organizada pelo Serviço de Finanças de Felgueiras.
6. O arguido B… é sócio e gerente em efectivo de funções da sociedade arguida C…, Ld.ª competindo-lhes as funções de gestão e administração, bem como a entrega das quantias devidas a titulo de IVA ao Estado Administração tributária pela referida sociedade.
7. Em data não concretamente apurada, anterior ao ano de 2002, o arguido J…, a titulo individual e como representante efectivo da sociedade D…, Ld.ª, decidiu levar a efeito um plano no intuito de obter proveito económico em detrimento do Estado Português, Fazenda Nacional.
8. Assim, no desenvolvimento do aludido plano, levado a efeito em conjugação de esforços e de intentos por todos os arguidos, os arguidos L… e B… emitiram facturas as quais foram entregues ao arguido J… que as introduziu na contabilidade da sociedade D…, Ld.ª, fazendo constar das mesmas prestações de serviços a favor desta, o que todos sabiam não corresponder à verdade.
9. Dando execução a tal plano, o arguido L… como representante efectivo da sociedade F…, Ld.ª emitiu e entregou, assim, as seguintes facturas:

10. O arguido B…, na qualidade de representante da sociedade C…, Ld.ª, emitiu e entregou as seguintes facturas:

11. Num total de € 319.234,97, (IVA não incluído), sendo € 54.815,97 no ano de 2002, € 85.970,00€ no ano de 2003 e € 178.149,00 no ano de 2004 (tudo como consta das cópias das facturas que constituem o anexo 1 dos autos, cujos conteúdo se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais).
12. Tais facturas foram emitidas sem que correspondam a serviços efectivamente prestados ao sujeito passivo “D…, Ld.ª, ou a dinheiro que tenha sido entregue para pagamento de tais serviços.
13. Ora, o aludido acordo veio possibilitar que o arguido J… integrasse tais facturas na contabilidade da 1 arguida, contabilizando-as como custos para efeitos de IRC e procedendo posteriormente á dedução indevida do respectivo IVA - o qual não suportou efectivamente, já que nunca foram prestados quaisquer serviços e, por isso, não foram pagos.
14. Com toda a sua conduta, o arguido J… logrou omitir parte da matéria tributável à administração fiscal e deduzir indevidamente o IVA, apesar de não ter tido tais custos nem suportado IVA e, consequentemente, reduzir o montante dos impostos a pagar.
15. Deste modo, a arguida D…, Ld.ª e o arguido J… obtiveram, globalmente, em sede de IRC;
- referente ao ano de 2002, uma vantagem patrimonial de € 21 430,53.
- referente ao ano de 2003, uma vantagem patrimonial de € 26654,10.
- referente ao ano de 2004, uma vantagem patrimonial de € 38 858,73.
16. Tendo os mesmos arguidos, deduzido indevidamente IVA: referente ao ano de 2002, no montante de € 11.327,03.
17. referente ao ano de 2003, no montante de € 15.422,30; referente ao ano de 2004, no montante de € 33.905,31.
18. Ao fazer constar das facturas acima descritas serviços inexistentes — sendo depois os mesmos documentos integrados na contabilidade da arguida e utilizados pelo arguido J… para efeitos fiscais, em sede de IRC — agiram todos os arguidos de uma forma deliberada livre e consciente, na sequência de um plano concertado entre ambos e em comunhão e conjugação de esforços, fazendo com que a sociedade D…, Ld.ª apresentasse um lucro tributável consideravelmente inferior ao real, subtraindo ao Fisco quantias que lhe deveriam ser entregues, com intenção de causar prejuízo ao Estado e de obter para si próprios um beneficio ilegítimo.
19. Além disso, utilizando a facturação falsa emitida pelos demais arguidos, com o conhecimento e acordo destes, o arguido J… deduziu indevidamente os valores constantes das facturas como IVA liquidado — e que não suportou efectivamente — agindo os arguidos de uma forma deliberada livre e consciente, na sequência de um plano concertado entre ambos e em comunhão e conjugação de esforços, com intenção de não proceder á entrega nos cofres do Estado, como era sua obrigação e bem o sabiam, do valor correspondente liquidado aos seus clientes, dele se apropriando ilegitimamente.
20. Sabiam todos os arguidos que as facturas por eles utilizadas e apresentadas à Administração Fiscal não correspondiam a quaisquer serviços que houvessem sido prestados pelas referidas sociedades e sabiam que o sujeito passivo D…, Ld.ª obteria liquidação do IRC inferior á real e, consequentemente, benefícios patrimoniais que sabiam serem indevidos e que os mesmos trariam prejuízo para os Cofres do Estado.
21. Os emitentes das facturas supra identificadas agiram sabendo que não tinham prestado quaisquer serviços a D…, Ld.ª, como aqueles que descreveram em tais facturas e que dela não tinham recebido as quantias aí mencionadas.
22. Todos os arguidos agiram no convencimento de que não iriam ser fiscalizados pelos competentes serviços tributários — o que efectivamente só em 2005 se veio a verificar — permitindo-lhes, assim, com maior facilidade fazer seu o valor do IVA não entregue, e permitindo aos arguidos, em nome da 1 arguida, J… omitir parte da matéria colectável à Administração Fiscal.
