Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
413/11.2GBAMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CRIME ESPECÍFICO
ELEMENTOS DO TIPO
Nº do Documento: RP20130710413/11.2GBAMT.P1
Data do Acordão: 07/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - No crime de violência doméstica está em causa a protecção da pessoa individual, da sua dignidade humana, podendo dizer-se, com Taipa de Carvalho, que “o bem jurídico protegido é a saúde – bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos”.
II - Trata-se de crime específico (pressupõe uma determinada relação entre os sujeitos activo e passivo), cuja prática pode ser ou não reiterada no tempo (tudo depende das circunstâncias do caso concreto).
III – O tipo objectivo de ilícito, no caso em apreço, preenche-se com a acção de infligir “Maus-tratos físicos” (que se traduzem em ofensas à integridade física, incluindo simples) ou “Maus-tratos psíquicos” (que podem consistir, como diz Taipa de Carvalho, em “humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça”) ao ex-cônjuge do agente. Por sua vez, o tipo subjectivo de ilícito exige o dolo (nesta particular situação, trata-se de crime de mera actividade - está em causa o infligir de “maus-tratos psíquicos” - bastando o dolo de perigo de afectação da saúde, aqui o bem estar psíquico e a dignidade humana do sujeito passivo).
IV - Todos os episódios e actos, praticados dolosamente pelo arguido contra a sua ex-mulher (que consistiram em lhe infligir maus-tratos psíquicos, através de repetidas injúrias e ameaças, algumas presenciadas por terceiros, idóneas a afectar o seu bem estar psicológico), eram humilhantes e rebaixavam quem fosse vítima deles, ofendendo a dignidade de qualquer pessoa, como sucedeu neste caso igualmente com a assistente, integrando o crime de violência doméstica que lhe foi imputado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
(proc. n º 413/11.2GBAMT.P1)
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Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
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I- RELATÓRIO
1. No 3º Juízo do Tribunal Judicial de Amarante, nos autos de processo comum (Tribunal Singular) nº 413/11.2GBAMT, foi proferida sentença, em 17.1.2013 (fls. 109 a 113), constando do dispositivo o seguinte:
Pelo exposto, e na procedência da acusação, decide-se:
I. Condenar o arguido B….. pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. no art. 152 n.º 1 alínea a) do Código Penal, na pena de 1 (UM) ano de prisão;
II. Tendo em conta a conexão dos factos com o abuso de bebidas alcoólicas e a personalidade do arguido, suspendo a execução da pena de 1 (UM) ano de prisão, por igual período de 1 (um) ano, suspensão essa, condicionada à total proibição de contactos ofensivos/disruptivos com a assistente C…...
III- Condenar ainda o mesmo arguido nas custas do processo, com 2 UCs de taxa de justiça;
(…)
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2. O arguido B…. recorreu (fls. 117 a 126) dessa sentença, apresentando as seguintes conclusões:
1.º - O presente recurso tem como objecto a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos que condenou o recorrente pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
2.º - Os factos dados como provados na sentença recorrida, demonstram que as condutas do Recorrente ali relatadas, integram o crime de ameaça e de injúria, previstos e punidos nos artigos 153.º e 181.º, do Código Penal, pelo que houve erro notório na incriminação, por parte do Tribunal a Quo, ao aplicar o art.º 152.º, n.º 1 alínea a) do Código Penal, à subsunção daqueles factos.
3.º - As condutas do aqui Recorrente, não são idóneas ou suficientes para lesar o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica, pois não constituem uma situação de maus tratos, da qual resultem ou sejam susceptíveis de resultar sérios riscos para a integridade física ou psíquica da Assistente, pelo que violou a douta decisão recorrida o disposto no art.º 152.º, n.º 1 alínea a) do CP, ao condenar o aqui Recorrente pela prática deste crime, devendo o mesmo ser absolvido.
4.º - A douta decisão recorrida violou ainda o disposto nos artigos 152.º, n.º 1, alínea a), 153.º e 181.º, todos do Código Penal, na subsunção dos factos em tipologia penal.
5.º - Pelo que, deverá a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por uma outra que absolva o recorrente do crime de violência doméstica p. e p. no art.º 152, n.º 1, alínea a) do CP.
