Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9440/08.6TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RITA ROMEIRA
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
GERENTES
DEVER DE LEALDADE
DEVER DE FIDELIDADE
DEVER DE DILIGÊNCIA
DEFESA DOS INTERESSES DA SOCIEDASDE
CONCORRÊNCIA DESLEAL
Nº do Documento: RP201403249440/08.6TBMAI.P1
Data do Acordão: 03/24/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 64º E 72º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: I - Os gerentes de uma sociedade têm para com esta deveres de lealdade, fidelidade, diligência e de defesa dos interesses desta sendo que a violação ilícita e culposa dos mesmos o coloca na obrigação de indemnizar os prejuízos causados, tudo como decorre e resulta dos art.s 64º e 72º do Código das Sociedades Comerciais.
II - Tal responsabilidade, prevista naquele art. 72º, nº 1, é uma responsabilidade contratual e subjectiva, que pressupõe a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil: facto, ilícito, culpa, dano (danos emergentes e lucros cessantes) e nexo de causalidade.
III - O facto de se provar que a ré, quando já não é gerente da sociedade/autora, se encontra, a trabalhar com outra sociedade, exercendo actividade que se encontra abrangida pelo objecto da autora, não consubstancia qualquer violação do dever de lealdade nem nenhuma situação de concorrência desleal, que sobre ela impendia acautelar, nos termos do art. 254º do CSC.
IV – Só quando o tribunal, julga procedente ou improcedente um pedido e não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, ausência absoluta de fundamentação, é que viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais, atento o disposto no art. 205º, nº 1, da CRP e art. 158º, nº1, do CPC.
V - A exigência do exame crítico das provas, prevista na parte final do art. 659º, nº 3, é diversa daquela que deve ter lugar, aquando da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do nº 2, do art. 653º, ambos do CPC.
VI - A inobservância do disposto no art. 685º-B, do Código de Processo Civil, determina a rejeição do recurso quanto à decisão da matéria de facto.
VII - A recorrente não cumpre os ónus impostos por aquele dispositivo, se não indicar, nas conclusões das alegações, os concretos pontos da matéria de facto (com referência aos pontos controvertidos dos factos alegados) que considera incorrectamente julgados, nem as passagens dos depoimentos gravados que permitam discordar da decisão proferida pelo tribunal recorrido.
VIII - A deficiência, nas alegações de recurso, no que diz respeito ao cumprimento do disposto no art. 685º-B, nº1, a) e b) e nº2, não é susceptível de despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que se prevê no nº 3 do art. 685º-A, ambos do Código de Processo Civil, para o recurso que versa sobre matéria de direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.Nº 9440/08.6TBMAI.P1
Tribunal recorrido: 4º Juízo Competência Cível do Tribunal Judicial da Maia
Recorrente: B…, Lda
Recorrida: C…

