Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
595/08.0GNPRT.P1
Nº Convencional: JTRP00042540
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: RP20090506595/08.0GNPRT.P1
Data do Acordão: 05/06/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO - LIVRO 578 - FLS. 67.
Área Temática: .
Sumário: Se da acusação não consta que a infracção é também punida, nos termos do art. 69º do C.P, com a pena de proibição de conduzir veículos automóveis, e o arguido foi condenado em tal pena, sem que tenha sido dado cumprimento ao disposto no art. 358º, n.º 3 do CPP, cometeu-se nulidade que importa suprir.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso 595/08.0GNPRT.P1
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de processo sumário supra identificado do ….º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia, o arguido B……………, casado, nascido a 9/11/1975, filho de C…………. e de D……………, residente na Rua ……………, n.º ….., R/C esquerdo, foi detido pela GNR porque no dia 20/12/2008, pelas 4,30 horas, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-EN-.., pela A1 e, “ao ser submetido ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, quando conduzia o veiculo acima identificado, apresentou urna TAS de 2,00 g/l (…) facto tipificado como crime previsto e punido no artº 292° do Código Penal, pelo que foi detido nos termos do artº 255° do CPP”.

Apresentando a juízo, foi o arguido submetido a julgamento em processo sumário.
Aberta a audiência, foi dada “a palavra ao Digno Magistrado do MP, que no uso dela, disse substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia, nos termos do disposto no art.º 389°, n.º 2 do C. P. Penal”.
Já antes havia lavrado o despacho de fls. 2, escrevendo no rosto do ofício de remessa do auto de notícia: “visto estarem reunidos os pressupostos legais, promovo se apresente o detido B…………. para julgamento em processo sumário, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no art. 292°, nº 1 do CP.

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença que condenou o arguido como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292°, nº 1 do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária de € 9,00 (nove euros), ou seja, na multa global de € 630,00 (seiscentos e trinta euros); e condenou-o ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 4 (quatro) meses.
Inconformado, o arguido interpôs recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões.
1. Foi o recorrente condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292°, nº 1 do Código Penal, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 9,00, num total de € 630,00, bem como na pena acessória de inibição da faculdade de conduzir veículos motorizados por um período de quatro meses e ainda nas custas do processo.
2. É firme convicção do recorrente ser a douta sentença em crise nula na parte em que condenou o recorrente na referida pena acessória, à luz do disposto no artigo 379°, nº 1 al. b) do C.P.P., nulidade insuprível que se pretende ver declarada.
3. Posto que, como decorre da acta da Audiência de Discussão e Julgamento deste processo sumário, que constitui fls. 15 e seguintes e do disposto no artigo 389°, nº 2 do CPP, se mostra consignado a fls. 16, ter sido lido ao arguido o auto de notícia que constitui fls. 2, onde se materializa de forma manuscrita pelo Exmo. Senhor Procurador da República junto do Tribunal a quo a acusação, que se louva apenas e tão só no disposto no artigo 292°, nº 1 do Código Penal, sem qualquer menção ao artigo 69° do mesmo diploma, ocorrendo a mesma omissão no texto do referido auto de notícia.
4. A aplicação da pena acessória em apreço não é nem pode ser automática, em obediência à norma constitucional no nº 4 do artigo 30° da C.R.P., pelo que ao ter ocorrido, como ocorreu, sem que ao arguido fosse indicada a disposição legal que a prevê e estabelece, sequer se tendo verificado a alteração prevista no artigo 358°, nºs 1 e 3 do C.P.P., foi violado o princípio do acusatório e os mais elementares direitos de defesa deste.
5. Neste sentido, se pronunciou o nosso mais alto Tribunal, que proferiu douto Acórdão de Fixação de Jurisprudência, com o nº 7 de 2008, que aqui se dá por integrado, disponível em www.dgsi.pt, onde se decidiu que “Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob influência de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, a do nº 1 do artigo 69° do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir aí prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos nºs 1 e 3 do artigo 358° do C.P.P. a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultantes, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 379° deste último diploma legal.”
6. A pena principal concretamente aplicada ao arguido, de 70 dias de multa à taxa diária de € 9,00, é excessiva, à luz dos critérios legais previstos no artigo 47° e 71° do Código Penal, afigurando-se desajustada à realidade dos factos, onde se evidencia não ter o arguido antecedentes criminais e a sua conduta anterior e posterior aos factos - o arguido confessou espontaneamente os factos e mostrou-se arrependido, relevando ainda em abono deste o facto de da sua conduta não ter resultado qualquer perigo para a segurança de terceiros e do mesmo estar integrado socialmente.
7. O que, na revogação do decidido, sempre importa a redução da pena ao mínimo de 10 dias de multa à taxa diária fixada, por se entender nesta parte ser a mesma ajustada às condições económicas do arguido e às necessidades de prevenção geral e especial sempre latentes.
8. Sem prescindir, por mera conveniência de raciocínio e imperativos de patrocínio gratos à defesa, mesmo que se entendesse não ser nula a decisão recorrida na parte em que aplicou ao arguido a sanção acessória da inibição de conduzir, o que se repudia, sempre a pena acessória concretamente aplicada se deveria considerar excessiva, a impor redução ao mínimo legal de três meses, pelos mesmos fundamentos já expostos a propósito da pugnada revogação da pena principal e ainda pela análise da prova testemunhal gravada que integra os actos, donde decorre uma conduta anterior do arguido como condutor exemplar e a necessidade absoluta deste usufruir da licença de condução, por razões profissionais.
9. Por assim não considerar, deve a Douta sentença recorrida ser declarada nula ou revogada, com o que se fará a melhor JUSTIÇA.

