Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0647091
Nº Convencional: JTRP00040129
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
AUTO DE NOTÍCIA
COIMA
PAGAMENTO VOLUNTÁRIO
AGENTE DA AUTORIDADE
Nº do Documento: RP200703140647091
Data do Acordão: 03/14/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO EM MATÉRIA CONTRAORDENACIONAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 257 - FLS. 288.
Área Temática: .
Sumário: I- Os Militares da Guarda Nacional Republicana encontram-se permanentemente de serviço.
II- O agente de autoridade que, não se encontrando no exercício das suas funções de fiscalização, presencia a prática de uma contra-ordenação levanta o respectivo auto, mas este não faz fé em juizo.
III- Do artº 172º do Código da Estrada decorre que o pagamento voluntário da coima pelo mínimo implica conformação com a prática da contra-ordenação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO:

Por decisão de 20/04/2006, foi imposta ao ora recorrente, B………….., a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 75 dias, pela prática, como reincidente, de uma contra-ordenação ao disposto no art. 30º, nº 1, do Código da Estrada.
Inconformado, o arguido interpôs recurso de impugnação judicial para o tribunal da comarca de Macedo de Cavaleiros.
Após audiência, o recurso foi objecto de decisão nos seguintes termos:
(…)
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decido julgar interiramente improcedente, por não provado, o recurso interposto pelo arguido e, em consequência, manter a decisão administrativa que o condenou como autor material, sob a forma consumada, de uma contra-ordenação p. p. pelo art. 30º, nº 2, do C. da Estrada, na coima de € 120,00 e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 75 dias.
(…)

Novamente inconformado, o arguido recorreu para esta Relação, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1º - O arguido pagou a coima que ao caso cabia, como o demonstra a decisão definitiva da autoridade administrativa, não há razão para uma “nova” condenação a este título.
2º - Nos presentes autos fixou-se, em sede de fundamentação de facto, que o auto de contra-ordenação foi levantado pelo soldado da Guarda Nacional Republicana, que não estava de serviço e se encontrava trajada à civil;
3º - Neste circunstancialismo o recorrente entende que a referida soldado da GNR, ao abrigo do disposto no art. 170º do Código da Estrada, não podia nem devia levantar o referido auto de notícia, porque fora do exercício das suas funções de fiscalização rodoviária.
4º - Assim sendo, tal auto de notícia é nulo, devendo alterar-se a decisão do tribunal “a quo”, com a consequente absolvição do arguido.
Foi violada e/ou incorrectamente interpretada/aplicada a norma jurídica do art. 170º do Código da Estrada.
5º - A norma do art. 170º do Código da Estrada quando interpretada - como foi o caso do tribunal “a quo” - no sentido de que mesmo fora do exercício das suas funções de fiscalização rodoviária, os agentes da autoridade / soldados da Guarda Nacional Republicana, podem e devem levantar autos de notícia, padece de inconstitucionalidade, por violação do Estado de Direito, ínsito no art. 2º da C.R.P., na sua vertente do princípio da protecção da confiança dos cidadãos.

Na sua resposta, o Exmº Procurador-adjunto pugnou pela improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu douto parecer, pronunciando-se também pela improcedência do recurso, salvo no que tange à primeira das pretensões do recorrente, na medida em que este pagou voluntáriamente a coima correspondente à contra-ordenação.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a audiência.

Segundo a jurisprudência corrente dos tribunais superiores, o âmbito do recurso afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido.
No caso vertente, as questões a decidir são as seguintes:
- Condenação em coima, em sede de recurso de impugnação judicial, do recorrente que a havia pago voluntáriamente;
- Nulidade do auto de notícia levantado por agente não uniformizado e fora do exercício das suas funções.

II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na decisão recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
a) No dia 10.02.2006, pelas 1 9.18 li, ria Rua de ……., em Macedo de Cavaleiros. o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-XH e não cedeu passagem aos veículos que se lhe apresentavam pela direita, apesar de para essas viaturas não existir qualquer sinal indicativo de perda de prioridade, levando os demais condutores a travar a fundo, para evitar um acidente.
b) O arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, não chegando a representar possibilidade de realização do facto.
c) O auto de contra-ordenação de fls.5 foi elaborado pela Soldado da Guarda Nacional Republicana Margarida C……………., que se encontrava trajada à civil e não estava ao serviço.
d) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em a), a Soldado C……………. tripulava um automóvel e, por força da actuação do arguido, já descrita, teve de travar a fundo para evitar o embate com o veículo pelo mesmo conduzido.
e) O arguido é comerciante no ramo da restauração e obtém para si proventos mensais de, pelo menos, € 1500,00.
f) É casado, tem um filho de 6anos de idade e vive em casa própria.
g) Tem averbada no seu registo individual de condutor a contra-ordenação discriminada a fls. 20, praticada no dia 9.3.2004 e cujo teor aqui se dá como reproduzido.