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
A A., B…, LDA., com sede à Rua …, n.º .., sala .., Maia, intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra a R., C…, residente na Rua …, n.º …-…, ….
Pede que a acção seja julgada procedente e, consequentemente, seja a ré condenada:
a) a pagar-lhe a quantia de € 95.000,00.
b) a entregar-lhe os elementos solicitados na carta junta como Doc. 16, essenciais para que possa continuar a desenvolver negócios na área da «Qualidade» e que são os seguintes:
1 - Toda a correspondência enviada e recebida, via Internet, email e correio convencional, durante o desempenho da actividade de gerente na autora;
2 - Toda a documentação gerada e recebida durante o desempenho da actividade de gerente na autora, nomeadamente:
- Propostas comerciais de prestação de serviços – pendentes e adjudicadas, e documentos anexos às mesmas;
- Contratos de prestação de serviços e de parcerias estabelecidas;
- Relatórios de intervenções;
- Actas de Reuniões;
- Contactos comerciais de todos os responsáveis nos clientes e potenciais clientes afectos à área funcional da «Qualidade» da Autora.
3 - Esclarecimento do resultado obtido em acções comerciais com potenciais clientes, nomeadamente:
- D…;
- E…;
- F…, L.da;
- G…, S.A.;
- H…, S.A.;
- I…, S.A.;
- J…, S.A.;
- K…, L.da;
- L…, S.A.;
- M…, L.da;
- N…;
- O…, L.da.
4- Esclarecimento da situação de todos os trabalhos e projectos em curso;
5 - Toda a informação comunicada e recebida no âmbito do despenho da actividade de gerente da Autora, respeitante a entidades terceiras, designadamente: fornecedores, clientes e parceiros de negócio (nomeadamente, P…, Q…, S…, T…, U…, V…).
Para o efeito e em síntese, alega que:
• Dedica-se à prestação de serviços na área das novas tecnologias, tendo sido nomeados gerentes os sócios W…, X… e C… (a aqui ré).
• Desde o início que trabalha com várias áreas de negócio que foram distribuídas pelos vários sócios-gerentes, tendo a área da “Qualidade” sido entregue à ré.
• Inicialmente o trabalho correspondente à área de negócio da ré baseava-se essencialmente na prestação de assistência técnica a uma solução informática com o nome Y… (produzida pela P..., representada na Europa pela Q…), na qual, por intermédio da ré, mais tempo e dinheiro investiu, dedicando-se-lhe em exclusivo a partir de certa altura.
• Era o departamento da «Qualidade» que prestava assistência e manutenção ao Y….
• Era a ré que tinha a totalidade do conhecimento no que diz respeito ao trabalho desenvolvido no seu departamento, tanto em relação ao trabalho propriamente dito como em relação aos contactos com todos os intervenientes no trabalho que estava a realizar.
• Os restante sócios-gerentes apenas intervinham na medida em que lhes era solicitado apoio, nomeadamente, ajudas em termos de resolução de problemas técnicos e participação em reuniões.
• Posteriormente, a P…. produziu uma outra solução informática – o Z… – com o intuito de substituir o Y… e, como existia a parceria supra referida com a Q…, continuaria a prestar os seus serviços, agora também relativamente à nova solução informática.
• Foi encarregue de proceder à tradução do Z…, serviço que ficou a cargo do departamento de «Qualidade».
• Em Março de 2007, que foi, precisamente, o mês em que a tradução foi concluída, começou a ter dificuldade em contactar a ré, pelo facto de esta ter deixado de aparecer nas instalações alegando motivo de cansaço.
• Todavia, ao mesmo tempo que se afastou, a ré deixou também de prestar qualquer auxílio às questões que se encontravam pendentes e que diziam respeito à sua área de trabalho nas quais apenas aquela estava perfeitamente ambientada com a generalidade dos assuntos e, portanto, perfeitamente esclarecida para responder às sucessivas questões que os clientes iam colocando.
• Dessa forma foi, imediatamente, afectada e condicionada no exercício normal da sua actividade.
• A ausência da ré, tanto física como pelo facto de ter deixado de responder às solicitações que lhe eram feitas por e-mail, fez com que muitos clientes vissem as suas perguntas sem resposta.
• Assim, um dos seus representantes – X… – teve que solicitar à empresa que lhes fornecia o acesso ao e-mail que reencaminhasse todas as mensagens que iam parar à caixa de correio electrónico da ré para poder prestar a assistência necessária.
• O comportamento da ré fez com que o seu departamento de «Qualidade» parasse.
• Teve de marcar reuniões com alguns dos seus clientes que contactavam directamente com a ré para explicar a situação vivida.
• A implementação do Z… no N…, que era uma certeza, foi uma oportunidade de negócio perdida por culpa da ré.
• Ao mesmo tempo que a ré desaparecia, foi surpreendida pela Q… ao ser informada de que deveria parar com a prestação de todos e quaisquer serviços no âmbito da parceria existente entre ambas.
• No dia 16.03.2007 a ré formatou o disco do computador portátil que utilizava, disco esse que continha informação essencial à vida dela autora, para além de ser sua propriedade, eliminando por completo os dados constantes do disco sem deixar cópia de segurança do mesmo.
• Assim, com a saída da ré, ficou impossibilitada de dar assistência aos clientes com quem já trabalhava e, ainda, inviabilizada a possibilidade de continuar a trabalhar nesta área de negócio, ainda que com outros clientes.
• O computador que a ré utilizava possuía um registo de acesso a uma rede designada 'AB…', rede de uma empresa também da área das novas tecnologias mas com a qual não tinha relação de qualquer tipo, podendo considerar-se, de certa maneira, concorrente.
• A ré não só comprometeu a possibilidade de continuar a prestar assistência aos seus clientes no âmbito do Z… e Y… como, independentemente disto, destruiu material sua propriedade e essencial à continuação da sua actividade.
• A ré renunciou à gerência em 2007/03/16, que se tornou efectiva em 2007/03/27, e não lhe assegurou um período de transição que assegurasse a transferência de todo o conhecimento do negócio dos clientes com os quais trabalhava o departamento da «Qualidade» nem referiu qual o ponto da situação de que cada um dos trabalhos/projectos.
• Recebida a renúncia à gerência, pediu de imediato por carta datada de 2007/03/28 que a ré procedesse à entrega de todos os documentos que lhe pertencem e que permitiam continuar a exercer a sua actividade com normalidade.
• A ré era possuidora de contactos de clientes e potenciais clientes, propostas comerciais adjudicadas e pendentes, contratos, relatórios de intervenções, actas de reuniões, conhecimento da situação de todos os trabalhos e projectos em curso e informação, em geral, produzida no âmbito do exercício da sua actividade de gerente.
• Todos estes elementos estavam em posse da ré e são essenciais para que pudesse manter o departamento da «Qualidade» a laborar.
• A ré não forneceu as informações que lhe eram pedidas nem entregou os elementos solicitados.
• A ré forneceu a alguns clientes contactos móveis e de e-mail não profissionais que inviabilizaram que os outros gerentes pudessem aceder aos contactos estabelecidos entre a ré e os clientes.
• Constatou em 2008.07.30 que a ré se encontra a trabalhar com a Q… e com o Z… e Y… da P….
• Teve desde então a forte convicção de que todos os comportamentos da ré tinham como fim desviar clientela para proveito próprio, servindo-se do conhecimento obtido durante a sua estadia nela autora.
• Os comportamentos da ré consubstanciam violações de deveres consagrados no art.º 64.º, do C.S.C..
• No momento em que a ré desaparece em Março de 2007, começa a violar o dever de cuidado.
• A ré não só a abandonou subitamente como não forneceu elementos necessários para que pudesse manter “a funcionar” o departamento da “Qualidade” que lhe estava entregue.
• O comportamento da ré violou, ainda, os deveres de lealdade estabelecidos no al. b) da mesma disposição, pois, o abandono da sociedade, traduziu-se, desde logo, no esvaziamento e morte do departamento da “Qualidade”, o que comprometeu seriamente os interesses a longo prazo dos sócios e da própria sociedade em si porquanto tal departamento era naquele momento a área que mais expectativas de entrada de dinheiro trazia.
• A ausência da ré deixou também os seus clientes numa situação desconfortável na medida em que não obtinham resposta às questões que colocavam à ré, prejudicando, assim, a imagem dela autora no mercado.
• Com este comportamento verifica-se mais uma violação do dever de lealdade ponderado do ponto de vista dos interesses dos «outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade» conforme estabelece o art.º 64.º n.º 1, alínea b) in fine, do C.S.C...
• Ao violar estes tais deveres a ré incorre em responsabilidade civil e social e deverá indemnizá-la pelos prejuízos causados nos termos do art.º 72.º, n.º 1, do C.S.C..
• A ré é, assim, responsável:
1) pela paragem do departamento da «Qualidade» provocada pela sua ausência;
2) pela formatação do disco do computador que utilizava sem deixar cópia de segurança;
3) pelo acesso a uma rede de uma empresa concorrente;
4) pelo não fornecimento dos elementos solicitados e essenciais à vida da sociedade; e
5) pela concorrência desleal praticada por aquela, questão que se analisará mais formalmente adiante.
• Associada a esta responsabilidade soma-se, assim, a responsabilidade decorrente do facto da ré estar a exercer, neste momento, actividade concorrente, que foi potenciada com clientes que a mesma desviou da sua carteira, sem qualquer contrapartida.
• Assim, o comportamento da ré integra uma situação de concorrência desleal.
• Nos termos no art. 254.º, n.º 1 do C.S.C. «Os gerentes não podem, sem consentimento dos sócios, exercer, por conta própria ou alheia, actividade concorrente com a da sociedade».
• A ré, enquanto sua gerente, preparou a sua saída e a transferência de clientes, em proveito próprio.
• Tal facto configura uma violação ilícita e culposa dos deveres de gerente, nomeadamente dos deveres de lealdade, fidelidade e do dever de defesa dos seus interesses, previstos nos art.ºs 64.º, do C.S.C., e 987.º do C.C..
• Ao fazer com que o seu departamento da «Qualidade» parasse, o comportamento da ré consubstanciou nitidamente uma violação ao dever de defesa dos interesses dela autora, pois com departamentos parados, a entrada de dinheiro deixava de acontecer.
• O desvio de clientela foi preparado sendo a ré ainda gerente, portanto, a presente situação enquadra-se perfeitamente na previsão legal do art.º 254.º, do C.S.C., na medida em que a mera preparação do início de uma actividade concorrente configura já uma actividade concorrente.
• A ré, em proveito próprio, agiu com o propósito de esvaziar o seu departamento da «Qualidade».
• Tendo em conta todas as condutas praticadas pela ré, considera a quantia de € 95.000,00 como adequada a tentar minorar prejuízos que diz ter sofrido, quantia que divide em três parcelas relativas a diferentes danos, incluindo não patrimoniais.