Respondeu o M.º P.º com as seguintes conclusões:
1. Não constando da acusação a referência ao artigo 69°, nº 1 do C.P., nem, em sede de julgamento, se tendo dado cumprimento ao disposto no artigo 358°, nº 1 do C.P.P., a condenação na pena acessória de proibição de conduzir, torna a sentença nula, por violação do disposto no artigo 379º, nº 1, al. b) do C.P.P. (Neste sentido Ac. U.J. nº 7/2008, S.T.J. publicado D.R. I Série de 30/7/2008).
2. Se assim se não entender, as medidas das penas principal e acessória, atendendo ao grau elevado da taxa de álcool apresentada pelo arguido, achava-se conforme as normas legais aplicáveis, prevista nos artigos, 40º, 70º e 71° do C.P. estando a pena principal pouco acima de metade do limite máximo e a pena acessória pouco acima do limite mínimo.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite douto parecer no sentido de que o recurso apenas merece provimento no que à questão da pena acessória diz respeito, devendo o processo ser remetido à 1ª Instância para ser proferida nova sentença após cumprimento do disposto no art.º 358º do CPP.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

O Tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade, que se considera definitivamente assente:
1. No dia 20 de Dezembro de 2008, pelas 04h 39m, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-EN-.., pela A1 300 S/N, nesta comarca de Vila Nova de Gaia;
2. O arguido conduzia o referido veículo com uma taxa de alcoolemia de 2,00 g/l;
3. O arguido sabia que havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para determinar a taxa verificada e ainda assim, quis conduzir o veículo nas circunstâncias supra referidas;
4. O mesmo agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
5. O arguido é técnico profissional de seguros, auferindo a quantia de € 1.000,00;
6. É casado e a esposa é gestora de empresas e tem um filho menor;
7. Nada consta do seu Certificado de Registo Criminal, junto aos autos.

E considerou que inexistem factos não provados.

São duas as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:
- A sentença é nula porque o arguido foi condenado em pena de proibição de conduzir, ao abrigo do art.º 69º do C. Penal, sem que tal previsão conste da acusação e sem que tenha sido comunicado a alteração da qualificação jurídica dos factos nos termos dos nºs 1 e 3 do artigo 358° do C.P.P.
- A pena em que o arguido foi condenado, de 70 dias de multa à taxa diária de € 9,00, é excessiva, devendo ser condenado na pena de 10 dias de multa à aludida taxa diária.