Termina pedindo a revogação da sentença, com a sua consequente absolvição do crime de violência doméstica em que foi condenado.
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3. Na 1ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso (fls. 134 a 142), concluindo pelo seu não provimento.
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4. Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer (fls. 153 a 155), concluindo igualmente pelo não provimento do recurso.
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5. Colhidos os vistos legais realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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6. Na sentença sob recurso foram considerados provados os seguintes factos:
O arguido foi casado com a ofendida C….., com quem tem três filhos em comum, estando divorciados desde Abril de 2010.
Em 15 de Abril de 2011, pelas 23.00 horas, no decurso de um baile no quartel dos Bombeiros Voluntários de Amarante, o arguido, vendo a ofendida a dançar, disse-lhe perante todos os que aí se encontravam és uma puta, uma vaca, ao mesmo tempo que tentou alcançar a ofendida com intenção de a agredir, o que não conseguiu em virtude de ter sido impedido por pessoas que aí se encontravam.
Perante a atitude do arguido a ofendida parou de dançar e foi-se sentar receando o arguido e envergonhada com os insultos que lhe foram dirigidos.
Não obstante o arguido tentou novamente alcançar a ofendida, no que mais uma vez foi impedido pelas pessoas que aí se encontravam, ao mesmo tempo que lhe dizia vou arrumar contigo sua puta.
Em 24 de Abril de 2011 seguinte, cerca das 02.00 horas da madrugada, no exterior das instalações do referidos bombeiros, quando a ofendida se encontrava dentro do automóvel com o seu actual companheiro para se ir embora, o arguido foi em direcção do automóvel e mostrando à ofendida uma navalha disse-lhe, isto é para ti sua puta, eu hei-de arrumar contigo obrigando a ofendida a trancar as portas do automóvel e sair do local apressadamente, receosa que o arguido usasse a navalha que empunhava para a magoar, ou mesmo para lhe tirar a vida.
Desde as referidas datas o arguido telefonou repetidamente à ofendida dizendo-lhe és uma puta, uma vaca e não és para mim não és para mais ninguém, não tenho gosto de andar nesta vida, vou arrumar contigo, o mesmo acontecendo quando o arguido encontra a ofendida na rua.
O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente com o propósito de ofender corporalmente a ofendida, o que não conseguiu por ter sido agarrado e impedido de chegar junto da ofendida, com intenção de fazer a ofendida temer pela sua vida, bem como com a intenção de a humilhar, causar-lhe medo e ansiedade, o que logrou conseguir.
Com a conduta descrita revelou o arguido não possuir qualquer respeito pela ofendida enquanto pessoa, ex-cônjuge e mãe dos filhos que ambos que têm em comum, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e constituía crime.
O arguido já foi condenado em multa pelo crime de ofensa à integridade física.
Era pedreiro mas está desempregado. Não aufere subsídio de desemprego nem outro rendimento. Vive sozinho em casa que herdou dos pais, estudo até ao 2.º ano de escolaridade.

Quanto aos factos não provados consignou-se o seguinte:
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.

Na respectiva fundamentação da decisão sobre a matéria de facto fez-se constar:
O Tribunal, num juízo crítico da prova produzida, formulou a sua convicção quanto aos factos dados como provados com base nos seguintes elementos, sendo certo que o arguido se remeteu ao silêncio:
a)- Nas declarações da assistente, a qual se pronunciou quanto ao modo de cometimento das agressões e confirmou a sua regularidade, contexto e sequelas e cujo depoimento se afigurou irrefutavelmente genuíno. Tal relato foi corroborado por todas as restantes testemunhas ouvidas, as quais, participavam no baile, D….., companheiro da assistente, E….., irmã da assistente e F….., companheiro desta última. Assim se o arguido se cala e todas as pessoas sem margem para tergiversação, referiram todas as vicissitudes, descritas de forma uniforme e sugestiva, que brecha fica para hipotéticas dúvidas?
b)- No teor dos seguintes documentos: CRC e certidão de casamento.