Citada contestou a ré, nos termos que constam a fls. 153 e ss., e deduziu reconvenção.
Em sede de contestação, alega, em síntese, que:
• Não corresponde à verdade que pela sua ausência tenha provocado a paragem do departamento de qualidade da autora, tenha formatado o disco do computador que utilizava sem deixar cópia de segurança, tenha acedido a uma rede de uma empresa concorrente, não tenha fornecido elementos solicitados e essenciais à vida da autora e tenha praticado concorrência desleal em relação à autora.
• Para além disso, da sua actuação como gerente e ulterior renúncia à mesma não resultaram quaisquer prejuízos ou danos para a autora.
• Não praticou qualquer acto passível de censura e, muito menos, susceptível de a constituir na obrigação na reparação de qualquer dano.
• O trabalho desenvolvido na área da qualidade da autora era efectuado conjuntamente por ela com o sócio-gerente W….
• Nunca esteve incontactável.
• Nunca deixou de aparecer nas instalações alegando motivo de cansaço.
• O relacionamento pessoal e profissional entre os sócios-gerentes da autora estava péssimo desde a segunda metade do ano de 2006.
• Todos os clientes da autora que lhe pediram auxílio técnico receberam resposta positiva.
• Aquando da renúncia à gerência, não existia qualquer parceria celebrada entre a autora e a Q…, nem o N… tinha aceite adquirir o Z….
• Toda a informação referente à autora foi guardada no seu servidor (conforme os procedimentos internos e também como consequência da formatação que teve de ser efectuada) ou enviada para os endereços de e-mail dos restantes sócios da autora, pelo que toda a informação empresarial existente no computador que lhe estava atribuído passou a estar integralmente acessível pela autora.
• A AB… é propriedade do seu cunhado e, por esse motivo, por diversas vezes se deslocou às instalações daquela, acedendo à rede por motivos estritamente pessoais.
• Sempre se mostrou disponível para assegurar o período de transição, transmitiu o ponto de situação dos projectos, disponibilizou-se para prestar todas as informações e dúvidas que eventualmente existissem relativamente aos projectos em que esteve envolvida, sendo que nunca foi questionada para o efeito.
• O gerente W… tinha conhecimento de todos os projectos da área da qualidade da autora, tendo inclusivamente participado ele próprio nalguns desses projectos.
• Não praticou qualquer acto passível de ser considerado como concorrência à actividade da autora e, muito menos, concorrência desleal.
• Quanto aos alegados danos, o relatado pela autora mais não é que uma soma de conclusões não fundamentada, não alegando um único prejuízo concreto com a sua alegada actuação danosa, enquanto gerente ou sócia.
Quanto ao pedido reconvencional, em síntese, alega que:
• Com a constituição da autora foi celebrado entre o Instituto do Emprego e Formação Profissional e aquela um contrato de concessão de incentivos, do qual resultou um apoio financeiro no montante de € 27.320,13.
• Com a sua saída da autora teve que pagar ao IEFP a quantia de € 8.752,39, que lhe devem ser restituídos.
• Era remunerada pelas funções que exercia na autora, tendo ainda direito a receber mensalmente ajudas de custo.
• Desde o mês de Julho de 2005 até à data da sua saída da gerência não mais auferiu qualquer remuneração.
• É assim credora e a sociedade devedora da quantia global de € 6.801,70, referente às remunerações pelo cargo de gerência, de Julho de 2005 a Fevereiro de 2007, bem como no pagamento de ajudas de custo até à sua saída, o que discrimina.
Conclui que a acção deve ser julgada improcedente e deve ser julgado procedente o pedido reconvencional e, em consequência, ser condenada a autora/reconvinda a pagar-lhe a quantia de € 15.554,07, acrescida de juros, calculados à taxa legal em vigor desde a data de vencimento até efectivo e integral pagamento.

A autora apresentou réplica, nos termos que constam a fls. 220 e ss., onde refuta o alegado pela ré, concluindo que a acção deve ser julgada procedente, conforme peticionado na petição inicial, e deve ser julgado improcedente o pedido reconvencional.

A fls. 246 e ss. foi proferido despacho que fixou o valor da causa, julgou legalmente inadmissível o pedido reconvencional e, em consequência, determinou a absolvição da autora da instância reconvencional.
Dispensou a realização da audiência preliminar, proferiu despacho saneador tabelar, fixou os factos assentes e elaborou a base instrutória, sem reclamação.
Instruídos os autos, procedeu-se a julgamento, tendo-se respondido à matéria de facto, nos termos que constam da decisão de fls. 769 a 777, sem reclamações.
Não foram apresentadas alegações nos termos do disposto no art. 657º, do CPC.
Por fim foi proferida sentença, a fls. 780 e ss., que terminou com a seguinte decisão:
“Concluindo, e em face de tudo o que atrás ficou exposto, decide-se:
- Julgar improcedente por não provada a presente acção e, consequentemente, absolver a ré C… do pedido formulado pela autora B…, LDA..
Custas pela autora.”.
*
Inconformada a autora interpôs recurso, a fls. 800 e ss., terminando as suas alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
A - O presente recurso vem interposto da sentença proferida no âmbito dos autos de ação de processo sumário que correm os seus termos no Tribunal Judicial da Maia – 4º Juízo de Competência Cível, sob o n.º de processo 9440/08.6TBMAI.
B - Nos termos melhor descritos na referida Sentença, o Tribunal a quo decidiu julgar a ação improcedente, cabendo recurso nos termos dos artigos 691.º e 685.º CPC.
C- Diz o art. 158.º do CPC que as decisões sobre qualquer pedido controvertido são sempre fundamentadas.
D- Contudo, nos presentes autos o douto tribunal a quo limita-se a dizer que a Autora descreveu uma séria de comportamentos que entendia serem violadores dos deveres de gerente previstos no art. 64.º do CSC, que depois se transcreve, e conclui-se que não se provou o pretendido.
E – Assim, falta nesta decisão a exposição dos motivos que levaram à decisão num discurso próprio, assente numa análise e ponderação também próprias, que nem na Ata de Leitura da Resposta aos Pontos da Base Instrutória está patente.
F – O juiz decide de acordo com a sua prudente convicção com base na análise crítica das provas apresentadas, mas é imperativo que se explique às partes como é que esta se formou.
G – Para a Apelante está patente uma violação do n.º 3 do art. 659.º do CPC pois há um claro e nítido vazio de fundamentação da douta sentença.
H – Nos termos do art. 685.º - B do CPC incumbe à Apelante especificar os pontos que considera incorretamente julgados e os meios de prova que impunham decisão diversa, o que se faz.
I – De facto, não se pode a Apelante conformar com aquele que presume seja o entendimento dos factos por parte do Meritíssimo tribunal a quo.
J – De facto, os depoimentos das testemunhas AC… e AD…, trabalhadores de uma cliente da Apelante, são demonstrativos da existência de diferentes prestadores de assistência consoante o objetivo pretendido.
K – Esta constatação pode ser feita, igualmente, através da análise do currículos dos três sócios da Apelante, pois aí é possível verificar que a única que tinha trabalhado exaustivamente na área da Qualidade, e com o Y…, era a Apelada.
L – Facto confirmado pela testemunha AE…, antigo chefe da Apelada na AF…, e com conhecimento das suas valências, bem como das dos outros sócios gerentes da Apelante.
M – No tocante ao investimento, o depoimento do técnico oficial de contas da sociedade, e por isso familiarizado com os seus negócios, demonstrou que a Apelante estava a investir na área da Qualidade, esperando vir a alcançar o retorno económico alcançado.
N – Este investimento é também ilustrado com a quantidade de emails sobre a área de Qualidade juntos aos autos, bem como as faturas emitidas pela Apelante no âmbito de tal área.
O – A Apelante entende que a sua boa relação com a Q… está mais do que patente na troca de emails com esta última, sem que seja levantado qualquer problema ou obstáculo.
P – Também não entende como não foi provada a dificuldade em contactar a Apelada, uma vez que esta se encontrava no Brasil, um local para o qual é preciso visto para viajar, sem disso ter dado conhecimento prévio aos outros sócios.
Q – Devido a estas dificuldades de contacto, a Apelante teve que convocar reuniões com os seus clientes para explicar toda esta delicada situação – como confirma a testemunha AG….
R – Ao mesmo tempo, a Apelada tinha formatado o computador da Apelante que utilizava deixando vazio de qualquer conteúdo, o que causou graves prejuízos uma vez que também não houve o cuidado de fazer um backup dos mesmos.
S – A valoração do depoimento caótico, sem nexo e bilingue da testemunha surpreende a Apelante, pois falamos de um testemunho em que a intérprete por vezes se substitui aos advogados e faz perguntas, e foi mais do que uma vez advertida pelo meritíssimo juiz sobre a sua fraca (para não dizer inexistente) tradução.
T - Lamenta, também, que se tenha preferido a celeridade ao efetivo apuramento da verdade, ao não ter sido possível arranjar meio para o depoimento da testemunha AH….
U – Gostava a Apelante ainda de perceber qual foi o critério valorativo atribuído ao documento que juntou em sede de audiência de julgamento, documento este recuperado do computador formatado, e onde é feito um relato dos acontecimentos nos presentes autos.
V – Incumbe à Apelante especificar as normas jurídicas violadas que constituem fundamento da decisão e que deveriam ter sido aplicadas, nos termos do art. 685.º-A do CPC.
X – A atuação da Apelada é geradora de responsabilidade civil, uma vez que forma apagados dados de um computador que não eram sua pertença, sublinhando-se que a ela não se pode aplicar o padrão do homem médio, já que estamos a falar da sua área de formação.
Y – A Apelada fez tábua rasa dos deveres que lhe eram impostos pelo art 64.º do CSC ao não ter atuado com a diligência de um gestor criterioso, e ao ter destruído propriedade que eram da Apelante e não só.
Z- Mais aproveitou uma possibilidade de negócio de que tomou conhecimento enquanto gerente da Apelante em proveito próprio.
AA – Em face de tudo o exposto, deveria a Apelada ter sido condenada no ressarcimento à Apelante dos danos a que deu causa.
Assim se fazendo a costumada Justiça!
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, dar sem efeito a douta sentença do tribunal a quo.