Vejamos.
Sobre a primeira questão pronunciaram-se os Tribunais Superiores de forma divergente, o que levou a que o STJ a uniformizar jurisprudência nos termos seguintes: “Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º deste último diploma legal”[1].
Escreveu-se no aludido acórdão:
“A questão que vem colocada ao pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça prende-se directamente com temas fundamentais do processo penal, designadamente o do seu fim e o das garantias de defesa do arguido.
Num Estado de direito democrático é a procura da verdade material e a realização da justiça que constituem o fim último do processo penal.
No entanto, num Estado de direito democrático a procura da verdade material e a realização da justiça não podem ser alcançadas a qualquer preço.
De há muito se vem reconhecendo e entendendo que a cadeia de actividades e procedimentos dirigidos à constatação, positiva ou negativa, do facto criminoso, para fins de aplicação da sanção penal ao seu autor, tem de respeitar rigorosamente o direito constitucional, com destaque para os direitos, liberdades e garantias pessoais, bem como os princípios gerais de processo penal, nomeadamente os decorrentes de textos de direito internacional, designadamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
Daí que a investigação e a procura da verdade, no âmbito do procedimento penal, se hajam de processar de acordo com as garantias constitucionais e os princípios gerais de processo penal.
De entre estes, à questão que ora nos ocupa, interessa, em primeira linha, o princípio da comunicação da acusação, segundo o qual deve ser dada a conhecer ao arguido, tempestivamente, ou seja, em tempo que lhe permita preparar e organizar uma defesa adequada, a acusação que contra si foi deduzida. A comunicação da acusação, como refere Bettiol, é um instituto inteiramente apontado para salvaguarda do direito de defesa do arguido, o que significa que ao arguido (através da acusação) deve ser dado a conhecer qualquer facto ou qualquer elemento essencial (momento constitutivo do crime) e acidental (circunstância) de que possa derivar a sua responsabilidade ou um seu agravamento.
Daqui que sobre a entidade a quem cabe acusar recai o estrito dever de no respectivo requerimento consignar [alíneas a) a g) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal], sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando -se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de 5;
e) A indicação dos peritos e dos consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
g) A data e a assinatura.
Narração ou descrição factual e indicação normativa da maior importância, visto que o objecto do processo é o objecto da acusação, o qual se mantém até ao trânsito em julgado da sentença, protegendo o arguido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal, assegurando os direitos ao contraditório e à audiência, direitos essenciais à defesa do arguido e à democraticidade do processo penal, que se traduzem no direito de o arguido ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte [alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal], bem como no direito a que todos os actos e procedimentos processuais, na fase de julgamento, sejam susceptíveis de oposição e de discussão, o que implica uma efectiva participação neles, com possibilidade de os discretear, mediante a apresentação de razões e argumentos de facto e de direito.
A vinculação do tribunal, porém, quer no que concerne aos factos descritos na acusação quer no que tange ao enquadramento jurídico dos mesmos ali operado, não é absoluta.
Com efeito, em certos casos e situações, por razões várias, já depois de deduzida a acusação, algumas vezes no decurso do julgamento, outras já na fase de recurso, vêm-se a descobrir novos factos ou a constatar que os factos constantes da acusação foram deficientemente ou insuficientemente descritos ou deficientemente ou incorrectamente qualificados, possibilitando a lei, limitadamente, desde que salvaguardadas as garantias de defesa do arguido, a alteração dos factos e ou a alteração da sua qualificação jurídica, para que o processo possa alcançar o seu concreto fim, isto é, a descoberta da verdade e a realização da justiça.
É através do instituto denominado da alteração dos factos, instituto previsto nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, que se estabelece e regula a possibilidade de alteração dos factos descritos na acusação e na pronúncia, bem como a alteração da sua qualificação jurídica.
Prevê a lei duas situações distintas no que se refere à alteração dos factos, uma que contempla a ocorrência de alteração factual com repercussão relevante no tipo de crime imputado ou nos limites máximos das sanções legais aplicáveis, dando lugar à imputação de um crime diverso ou à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, a outra que prevê a verificação de alteração factual sem aquelas repercussões, no entanto, com relevância para a decisão da causa.
A primeira situação é denominada pela lei como alteração substancial dos factos, com regulamentação no artigo 359.º, a segunda como alteração não substancial dos factos, com regulamentação no artigo 358.º.
