Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2789/09.2YYPRT.P1
Nº Convencional: JTRP00043012
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DENÚNCIA
OBRIGAÇÃO
PAGAMENTO DE RENDAS
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
TÍTULO EXECUTIVO
ARRENDATÁRIO
FIADOR
Nº do Documento: RP200910062789/09.2YYPRT.P1
Data do Acordão: 10/06/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 324 - FLS. 176.
Área Temática: .
Sumário: I- A obrigação de remunerar o senhorio, apesar da extinção do contrato de arrendamento por denúncia do arrendatário, decorrente da declaração de denúncia, configura simplesmente, no tocante à obrigação de pagamento da renda, um caso de ultractividade do vínculo contratual. A obrigação de pagamento da renda, no caso figurado, é decerto uma obrigação post pactum finitum, mas é ainda a obrigação de remuneração, embora referida, já não ao gozo efectivo da coisa, mas à mera susceptibilidade desse gozo, a que o arrendatário renunciou voluntariamente, e não, ainda que imperfeitamente, uma obrigação de indemnização.
II- O contrato de arrendamento, acompanhado da comunicação ao arrendatário do valor da renda em dívida é extrinsecamente exequível contra o arrendatário e contra os fiadores, no tocante à obrigação de pagamento da renda correspondente ao período de antecedência da comunicação de denúncia, pelo arrendatário, daquele contrato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2789/09.2
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório.
B…………….. propôs no …º Juízo de Execução, …ª secção, do Porto, acção executiva para pagamento de quantia certa, contra C……….. Lda., D………….., E…………., F…………. e G………….., para destes haver a quantias de € 1 500.00, relativa a metade da renda do mês de Setembro de 2008, € 10 500.00, referente à indemnização a que alude o nº 3 do artº 1098 do Código Civil, € 64.86, respeitante às despesas de condomínio, e de € 1 950.00, concernente ao custo da pintura do local arrendado e da lavagem da alcatifa.
Fundamentou a sua pretensão executiva no facto de, no dia 1 de Outubro de 1997, ter dado de arrendamento à primeira executada, de que os demais se constituíram fiadores, pela renda mensal de € 3 000.00 uma fracção autónoma de edifício, denunciado, no dia 14 de Setembro, por aquela, com efeitos a partir de 1 de Outubro de 2008, sem ter assegurado o prazo de aviso prévio de 120 dias, pelo que está obrigada ao pagamento respeitante ao período de pré-aviso em falta, no valor de € 10 500.00, e de a primeira executada haver pago apenas metade do valor da renda do mês de Setembro de 2008, não tendo liquidado, conforme estava obrigada, as despesas ordinárias de condomínio, no valor de € 64.86, tendo alterado a pintura do local arrendado e deixado a alcatifa danificada, pelo que teve de despender, na pintura e na lavagem da alcatifa, a quantia de € 1 950.00.
O Sra. Juíza de Direito, ponderando, porém, que a recorrente não dispõe de título quanto aos fiadores, nem contra a arrendatária no tocante à indemnização da falta de observância do prazo de pré-aviso e relativamente as despesas de condomínio e ao dispêndio com a pintura do local arrendado, indeferiu, liminarmente e in totum, o requerimento executivo.
A exequente apelou, tendo condensado a sua alegação nas conclusões seguintes:
1ª - O contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da notificação efectuada ao arrendatário do montante em dívida é título executivo quer em relação ao arrendatário, como em relação aos fiadores.
2ª - No caso em apreço, essa comunicação foi efectuada, tanto à sociedade arrendatária (mediante notificação judicial avulsa) como aos fiadores (mediante carta registada com aviso de recepção).
3ª - Os fiadores renunciaram expressamente ao benefício da excussão prévia, constituindo-se, assim, garantes e principais pagadores de todas as obrigações decorrentes desse mesmo contrato.
4ª - A referência da norma ao "comprovativo da comunicação ao arrendatário" não tem em vista limitar ao arrendatário o carácter executório do contrato de arrendamento e de excluir o fiador, quando exista, mas tão só a de tornar obrigatória a comunicação prévia ao arrendatário do valor das rendas em dívida.
5ª - A sociedade arrendatária não observou o prazo de denúncia a que alude o n.° 2 do artigo 1098° do C.C.