A ré apresentou contra alegações, nos termos que constam a fls. 822 e ss., concluindo que deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, conclusões H) a U) e totalmente improcedente quanto às demais, mantendo-se assim a douta sentença, como é de JUSTIÇA!

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Ter-se-á em conta que o teor das conclusões define o âmbito do conhecimento deste tribunal “ad quem”, e que importa conhecer de questões e não de razões ou fundamentos.
Assim as questões a decidir e apreciar consistem em saber:
- se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação;
- se deve ser alterada a matéria de facto e, caso isso aconteça;
- se deve ser dada sem efeito a decisão recorrida e a apelada condenada a ressarcir a apelante dos danos a que deu causa.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
1. A Autora é uma sociedade por quotas, constituída em 13.10.2004, no Segundo Cartório Notarial de Matosinhos, com os sócios W…, X… e C….
2. A Autora dedica-se à prestação de serviços na área das novas tecnologias, nomeadamente das tecnologias da informação.
3. No acto de constituição da sociedade, todos os sócios foram nomeados gerentes e assim se mantiveram até à renúncia apresentada por parte da Ré, em 19.03.2007, que produziu efeitos em 27.03.2007.
4. A Y… é uma solução informática produzida por uma empresa americana a P…. representada em Portugal pela Q….
5. O departamento de «Qualidade» da A. iniciou a tradução da aplicação informática Z….
6. Em Março de 2007, a informação constante do computador portátil que a Ré utilizava foi formatada.
7. Recebida a renúncia à gerência da Ré, a Autora pediu, por carta datada de 28.03.2007, que aquela procedesse à entrega de todos os documentos que pertencem à sociedade e que permitiam continuar a exercer a sua actividade com normalidade.
8. A actividade da Ré centrava-se no trabalho de projectos e prestação de serviços de assistência e manutenção de soluções informáticas utilizadas por clientes, correspondendo, inicialmente, à prestação de assistência técnica a uma solução informática com o nome Y….
9. Um dos representantes da autora, X…, solicitou à empresa que fornecia àquela o acesso ao e-mail que reencaminhasse todas as mensagens que iam parar à caixa de correio electrónico da ré para a caixa de correio da autora.
10. A autora foi informada pela Q… que deveria parar com a prestação de todos e quaisquer serviços prestados no âmbito da parceria que existia entre elas, por a Q… pretender cessar com a mesma.
11. O computador da ré possuía um registo de acesso a uma rede designada “AB…”.
12. A Ré encontra-se a trabalhar com a Q… e com o Z…, exercendo actividade que se encontra abrangida pelo objecto da Autora.

B) O DIREITO
Nulidade da sentença
A autora, nas conclusões C a G das suas alegações, imputa à sentença recorrida o vício de falta de fundamentação, a que se refere o art. 158º do CPC, alegando ser patente a violação do nº3 do art. 659º, do mesmo código.
Vejamos:
Dispõe aquele art. 158º o seguinte:
“1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.”.
O art. 205º, nº 1 da Constituição da República, por seu turno, diz-nos que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.»
É, assim, manifesta a existência de um dever de fundamentação das decisões judiciais, dever esse com consagração constitucional e que se justifica pela necessidade das partes, com vista a apurar do seu acerto ou desacerto e a decidir da sua eventual impugnação, precisarem de conhecer a sua base fáctico-jurídica.
“A função própria do juiz é interpretar a lei e aplicá-la aos factos da causa…”, cfr. ensinou o Prof. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2º, pág. 172.
Com efeito, para que não só as partes, como a própria sociedade, entendam as decisões judiciais, e não as sintam como um acto autoritário, importa que tais decisões se articulem de forma lógica. Uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. E, embora a força obrigatória da sentença ou despacho esteja na decisão, sempre essa força se deve apoiar na justiça. Ora os fundamentos destinam-se precisamente a formar a convicção de que a decisão é conforme à justiça, cfr. refere Anselmo de Castro, in “Direito Processual civil Declaratório”, Vol. III, pág. 97, Almedina 1982.
“A decisão é um resultado, é a conclusão de um raciocínio; não se compreende que se enuncie unicamente o resultado ou a conclusão, omitindo-se as premissas de que ela emerge, cfr., de novo, Alberto dos Reis, ob. cit., págs. 172 e 173.
Por isso, o princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito contra o arbítrio do poder judiciário, veja-se o ensinamento do Prof. Pessoa Vaz, in “Direito Processual Civil – Do Antigo ao Novo Código”, pág. 211, Coimbra 1998.
Acrescendo que, a fundamentação da sentença revela-se indispensável em caso de recurso, pois na reapreciação da causa, a Relação tem de saber em que se fundou a decisão recorrida, cfr. refere Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, pág. 704.
A falta de inobservância deste dever de fundamentação será a nulidade da sentença ou do despacho que não especifiquem os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – cfr. resulta do disposto nos art.s 668º, nº 1, al. b) e 666º, nº 3 do CPC.
Nos termos daquele art. 668º, nº 1, al. b), a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Como refere Teixeira de Sousa, “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artº 205, nº 1, CRP; artº 158, nº1, do CPC)”.
E acrescenta o mesmo autor: “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”, in “Estudos sobre o Processo Civil”, pág. 221.
Ou, como refere Lebre de Freitas, in “CPC Anotado”, pág. 669 “há nulidade quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”.
No mesmo sentido diz o Conselheiro Rodrigues Bastos, que “a falta de motivação a que alude a alínea b) do nº 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença” in "Notas ao Código de Processo Civil", Vol. III, pág. 194.
E como adverte o Prof. Alberto dos Reis in "Código de Processo Civil Anotado", Vol. V, pág. 140, “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do n.º 2.° do art. 668.°”.
Deste modo, face à doutrina exposta, se conclui que a nulidade da sentença não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final.