A convicção do tribunal relativamente ao provado foi fundamentada nos seguintes termos:
A convicção do Tribunal filiou-se, desde logo, nas declarações do arguido B………………. que, no essencial, confirmou a actuação que lhe vinha imputada, tendo ainda relatado a sua situação pessoal e profissional.
Depois, teve-se em conta o depoimento prestado pela testemunha C…………… - Soldado da G.N.R. de Macedo de Cavaleiros há cerca de 6 anos e responsável pela elaboração do auto contra-ordenacional de fls. 5, a qual, depondo de forma séria, espontânea e coerente, confirmou o seu teor, relatou a actuação do arguido e explicando, de forma cabal. o procedimento que seguiu na ocasião, assim conquistando plena credibilidade aos olhos do tribunal.
Não se conferiu qualquer credibilidade ao testemunho deixado em juízo por D………….. - trabalhador numa bomba de gasolina e cliente do arguido no restaurante por este explorado - dado que o mesmo foi de todo em todo ilógico, incoerente, inverosímil e contraditório, até com o do próprio arguido, cuja versão pretendeu sustentar a todo o custo.
Finalmente, valorou-se o auto de fls. 5 e o R.I.C. de fls. 20.
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Insurge-se o recorrente contra a decisão proferida em sede de recurso de impugação judicial, desde logo, pelo facto de nesta se ter decidido manter a decisão administrativa que o condenou na coima de € 120,00, na medida em que pagou voluntáriamente a coima correspondente à contra-ordenação.
Nos termos do art. 172º, nº 1, do Código da Estrada, “É admitido o pagamento voluntário da coima, pelo mínimo, (…)”.
Por seu turno, o nº 5 do mesmo artigo dispõe que “o pagamento voluntário da coima, nos termos dos números anteriores determina o arquivamento do processo, salvo se à contra-ordenação for aplicável sanção acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma”.
Ora, consta da própria decisão administrativa que o recorrente efectuou o pagamento voluntário da coima, razão pela qual a decisão se pronunciou apenas sobre a sanção acessória de inibição de conduzir, que concretizou 75 dias.
Assim sendo, relativamente ao primeiro dos aspectos suscitados, dúvidas não há de que assiste inteira razão ao recorrente, na medida em que tendo havido pagamento voluntário da coima, liquidada esta pelo mínimo, a decisão adminstrativa não condenou o recorrente em coima, não fazendo sentido que em sede de recurso de impugnação judicial se tenha decidido “(…) manter a decisão administrativa que o condenou (…) na coima de € 120,00 (…)”.