Quanto ao enquadramento jurídico-penal escreveu-se o seguinte:
Face ao circunstancialismo fáctico apurado, importa agora fazer a respectiva subsunção jurídico criminal.
No que tange à configuração jurídica avançada no libelo acusatório forçoso é concluir que a mesma se ajusta à realidade apurada. Com efeito, reza o art. 152 n.º 1 alínea a) do CP, epigrafado de violência doméstica, na parte que agora nos ocupa que “1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.
a) ao cônjuge ou ex-cônjuge é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
A ratio do tipo reside na protecção da pessoa e da sua dignidade humana, sendo que, o âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que, de forma reiterada, ou não, lesam esta dignidade.
Se, em tempos passados, se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo o crime de maus tratos uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, hoje, uma tal interpretação redutora é manifestamente de excluir pois a ratio deste art. 152 projecta-se muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos.
Ora da leitura da factologia provada, mostra-se por demais evidente que o arguido incorreu na prática, como autor material, de um crimes de violência doméstica, previsto no referido art. 152 n.º 1 alínea a) do CP, e por tal normativo deve ser punido.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que apresentou (art. 412º, nº 1, do CPP).
Neste caso concreto, o recorrente invoca erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito uma vez que, na sua perspectiva, os factos dados como provados não integram o crime de violência doméstica pelo qual foi condenado, mas antes o crime de ameaça e de injúria, previstos e punidos nos artigos 153.º e 181.º, do Código Penal.
Passemos então a apreciar a questão colocada no recurso em apreço, tendo em atenção que, não se detectando qualquer dos vícios aludidos no art. 410º, nº 2, do CPP e não havendo nulidades de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Na perspectiva do recorrente os factos dados como provados não são idóneos ou suficientes para lesar o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica (entende que não revestiram gravidade suficiente para afectar de forma marcante ou colocar em risco a saúde psíquica da Assistente ou o seu bem estar), não integrando o conceito de maus-tratos (considerando que a noção de maus-tratos pressupõe que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso particularmente censurável), mas apenas o crime de ameaça e de injúria (argumenta que apesar de ser ex-marido da Assistente, de ter atingido a honra e a consideração desta, e de lhe ter causado receio, violando a sua liberdade de determinação e decisão, por meio de ameaça, por mais do que uma vez, esse comportamento não assumiu carácter violento, não assumindo o conjunto dos factos apurados desrespeito pela pessoa da vítima ou desejo de prevalência de dominação sobre a mesma que fosse susceptível de ser classificada como maus tratos, não representando um potencial de agressão que supere a protecção conferida pelos crimes previstos pelos artigos 153.º e 181.º, do CP, deles não resultando que sejam susceptíveis de criar sérios riscos para a integridade física ou psíquica da Assistente, tanto mais que as ofensas cometidas são de pequena gravidade e ocorreram numa situação de ruptura pós-divórcio, compreensível, não se tendo sequer apurado que ao longo da vida conjugal tivessem ocorrido episódios de violência).
Porém, não lhe assiste razão.
Perante os factos que foram dados como provados, não merece censura a qualificação jurídica feita pelo tribunal da 1ª instância e a conclusão da condenação do recorrente pelo crime de violência doméstica p. e p. no art. 152º, nº 1, al. a), do CP.
Pratica o crime de violência doméstica previsto no art. 152º, nº 1, al. a), do CP, “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge”, sendo “punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Está em causa a protecção da pessoa individual, da sua dignidade humana, podendo dizer-se, com Taipa de Carvalho[1], que “o bem jurídico protegido é a saúde – bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos”, tendo em atenção as características do sujeito passivo, neste caso particular, que afectem a dignidade pessoal do ex-cônjuge do arguido.
Trata-se de um crime específico por pressupor uma determinada relação entre os sujeitos activo e passivo.
Pode ser um crime habitual, caso a sua prática seja reiterada no tempo (de forma mais ou menos espaçada, dependendo das circunstâncias do caso concreto), altura em que, se assim suceder, a reiteração (que não é exigível para o preenchimento do tipo legal crime) funciona como elemento constitutivo do crime[2] (por isso o crime consuma-se com a prática do último acto que integra a actividade criminosa em causa).