6ª - O contrato de arrendamento cessou no dia 30 de Setembro de 2008, porém, nos termos do disposto pelo n.° 3 do artigo 1098° do C.C., sempre há lugar ao pagamento das rendas correspondentes ao período do pré-aviso em falta, ou seja, in casu, 105 dias.
7ª - Como se verifica pela simples análise das normas em causa, e socorrendo-nos dos elementos literal e sistemático da interpretação jurídica, o legislador teve o cuidado de utilizar a definição «pagamento das rendas» e não uma definição, por exemplo, «indemnização pelo valor do montante das rendas correspondente ao período do aviso prévio em falta».
8ª - Sendo que, igualmente no que diz respeito a estas, as mesmas encontram-se devidamente peticionadas na comunicação efectuada tanto à sociedade arrendatária como aos fiadores.
9ª - Pelo que dúvidas não podem restar de que, quanto a estas rendas, a Exequente tem título executivo quer contra a sociedade arrendatária, quer contra os fiadores (pelo motivos supra expostos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos).
10ª - Sem prescindir, a ora Recorrente sempre teria título executivo bastante contra os Requeridos no que respeita às peticionadas rendas respeitantes ao período de pré-aviso em falta, nos termos da alínea c) do n.° 1 do artigo 46° do C.P.C., pois estão juntos à execução o contrato de arrendamento onde consta o valor das rendas e a carta de denúncia subscrita pela sociedade arrendatária.
2. Factos a considerar.
Embora a decisão recorrida não os especifique, são os seguintes os factos que, face à prova documental produzida, se devem ter por provados:
2.1. B…………, por um lado, e C…………… Lda., por outro, declararam, por escrito, no dia 1 de Outubro de 1997, a primeira dar de arrendamento à segunda, para a instalação dos escritórios desta, por cinco anos, com início em 1 de Outubro de 2007 e termo em 30 de Setembro de 2012, pela renda anual de € 36.000.00, a pagar em duodécimos de € 3 000.00, a fracção autónoma designada pela letra B, correspondente a uma loja a nível do rés-do-chão, com entrada pelo nº 115, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na …………, Foz do Douro, Porto.
2.2. D………….., E…………, F………….., e G………… declararam, no instrumento mencionado em 2.1. constituírem-se fiadores, garantes e principais pagadores de todas as obrigações assumidas por C…………. Lda., perante B………… durante a vigência do contrato, quer no seu período inicial, quer nas eventuais prorrogações, até a um limite de cinco renovações, com expressa renúncia por parte de todos eles ao benefício da excussão prévia.
2.3. C………….. Lda. comunicou à exequente, por carta datada de 14 de Setembro de 2008, deixaria o espaço liberto no dia 1 de Outubro de 2008 e que apenas faltava liquidar 50% da renda do mês de Setembro de 2008, que seria liquidada oportunamente.
2.4. A exequente comunicou aos executados, por cartas registadas com aviso de recepção, que fruto da cessação do contrato mencionado em 1. se encontravam em dívida as quantias de € 1 500.00, relativa a metade da renda do mês de Setembro de 2008, € 10 500.00, referente à indemnização a que alude o nº 3 do artº 1098 do Código Civil, € 64.86, respeitante às despesas de condomínio, e de € 1 950.00, concernente ao custo da pintura do local arrendado e da lavagem da alcatifa.
3. Fundamentos.
3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.
Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).
Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1].
No caso, a recorrente, pediu, na instância recorrida, também a realização coactiva das prestações pecuniárias relativas aos encargos ordinários do condomínio que a executada C…………… Lda. não satisfez e, bem assim, o reembolso das despesas que suportou com a pintura do local arrendado e com a limpeza da alcatifa. Porém, na sua alegação de recurso, a recorrente limitou a impugnação da decisão recorrida ao indeferimento in limine do requerimento executivo no tocante às prestações relativas à parte da renda do mês de Setembro de 2008 e às rendas correspondentes ao período de pré-aviso da denúncia do contrato de arrendamento que aquela executada não observou.
Portanto, a recorrente restringiu, expressa e objectivamente, o âmbito do recurso àquelas prestações, de maneira que a única questão que o acórdão deve resolver é a de saber se a decisão de indeferimento liminar do requerimento executivo no tocante a tais prestações deve, ou não ser revogada e substituída por outra que admita aquele requerimento e ordene, correspondentemente, o prosseguimento da execução.