23. O arguido J… fez, ainda, seus e da sociedade arguida os montantes de IVA cobrado que não entregaram à administração fiscal, integrando-os no seu património e enriquecendo, nessa medida, não obstante saberem que os mesmos não lhes pertenciam, mas antes eram devidos ao Estado que, ao actuarem dessa forma, empobrecia.
24. Os arguidos ao actuar do modo descrito, em nome e no interesse das sociedades arguidas, agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.
25. O arguido J…, encontra-se desempregado e sem receber subsidio.
26. Vive em casa de um filho que trabalha em fotografia e aufere €500,00 mensais, sendo que a nora trabalha num infantário.
27. Vive em casa arrendada e pagam €200,00 mensais.
28. Frequentou a escola até à 6ª classe.
29. O arguido B…, tem antecedentes criminais: 1 crime de fraude qualificada, praticado em 2004, condenado em 17/09/2012, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa pelo mesmo período com a condição de pagar €7.526,00 à administração tributária no prazo de 2 anos.
30. O arguido J… tem antecedentes criminais: 1 crime de insolvência dolosa, praticado em 27/02/2007, condenado em 10/11/2008, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de € 8,00; 1 crime de fraude qualificada praticado em 05/07/2003, condenado na pena de 13 meses de prisão, suspensa por 5 anos, com sujeição a deveres; 1 crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, praticado em 01/09/2002, condenado em 24/01/2012, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 100 de multa à taxa diária de 5,00; 1 crime de desobediência qualificada, praticado em 10/01/2011, condenado na pena de 160 dias de multa à taxa diária de € 7,00; 1 crime de fraude qualificada, praticado em 01/01/2004, condenado em 17/09/2012, na pena de 2 anos de prisão suspensa pelo mesmo período, com a condição de pagar a quantia de € 7.526,00; 1 crime de desobediência qualificada, praticado em 20/01/2011, condenado em 08/05/2013, na pena de €160 dias de multa à taxa diária de € 7,00.
31. O arguido J… tem antecedentes criminais: 1 crime de condução sob influência do álcool, praticado em 30/08/1993, condenado em 30/08/1993, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 700$00; 1 crime de emissão de cheque sem provisão, praticado em 29/07/1993, condenado em 26/01/1995, na pena de 150 dias de prisão, substituídos por igual tempo de multa à taxa de 2.000$00; 1 crime de emissão de cheque sem provisão, praticado em 16/7/1993, condenado na pena de 11/07/1996, na pena de 7 meses de prisão; 1 crime de cheque sem provisão, praticado em 10/05/1993, condenado na pena de 7 meses de prisão, suspensa por 2 anos; 1 crime de emissão de cheque sem provisão, praticado em 26/02/1993, condenado em 26/2/1993, condenado em 1/4/1998, na pena de 9 meses de prisão, suspensa por 2 anos, com a condição de pagar; 1 crime de fraude fiscal, praticado em 05/08/2005, condenado em 26/05/2008, na pena de 18 meses de prisão, suspensa pelo mesmo período sujeita a deveres; 1 crime de insolvência dolosa, praticado em 27/02/2004, condenado em 10/11/2008, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 7,00; 1 crime de fraude fiscal qualificada, praticado em 27/06/2001, condenado em 03/11/2009, na pena de 18 meses de prisão; um crime de fraude fiscal qualificada, praticado em 2007, na pena de 2 anos de prisão, suspensa pelo mesmo período.
32. Em 26/03/2004, foi efectuado o registo provisório de falência da arguida F…, Ld.ª.
33. A arguida F…, Ld.ª, tem antecedentes criminais pela prática de 1 crime de fraude qualificada, praticado em 2003, tendo sido condenada em 14/07/2011, na pena de 250 dias de multa à taxa diária de € 10,00.

1.2. Factos julgados não provados:
Inexiste

1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto:
O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente:
- nos documentos juntos aos autos.
O arguido não prestou declarações.
O tribunal formou, ainda, a sua convicção no depoimento da testemunha E…, o qual que prestou um depoimento que se nos afigurou coerente e verosímil, relatando com minúcia a inspecção que levou a cabo às três arguidas sociedades.
Com efeito, soube esclarecer o tribunal que na acção inspectiva, verificou que estavam contabilizadas facturas na arguida D…, Ld.ª, relativas à F…, a qual tinha sido declarada falida em 02/2004, sendo que esta arguida já não estava em funcionamento e esvaziada de património desde o ano de 2001, quando deixou de cumprir as suas obrigações fiscais.
Da análise que efectuou à contabilidade da D…, Ld.ª, verificou que esta vendeu mais solas à F…, Ld.ª do que comprou, através de cruzamento de informação dos fornecedores.
Constatou, ainda, que os pagamentos teriam sido efectuados parcialmente em dinheiro na conta do gerente da D…, Ld.ª, o que atendendo aos valores se mostra inverosímil, e outros através de cheques depositados em contas pessoais ou empresas dominadas pelos arguidos.