Face ao exposto, analisada a decisão recorrida, com o devido respeito por diversa opinião, não enferma de ausência de motivação, não assistindo razão à recorrente ao defender que sim.
Efectivamente, verifica-se que no despacho proferido sobre a matéria de facto controvertida, foram enumerados os factos provados e os não provados, bem como fundamentada a respectiva decisão. Esta não se limitou a indicar os meios de prova que considerou, tendo também analisado estes criticamente e especificado os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, como se refere no nº 2, do art. 653º, do CPC, cfr. se verifica da decisão de fls. 769 e ss., não assistindo razão à apelante na opinião expressa na conclusão E.
Posteriormente, ao ser proferida a sentença, nela fez-se constar a matéria de facto que foi dada como provada naquele despacho. E, como na sentença foram apenas considerados os factos constantes do referido despacho, não tinha que ser repetido o exame crítico das provas, já efectuado, no momento em que a decisão sobre a matéria de facto foi proferida.
Não sendo, por isso, verdadeiro o referido na conclusão G.
Resulta da análise daquele despacho que o Juiz “a quo” não se limitou a fazer uma indicação seca e genérica dos meios probatórios produzidos, que o conduziram àquele resultado. Em obediência àquele dispositivo enunciou os fundamentos que na sua convicção foram decisivos e mereceram credibilidade para concluir do modo positivo que concluiu, bem como para dar por não provada a factualidade que assim considerou. Fez, de forma cabal e esclarecedora, menção aos depoimentos de todas as testemunhas ouvidas em audiência, enunciando, caso a caso, as razões da credibilidade dos depoimentos ou da falta dela, referindo a pertinência ou não dos documentos juntos ao processo.
Nenhuma censura merece, por conseguinte, a motivação da decisão de facto, não existindo qualquer violação do dispositivo legal referido a este propósito.
Ademais, a recorrente, apesar de arguir a falta de fundamentação da decisão não pede sequer que seja dado cumprimento ao disposto no art. 712º, nº 5, do CPC.
Acrescendo, por fim, que a exigência do exame crítico das provas, prevista na parte final do art. 659º, nº 3, do CPC, é diversa daquela que deve ter lugar, aquando da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do nº 3, do citado art. 653º.
“Na anterior decisão sobre a matéria de facto (do tribunal colectivo ou do tribunal singular que presidiu à audiência final), foram dados como provados os factos cuja verificação estava sujeita à livre apreciação do julgador (…). Agora, na sentença, o juiz deve considerar, além desses, os factos cuja prova resulte da lei, isto é, da assunção dum meio de prova com força probatória pleníssima, plena ou bastante (…), independentemente de terem sido ou não dados como assentes na fase de condensação (…)”, cfr. J. Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, pág. 643.
No mesmo sentido, o Ac. do STJ, de 10.5.2005, in www.dgsi.pt., refere que “as provas de que fala o art. 659º, nº 3, cujo exame crítico deve ser feito na sentença, não são as mesmas provas de que fala o art. 653º do CPC quando decide a matéria de facto onde o julgador aprecia as provas de livre apreciação; quando fundamenta a sentença, o juiz deve examinar as provas de que lhe cabe conhecer nesse momento, e que são as provas por presunção, as provas legais ainda não utilizadas (como as resultantes de documento autêntico, por exemplo, junto posteriormente à elaboração da base instrutória), os factos admitidos por acordo na audiência de julgamento e os ónus probatórios”.
A sentença recorrida fundamentou a decisão de facto e de direito, pois, descreveu os factos dados como assentes, fez a subsunção jurídica destes ao direito aplicável, relativamente às diversas questões que foram suscitadas. Não fez o exame crítico da prova, porque não tinha que o fazer, dado que as provas eram todas de livre apreciação e, no âmbito do art. 659º, nº 3, aquele exame não abrange estas.
Limitando-se a sentença a discriminar os factos provados, uma vez que não existiam meios de prova de valor legalmente fixado, nem presunções legais, nem documentos autênticos posteriores, etc., não tinha que se repetir o exame crítico que já havia sido feito, na decisão sobre a matéria de facto, nos termos do art. 653º, nº 2, referido.
Para além de especificar os fundamentos de facto, a sentença também especifica os fundamentos de direito que justificaram a decisão.
E, conforme deixámos exposto e é jurisprudência unânime só a falta total de fundamento integra a nulidade prevista na alínea b) do nº1, do art. 668º, referido.
O que não ocorre, seguramente, no caso em apreço.
A sentença mostra-se devidamente fundamentada de facto e tem motivação jurídica, indicando as normas legais em que se baseia, nomeadamente, para o enquadramento da alegada violação por parte da ré dos deveres que lhe eram impostos enquanto foi gerente da autora, art.s 62º e 74º, do CSC, que a A. não logrou provar, razão porque se decidiu ser improcedente a acção, no nosso entender, correctamente.
Em suma, a decisão recorrida não violou o disposto nos art.s 158º, 653º, nº 2 e 659º, nºs 2 e 3, nem é nula por verificação de qualquer das causas enunciadas nas diversas alíneas do art. 668º, todos do CPC, únicas causas de nulidade da sentença.

Improcedem, assim, as conclusões C a G, da apelação.

Erro na apreciação e, eventual, alteração da matéria de facto assente
A Autora apelante, nos termos que refere nas conclusões H a U, vem insurgir-se contra a decisão da matéria de facto, alegadamente, por não poder conformar-se com o entendimento dos factos por parte do Mº Tribunal “a quo”.
A apelada veio pugnar pela rejeição do recurso quanto à matéria de facto, invocando as disposições conjugadas dos art.s. 712º nº 1, al. a) in fine e nº 2 e 685º-B nº 1, al. a) e b), donde resulta que o recorrente deve individualizar os concretos meios de prova que impunham decisão diversa da recorrida. Não se tratando de apreciar meras subjectividades na valoração da prova, ou de sindicar se os depoimentos poderiam ser valorados de forma diferente, nesta ou naquela passagem.
Que dizer?
Desde já, que não temos dúvidas que assiste razão à apelada.
A apelante, pese embora, o que refere na conclusão H, sobre o que a ela incumbe nos termos do art. 685º-B, do CPC e, a afirmação de que o faz, o certo é que, da análise da sua alegação e conclusões, se verifica que isso não aconteceu.
A apreciação que a mesma faz, pretendendo, imputar errada apreciação das provas pelo Tribunal “a quo”, não é de modo a que possam considerar-se cumpridos aqueles ónus que sobre a mesma impedem, atento o disposto naquele art.685º-B.
Explicando.
A possibilidade de alteração da matéria de facto pela Relação está prevista no art. 712º, nº 1 do CPC, o qual dispõe que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo havido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 685º-B, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente, que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Estatui o nº2 do mesmo artigo que, no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
O art. 685º-B do CPC, por sua vez, impõe certos ónus ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto que, não sendo cumpridos, terão como consequência a imediata rejeição do recurso.
Assim, dispõe esta norma que o impugnante deve:
Especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 1 do art. 685º-B);
Especificar os concretos meios de prova constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida, sendo que, no caso das provas que tenham sido gravadas, se exige a identificação precisa e separada nos termos do art. 522º-C, nº 2 e ainda a indicação das concretas passagens em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de proceder à respectiva transcrição (al b) do nº 1 e nº 2 do mesmo preceito).