A resolução deste problema importa a ponderação, ainda que breve, da natureza jurídica do título executivo e da obrigação nele incorporada, e dos pressupostos da sua exequibilidade, do prazo da denúncia, pelo arrendatário, do contrato de arrendamento urbano, do conteúdo da obrigação do fiador e, finalmente, da exequibilidade extrínseca do documento em que se contêm as declarações integrantes do contrato de arrendamento, quer no tocante ao arrendatário quer relativamente ao fiador.
3.2. Natureza jurídica do título executivo e da obrigação nele incorporada e pressupostos da sua exequibilidade.
A acção executiva, que visa a realização efectiva, por meios coercivos, do direito violado, tem por suporte um título que constitui a matriz ou limite quantitativo e qualitativo da prestação a que se reporta (artºs 2, 4 nº 3 e 45 nº 1 do CPC).
A exequibilidade extrínseca da pretensão é atribuída pela incorporação da pretensão no título executivo, i.e., num documento que formaliza, por disposição da lei, a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida (artº 45 nº 1 do CPC).
O título executivo cumpre, no processo executivo, uma função de legitimação: ele determina as pessoas com legitimidade processual para a acção executiva e, salvo oposição do executado, ou vício de conhecimento oficioso, é suficiente para iniciar e efectivar a execução.
O título executivo é o documento da qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade de realização da correspondente pretensão através de uma acção executiva. Este título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação[2].
O título executivo exerce, assim, uma função constitutiva – dado que atribui exequibilidade a uma pretensão, permitindo que a correspondente prestação seja realizada através de medidas coactivas impostas ao executado pelo tribunal – uma função probatória – o título executivo é um documento e a sua eficácia probatória é aquela que corresponde ao respectivo documento[3] - e uma função delimitadora: é por ele que se determinam o fim e os limites, subjectivos e objectivos, da acção executiva (artº 45 nº 1 do CPC)[4].
A acção executiva visa a realização coactiva de uma prestação ou de um seu equivalente pecuniário. A exequibilidade da pretensão, na qual se contém a faculdade de exigir a prestação, e, portanto, a possibilidade de realização coactiva desta prestação, deve resultar do título.
O título deve, portanto, incorporar o direito de execução, quer dizer o direito do credor de obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação. Quando a prestação devida consista no pagamento de certa quantia em dinheiro, o título deve, portanto, incorporar o direito a haver essa quantidade de espécies pecuniárias (artº 817 do Código Civil). Nestas condições não pode ser reconhecido valor executivo ao documento que não contenha, ao menos implicitamente, a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação e o correspondente dever de cumprimento. Para que possa ser usado como título executivo o documento deve incorporar o direito a uma prestação; quando isso não ocorre, nada há a prestar por um sujeito passivo e, por isso, nada há a executar.
Nos casos em que documento que serve de suporte ao accionamento executivo não incorpora a faculdade de exigir o cumprimento de uma prestação, o título correspondente é extrinsecamente inexequível.
A inexequibilidade extrínseca do título constitui idóneo fundamento de oposição à acção executiva para pagamento de quantia certa (artºs 814 a), 2ª parte, 815 do CPC). Se for considerado procedente, esse fundamento traduz-se na falta de um pressuposto processual da execução, que importa o indeferimento in limine do requerimento executivo, ou, ultrapassada a fase liminar, que conduz à absolvição do executado da instância executiva bem como à caducidade de todos os efeitos produzidos na execução (artºs 817 nº 4 e 820 nº 2 do CPC).
Na verdade, o objecto da acção executiva é necessariamente, e apenas, um direito a uma prestação, visto que só este direito impõe um dever de prestar e só este dever de prestar pode ser imposto coactivamente.
Nem sempre se justifica exigir a proposição de uma acção condenatória como meio de obter um título executivo. Se a obrigação se encontra titulada por um documento escrito, pode inferir-se, com elevado grau de probabilidade, a sua constituição. Numa tal eventualidade, justifica-se que se dispense a acção declarativa e se permita ao credor, utilizando esse documento como título executivo, que instaure directamente a acção executiva. É esta nitidamente a orientação do direito português que atribui, muitas vezes avulsamente, a um conjunto cada vez mais amplo de documentos, a qualidade de título executivo (artº 46 b) e c) do CPC).