Prevê a lei, ainda, a possibilidade de alteração da qualificação jurídica, situação em que, não ocorrendo alteração factual, se verifica, porém, necessidade de modificar a qualificação jurídica que na acusação ou na pronúncia se atribuiu aos factos nas mesmas descritos, situação que o legislador entendeu submeter ao regime aplicável à alteração não substancial dos factos - n.º 3 do artigo 358.º
No caso ora em apreciação não se estando perante qualquer alteração factual, vejamos, no entanto, se estamos face a situação que deva ser considerada de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, a implicar o cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 358.º
No cumprimento dessa tarefa cabe em primeiro lugar verificar se a condenação do arguido em pena acessória, concretamente de proibição de conduzir veículos motorizados, perante acusação ou pronúncia omissas no que concerne à possibilidade de aplicação daquela pena acessória, designadamente a ausência de indicação da disposição legal que a prevê, se deve considerar como integrante de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Caso a resposta seja positiva, cumprirá determinar se a alteração da qualificação jurídica implica ou não a necessidade de comunicação prevista no artigo 358.º
Qualificar juridicamente os factos é subsumi-los ao direito constituído, ou seja, aplicar a lei aos factos, verificar se os mesmos possuem ou não relevância jurídica e em que termos devem ser integrados no respectivo ordenamento.
Verificada a relevância jurídica dos factos e feita a sua integração no ordenamento jurídico, ficam os mesmos qualificados, isto é, identificados do ponto de vista normativo, dando-nos a exacta medida do tratamento que a lei lhes confere.
Em processo penal, ex vi artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), 308.º, n.º 2, e 374.º, n.os 2 e 3, alínea a), em sede de acusação, de pronúncia e de sentença, a qualificação jurídica dos factos opera-se mediante a indicação das disposições legais que lhes são aplicáveis, indicação que, obviamente, a lei manda se faça a seguir à narração ou descrição daqueles.
No caso vertente verifica-se que, perante os mesmos factos, o Ministério Público na acusação que deduziu indicou como disposições legais aplicáveis o artigo 292.º do Código Penal, enquanto que o juiz na sentença mencionou como disposições legais aplicáveis os artigos 292.º e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, tendo ao abrigo do primeiro normativo condenado o ora recorrente na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5 e, com fundamento no segundo, condenado aquele na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de quatro meses.
Ora, não sendo coincidente a indicação das disposições legais aplicáveis aos factos feita na acusação e na sentença, dúvidas não restam de que se verifica uma alteração da qualificação jurídica dos factos.
Consabido haver ocorrido em sentença uma alteração na qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, vejamos se tal alteração implica ou não a necessidade de comunicação prevista no artigo 358.º.
Conquanto o n.º 3 do artigo 358.º aluda a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia tout court, o que do ponto de vista literal inculca a ideia de que abrange toda e qualquer alteração, obviamente com a ressalva prevista no n.º 2, segundo a qual se dispensa a comunicação da alteração ao arguido quando resulte de alegação feita pelo mesmo, a verdade é que se vem entendendo que nem toda a alteração implica necessariamente a sua comunicação ao arguido.
A questão da necessidade daquela comunicação tem sido objecto de debate desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal (1987).
A versão originária do artigo 358.º que, tal como a actual, tinha por epígrafe «Alteração não substancial dos factos descritos na acusação», não contendo, porém, qualquer alusão à alteração da qualificação jurídica, foi inicialmente interpretada no sentido de que o legislador ao nada prever relativamente àquela concreta alteração deixou à liberdade do julgador a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, posição que se estribou na orientação doutrinal defendida por Beleza dos Santos, face ao Código de Processo Penal de 1929, segundo a qual «Quanto à qualificação jurídica - isto é, à aplicação e à interpretação da lei - é manifesto que o réu não pode contar com aquela que o despacho de pronúncia adoptou. Ela pode evidentemente ser alterada, sem que se prejudiquem os legítimos interesses do réu, a quem fica sempre aberto o caminho de discutir livremente a qualificação jurídica dos factos e de recorrer contra sentenças que façam uma apreciação ou interpretação da lei que julgue erróneas», «Seria exorbitante e injustificado que se atribuísse ao réu a vantagem de beneficiar com qualquer erro de apreciação jurídica feita no despacho de pronúncia ou equivalente. Da mesma maneira seria injustificado e vexatório que se vinculasse o tribunal que tem de julgar a certa interpretação da lei seguida pelo juiz que pronunciou».
Neste preciso sentido veio este Supremo Tribunal de Justiça, através do assento n.º 2/93, a fixar jurisprudência nos seguintes termos:
«Para os fins dos artigos 1.º, alínea f), 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 4, 309.º, n.º 2, 359.º, n.ºs 1 e 3, e 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.»