Verificou, ainda, que a D…, Ld.ª não possuía qualquer letra na sua contabilidade, não havendo registo, nem pagamento de imposto de selo, não tendo visto na altura, as letras juntas aos autos em audiência de julgamento, sendo que o movimento de letras a pagar não se encontrava na contabilidade.
Mais constatou que a arguida C…, Ld.ª, apenas tinha facturas provindas da F…, Ld.ª, e que vendia à D…, Ld.ª.
Os arguidos, atenta a análise documental, pretendiam contabilizar compras como custo, o qual foi deduzido no lucro tributável da empresa em sede de IRC e IVA.
Confirma o teor de toda a documentação junta aos autos.
Na verdade, do depoimento da testemunha, quer por si, quer conjugado entre si, quer conjugado com a demais prova dos autos, pode-se concluir com certeza e segurança que os arguidos praticaram os factos que lhes foram imputados, em conluio, porque utilizavam as três sociedades arguidas para emitir facturas entre si no sentido de beneficiar a arguida D…, Ld.ª.
Com efeito, a testemunha formou a convicção de que as facturas são fictícias, na triangulação entre as contabilidades das arguidas, e na análise da documentação que consta dos autos.
Importa consignar, como factor digno de suscitar estranheza, a circunstância da sociedade arguida F…, Ld.ª, apesar de declarada insolvente por sentença transitada em julgado 02/2004, continuar a emitir facturas, sendo que nos anos de 2002 a 2004, não efectuou operações activas conforme documentação junta aos autos.
Não é também despiciendo o facto de no final de 2001, existir uma cedência de quota do arguido J… ao arguido L….
Acresce que também se verifica a existência da duplicação da factura nº 1222, o que indicia a falsidade da documentação.
Acresce, ainda, que não podemos olvidar que a actividade da C…, Ld.ª, consistia no comércio de máquinas industriais e comércio de vestuário. Todavia, as mercadorias facturadas à F…, Ld.ª, referiam-se a borracha, produto que depois facturava à D…, Ld.ª.
Por fim, não podemos deixar de relevar as discrepâncias existentes entre as contabilidades da D…, Ld.ª e da C…, Ld.ª, relatadas pela testemunha e conjugadas com os documentos juntos aos autos, referentes a pagamentos e meios de pagamentos pretensamente utilizados.
Por tudo isto, fica demonstrado o concluiu dos arguidos, para através das empresas que dominavam, emitir facturas falsas entre si, no sentido de beneficiar a D…, Ld.ª, em detrimento do Estado.
No que concerne à situação social e profissional relevaram as declarações do arguido que nos pareceram verosímeis.
Quanto à existência de antecedentes criminais tomou-se em consideração os certificados de registo criminal juntos aos autos.
***
2. Poderes de cognição desta Relação e objecto do recurso.
2.1. O âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado.[1] Às quais acrescem as questões que são de conhecimento oficioso desta Relação enquanto Tribunal de recurso, como no caso dos vícios ou nulidades da sentença a que se reporta o art.º 410.º, n.os 2, alíneas a), b) e c) e 3 do Código de Processo Penal.[2] Tendo isso em conta e uma vez que se não detecta qualquer vício ou nulidade na douta sentença recorrida de entre os que se devesse conhecer ex officio, diremos que as questões a apreciar neste recurso são as seguintes:
1.ª A sentença é nula porquanto:
a) não se encontra devidamente fundamentada quanto à convicção do tribunal relativamente a cada um dos factos considerados provados; é omissa na explicação do montante a cujo pagamento sujeitou a suspensão da pena de prisão; e não procedeu ao exame crítico da prova;
b) violou o princípio da proporcionalidade e da igualdade na ponderação do mesmo montante a pagar por cada um dos arguidos; e ao considerar para todos os arguidos um período de suspensão da pena igual ao período de duração da pena;
2.ª As passagens do depoimento da testemunha E… indicadas no recurso, conjugadas com os documentos, impunham que o Tribunal a quo tivesse proferido diferente decisão relativamente aos factos enumerados em 8, 12, 13, 15, 18, 19, 20, 21 e 22 dos julgados provados?
3.ª A sentença padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto por não ter indagado das condições económica, profissional e social do arguido B… e da situação económica da arguida C…, Ld.ª?
4.ª Existe continuação criminosa entre os factos aqui apurados e os que o foram no processo n.º 181/08.5IDPRT, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras?
5.ª Não é possível determinar o valor da vantagem patrimonial obtida pela co-arguida D…, Ld.ª com as facturas emitidas pela recorrente C…, Ld.ª e com isso a punibilidade da conduta dos recorrentes?