Em regra, o título executivo é constituído por um único documento. Mas pode sê-lo por vários documentos que, no seu conjunto, demonstrem a existência de um dever de prestar (artº 50 do CPC). Diz-se, neste caso, que o título é múltiplo ou complexo.
Por último, importa reter que entre as características gerais do título executivo se conta uma particularmente relevante: a da tipicidade. As partes não podem atribuir força executiva a um documento ao qual a lei não concede eficácia de título executivo e também não podem retirar essa força a um documento que a lei qualifique como titulo. Portanto, os títulos executivos são, sem possibilidade de quaisquer excepções criadas ex-voluntate, aqueles que são indicados como tal na lei e, por isso, a enumeração legal está sujeita a uma regra de tipicidade[5].
São títulos executivos todos os indicados na lei - mas só os enumerados na lei.
Deste princípio da tipicidade - nullus titullus sine lege – decorre, naturalmente, a proibição do recurso à analogia para atribuir valor executivo a um documento que a lei não qualifica como título (artº 10 do Código Civil).
3.3. Prazo da denúncia do contrato de arrendamento urbano.
Os elementos essenciais do contrato de arrendamento urbano sãos os mesmo da locação em geral: a obrigação de proporcionar o gozo do prédio, o prazo e retribuição (artºs 1022 e 1023 do Código Civil).
Do contrato de arrendamento resulta para o senhorio a obrigação de proporcionar o gozo, embora temporário, da coisa ao inquilino e, para este, a de, pontualmente, pagar a retribuição – renda – convencionada (artºs 1031 b) e 1038 a) do Código Civil).
O contrato de arrendamento urbano pode, porém, extinguir-se por denúncia.
Apesar da notória flutuação que a terminologia jurídica regista nesta matéria, pode dizer-se que a denúncia consiste na declaração que, nos contratos de duração indeterminada, um dos contraentes comunica ao outro que deseja por termo ao contrato.
A possibilidade de denúncia constitui, naturalmente, uma medida de protecção dos contraentes em face de uma vinculação que, dada a duração do contrato poderia tornar-se intolerável.
A denúncia pode ser entendida num sentido técnico ou restrito – e, portanto, entendida unicamente como forma de cessação de relações contratuais estabelecidas por tempo indeterminado - ou num sentido mais amplo, compreendendo, por exemplo, a declaração negocial por via da qual um dos contraentes obsta à renovação automática do contrato – a oposição à renovação: o contrato apesar de ter sido celebrado por determinado prazo, não caduca no termo que lhe foi aposto, porque, em princípio, por efeito da lei, renova-se por novo período[6].
A denúncia, tal como a oposição à renovação, é uma declaração unilateral receptícia, que, no rigor dos princípios, deveria ser discricionária ou livre – ad nutum, imotivada. A verdade, todavia, é a existência de uma forte tendência para, em determinados contratos, a lei estabelecer a estabilidade da relação no interesse de um dos contraentes, limitando drasticamente a possibilidade de o outro contraente denunciar o contrato ou condicionando essa possibilidade à verificação de certos parâmetros.
Todavia, a oposição à renovação como a denúncia do contrato de arrendamento urbano, é, no tocante ao arrendatário, inteiramente desvinculada, mas deve respeitar prazos de antecedência, ou seja, tem de ser feita previamente em relação à data do termo do período de vigência do contrato ou termo pretendido. O arrendatário pode impedir a renovação automática do contrato ou denunciá-lo, mediante comunicação ao senhorio com uma antecedência não inferior a cento e vinte dias do termo do contrato (artº 1098 nºs 1 e 2 do Código Civil).
A antecedência exigida, seja para a oposição à renovação seja para a denúncia, serve, naturalmente, para que a parte, destinatária da declaração correspondente, se possa precaver para o facto de o vínculo contratual se extinguir em breve.
A inobservância da antecedência, não obsta à produção do efeito extintivo do contrato a que a denúncia ou a oposição à sua renovação se dirigem – mas não desvincula o arrendatário da obrigação de pagar a renda correspondente ao período de pré-aviso em falta (artº 1098 nº 3 do Código Civil).