Como refere Lopes do Rego, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, pág. 465, o ónus imposto ao recorrente que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto traduz-se deste modo:
a) Na necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito de recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento – o “ponto” ou “pontos” da matéria de facto – da decisão proferida que considera viciada por erro de julgamento;
b) No ónus de fundamentar, em termos concludentes, as razões porque discorda do decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios (constantes de auto ou documento incorporado no processo ou de registo ou gravação nele realizada) que implicavam decisão diversa da tomada pelo tribunal, quanto aos pontos da matéria de facto.

Vejamos, então, se na impugnação da decisão de facto pretendida pela apelante, que se insere na previsão da alínea a) do nº 1 do art. 712º, foram cumpridos todos os referidos ónus.
E, analisando quer as alegações quer as suas conclusões, verifica-se que isso não aconteceu, como defende a apelada.
Desde logo, a impugnante apenas no “corpo” das alegações de recurso, faz alusão a alguns dos “pontos” de facto que, julgamos, entende terem sido incorrectamente julgados. Omitindo, nas conclusões, completamente, quais os pontos da matéria de facto objecto da impugnação.
Limita-se a alegar que os depoimentos das testemunhas e documentos que não concretiza, apenas alude na generalidade, são demonstrativos do que deixa exposto ser o seu entendimento, referindo não entender como foi dado por não provado o que alega, sem concretizar a que quesito se refere.
Sem dúvida, uma apreciação meramente subjectiva, sem qualquer cumprimento da formalidade que lhe era imposta.
É, evidente, nas conclusões da apelação, a falta de cumprimento do ónus de identificar os pontos de facto incorrectamente julgados, omitindo completamente quais os factos que considera incorrectamente julgados e, nada dizendo sobre os termos em que deverá a decisão ser alterada, o que impede que este tribunal alcance qual a delimitação do objecto do recurso.
De igual modo, quanto à especificação dos meios de prova que impunham decisão diversa daquela que foi proferida, entendemos que este ónus não foi minimamente cumprido.
Efectivamente, nas suas alegações, a impugnante limita-se a referir que atendendo aos depoimentos das testemunhas e aos segmentos dos depoimentos das testemunhas que identifica, não entende como foram dados por não provados os factos que não concretiza, com a indicação dos quesitos a que respeitam. Tudo, sem que proceda à identificação de qualquer passagem dos depoimentos de qualquer das testemunhas, por referência às gravações, que impunham decisão diversa daquela que, não entende, foi proferida. E, sem que nas conclusões proceda a qualquer dessas referências.
Não estabelece qualquer relação concreta entre o que pelas testemunhas foi dito e o que foi, alegadamente, desvalorizado. Omite totalmente a identificação da documentação junta aos autos que, em seu entender, não foi devidamente considerada, refere-se, apenas, a “currículos dos três sócios, quantidade de emails, facturas emitidas”.
Acrescendo que, além do incorrecto cumprimento dos referidos ónus no “corpo” das alegações, também nas respectivas conclusões, que delimitam o objecto do processo, não se especificam os concretos pontos da matéria de facto que a recorrente considera incorrectamente julgados, nem os concretos meios de prova que fundamentam a impugnação, sendo certo que, em bom rigor, delas não se pode extrair que a recorrente pretende impugnar qualquer matéria de facto.
Determinando o art. 685º-B do CPC que, sob pena de rejeição, o recorrente que impugne aquela matéria deverá especificar os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que levam a decisão diversa da recorrida, temos de concluir que a referida especificação deverá obrigatoriamente constar das conclusões do recurso.
Isto, porque, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, não significa um julgamento “ex novo” e global dessa matéria, mas sim a possibilidade do tribunal de 2ª instância fiscalizar os erros concretos do julgamento já realizado.
Dupla jurisdição não quer dizer forçosamente repetição.
É o que o legislador pretendeu assinalar no preâmbulo do DL 35/95 de 15.02 (...), quando aí consignou, que o duplo grau de jurisdição visava “apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.”.
Ora, o exercício desta faculdade fiscalizadora sobre pontos concretos da decisão da matéria de facto só é possível com a rigorosa delimitação desses pontos nas conclusões do recurso, bem como dos meios de prova que lhes respeitam, garantindo também o cabal exercício do contraditório por parte do recorrido.
No mesmo sentido, Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil Novo Regime”, 3.ª edição revista e actualizada, pág. 159, entende que deve rejeitar-se o recurso na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto quando faltem, nas conclusões, a especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados e a especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.).
“As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2ª instância”, decorrendo do princípio da auto responsabilidade das partes e visando evitar que a impugnação da matéria de facto “se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.”, cfr. refere o mesmo autor, Abrantes Geraldes, na mesma obra e página citadas.

No caso em apreço, insurge-se a recorrente contra a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” em relação à matéria de facto, alegando e concluindo que “considera pontos incorrectamente julgados”.
Desse modo e atento aquele comando do art. 685º-B do CPC e os ónus que por via do mesmo são impostos aos recorrentes que pretendam impugnar a matéria de facto, conclui-se que, a recorrente não cumpriu, de modo algum, os ónus impostos pelos nºs 1 e 2 daquele artigo, sendo-lhe imposto por lei, expressamente, que especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e procedendo às transcrições das “exactas” “passagens da gravação em que se funda” para basear o alegado erro de julgamento com referência a provas que tenham sido gravadas, tendo, no caso, sido gravados os actos da audiência. Donde, não indicando a recorrente quais aqueles concretos pontos e, indistintamente, em sede de alegações de recurso, remetido para os depoimentos globais e segmentos das testemunhas ouvidas em audiência, que indica, o que obrigatoriamente deveria ter feito, a lei sanciona esse incumprimento, dos indicados ónus, com a imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto.
Anote-se, ainda, que as omissões apontadas não podem ser supridas através de convite ao aperfeiçoamento, porquanto, ao contrário do que se prevê no nº 3 do art. 685º-A do CPC, o recurso que tem por objecto a impugnação da matéria de facto, não comporta tal faculdade.
Como escreve F. Amâncio Ferreira in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9ª edição, pág. 181, nota 357 e, no mesmo sentido, Lopes do Rego, obra citada, pág. 466, nota III, J. Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 3.º, pág. 53 e Ac.RP de 14.6.2012 in www.dgsi.pt., compreende-se a rejeição imediata do recurso na situação, no caso de incumprimento dos ónus do art. 685º-B nºs 1 e 2, por os ónus impostos ao recorrente visarem o corpo das alegações, insusceptível, no nosso ordenamento processual, de ser aperfeiçoado por via de convite.
Também o Tribunal Constitucional, entre outros no Acórdão 140/2004 de 10 de Março (publicado no DR II Série de 17.04.2004), não julgou inconstitucional a norma paralela do art. 412º nº 3 al. b) e 4 do CPP, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade para suprir tais deficiências.