***
2.2. Antes de entrarmos na análise das questões atrás enunciadas importa apreciar uma questão prévia, de certo modo conexa com a penúltima atrás elencada: a violação do princípio constitucional ne bis in idem.[3]
Na tese dos recorrentes estamos perante uma continuação criminosa entre os factos aqui apurados e os que o foram no processo n.º 181/08.5IDPRT, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, para tal invocando que os factos aqui apurados remontam a 24-01-2004, 08-03-2004, 07-07-2004 e 20-07-2004 e os que o foram naqueloutro processo remontam a 06-01-2004, 02-07-2004 e 02-08-2004, tendo a C…, Ld.ª emitido aquelas facturas para a D…, Ld.ª e estas para a sociedade K…, Ld.ª, ambas detidas pelo co-arguido J…, verdadeiro conformador da vontade delas pois que, como é próprio das sociedades, dela são naturalisticamente desprovidas, todas elas, por sua vez, tendo tido por referência facturas emitidas pela F…, Ld.ª para a C…, Ld.ª.
Diferente foi o entendimento perfilhado pelo Mm.º Juiz na sentença em dissídio, convocando em seu abono dois argumentos: que a sociedade beneficiada pela emissão das facturas falsas por parte dos aqui recorrentes não era a mesma neste e naquele processo e que não vislumbrou qualquer quadro externo facilitador da conduta criminosa e atenuador da culpa dos seus agentes.

Conhecidos que são os factos julgados provados na sentença proferida no processo ora em recurso, importa agora elencar os que, com relevo para o conhecimento da questão prévia que ora analisamos, o foram no processo n.º 181/08.5IDPRT, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras. Assim, tendo em conta a certidão da sentença de folhas 904 a 929 dos autos, nela foram julgados provados os seguintes factos:
a) A sociedade arguida K…, Ld.ª registou e declarou compras de equipamento básico (máquinas industriais que são utilizadas principalmente na indústria de calçado) e administrativo, com base em facturas emitidas pela empresa C…, Ld.ª, no ano de 2004. Facturas estas que são falsas.
b) As facturas contabilizadas são as seguintes: - factura n.º 5 com a data aposta de 06-01-2004, valor base - 77.500,00, valor de I.V.A. - 14.725,00; - factura n.º 9 com a data aposta de 02-07-2004, valor base - 53.287,00, valor de I.V.A. - 10.124,53; factura n.º 12 com a data aposta de 02-08-2004, valor base -€ 25.934,00, valor de I.V.A. - 4.927,46; num total do valor base destas facturas de 156.721,00 e num total de valor de I.V.A. destas facturas de 29.776,99.
c) Dos lançamentos contabilísticos da actividade exercida pela sociedade arguida C… verifica-se que as referidas facturas emitidas a favor da sociedade ora arguida K…, Ld.ª têm como suporte de entrada facturas atribuídas à sociedade arguida F…, Ld.ª.
d) Sucede que: - não existem contabilizados, ou em arquivo nas contabilidades quer da empresa K…, Ld.ª, quer na C… quaisquer guias de transporte, ou outros registos do movimento físico dos bens, nomeadamente as datas, os locais de carga e descarga, o transporte e matrículas das viaturas que confirmem a materialidade das facturas da C… contabilizadas; a denominação dos bens que constam das mencionadas facturas é genérica, não específica, designadamente, as marcas/modelos dos bens, se o trata de equipamento novo ou usado; - de acordo com o pacto social o objecto social da sociedade C…, Ld.ª é o comércio de grande variedade de produtos, nomeadamente máquinas de calçado, componentes para calçados e moldes, mas a arguida C… apenas exercia o comércio a retalho de vestuário, tendo uma loja de venda de vestuário no N… de Felgueiras e no local da sede da empresa não é exercida qualquer actividade; - apesar do objecto social constante do pacto societário/ a arguida sociedade C… é tributada em I.R.C., pelo exercício da actividade de Confecção de outro vestuário exterior em série; à excepção das facturas da F…, Ld.ª, contabilizadas pela C… entre Dezembro de 2003 e Maio de 2004, todos as demais aquisições desta arguida são de vestuário; de acordo com a contabilidade da empresa K…, Ld.ª, existia, à data da fiscalização, uma dívida por liquidar à sociedade C… de € 30.272,99; no entanto, na contabilidade da empresa C…, a conta-corrente do cliente K…, Ld.ª, encontra-se saldada; os serviços de inspecção constataram ainda que na contabilidade da arguida C… na conta corrente do cliente K…, Ld.ª foi lançada a factura n.º 7, no valor de € 24.514,00, factura emitida pela C… a favor da empresa D…, Ld.ª; existem ainda outras contradições, designadamente, os valores de cada pagamento, a data em que ocorreram e os meios de pagamento utilizados conforme resulta do quadro de fls. 6 dos autos que aqui se dá por reproduzido; assim, a arguida K…, Ld.ª lançou a débito da conta da C…, valores que totalizam € 156.225,00, apoiados em notas de contabilidade com o descritivo em numerário e que tiveram por contrapartida a conta caixa; por sua vez na empresa C… não existe nenhuma fotocópia das letras e cheques mencionados na sua contabilidade, ou qualquer documento bancário de aviso e/ou débito de despesas relacionadas com as letras, nem o registo das letras a receber e muito menos ainda a contabilização e o pagamento de selo de recibo devido pelas letras que teriam sido sacados sobre os clientes.
