Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4581/10.2TAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: OFENSA A ORGANISMO
SERVIÇO OU PESSOA COLETIVA
ELEMENTOS DO TIPO
Nº do Documento: RP201309114581/10.2TAVNG.P1
Data do Acordão: 09/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crime de Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, do art. 187º, do Código Penal, supõe a imputação de factos inverídicos, não a formulação de juízos.
II - Supõe também uma ofensa à credibilidade, o prestígio e a confiança do organismo, serviço ou pessoa coletiva como tais e para além das pessoas singulares que, em determinado momento, sejam titulares dos respetivos órgão ou nela exerçam funções.
III - Assim, as expressões “incompetentes de merda” e “abaixo estes ladrões”, constantes do e-mail que o arguido dirigiu ao Serviço de Finanças em causa, apesar de difamatórias (nos termos do art. 180.º, do Código Penal) para com as pessoas concretas que têm tido intervenção nos processos que o arguido tem pendentes nesse serviço, não consubstanciam a prática de um crime de Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, do art. 187º, do Código Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 4581/10.2TAVNG.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B… veio interpor recurso da douta sentença do 3º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia que o condenou, pela prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187º do Código Penal, na pena de setenta dias de multa, à taxa diária de sete euros.
São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
« – Vem o presente recurso interposto da douta sentença da M.ma Juíza, à quo, que condenou o recorrente pela prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva, p.p. pelo art. 187º, do C.P. na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 7, no total de € 490, 00, além das custas do processo;
– Apesar do recorrente ter praticado os factos pelos quais foi acusado e os ter confessado em audiência de julgamento;
– Nunca poderia ter sido condenado porque tais factos não estão previstos na lei como ilícitos;
- Tal entendimento, apesar de respeitável, não pode aceitar-se, de modo algum;
- Constituindo uma errónea interpretação do disposto no artº 187º do CPenal
– O art.º 187º do Código Penal exige a imputação de factos;
– Não bastando a mera formulação de juízos de valor nem a emissão de palavras ofensivas - como é o caso dos autos;
- A expressão “ abaixo estes ladrões” é apta a ofender a honra e consideração de uma pessoa singular, mas não o crédito, o prestígio ou a confiança de uma pessoa coletiva;
- Tais factos não têm dignidade penal, porque a ofensa prevista no tipo de crime do art.º 187º nº 1 do CP, não pode ser cometida, senão por meio de palavras, isto é, verbalmente;
- O nº 2 do art.º 187 – norma remissiva - manda aplicar o art.º 183º e os nºs 1 e 2 do art.º 186, deixando de fora o art.º 182º;
– Tal falta de equiparação, leva-nos a concluir que a ofensa às entidades referidas no art.º 187 do CP se feitas através da escrita não têm dignidade penal por falta de tipicidade;
10ª – Foram violados os artºs 187º e 1º, ambos, do CPenal e o art.º 29º da Constituição da República Portuguesa.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta à motivação do recurso, pugnando pelo não provimento do mesmo.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, reiterando a posição assumida pelo Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se os factos dados como provados na douta sentença recorrida integram, ou não, a prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187º do Código Penal.

III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(…)
Factos provados

No dia 30 de Março de 2010, pelas 14h 13m, o arguido B… enviou um e-mail para os Serviços de Finanças de Vila Nova de Gaia ., com o seguinte teor:
«Venho por este meio solicitar informações adicionais sobre o significado da carta supra mencionada sobre o porque da cessação dos benefícios fiscais SENDO QUE EU NÃO VOS DEVO NADA INCOMPETENTES DE MERDA QUE NEM RESPONDEM AS RECLAMAÇÕES DOS CONTRIBUINTES ...”.
No dia 5 de Abril de 2010, pelas 19h 22m, o arguido B… enviou outro e- mail para os Serviços de Finanças de Vila Nova de Gaia ., com o seguinte teor:
“Venho por este meio solicitar informação sobre a que se refere a divida quando numa carta que vexas., me enviaram informaram que a mesma tinha ficado sem efeito.
Mais informo que estou a enviar este e-mail com o consentimento da deco, entidade a qual enviei copia do que vocês disseram,
Por isso solicito IMEDIATAMENTE a exclusão da mesma
CASO CONTRARIO SEREI FORADO A MOSTRAR A COMUNICAAO SOCIAL A CARTA ONDE DICEM QUE NAO VOS DEVO NADA E O QUE ESTA NA PAGINA

PARA QUE TODO O PAIS VEJA A INCOMPETENCIA QUE TEMOS ABAIXO ESTAS FINANAS !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
ABAIXO ESTES LADROES !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