3.4. Conteúdo da obrigação do fiador.
Apesar da revogação do artº 655 do Código Civil, que regulava a extinção da fiança do locatário, é indubitável que as obrigações que para o arrendatário emergem do contrato de arrendamento, maxime a obrigação de pagamento da renda, podem ser garantidas por fiança (artº 2 nº 1 da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, e 627 nº 1 do Código Civil)
O termo fiança pode ser usado em vários sentidos e pode, assim, designar um contrato, a obrigação dele emergente e a situação jurídica do fiador.
Como contrato, a fiança pode definir-se como o acordo pelo qual uma pessoa - o fiador – garante, face a outra – o credor – a satisfação do seu crédito sobre uma terceira pessoa – o devedor principal (artº 627 nº 1 do Código Civil). Partes no contrato são, portanto, apenas o fiador e o credor: pode, por isso, haver fiança sem o conhecimento ou mesmo contra a vontade do devedor (artº 628 nº 2 do Código Civil)[7].
A fiança segue a forma requerida para a obrigação garantida[8], devendo resultar das respectivas declarações de vontade a exacta identificação daquela, o seu valor[9], os sujeitos, etc. (artº 628 nº 1 do Código Civil).
Entre as características distintivas da obrigação do fiador avulta seguramente a da sua acessoriedade (artºs 627 nº 2, 628 nº 1, 628 nº 1, 631 nº 1 e 651 do Código Civil).
O conteúdo da obrigação do fiador tem o conteúdo da obrigação principal (artº 634 do Código Civil).
O fiador pode opor ao credor os meios de defesa do devedor e ainda os meios de que defesa que lhe são próprios. No perímetro dos meios de defesa específicos do fiador sobressai o benefício da excussão.
Pelo benefício da excussão, o fiador pode recusar o cumprimento da obrigação garantida enquanto o credor não tiver excutido os bens do devedor, sem obter a satisfação do seu crédito (artº 638 nº 1 do Código Civil e 828 do CPC).
O fiador pode, porém, renunciar a esse benefício, seja directamente, seja assumindo a obrigação de principal pagador (artº 640 do Código Civil).
De harmonia com o título que serve de suporte à execução, os executados D…………, E…………, F…………., e G……………, constituíram-se, por virtude das declarações de vontade que aquele constitutivamente documenta, no mesmo dever de prestar do devedor que afiançou, com a diferença resultante de serem devedores secundários e de a sua obrigação ser acessória relativamente à obrigação principal. Em princípio, ser-lhes-ia lícito, invocando o benefitium excussionis, recusar o cumprimento, enquanto o credor não tivesse excutido todos os bens do devedor. No entanto, aquele mesmo título documenta uma outra declaração de vontade daqueles executados, através da qual se despojaram, de forma definitiva, da faculdade, inerente ao benefitium, de recusar ao credor o cumprimento da sua obrigação enquanto este não excutir o património do devedor, ou seja, renunciaram ao benefício da excussão[10].
3.5. Exequibilidade versus inexequibilidade do contrato de arrendamento urbano.
A lei, através de uma previsão específica, atribui força executiva ao contrato de arrendamento, para a acção de pagamento de renda, quando acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em divida (artº 15 do NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro).
Trata-se, nitidamente, de um título complexo, dado que se reclama para que seja exequível, dois documentos: o que demonstra a celebração do contrato de arrendamento; o que comprova a comunicação ao arrendatário do valor das rendas em dívida[11].
Não é evidente a utilidade desta específica previsão da exequibilidade do contrato de arrendamento – rectior, do documento que corporiza as declaração de vontade em que se resolve – dado que, nos termos gerais, sempre constituiria título executivo, por importar a constituição de uma obrigação pecuniária exigível – a obrigação de pagamento da renda – cujo montante está determinado ou é determinável mediante simples cálculo aritmético (artº 46 nº 1 c) do CPC).
Nestas condições e perspectivado o problema a partir do concurso entre regra geral e regra especial, parece que a finalidade conspícua desta previsão específica de exequibilidade do contrato de arrendamento consiste, afinal, na restrição da amplitude da exequibilidade que, nos termos gerais, por aplicação das regras que reconhecem força executiva aos documentos negociais - natureza de que nitidamente partilha o contrato de arrendamento – lhe seria atribuída (artº 46 nº 1 c) do CPC).