e) Relativamente ao arguido J… verifica-se que: é gerente da arguida K…, Ld.ª e também gerente da empresa D…, Ld.ª; foi até 10/12/2001 sócio gerente da sociedade F…, Ld.ª altura em que cedeu as quotas a L…, mas continuou aí a trabalhar e a fazer o mesmo que até essa data como sempre fez, isto é, dar ordens, instruções e tomar decisões em nome da arguida F… como gerente.
f) As referidas facturas emitidas pela sociedade arguida C…, Ld.ª, não traduzem qualquer transmissão efectiva de bens para a sociedade arguida K….
g) Na realidade as máquinas pertença da sociedade arguida F… à qual o sócio gerente arguido J… esteve formalmente ligado até 10-12-2001 e de facto depois desta data, passaram para a sociedade K… de forma ardilosa sem que os credores da F… pudessem reaver os seus créditos.
h) Para tanto ficcionou-se um suposto comprador, a arguida C…, que depois as vendeu à sociedade K…. Tal venda nunca existiu e, as máquinas embora mudando de titularidade formal o que é certo é que sempre serviram os interesses do sócio gerente da sociedade K…, o arguido J…. Para que tal artifício pudesse ocorrer foi engendrado a referida venda da sociedade arguida F… à sociedade arguida C….
i) Neste negócio engendrado as facturas da arguida F… para a arguida C… também se trataram de documentos falsos, pois o pagamento da referida mercadoria pela C… à F…, através do endosso de letras e cheques passados pelos clientes da C…, para além, de não ser demonstrável, peca igualmente por contradição, como é o caso por exemplo, das facturas n.º 1523 e 1524 da F…, a que correspondem o recibo n.º 1523, datado de 15-06-2004, lançado na escrita da sociedade C…, enquanto que, as facturas n.º 9 e n.º 12, emitidas pela sociedade C… à sociedade K… são de 02-08-2004 e de 02-07-2004.
j) O arguido L… foi convidado pelo sócio gerente da sociedade F…, o arguido J…, para ser sócio gerente, da F… com o objectivo de dar o seu nome, o que aceitou, mas na realidade o arguido J… continuou a actuar e a decidir de tudo como se continuasse a ser gerente da arguida F…, sendo este arguido, J…, quem continuou a efectuar todos os negócios e estabelecer relações comerciais em nome da F… como se continuasse a ser seu gerente concomitantemente com L…. O arguido B… é, desde a constituição, sócio gerente da sociedade arguida C….
k) Por decisão do referido arguido J…, nomeadamente, a sociedade M…, Ld.ª, a partir do final do ano de 2001, passou a utilizar o armazém da F… e até 10-12-2001, a empresa F…, foi economicamente esvaziada, através da venda de imobilizado de que dispunha, nomeadamente, equipamento, máquinas, ferramentas e benfeitorias realizadas nas instalações, bem como pela venda das matérias-primas e produtos acabados às empresas com as quais o sócio gerente da F… - J…, mantinha relações comerciais estreitas.
j) A sociedade arguida K…, Ld.ª ao iniciar a sua actividade, declarando-o à Administração Fiscal, ficou vinculada ao cumprimento de obrigações fiscais, designadamente, enquanto sujeito passivo de I.R.C. nos termos do artigo 2.º do C.I.R.C. (Código do Imposto de Rendimentos Colectivos), tinha a obrigação de possuir contabilidade regularmente organizada, conforme dispõe o artigo 115.º, do C.I.R.C., de forma a dar cumprimento a determinadas obrigações fiscais.
m) Contudo a referida arguida K…, Ld.ª sob a direcção e as ordens do arguido J… ocultou à Administração Fiscal factos relevantes da actividade desenvolvida através do não cumprimento das obrigações contabilísticas e fiscais conseguindo desta forma eximir-se ao pagamento dos inerentes impostos.
n) As vendas sustentadas pelas referidas facturas emitidas pela arguida C…, Ld.ª não ocorreram de facto, porque esta empresa nada tinha comprado para vender.
o) O arguido J… agiu sempre em seu benefício próprio em nome próprio, como gerente, das arguidas F… e K…, Ld.ª.
p) A triangulação existente nas vendas ficcionadas (F… - C… - K…) teve como objectivo ocultar o verdadeiro interveniente e interessado, o arguido J….
q) Os meios de pagamento alegadamente utilizados e que normalmente comprovariam a materialidade das operações, não existem nem existiram.
r) Assim, não tendo ocorrido as referidas vendas, não podiam por força do artigo 19.° do C.I.V.A. ter exercido o direito à dedução do I.V.A.
s) Pelo que a dedução do I.V.A. efectuada foi uma vantagem patrimonial ilegitimamente obtida em sede de I.V.A. no ano de 2004 e que atinge o valor global/anual de € 29.776,99, conforme resulta de fls. 11, não obstante apenas ter relevância criminal a vantagem patrimonial ilegítima obtida no 3.° trimestre de 2004 no montante de € 15.051,99.