Parte da doutrina, mais tarde, optou por diferente solução, defendendo a aplicação analógica do artigo 358.º (obviamente na sua versão originária) às situações de alteração da qualificação jurídica, assumindo a livre qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia com a dupla condição da comunicação prévia ao arguido e da concessão de tempo para a sua defesa. Por sua vez, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 279/95, em recurso interposto do assento n.º 2/93, julgou inconstitucional a interpretação naquele assumida nos casos em que a convolação conduzisse à condenação do arguido em pena mais grave, sem que o mesmo fosse prevenido da nova qualificação jurídica e sem que lhe fosse dada oportunidade de defesa, sob a argumentação de que o arguido não tem de ser sacrificado no altar da correcta qualificação jurídico -penal da matéria de facto e que uma eventual alteração final do enquadramento jurídico desta não tem necessariamente de fazer-se à custa do sacrifício dos seus direitos de defesa, sendo que para assegurar esta defesa basta que lhe seja dado conhecimento prévio da nova qualificação.
E o mesmo Tribunal, pelo Acórdão n.º 445/97, reiterou aquela doutrina, proferindo decisão de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Foi então reformulado por este Supremo Tribunal o assento n.º 2/93 no seguintes termos: «Ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta exista, o Tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a sua defesa jurídica.»
Mais tarde, através do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/00 foi aquela doutrina reforçada, tendo-se decidido que:
«Na vigência do regime dos Códigos de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa.»
Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, o legislador entendeu dever tomar posição perante as diversas posições doutrinais e jurisprudenciais assumidas, tendo consagrado, por via de aditamento de um número ao artigo 358.º, n.º 3, a solução da livre qualificação jurídica dos factos pelo tribunal do julgamento, com reserva da obrigatoriedade de prévia comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e da concessão, a requerimento daquele, do tempo necessário à preparação da defesa, ressalvando os casos em que a alteração derive de alegação feita pela defesa - n.º 2 do artigo 358.º.
E com a publicação da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, através de aditamento de um número ao artigo 424.º (n.º 3), alargou a possibilidade de a alteração da qualificação jurídica poder ser feita no tribunal de recurso (bem como de a alteração poder incidir sobre os factos descritos na decisão em recurso, desde que não substancial), alteração que, obviamente, no caso de ser desconhecida do arguido, terá de lhe ser comunicada para o mesmo, querendo, sobre ela se pronunciar.
Certo é que este alargamento já era jurisprudencialmente admitido, consabido que este Supremo Tribunal através do Acórdão n.º 4/95 fixou jurisprudência obrigatória no sentido de que o tribunal superior pode em recurso alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus.
Com tudo isto, porém, não resulta pacífico o entendimento sobre a obrigatoriedade de comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e concessão ao mesmo de prazo para a defesa.
Com efeito, para além da ressalva contida no n.º 2 do artigo 358.º, segundo a qual a alteração não carece de ser comunicada ao arguido, o que bem se percebe, visto que a mesma é resultado de alegação por si produzida, vem-se entendendo que outros casos ocorrem em que é inútil prevenir o arguido da alteração da qualificação jurídica, razão pela qual se considera não dever ter lugar a comunicação.
Vejamos.
O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender.
Ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido - n.º 1 do artigo 32.º -, consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado.
Assim e atenta a ratio do instituto, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido - artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República - o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-lhe prazo para preparação da defesa. Por isso, se considera que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou «menos agravado», ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado.
O mesmo sucede quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave que o da acusação ou da pronúncia em consequência de redução da matéria de facto na sentença, quando esta redução não constituir, obviamente, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação.
Tal acontece, ainda, face a alteração decorrente da requalificação da participação do agente de co-autoria para autoria, bem como perante alteração resultante da requalificação da culpa do agente de dolo directo para dolo eventual.
Na situação objecto do presente recurso extraordinário verifica-se, porém, que as garantias de defesa do recorrente foram postas em causa.
Explicitemos.
A qualificação jurídica dos factos em sede de acusação não se circunscreve à indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes que aqueles preenchem.
Com efeito, a lei - alínea f) do n.º 3 do artigo 283.º - impõe a indicação das disposições legais aplicáveis, ou seja, de todas as disposições legais aplicáveis.