Também não é clara a razão porque se exige, para que o contrato de arrendamento – rectius, o respectivo documento - seja exequível quanto à obrigação de pagamento da renda, a sua integração pelo documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do valor das rendas em dívida. Não é decerto para demonstrar a existência do dever de prestar, visto que este resulta do contrato, nem para tornar a obrigação exigível, dado que tratando-se obrigação de prazo certo, se vence com o simples decurso desse prazo (artº 805 nº 2 do Código Civil).
A razão da exigência dessa comunicação prende-se, parece, com necessidade de proceder a uma liquidação aritmética, prévia e extraprocessual, do valor das rendas em dívida de modo a tornar claro os valores que o exequente considera compreendidos na prestação devida, tendo em conta a tendencial perdurabilidade do contrato de arrendamento e o carácter periódico da obrigação de pagamento da renda[12].
Seja como for, um dos problemas que este título negocial levanta é o do exacto âmbito subjectivo da sua exequibilidade extrínseca, i.e., da determinação do círculo de pessoas de quem, com base nele, pode ser exigida, coactivamente, a obrigação que incorpora. Trata-se de saber se este título limita a sua eficácia executiva ao arrendatário ou, antes se essa eficácia se estende aos fiadores desse sujeito da relação jurídica de arrendamento.
O tribunal a quo é da opinião que a eficácia executiva deste título negocial se restringe ao arrendatário, não compreendendo, por isso, o fiador ou fiadores. Esta conclusão seria imposta – diz-se na decisão recorrida – pela circunstância de a lei só mencionar expressamente os arrendatários.
Mas há boas e várias razões para discordar deste ponto de vista.
Em primeiro lugar, a lei não declara que aquele documento tem eficácia executiva apenas contra o arrendatário. O que a lei é terminante em declarar é que contrato de arrendamento só é título executivo se for acompanhado do documento que demonstre a comunicação ao arrendatário do valor da renda ou rendas que o senhorio reputa não satisfeitas.
Depois, a realização desta comunicação – seja qual for, em definitivo, a finalidade que lhe deve ser assinalada – não se justifica no tocante ao fiador, dado, de um aspecto, que a fiança é um elemento meramente acidental ou eventual do contrato de arrendamento e, de outro, que o fiador garante a satisfação da obrigação afiançada, independentemente de qualquer interpelação. Esta, salvo convenção diversa, só é exigida relativamente à pessoa do devedor (artºs 627 e 634 do Código Civil)[13].
De resto, no caso, a exequente, prevenindo, decerto, entendimento contrário, teve o cuidado de comunicar também aos fiadores o valor das rendas em dívida.
A conclusão a tirar – na qual a jurisprudência é, aliás, acorde – e, assim, a de que aqueles documentos são extrinsecamente exequíveis também relativamente ao fiador ou fiadores[14].
A doutrina contrária, sustentada pelo despacho impugnado, não é, pois, juridicamente exacta.
Aos documentos apontados é atribuída força executiva no tocante à obrigação de pagamento da renda e só no tocante a esta específica obrigação[15]. A exequibilidade daqueles documentos não compreende, por exemplo, a indemnização devida pela mora em que se constituiu o arrendatário no tocante à obrigação do pagamento da renda (artº 1041 nº 1 do Código Civil)[16].
E foi exactamente por entender que as rendas devidas pelo arrendatário por virtude da inobservância da antecedência da comunicação da denúncia constituem uma indemnização que o tribunal recorrido indeferiu, também no tocante àquela obrigação o requerimento executivo.
Ao contrário do que sucede com a reparação do dano resultante da mora no cumprimento da obrigação de pagamento da renda que a lei, com propriedade, qualifica, expressamente como indemnização, no caso da inobservância da antecedência da comunicação da denúncia, a lei fala no pagamento das rendas correspondentes ao período do pré-aviso em falta (artºs 1041 nº 1 e 1098 nº 3 do CPC).
Esta obrigação de pagamento da renda não visa, portanto, como é característico da indemnização, reparar ou ressarcir o dano resultante da inobservância do pré-aviso da denúncia, que, de resto, pode não existir, como sucederá, nos casos em que o senhorio tenha, acto contínuo à extinção do contrato, dado de novo o prédio de arrendamento.