t) Assim dos elementos contabilísticos recolhidos resulta que: a arguida K…, Ld.ª, lançou na sua contabilidade, no exercício de 2004, o valor total de € 186.497,99, respeitante às referidas facturas emitidas pela sociedade C…, Ld.ª, facturas identificadas a fls. 44 dos autos, que não correspondem a nenhuma venda de mercadorias por parte da arguida C… à arguida K….
u) Não existindo quaisquer guias de transporte, ou outros registos do movimento físico dos bens em causa, nomeadamente as datas, os locais de carga e descarga, o transporte e matrículas das viaturas que confirmem as referidas facturas da C… contabilizadas na arguida K….
v) De tal sorte que a denominação dos bens que constam das mencionadas facturas é genérica, não específica, nem as marcas/modelos dos bens e se, se trata de equipamento novo ou usado.
w) A sociedade arguida C…, Ld.ª exerce o comércio a retalho de vestuário, tendo uma loja de venda de vestuário no N… de Felgueiras e no local da sede da empresa não era exercida qualquer actividade.
x) A sociedade C… está colectada em sede de I.R.C. pelo exercício da actividade de Confecção de outro vestuário exterior em série.
y) Todas as facturas contabilizadas pela sociedade arguida C… entre Dezembro de 2003 e Maio de 2004, referem-se a aquisições de vestuário, com a única excepção das aquisições de máquinas supostamente efectuadas à F….
z) Existem discrepâncias entre a contabilidade da empresa K…, Ld.ª e a contabilidade da C… porquanto na arguida K…, à data da fiscalização (entre Novembro de 2006 e 10 de Janeiro de 2007) existia uma dívida à arguida C… por liquidar de € 30.272,99, ao passo que na arguida C… a conta corrente encontrava-se saldada. Existe igualmente contradição entre as duas referidas sociedades arguidas relativamente ao valor pago/recebido, designadamente, os valores de cada pagamento, a data em que ocorreram e os meios de pagamento utilizados, conforme quadro 1 de fls. 46 que aqui se dá por reproduzido.
aa) Não existe na contabilidade da C… nenhuma fotocópia das letras e cheques mencionados na sua contabilidade, ou qualquer documento bancário de aviso e/ou débito de despesas relacionadas com as letras, nem o registo das letras a receber e muito menos ainda a contabilização e o pagamento de selo de recibo devido pelas letras que teriam sido sacadas sobre os clientes.
bb) A arguida K…, Ld.ª na declaração trimestral de I.V.A. relativa aos 1.º e 3.º trimestres de 2004 deduziu indevidamente o I.V.A. mencionado nas referidas facturas emitidas pela arguida C…, conforme quadro que consta a fls. 57.
cc) Assim, a arguida K…, Ld.ª deduziu indevidamente o I.V.A. mencionado nas mencionadas facturas emitidas pela C…, Ld.ª nos montantes de totais de € 14.725,00 para o 1.º trimestre do ano de 2004 e de € 15.051,99 para o terceiro trimestre do ano de 2004, uma vez que, as mesmas, tem subjacentes operações simuladas, não conferindo direito à dedução de acordo com o disposto no n.º 3, do artigo 19.º do C.I.V.A., sendo que apenas a dedução relativa ao 3.º trimestre é objecto da presente acusação pois apenas esta tem relevância criminal (artigo 103.º,n.º 2,do R.G.I.T.).
dd) Os arguidos J… e B… sabiam como funcionava a incidência fiscal, designadamente em sede de Imposto Sobre o Valor Acrescentado - I.V.A. - sabendo todos o imposto a pagar ou a receber resulta da diferença entre o I.V.A. liquidado nas facturas de venda e o I.V.A. suportado e constante nas facturas de compra.
ee) Os referidos arguidos sabiam que a arguida K…, Ld.ª ao lançar na sua contabilidade as referidas facturas emitidas pela C… e ao declarar como I.V.A. suportado o I.V.A. que consta em tais facturas, que na realidade não foi pago, estava a induzir em erro a Administração Fiscal e, por essa forma à custa do Estado (contribuintes) estava a obter uma vantagem pecuniária que sabia não lhe ser devida e que era lesiva do erário público, no caso no montante de € 15.051,99.
ff) Os arguidos J… e B…, através das respectivas sociedades arguidas, decidiram, pela forma descrita, passar as máquinas em causa da titularidade da sociedade arguida F… para a sociedade arguida K…, Ld.ª actuando voluntariamente de forma concertada com vista à emissão das referidas facturas forjadas que depois foram contabilizadas na sociedade arguida K…, Ld.ª, facturas estas que não correspondiam à compra e venda de quaisquer máquinas.
gg) Os referidos arguidos agiram sempre em conjugação de esforços e intentos e desta forma lesaram o erário público no montante de € 15.051,99 em benefício próprio.
hh) Os arguidos J… e B… agiram sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e constituíam crime.

Com base nestes factos, os aqui recorrentes C…, Ld.ª e B…, o co-arguido J… e a sociedade K…, Ld.ª foram condenados nesse processo como co-autores materiais de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos art.os 103.º, alíneas a) e g) e 104.º, n.º 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias.