A segunda questão suscitada traduz-se em saber se podia o auto de contra-ordenação ser validamente levantado por soldado da Guarda Nacional Republicana que não estava de serviço e se encontrava trajado à civil.
O facto de o soldado, segundo o provado, não estar ao serviço, tem necessariamente que ser entendido cum grano salis, no sentido de aquele não se encontrar no período de vinculação ao cumprimento de tarefas ou acções para as quais tivesse sido previamente nomeado, na medida em que, como bem notou o Exmº Procurador Geral Adjunto no seu douto parecer, os militares da guarda encontram-se permanentemente de serviço (cfr. art. 9º, nº 1, do Estatuto dos Militares da GNR - DL nº 265/93, de 31 de Julho), recaindo sobre si o permanente dever de exercício dos actos inerentes à sua função, independentemente de se encontrarem ou não uniformizados ou nomeados para o serviço (art. 24º, nº 1, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana - DL nº 231/93, de 26 de Junho).
De resto, o nº 5 do art. 170º do Código da Estrada visa, precisamente, abranger as situações em que o auto é lavrado por autoridade ou agente de autoridade que tenha notícia, por denúncia ou por conhecimento próprio, de contra-ordenação, ainda que presenciada pelo autuante, mas fora do exercício das suas funções de fiscalização. Daí, aliás, a distinção que a epígrafe do artigo estabelece entre auto de notícia e de denúncia.
O regime consagrado pelo referido art. 170º do Código da Estrada, na interpretação naturalmente imposta pela necessidade de articulação deste diploma com o sistema legal no seu conjunto, logo, aí abrangidos os diplomas antes mencionados (Estatuto e Lei Orgânica da GNR), é o seguinte:
- Levantado auto de notícia por autoridade ou agente de autoridade que presencia uma contra-ordenação rodoviária no exercício das suas funções de fiscalização e obedecendo este aos requisitos de forma previstos nos nºs 1 e 2 do art. 170º, o auto faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário;
- Se o auto for levantado por autoridade ou agente de autoridade que tenha notícia da contra-ordenação por denúncia ou por conhecimento próprio, ainda que presenciada pelo autuante, mas fora do exercício das suas funções de fiscalização, o auto tem o valor de simples denúncia, não fazendo fé em juízo.
Era esta última a situação do auto a que se reporta o presente recurso. O auto foi lavrado por agente de autoridade necessariamente em serviço, nos termos amplos previstos no art. 9º, nº 1, do Estatuto dos Militares da GNR, mas fora do exercício das suas funções de fiscalização, nos termos estritos previstos no art. 170º, nº 1, do Código da Estrada. Foi lavrado ao abrigo do nº 5 do art. 170º do Código da Estrada - conhecimento próprio do autuante - pelo que não reunia as condições necessárias para fazer fé sobre os factos nele narrados. E sendo assim, esse auto, para fundamentar a imposição de uma sanção, carecia, em princípio, da demonstração dos factos nele narrados, integradores da prática da contra-ordenação imputada ao arguido.
Em princípio, dissemos, pois que como já antes se referiu, o art. 172º, nº 1, do Código da Estrada admite o pagamento voluntário da coima pelo mínimo. Só que o pagamento voluntário efectuado nesses termos traduz conformação com a prática da contra-ordenação correspondente, visto que segundo o disposto no art. 175º, nº 4, “o pagamento voluntário da coima não impede o arguido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável”.
Admitir que o arguido que pagasse a coima pelo mínimo viesse de seguida discutir a verificação da contra-ordenação, traduzir-se-ia, em termos práticos, no total subversão do sistema legalmente consagrado, pois a possibilidade legal de liquidação da coima pelo mínimo traduz uma contrapartida legalmente concedida ao arguido que se conforma com a prática da infracção, renunciando à possibilidade de discutir a sua existência, sem embargo de lhe ser sempre admissível impugnar a sanção acessória, a sua medida ou os termos em que foi fixada (1). Só esta interpretação é compatível com a redacção do art. 175º, nº 4, do Código da Estrada, que expressamente permite ao arguido apresentar a sua defesa, em caso de voluntário pagamento, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável. E nem se diga que com semelhante interpretação ocorre violação do direito de defesa do arguido. É que, em última ratio, a opção pelo pagamento voluntário com renúncia à discussão da existência da infracção e correspondente benefício no montante da coima aplicável, é sempre do arguido. Se este, porventura, entender que não praticou a infracção e que a aplicação da coima é injusta, então não a pagará voluntariamente e discutirá a verificação da contra-ordenação, usufruindo de todas as garantias que a lei lhe concede. O que não pode é garantir à partida, através da liquidação pelo mínimo, a impossibilidade de agravamento da coima, mercê da proibição da “reformatio in pejus” consagrada no art. 72º-A do DL nº 433/82, para depois discutir a verificação da infracção.

Registe-se, por outro lado, que o ora recorrente não só não arguiu a nulidade que veio invocar em sede de recurso no momento próprio (art. 120º do CPP), como ao proceder ao voluntário pagamento da coima se conformou expressamente com os efeitos do acto que sustenta ser anulável, donde sempre decorreria a sanação do acto em apreço

Por fim, não se evidencia qualquer violação dos direitos constitucionais do recorrente, seja por violação dos princípios fundamentais do Estado de Direito, seja por violação do princípio da protecção da confiança dos cidadãos, não se vislumbrando, ainda que remotamente, que do sistema legalmente consagrado e de que acima se deu conta resulte prejudicada qualquer garantia constitucional que houvesse que salvaguardar.
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III - DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, dá-se parcial provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida na parte em que dispõe “(…) manter a decisão administrativa que o condenou (…) na coima de € 120,00 (…)”. Em tudo o mais, nega-se provimento ao recurso.
Por ter decaído parcialmente em recurso que interpôs, pagará o recorrente a taxa de justiça de 2 UC.
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Porto, 14 de Março de 2007
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Artur Manuel da Silva Oliveira
Maria Elisa da Silva Marques Matos Silva
Arlindo Manuel Teixeira Pinto
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(1) - Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 11.03.98, in www.dgsi.pt.jtrp