Portanto, a obrigação de remunerar o senhorio, apesar da extinção do contrato de arrendamento, decorrente da declaração de denúncia, configura simplesmente, no tocante à obrigação de pagamento da renda, um caso de ultractividade do vínculo contratual. A obrigação de pagamento da renda, no caso figurado, é decerto uma obrigação post pactum finitum, mas é ainda a obrigação de remuneração, embora referida, já não ao gozo efectivo da coisa, mas à mera susceptibilidade desse gozo, a que o arrendatário renunciou voluntariamente, e não, ainda que imperfeitamente, uma obrigação de indemnização.
De resto, não há razão material para que se distinga os casos em que a denúncia foi feita com a antecedência devida, mas o arrendatário não procedeu, no período correspondente, ao pagamento da renda, e aqueles em que o arrendatário não observou essa antecedência. Em qualquer destas situações deve facultar-se ao senhorio, fundado no contrato de arrendamento e no documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do valor da renda em falta, o recurso à acção executiva para obter a satisfação coerciva da obrigação correspondente.
Em absoluto remate: o recorrente dispõe de título executivo, tanto contra a arrendatária como contra os fiadores, no tocante à obrigação de pagamento da renda correspondente ao período de pré-aviso que a comunicação de denúncia não observou.
Nestas condições, não é necessário prodigalizar outras considerações para mostrar que o recurso deve ser provido. Importa, consequentemente, revogar, no segmento em que foi objecto de impugnação, a decisão recorrida e substituí-la por outra que ordene o prosseguimento da execução.
Resta, por isso, sumariar o acórdão.
A retórica argumentativa do acórdão, de que se extrai a solução de procedência do recurso, pode sintetizar-se nesta proposição simples: o contrato de arrendamento, acompanhado da comunicação ao arrendatário do valor da renda em dívida é extrinsecamente exequível contra o arrendatário e contra os fiadores, no tocante à obrigação de pagamento da renda correspondente ao período de antecedência da comunicação de denúncia, pelo arrendatário, daquele contrato.
Os recorridos não deram causa, não aderiram à decisão recorrida nem a acompanharam; beneficiam, por isso, de uma isenção subjectiva de custas (artº 2 nº 1 g) do CC Judiciais); a recorrente obteve vencimento (artº 2 nº 1 a) do CC Judiciais). O recurso não está, por isso, sujeito a custas.
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão impugnada, no segmento em que indeferiu o requerimento executivo no tocante aos fiadores, D…………., E…………, F………… e G……………, e relativamente à parte da renda do mês de Setembro de 2008 e às rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta na sequência da denúncia do contrato de arrendamento operada pela executada, C………….. Lda., e determina-se o prosseguimento da execução, quanto à última e aos primeiros, no tocante àquelas rendas.
Sem custas.

Porto, 09.10.06
Henrique Ataíde Rosa Antunes
Ana Lucinda Mendes Cabral
Maria do Carmo Domingues
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[1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.3.96, CJ, 96, II, pág.24.
[2] J. C. Ferreira de Almeida, Algumas considerações sobre o problema da natureza e função do título executivo, RFD, 19, (1965), pág. 317 e ss.
[3] O título executivo só formalmente é um documento – apresenta-se sempre como um documento; materialmente é um meio de demonstração legal, o qual poder ser um meio documental, como v.g., de títulos de crédito, um acto, como no caso de sentença. Título executivo é aquilo que convence o tribunal exequente de que existe o crédito exequendo, é o facto primário da sua convicção. Mesmo materialmente, o título executivo tem primariamente função demonstrativa (probatória, gnoseológica) e só secundariamente função constitutiva (ontológica). Castro Mendes, A Causa de Pedir na Acção Executiva, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XVIII, 1964, págs. 205 e 206. O título executivo é, em termos substanciais, um instrumento legal de demonstração da existência do direito exequendo e a sua exequibilidade resulta da relativa certeza ou da suficiência da probabilidade da existência da obrigação nele consubstanciada: se a obrigação se encontra titulada por um documento escrito, pode inferir-se, com um elevado grau de probabilidade, a sua constituição. Cfr. Castro Mendes, Manual de Processo Civil, Lisboa, 1970, págs. 73 e 74 e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 60.