O art.º 30.º do Código Penal estabelece o seguinte:
1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

Daqui decorre com meridiana clareza que a mera proximidade espacio-temporal entre as plúrimas condutas sendo um índice suposto pela lógica da continuação criminosa[4] não se esgota nela, devendo, ao invés, ser confirmada pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa.[5]
Como se decidiu na sentença em dissídio, pese embora a proximidade temporal[6] entre as condutas criminosas julgadas neste e no processo n.º 181/08.5IDPRT, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras e as mesmas pessoas físicas envolvidas, não se descortina nenhuma circunstância externa relevando para a solicitação da conduta dos recorrentes que diminua consideravelmente a sua culpa. Daí que, como bem ali se decidiu, não estamos perante um crime continuado. Tanto mais que se não denota a existência de uma plúrima resolução criminosa por parte dos agentes, fermento onde cresce o crime continuado. Porém, apesar disso convém fazermos uma leitura mais aprofundada aos factos. Assim:
• em ambos os processos, as pessoas físicas envolvidas foram as mesmas: os arguidos J… e B…;
• neles, a sociedade que inicialmente emitiu as facturas falsas e a que servia de tampão foram as mesmas: a F…, Ld.ª e a C…, Ld.ª, respectivamente;
• já as sociedades que beneficiaram das facturas falsas são diferentes: neste processo, a D…, Ld.ª e no processo do Tribunal de Felgueiras a K…, Ld.ª. Porém, uma e outra e, bem assim, a F…, Ld.ª, eram geridas pelo arguido J…;
• no processo do Tribunal de Felgueiras, as três facturas falsas foram emitidas em 06-01-2004, 02-07-2004 e 02-08-2004;
• neste processo, foram-no em 24-01-2004, 08-03-2004, 07-07-2004 e, finalmente, 20-07-2004;
• em ambos os casos, os arguidos só tiveram uma resolução criminosa.
Ora, sendo as coisas assim, parece evidente que estamos perante uma conduta repetida por sete vezes num período de oito meses mas fruto de uma única resolução criminosa e, portanto, de um dolo único. Aliás, seria dificilmente concebível e pelo contrário é plausivelmente contrariado pelas regras da experiência comum, agulha norteadora da formação da livre convicção na decisão judicial,[7] que os arguidos tivessem tomado a resolução de falsificarem facturas para as usarem junto da administração tributária e desse modo obterem indevidas vantagens patrimoniais no dia 06-01-2004, no dia 24-01-2004 tomado outra interrompendo aquela para a retomarem no dia 02-07-2004 e assim sucessivamente. O dolo é único, cobrindo toda a conduta. E sendo único só pode haver um crime de fraude fiscal e não dois, o que nos transporta para o cerne da questão prévia que para aqui convocámos.

Com efeito, a propósito do caso julgado, noutra ocasião decidimos o seguinte:[8]
“Por outro lado, o art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa dispõe «que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.»

Muito sinteticamente diremos que o ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo, por um lado tendo em vista assegurar a sua paz jurídica[9] e configurando, de outro passo, uma limitação ao poder punitivo do Estado.[10]
Ancorado na estrutura acusatória do processo que enforma o nosso processo penal,[11] a proibição da dupla apreciação significa, numa primeira leitura, que ninguém pode ser julgado mais de uma vez e não, como por vezes é referido, que ninguém pode ser punido mais de uma vez.[12] Por isso esta garantia constitucional deve ser vista como da proibição da dupla perseguição penal do indivíduo, estendendo-se, portanto, não apenas ao julgamento em sentido formal,[13] mas, também, a qualquer outro acto processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, como seja o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público ou a decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal[14] e a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento criminal ou por desistência da queixa.[15] Nesta perspectiva, a delimitação do objecto do processo pela acusação tem ainda como efeito que a garantia conferida pelo princípio ne bis in idem implique que se proíba a investigação e o posterior julgamento não só do que foi mas também do que poderia ter sido conhecido no primeiro processo. Na verdade, como refere Henrique Salinas, «a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do acto que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objecto unitário do processo. Desde logo, como neste acto não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir-se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto, diversamente qualificados. De igual modo, neste acto podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objecto processual. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto.»[16] O que se proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal, entendendo-se aqui por crime não um certo tipo legal abstractamente definido como crime mas, outrossim, um comportamento espacio-temporalmente determinado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objecto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare, mas independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado.[17] Quer dizer, o que verdadeiramente interessa é o facto e não a sua subsunção jurídica.”