No entanto, o crime em apreço também se preenche mesmo que não haja reiteração quando são infligidos maus-tratos físicos ou psíquicos.
Ao contrário do que argumenta o recorrente, desde as alterações introduzidas pela Lei nº 52/2007, de 4.9, que não é sustentável defender como regra geral que o crime de violência doméstica depende da conduta descrita no tipo revestir uma especial gravidade ou atingir uma certa intensidade ou assumir um “carácter violento” [3].
No que aqui interessa o tipo objectivo de ilícito preenche-se com a acção de infligir “Maus-tratos físicos” (que se traduzem em ofensas à integridade física, incluindo simples) ou “Maus-tratos psíquicos” (que podem consistir em “humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça”[4]) ao ex-cônjuge do agente.
Portanto, tendo em atenção o bem jurídico protegido (que orienta a interpretação do tipo legal aqui em causa) e o caso concreto para a consumação do crime de violência doméstica não é necessário que a conduta do agente/arguido assuma um carácter violento, no sentido de exceder o crime de ameaça e de injúria, como alega o recorrente.
Neste caso concreto não estão em causa “maus-tratos físicos” (uma vez que o arguido não chegou a atingir a integridade física do seu ex-cônjuge), mas antes o infligir “maus-tratos psíquicos” na pessoa do ex-cônjuge do arguido.
A nível do tipo subjectivo de ilícito, exige-se o dolo mas, tratando-se neste particular situação de um crime de mera actividade (está em causa o infligir de “maus-tratos psíquicos”), basta o dolo de perigo de afectação da saúde, aqui o bem estar psíquico e a dignidade humana do sujeito passivo.
Tendo em atenção os factos apurados não há dúvidas que o arguido bem sabia que a assistente era sua ex-cônjuge, da qual se divorciara em Abril de 2010, portanto, cerca de um ano antes.
Atento o período de tempo que mediou entre o divórcio (Abril de 2010) e o início (15.4.2011) da conduta apurado do arguido (cerca de 1 ano de diferença) é manifesto que não se pode sustentar (como o faz o recorrente) que tivesse havido interferência de qualquer “elemento de tensão causado pela “situação de ruptura pós-divórcio”.
Não é compreensível que após cerca de 1 ano do divórcio, o arguido adoptasse o comportamento descrito nos factos dados como provados, não se podendo, por isso, considerar que exista qualquer ligação entre a sua conduta e a ocorrência do divórcio.
Ora perante os factos concretos apurados (Em 15 de Abril de 2011, pelas 23.00 horas, no decurso do baile no quartel dos Bombeiros Voluntários de Amarante, o arguido, vendo a ofendida a dançar, disse-lhe perante todos os que aí se encontravam és uma puta, uma vaca, ao mesmo tempo que a tentou alcançar com intenção de a agredir, o que não conseguiu em virtude de ter sido impedido por pessoas que aí se encontravam mas, perante essa atitude do arguido, a ofendida parou de dançar e foi-se sentar receando o arguido e envergonhada com os insultos que lhe foram dirigidos; apesar disso, o arguido tentou novamente alcançar a ofendida, no que mais uma vez foi impedido pelas pessoas que aí se encontravam, ao mesmo tempo que lhe dizia vou arrumar contigo sua puta; ainda em 24 de Abril de 2011, cerca das 02.00 horas da madrugada, no exterior das instalações do referidos bombeiros, quando a ofendida se encontrava dentro do automóvel com o seu actual companheiro para se ir embora, o arguido foi em direcção do automóvel e mostrando à ofendida uma navalha disse-lhe, isto é para ti sua puta, eu hei-de arrumar contigo obrigando a ofendida a trancar as portas do automóvel e sair do local apressadamente, receosa que o arguido usasse a navalha que empunhava para a magoar, ou mesmo para lhe tirar a vida; para além disso, desde as referidas datas o arguido telefonou repetidamente à ofendida dizendo-lhe és uma puta, uma vaca e não és para mim não és para mais ninguém, não tenho gosto de andar nesta vida, vou arrumar contigo, o mesmo acontecendo quando o arguido encontra a ofendida na rua) não há dúvidas que todo esse sucessivo e repetido comportamento do arguido (portanto considerado não só individual como globalmente) integra o conceito de “maus-tratos psíquicos”, tendo em atenção o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica.