O arguido B… agiu de forma livre, voluntária e consciente, afirmando factos capazes de ofender a credibilidade, o prestigio e a confiança devidos ao Serviços de Finanças de Vila Nova de Gaia ., bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
O arguido redigiu e remeteu os aludidos e-mails em estado de exaltação.
(…)»

IV – Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que a factualidade descrita não integra a prática do crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187º do Código Penal, por que foi condenado na douta sentença recorrida. Alega que este tipo de crime supõe a imputação de factos, e não a mera formulação de juízos de valor ou a emissão de palavras ofensivas (como se verifica no caso em apreço). Alega que a expressão “abaixo estes ladrões” é apta a ofender a honra e consideração de uma pessoa singular, mas não o crédito, o prestígio ou a confiança de uma pessoa coletiva. Alega, por último, que a ofensa a que se reporta o tipo de crime em causa só pode ser cometida por meio de palavras, uma vez que a remissão do nº 2 do referido artigo 187º não inclui o artigo 182º do mesmo Código (onde se equiparam, para efeitos de tipificação como crimes de difamação e injúrias, as ofensas verbais às feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão).
Vejamos.
Estatui o artigo 187º, nº 1, do Código Penal que quem, sem ter fundamento para, em boa fé os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.
O nº 2 deste artigo remete para o disposto nos artigos 183º e 186º, nº 1 e 2, mas não para o artigo 182º, todos do mesmo Código, sendo que neste último preceito se equiparam, para efeitos de tipificação como crimes de difamação e injúrias, as ofensas verbais às feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão. Daqui retira o recorrente que o tipo de crime em apreço supõe apenas ofensas verbais, não ofensas escritas. Mas não tem razão neste aspeto. A não remissão para o artigo 182º não tem, a este respeito, qualquer significado, pois seria inútil. As expressões “afirmar” e “propalar” não incluem apenas expressões verbais, mas também escritas (“afirma-se” e “propala-se” de forma verbal e de forma escrita). Não teria qualquer justificação racional não equiparar para este efeito ofensas verbais e ofensas escritas, quando tal se verifica em relação aos crimes de difamação e injúria. A repercussão de uma ofensa escrita, na perspetiva do crédito, confiança e prestígio de uma pessoa coletiva, pode até ser muito superior ao de uma ofensa verbal.
Já quanto aos outros aspetos, assiste razão ao recorrente.
O tipo de crime em questão supõe a imputação de factos inverídicos, não a formulação de juízos (neste aspeto o crime é distinto dos de difamação, p. e p. pelo artigo 180º do Código Penal, e injúrias, p. e p. pelo artigo 181º do mesmo Código, onde se equiparam a imputação de factos e a formulação de juízos sobre pessoas).
Ora, no caso em apreço, não estamos perante a imputação de factos, mas perante a formulação de juízos (“incompetentes”, “ladrões”). É certo que estes juízos poderiam decorrer da imputação de factos concretos (demonstrativos de incompetência, ou qualificáveis como furto). Mas não se faz tal imputação nos escritos em apreço.
Por outro lado (e nisso também assiste razão ao recorrente), esses juízos recaem sobre as pessoas concretas que em determinado momento exercem funções nos Serviços de Finanças em causa, ou até, mais especificamente, sobre aquelas que têm tido intervenção nos processos que o arguido tem pendentes nesses Serviços, não sobre esses Serviços como organismo institucional que está para além das pessoas concretas que em determinado momento nele exercem funções. Há que distinguir entre uma ofensa ao organismo, à pessoa coletiva ou à instituição como tais (ou seja, para além das pessoas singulares que em determinado momento neles exercem funções ou são titulares dos respetivos órgãos), das ofensas a estas pessoas singulares (mesmo que estas sejam todas as que em determinado momento neles exercem funções ou são titulares desses órgãos).
Sendo certo que as expressões em causa são inegavelmente difamatórias (nos termos do artigo 180º do Código Penal) para com pessoas concretas (precisamente as que têm tido intervenção nos processos que o arguido tem pendentes nos Serviços de Finanças em causa), não pode dizer-se que estejamos perante a prática de um crime de ofensa à pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187º do Código Penal.
Assim, deve ser concedido provimento ao recurso, devendo o arguido e recorrente ser absolvido do crime por que vinha acusado.

Não há lugar a custas (artigo 513º, nº 1, a contrario, do Código de Processo Penal)

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, absolvendo o arguido e recorrente B… do crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187º do Código Penal, por que vinha acusado.

Notifique

Porto, 11/09/2013
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Maria Godinho Vaz Pato
Eduarda Maria de Pinto e Lobo