Em suma, no caso, é manifesta a inobservância do estatuído no citado art. 685º-B nº 1, als a) e b), a recorrente não identificou, nas conclusões das suas alegações, nem de modo adequado nas próprias alegações, “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, não especificou quais os quesitos respeitantes à matéria de facto alegada que continham os factos que, na sua perspectiva, foram mal julgados e não cumpriu o ónus de indicar os concretos meios probatórios em que se fundamenta e que, na sua perspectiva, impunham decisão diversa da recorrida. Pois, pese embora, nas alegações indique o nome das testemunhas, cujo depoimento, supomos, no seu entender, levariam a decisão diversa da ora recorrida, tendo aqueles depoimentos sido gravados, não indica, com exactidão, as passagens da gravação em que funda a sua divergência.
A apelante limita-se a considerar que os depoimentos das testemunhas e a documentação não foram apreciados correctamente, mas não indica, como se disse, nem nas conclusões, nem de modo adequado nas próprias alegações de recurso, os concretos quesitos relativos à matéria de facto controvertida com os quais está em desacordo, nem as passagens dos depoimentos das testemunhas donde possa resultar uma conclusão diferente daquela a que chegou o tribunal da 1ª Instância.
Não tendo sido observada a mencionada exigência legal, fica-se sem saber, em concreto, tendo em consideração a matéria alegada e constante dos quesitos da Base Instrutória, aquela que a apelante considera que impunha decisão diversa.
Acresce, que quanto aos documentos que a apelante alega não terem sido devidamente apreciados, não concordamos com essa alegação, da análise que se fez dos documentos juntos aos autos, não se vislumbra que tenha havido qualquer desconsideração dos mesmos pelo Tribunal “a quo”, mas sim uma devida e correcta análise, pelo que, também, não se verifica qualquer erro de julgamento na sua apreciação.

Face ao exposto, é evidente a deficiência, nas alegações e conclusões do presente recurso, no que diz respeito ao cumprimento do disposto no art. 685º-B, nº1, a) e b) e nº2 do CPC, sobre as quais, como referem os autores supra citados, não existe despacho de aperfeiçoamento.
Assim, atenta a inobservância do disposto naquele art. 685º-B, rejeita-se o recurso quanto à decisão da matéria de facto.

Por último, é imperioso referirmos, que não é compreensível, de todo, o lamento da apelante expresso na conclusão T da sua alegação, quando da análise dos autos se verifica, que foi proferido o douto despacho de fls. 741, que não mereceu impugnação e que da acta de audiência do dia 30.1.2013 consta que a A. prescindiu do depoimento da testemunha AH…, o que lhe imputa a causa do seu lamento.
Finalmente, nada mais se nos oferece dizer, quanto ao referido pela apelante na conclusão U, face ao que supra deixámos exposto, aquando da apreciação da questão de falta de fundamentação da decisão recorrida.

Improcedem, assim, as conclusões H a U do recurso.

Revogação da decisão recorrida e, eventual, condenação da Ré
Vejamos, agora, se deverá ser dada sem efeito a sentença recorrida e ser a ré condenada a ressarcir os danos a que, alegadamente, deu causa por violação dos deveres que lhe eram impostos pelo art. 64º do CSC, como defende a apelante.
Insurge-se a mesma contra a decisão recorrida que julgou improcedente a pretensão deduzida com vista a ver declarada a responsabilidade da ré, enquanto gerente da autora e improcedente a condenação, a seu favor, em indemnização com vista a minorar os prejuízos que alega ter sofrido, consequência de alegada violação de deveres impostos à ré, enquanto gerente e, ainda, o facto de estar a exercer, no momento, actividade concorrente.
Assistir-lhe-á razão?
Adiantamos, desde já, que cremos que não.
Analisando.
Dispõe o art. 64º do CSC, sob a epígrafe (Deveres fundamentais):
“1. Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:
a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado;
b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.
Prescreve o art. 72º do mesmo diploma, sob a epígrafe (Responsabilidade de membros da administração para com a sociedade):
“1. Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.
2. A responsabilidade é excluída se alguma das pessoas referidas no número anterior provar que actuou em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial.
(…)”
Conclui-se do que decorre do art. 64º que os gerentes ou administradores, no exercício da sua actividade, devem actuar vinculados a deveres de lealdade e de cuidado.
Quando assim não aconteça, resulta do art. 72º que os gerentes respondem civilmente para com a sociedade relativamente a danos causados a esta por factos próprios e violadores de deveres legais e/ou contratuais, a menos que demonstrem ter agido sem culpa.
Sendo sabido, que a responsabilidade civil dos administradores para com a sociedade, relativamente a danos causados a esta por actos ou omissões praticados por aqueles, prevista no referido art. 72º, nºs 1 e 2, constitui uma situação de responsabilidade obrigacional.
E, que são requisitos da responsabilidade obrigacional estabelecida naquele normativo: a) a prática de danos ilícitos; b) a inobservância de deveres específicos; c) a presunção de culpa.
Temos, assim, que aquele primeiro requisito se fundamenta na prática de actos ou omissões praticados pelos gerentes, sendo ainda necessário como decorre da expressão “danos a esta causados”, contida naquela norma, a verificação dos pressupostos comuns da responsabilidade civil, seja, o dano e nexo de causalidade.
Por sua vez o requisito da ilicitude resulta da expressão “com preterição dos deveres legais e contratuais” e, quanto à culpa, institui aquela uma presunção de culpa dos gerentes que tenham incorrido naquele ilícito e do qual tenham resultado para a sociedade os danos ali expressos.

Conforme ensina Menezes Cordeiro, in “Código das Sociedades Comerciais”, 2009, pág. 266, “A presunção de culpa envolve a de ilicitude: trata-se de uma implicação lógica irrefutável, a menos que se abdique do conceito ético-normativo de culpa, hoje dominante. A presunção de ilicitude não dispensa o interessado de provar o não-cumprimento do dever em causa, base do desenvolvimento subsequente; perante tal não-cumprimento, presumem-se a ilicitude e a culpa, nos termos próprios da responsabilidade obrigacional.”.
Das normas enunciadas, resulta que a diligência é o critério fundamental e básico que deve nortear a actuação de todos os gerentes de uma sociedade. O que implica que a elaboração do juízo abstracto a fazer sobre a sua actuação tenha de ser mais exigente do que aquele que adviria da mera aplicação do padrão do bonus pater famílias, (art. 487, nº2, do CC), neste sentido Menezes Cordeiro, obra cit, pág 267.
Como refere Raul Ventura, in “Sociedades por Quotas”, III, pág. 149 a diligência do gerente não é apreciada como a culpa em concreto, em função do comportamento normal do próprio gerente. Há um padrão objectivo, que não é o do simples bom pai de família mas sim o de um gestor dotado de certas qualidades.