Deste modo, para além da indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes, terão de ser indicadas as normas que estabelecem a respectiva punição, ou seja, a espécie e a medida das sanções aplicáveis.
Pretende a lei que ao arguido seja dado conhecimento do exacto conteúdo jurídico-criminal da acusação, ou seja, da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se assim expressão aos princípios da comunicação da acusação e da protecção global e completa dos direitos de defesa, este último estabelecido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição Política, princípios a que já fizemos referência.
Só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada.
É que o arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação. A vertente jurídica da defesa em processo penal é, em muitos casos, mais importante. E esta para ser eficaz pressupõe que o arguido tenha conhecimento do exacto significado jurídico-criminal da acusação, o que implica, evidentemente, lhe seja dado conhecimento preciso das disposições legais que irão ser aplicadas.
Por isso, qualquer alteração que se verifique da qualificação jurídica dos factos feita na acusação ou na pronúncia (com excepção dos casos atrás referidos), nomeadamente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender, sob pena de se trair o favor defensionis.
Por outro lado, como deixámos assinalado nas considerações preliminares tecidas, a declaração do direito do caso penal concreto é tarefa conjunta do tribunal e dos sujeitos processuais, na qual o arguido é também chamado a intervir, porém, para isso terá de participar e de ser ouvido, nos diversos actos processuais, de acordo com o quadro jurídico pelo qual vai ser julgado e não com base noutro quadro jurídico. Assim, se o quadro jurídico que lhe foi dado a conhecer através da comunicação da acusação ou da pronúncia é alterado, disso terá de ser informado para que possa influir, se assim o entender, na declaração do direito.
Aliás, o processo penal é um processo equitativo e justo, não sendo configurável, num Estado de direito, a possibilidade de ao arguido ser aplicada uma pena sem que disso seja prevenido, isto é, sem que lhe seja dado oportuno conhecimento da possibilidade de que nela pode vir a ser condenado.
E a pena acessória é, evidentemente, uma verdadeira pena.
Efectivamente, conquanto seja uma sanção dependente da aplicação da pena principal (como a própria denominação indica), não resulta directa e imediatamente da cominação desta, no sentido de que não é seu efeito automático, o que, aliás, constitui imposição constitucional, decorrente do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, que estabelece, tal qual o faz o n.º 1 do artigo 65.º do Código Penal, que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, constituindo uma sanção autónoma.
Aliás, a pena acessória de proibição de conduzir, para muitos, é bem mais gravosa que a pena principal (evidentemente, quando esta é não privativa da liberdade), sendo certo que a defesa passa aqui, necessariamente, pela alegação e prova de factos de natureza pessoal, factos da maior importância para a determinação concreta da medida daquela, os quais só podem ser dados a conhecer pelo arguido ao tribunal se o mesmo for prevenido de que a condenação no crime de que é acusado implica, também, a condenação na pena acessória, o que nas situações em que, como é o caso vertente, na acusação inexiste referência à norma que comina aquela, terá de ser feito mediante a comunicação prevista no artigo 358.º.
Assim, ao condenar-se o aqui recorrente em pena acessória cuja indicação da disposição legal que a prevê e estabelece a sua medida foi omitida na acusação contra ele deduzida, sem que da respectiva alteração tivesse sido prevenido nos termos do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, há que concluir que se incorreu na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º”.

A fundamentação do acórdão não deixa margem para qualquer dúvida.
E, se é certo que a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória, menos certo não é que os tribunais devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão – artº 445º, n.º 3 do CPP.
In casu, não só não há divergência como, ao invés, se subscreve, sem reservas a doutrina do acórdão.
Por isso, atendendo a que da acusação não consta que a infracção é também punida, nos termos do art.º 69º do C. Penal, com a pena de proibição de conduzir veículos automóveis, e que o arguido foi condenado em tal pena sem que tenha sido dado cumprimento ao disposto no art.º 358º, n.º 3 do CPP, cometeu-se nulidade que importa suprir.

Fica, por isso, prejudicada a questão da medida concreta da pena, mas não sem que se diga que esta, a pecar, é por defeito e nunca por excesso.

DECISÃO:
Termos em que, na procedência do recurso, se anula a decisão recorrida, devendo ser reaberta a audiência para que seja dado cumprimento ao disposto no n.º 3 do art.º 358º do CPP, após o que será elaborada nova sentença.
Sem tributação.

Porto, 6.05.2009
Francisco Marcolino de Jesus
Élia Costa de Mendonça São Pedro
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[1] Ac Uniformizador 8/2008, publicado na I Série A do DR de 30 de Julho de 2008