Por outro lado, conforme lembra Frederico Isasca, «o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados. Quer porque enquanto isoladamente considerados não seriam susceptíveis de se consubstanciarem como objecto de um processo. Quer porque a sua apreciação violaria frontalmente a regra ne bis in idem, entrando em aberto conflito com os fundamentos do caso julgado. Quer ainda porque, fornecendo o Código, como se demonstrou, todos os mecanismos necessários para uma apreciação esgotante do facto processual e portanto a possibilidade de se alcançar a verdade material e consequentemente uma justa decisão do caso concreto, far-se-ia responder o arguido pela negligência de outros na prossecução da justiça, ou pêlos inevitáveis vícios do sistema, acabando, em última análise, por frustrar totalmente as legítimas expectativas de quem foi julgado e sentenciado, comprometendo assim, inabalavelmente, o respeito pela própria dignidade c da pessoa humana.[18] O que releva para efeitos de consideração do caso julgado é, portanto, não o conceito normativo de crime mas antes uma certa conduta efectivamente levada a cabo, um acontecimento naturalístico vivenciado, em suma, real e historicamente ocorrido.[19]
Nesta ordem de ideias, não custa considerar que «o efeito consuntivo do caso julgado abrange todos os factos que, ainda que não constituam total sobreposição, hão-se considerar-se englobados no recorte de vida anteriormente julgado, enquanto unidade de sentido.»[20] Vale dizer, portanto, que, o efeito consuntivo dar-se-á mesmo naquelas situações em que os factos integradores da conduta criminosa tenham mas não deveriam ter permanecido totalmente estranhas ao conhecimento do juiz que primeiramente dela conheceu.[21] E isso é assim tanto no caso da continuação criminosa como também, por maioria de razão, nos casos em que parte da conduta não foi conhecida pelo juiz mas, com a que foi, está coberta pelo mesmo e único dolo do agente.
Sendo assim, resta decidir em conformidade com o atrás referido, posto que fica prejudicado o conhecimento das questões atrás elencadas.
***
III - Decisão.
Termos em que se acorda considerar verificada a excepção do caso julgado com a decisão proferida no processo n.º 181/08.5IDPRT, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que condenou os recorrentes B… e C…, Ld.ª, mantendo-se a mesma quanto ao mais.
Sem custas (art.º 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
*
Porto, 19-03-2014.
Alves Duarte
Castela Rio
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[1] Art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Na linha, aliás, do que desde há muito ensinou o Prof. Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil, Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, página 359: «Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.»
[2] Que assim é decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão do Plenário das Secções Criminais, de 19-10-1995, tirado no processo n.º 46.680/3.ª, publicado no Diário da República, série I-A, de 28 de Dezembro de 1995, mantendo esta jurisprudência perfeita actualidade, como se pode ver, inter alia, do Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 18-06-2009, consultado em www.dgsi.pt, assim sumariado: «Continua em vigor o acórdão n.º 7/95 do plenário das secções criminais do STJ de 19-09-1995 (DR I Série - A, de 28-12-1995, e BMJ 450.º/71) que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.» Na Doutrina e no sentido propugnado, vd. o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, página 1049.
[3] Art.º 29.º, n.º 5 da Constituição da República.
[4] Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, página 138.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-01-2008, no processo n.º 07P4830, publicado em http://www.dgsi.pt.
[6] Não existe, sequer, identidade entre os sujeitos deste e daqueles factos.
[7] Art.º 127.º do Código de Processo Penal.
[8] No processo n.º 130/10.0GAMTR.P1, desta Relação do Porto, o qual pode ser visto em http://www.dgsi.pt. Mais recentemente, na sessão de 26-02-2014 seguimos o mesmo caminho no acórdão que decidiu o recurso interposto no processo n.º 6107/11.1IDPRT.P1.
[9] Henrique Salinas, em Os Limites Objectivos do ne bis in idem (Dissertação de Doutoramento - Fevereiro de 2012), página 686, em http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/10124/1/OS%20Limites%20Objectivos%20do%20ne%20bis%20in%20idem.pdf.
[10] Henrique Salinas, ob. cit. páginas 687 e seguinte. Neste sentido, também seguiu o Acórdão da Relação de Lisboa, de 13-04-2011, no processo n.º 250/06.6PCLRS.L1-3, publicado em http://www.dgsi.pt.
[11] Art.º 32.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
[12] Acórdão da Relação de Lisboa, de 08-03-2006, no processo n.º 96/2006-3, publicado em http://www.dgsi.pt.
[13] Quer tenha conduzido à condenação, quer à absolvição do acusado, naturalmente,
[14] Henrique Salinas, ob. cit. página 688.
[15] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-03-2006, no processo n.º 05P4403, publicado em http://www.dgsi.pt.
[16] Ob. cit. página 694. Como se alcança de folhas 689 da ob. cit., o A. refere-se à acusação em sentido material querendo incluir tanto a acusação em sentido formal como o requerimento de abertura da instrução (isto porque, como sabemos, este delimita o despacho de pronúncia ou de não pronúncia do arguido. em conformidade com o disposto no art.º 309.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
[17] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-03-2006, no processo n.º 05P4403 e da Relação de Lisboa, de 13-04-2011, no processo n.º 250/06.6PCLRS.L1-3, publicados em http://www.dgsi.pt.
[18] Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, 1992, página 229.
[19] Acórdão da Relação de Coimbra, de 19-05-2004, no processo n.º 909/04, publicado em http://www.dgsi.pt.
[20] Acórdão da Relação de Coimbra, de 14-01-2004, no processo n.º 3501/03, publicado em http://www.dgsi.pt.
[21] Acórdão da Relação de Coimbra, de 28-05-2008, no processo n.º 14/03.9IDAVR.C1, publicado em http://www.dgsi.pt.