[4] A exequibilidade de um título é aferida pela lei vigente à data da proposição da acção executiva, de maneira que, ainda que o documento não possua força executiva no momento em que e elaborado, a execução torna-se admissível se essa eficácia lhe foi conferia por uma lei posterior. Relativamente às modificações da eficácia executiva de um título nas execuções pendentes rege o princípio da aplicação imediata da lei nova, sempre que esta conceda exequibilidade a um documento que anteriormente dele não dispunha, visto que, caso se devesse julgar inadmissível, por inexequibilidade do título, a execução pendente, o exequente poderia requerer de imediato uma outra acção executiva com base no mesmo título. Cfr. Acs. da RE de 02.02.89, BMJ nº 384, pág. 681 e do STJ de 29.08.93, CJ, STJ, III, pág. 49.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, págs. 65 e 66.
[6] No sentido de que a denúncia abrange também a oposição à renovação, cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição, Coimbra, 2001, pág. 228, Galvão Telles, Contrato Duradouro com Termo Final: Denúncia, CJ, XI, II, pág. 20 e Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, Almedina, Coimbra, 2005, págs. 58 a 60 e v.g., Ac. do STJ de 05.06.97, BMJ nº 468, pág. 428; no sentido contrário, cfr. António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações vol. II, AAFDL, Lisboa, 1980, pág. 166, Januário da Costa Gomes, Em Tema da Revogação do Mandato Civil, Coimbra, 1989, pág. 74 e ss., Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, pág. 102 e Ponto Monteiro, Contrato de Agência, Anotação, 5ª edição, Coimbra, 2004, pág. 120.
[7] Cfr., sobre o problema de saber se a fiança pode ser prestada por negócio unilateral ou se o deve ser por contrato, cfr., Manuel Januário da Costa Gomes, A Estrutura Negocial da Fiança e Jurisprudência Recente, Estudos de Direito das Garantias, vol I., Almedina, Coimbra, 2004 págs. 48 a 107, M. Henrique Mesquita, Parecer, CJ, XI, IV, pág. 25 e Vaz Serra, Fiança e Figuras Análogas, BMJ nº 71 (Separata), Lisboa, 1957, págs. 11 e ss.
[8] A exigência de forma vale, no entanto, apenas para a declaração de vontade do fiador; a do credor não reclama qualquer forma especial. Cfr., os Acs. da RC de 28.02.89 e de 05.07.89 e da RL de 01.10.92, CJ, XIV, II, pág. 45 e IV, pág. 50 e XVII, II, pág. 163, respectivamente.
[9] Sobre a determinabilidade do objecto na fiança omnibus, cfr., o Ac. de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 4/01, DR, I Série, A, nº 57 de 08.03.01 e Manual Januário da Costa Gomes, O Mandamento da Determinabilidade na Fiança Omnibus e O AUJ nº 4/2001, in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, vol. II, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 49 e ss. Evaristo Mendes, Fiança Geral, RDES XXXVII (1995), pág. 137 e António Menezes Cordeiro, Impugnação Pauliana - Fiança de Conteúdo Indeterminável, CJ, XVII, III, pág. 61.
[10] Manuel Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, sobre o sentido e o âmbito da vinculação do fiador, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 1142 a 1145.
[11] Acs. da RL de 12.02.08 e da RP de 12.05.09, www.dgsi.pt.
[12] Ac. da RL de 12.12.2008, www.dgsi.pt. No sentido de que a comunicação visa dar a conhecer ao arrendatário o valor das rendas em dívida, de modo a permitir-lhe proceder ao seu pagamento e evitar a sua execução, cfr., o Ac. da RC de 21.04.09, www.dgsi.pt.
[13] Acs. do STJ de 04.12.03 e de 01.07.08, www.dgsi.pt.
[14] Acs. da RC de 21.04.09, da RP de 12.05.09 e de 23.06.09, e da RL de 12.12.08, www.dgsi.pt.
[15] E no tocante à obrigação de pagamento da renda, apenas relativamente às rendas indicadas na comunicação feita ao arrendatário e não também relativamente às que se venceram posteriormente a essa comunicação. Cfr., os Acs. da RP de 22.05.09 e da RL de 12.12.08, www.dgsi.pt.
[16] Ac. da RP de 22.05.09, www.dgsi.pt.