Todos esses episódios e actos, praticados dolosamente pelo arguido contra a sua ex-mulher (os quais consistiram em lhe infligir maus-tratos psíquicos[5], através de repetidas injúrias e ameaças - algumas delas presenciadas por terceiros - que são idóneas a afectar o seu bem estar psicológico, pois além de representarem total desrespeito para com a sua ex-mulher, causaram-lhe medo e ansiedade, como era de esperar), eram humilhantes e rebaixavam quem fosse vítima deles, ofendendo a dignidade de qualquer pessoa, como sucedeu neste caso com a assistente.
Para além de ter atingido a honra e consideração da ofendida e de lhe ter causado medo e receio pela sua integridade física, com a descrita repetida conduta o arguido também violou a liberdade de determinação e de decisão daquela, que configura a conduta típica, na modalidade de infligir maus-tratos psíquicos.
A descrita conduta do arguido (que até assumiu um modo especialmente desvalioso) é penalmente censurável tendo em atenção o tipo legal em questão (crime de violência doméstica) e o bem jurídico protegido[6].
Para além daquele comportamento do arguido em relação à sua ex-mulher ser idóneo a afectar o bem-estar psicológico da ofendida, também é claro que lesou o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica, tendo o arguido agido dolosamente (colocou em perigo o bem estar psíquico da ofendida, tendo igualmente colocado em risco o seu bem estar físico, apenas não conseguindo concretizar ofensas na integridade física daquela por razões alheias à sua vontade, por ter sido impedido por terceiros) como resulta igualmente dos factos provados.
Não há, por isso, quaisquer dúvidas que toda a descrita conduta do arguido integra os pressupostos objectivos e subjectivos do crime pelo qual foi condenado (de notar que não se apuraram quaisquer factos que de alguma forma pudessem integrar causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da punibilidade do agente).
É indiferente para o caso (atenta a configuração do tipo legal de violência doméstica) que, da acusação e, consequentemente, da sentença, não conste qualquer referência a episódios ocorridos durante o período de vida conjugal (matéria essa que, não tendo sido alegada, também não tinha de ser investigada).
Com efeito, o que aqui está em causa é todo o descrito comportamento do arguido em relação ao seu ex-cônjuge e, portanto, após divórcio que já tinha ocorrido cerca de um ano antes.
Em conclusão: não há qualquer erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito, razão pela qual não merece censura a sentença impugnada.
Improcede, pois, a argumentação do recorrente (parte dela abstracta e conclusiva que não encontra apoio nos factos dados como provados), sendo certo que não foram violadas as disposições legais por ele citadas.
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III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…...
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Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.
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(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária. O verso das folhas encontra-se em branco – art. 94º, nº 2, do CPP)
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Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias (relatora)
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento (Adjunto)
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[1] Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume I, Coimbra Editora, 1999, pág. 332.
[2] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 112, parte final da anotação 1.
[3] Com efeito, como salientam Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal anotado e comentado, Quid Juris, Lisboa, 2008, p.404, o elemento redutor constante da Proposta de Lei nº 98/X, de 7.9.2006 (onde se exigia que “os maus tratos ocorressem «de modo intenso e reiterado»), que por certo iria dar causa a alguma arbitrariedade, não passou para a Lei.
[4] Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 333.
[5] Como adianta Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 405, «Os “maus tratos físicos” correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas (… incluindo toda e qualquer perturbação psíquica, tenha ou não reflexos físicos). O emprego de formas mais graves de ofensas corporais dolosas ou coacção é punível pelas respectivas incriminações, por força da regra da subsidiariedade. Os maus tratos podem ser reiterados ou não, tendo a Lei nº 59/2007 decidido a querela jurisprudência sobre a subsunção ao conceito de maus tratos de uma conduta isolada (…).”
[6] Ao contrário do alegado pelo recorrente, a sua referida conduta excedeu mesmo o alcance da tutela jurídica conferida pelos crimes de injúria e de ameaça.