Em suma, o gerente responde para com a sociedade pelos danos que a esta advenham em consequência dos actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo provando que procedeu sem culpa, tal como sucede no artigo 799º, nº 1 do Código Civil, no domínio da responsabilidade obrigacional.

Tendo em atenção o exposto, atento o que se apurou, no caso, será que a ré violou algum dever de conduta, designadamente, de cuidado e lealdade como defende a autora, imputáveis aos gerentes, de modo a responsabilizá-la perante a autora?
Para responder a esta questão, há que ter em atenção, como resulta do que deixámos exposto e, bem foi entendido pelo Tribunal “a quo”, que incumbe à A., enquanto sociedade que procura responsabilizar o gerente ou administrador, alegar e provar a factualidade em que fundamenta a gestão alegadamente não diligente, não criteriosa ou desleal. Pois que, se trata de matéria constitutiva do direito do credor, que carece de ser por ele alegada e provada, nos termos do art. 342º, nº 1 do CC.

A decisão recorrida considerou que a autora não logrou fazer essa prova, da violação pela ré dos deveres em causa e, consequentemente, deu por não verificados os requisitos necessários à responsabilização da ré, quer enquanto gerente da autora, quer no momento, conforme, consta do trecho da douta decisão que se transcreve:
No caso concreto a autora alegou exaustivamente um vasto conjunto de factos que entende traduzirem a violação dos deveres que indica por parte da ré bem como, também, uma alegada situação de concorrência desleal.
Porém, nenhum desses factos, cuja prova lhe competia fazer, ficou provado, sendo para o efeito irrelevante a ré encontrar-se agora a trabalhar com a Q… e com o Z…, exercendo actividade que se encontra abrangida pelo objecto da Autora.
Com efeito, já não sendo a ré gerente da autora, sem mais e por si só, tal factualismo não consubstancia qualquer violação do dever de lealdade nem nenhuma situação de concorrência desleal
Assim, não provado o necessário facto ilícito, nada lhe pode ser exigido à com base na alegada responsabilidade civil contratual e subjectiva.
De qualquer forma, ainda que a autora tivesse provado o necessário facto ilícito, faltaria provar o necessário dano, dano esse que também lhe caberia provar e que não provou.
É que o dano apresenta-se como condição essencial da responsabilidade. Não havendo, pois, responsabilidade civil sem dano (Ac. STJ, de 12.03.2003, relatado pelo Conselheiro Serra Baptista, in www.dgsi.pt/jstj).
Diga-se, também, não ter ficado provado que a ré não forneceu à autora as informações que lhe foram pedidas nem lhe entregou os elementos que lhe forma solicitados, o que inviabiliza os demais pedidos formulados.”.

A autora discorda do decidido e defende, vejam-se conclusões X, Y e Z da sua alegação, que está provada a violação dos deveres impostos no art. 64º, do CSC.
No entanto, como já resulta do que deixámos exposto, não concordamos que assim seja, a autora não logrou provar os factos que lhe incumbia provar, necessários à procedência da sua pretensão.
O quadro factual dado por assente pelo Tribunal “a quo”, já que só esse interessa aqui considerar, devido à rejeição do recurso no que concerne à impugnação da decisão de facto, não contém qualquer facto que traduza a violação de deveres da ré, enquanto gerente da autora e, relativamente ao facto assente sob o nº 12, como bem refere a decisão recorrida, já não sendo a ré gerente da sociedade, o mesmo é totalmente inócuo, não configurando qualquer situação de falta de lealdade da ré para com a A., pois que a conclusão expressa em Z não se encontra demonstrada.
E, assim sendo, como bem se refere na decisão recorrida o facto da ré, que já não é gerente da autora, se encontrar, agora, a trabalhar com a Q… e com o Z…, exercendo actividade que se encontra abrangida pelo objecto da Autora, não consubstancia qualquer violação do dever de lealdade nem nenhuma situação de concorrência desleal.
Não se oferecem dúvidas que os factos apurados não configuram uma violação ilícita e culposa, culpa que aliás se presume, dos deveres de gerente, nomeadamente dos deveres de lealdade, fidelidade e diligência e do dever de defesa dos interesses da sociedade autora, consagrados nos art.s 2º e 64º do CSC e 987º do CC. Não resultando, também, dos referidos factos que tenha violado a obrigação de não concorrência que sobre ela impendia, nos termos do art. 254º do CSC.
Assim, a resposta àquela pergunta, formulada supra, não poderá deixar de ser negativa.
A ré não violou qualquer dever de conduta, designadamente, de cuidado e lealdade, imputáveis aos gerentes, de modo a responsabilizá-la perante a autora.

Improcedem, pois, as conclusões V a AA e, totalmente a apelação.
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Sumário:
I - Os gerentes de uma sociedade têm para com esta deveres de lealdade, fidelidade, diligência e de defesa dos interesses desta sendo que a violação ilícita e culposa dos mesmos o coloca na obrigação de indemnizar os prejuízos causados, tudo como decorre e resulta dos art.s 64º e 72º do Código das Sociedades Comerciais.
II - Tal responsabilidade, prevista naquele art. 72º, nº 1, é uma responsabilidade contratual e subjectiva, que pressupõe a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil: facto, ilícito, culpa, dano (danos emergentes e lucros cessantes) e nexo de causalidade.
III - O facto de se provar que a ré, quando já não é gerente da sociedade/autora, se encontra, a trabalhar com outra sociedade, exercendo actividade que se encontra abrangida pelo objecto da autora, não consubstancia qualquer violação do dever de lealdade nem nenhuma situação de concorrência desleal, que sobre ela impendia acautelar, nos termos do art. 254º do CSC.
IV – Só quando o tribunal, julga procedente ou improcedente um pedido e não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, ausência absoluta de fundamentação, é que viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais, atento o disposto no art. 205º, nº 1, da CRP e art. 158º, nº1, do CPC.
V - A exigência do exame crítico das provas, prevista na parte final do art. 659º, nº 3, é diversa daquela que deve ter lugar, aquando da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do nº 2, do art. 653º, ambos do CPC.
VI - A inobservância do disposto no art. 685º-B, do Código de Processo Civil, determina a rejeição do recurso quanto à decisão da matéria de facto.
VII - A recorrente não cumpre os ónus impostos por aquele dispositivo, se não indicar, nas conclusões das alegações, os concretos pontos da matéria de facto (com referência aos pontos controvertidos dos factos alegados) que considera incorrectamente julgados, nem as passagens dos depoimentos gravados que permitam discordar da decisão proferida pelo tribunal recorrido.
VIII - A deficiência, nas alegações de recurso, no que diz respeito ao cumprimento do disposto no art. 685º-B, nº1, a) e b) e nº2, não é susceptível de despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que se prevê no nº 3 do art. 685º-A, ambos do Código de Processo Civil, para o recurso que versa sobre matéria de direito.
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III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção em julgar improcedente a apelação e manter, na íntegra, a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Porto, 24 de Março de 2014
Rita Romeira
Manuel Domingos Fernandes
Caimoto Jácome