Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
19/09.6PTPRT.P1
Nº Convencional: JTRP00042792
Relator: JORGE JACOB
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INQUÉRITO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Nº do Documento: RP2009070819/09.6PTPRT.P1
Data do Acordão: 07/08/2009
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO - LIVRO 379 - FLS 218.
Área Temática: .
Sumário: No âmbito do art. 281º do Código de Processo Penal, o juiz de instrução pode negar a sua concordância à suspensão provisória do processo com o fundamento de que se não verificam os pressupostos previstos nas alíneas e) e f) do nº 1.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto
4ª secção (2ª secção criminal)
Proc. nº 19/09.6PTPRT.P1
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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:


I – RELATÓRIO:

Nos presentes autos de processo sumário o M.P., considerando integrarem os factos indiciados a prática, pelo arguido B………., de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo art. 292º do Código Penal e abrangido ainda pela previsão do art. 69º, nº 1, al. a), do mesmo diploma, e entendendo estar verificado o condicionalismo do instituto da suspensão provisória do processo, que considerou ajustada ao caso, determinou a apresentação dos autos ao Mmº Juiz de Instrução Criminal para os efeitos previstos no art. 281º do Código de Processo Penal (diploma a que se reportam também as demais disposições legais citadas sem menção de origem).
O Mmº Juiz de Instrução consignou nos autos o seguinte despacho:
Indiciam os autos o cometimento de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292° e 69° do CP.
O MP entendeu lançar mão da suspensão provisória de processo, mediante a imposição de determinadas injunções, designadamente a "obrigação" de abstenção de conduzir pelo período de 15 dias. Embora não haja no nosso ordenamento jurídico um princípio de funcionamento automático das penas acessórias, ou seja, fazer corresponder automaticamente a determinado crime um determinado efeito ou pena acessória, mal se compreende que em alguns casos essas penas acessórias não sejam aplicadas; que é o caso dos crimes como aquele que ora se indicia.
Ora, verifica-se que a pena acessória prevista no artº. 69° do CP é absolutamente olvidada pelo MP, o que se não concede. Mesmo que se entenda que a "obrigação" de abstenção de condução pelo período de 15 dias configura, ainda que de forma "sui generis'' a dita pena acessória, não se pode conceder, igualmente, que a mesma seja homologada por período inferior ao mínimo legalmente previsto naquela matéria. O uso de um critério de oportunidade não pode servir para justificar tratamento desigual, "ab initio", relativamente a arguidos que são submetidos a julgamento e, por isso, enfrentam logo o mínimo legal de 3 meses de inibição.
Posto isto, não havendo por ora tempo para desenvolver a argumentação supra, decide-se não homologar a proposta suspensão provisória do processo.
Notifique.
Remeta os autos à distribuição, como processo sumário.

Inconformado com este despacho dele recorre o M.P., retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. O consentimento judicial à suspensão provisória do processo justifica-se pela necessidade de evitar a aplicação de injunções ou regras de conduta arbitrárias ou desproporcionadas;
2. Num processo de estrutura acusatória, o poder judicial está, sob pena de perder à sua imparcialidade e de «agir em causa própria», vinculado pelo pedido do Ministério Público/assistente;
3. Assim, ao discordar da suspensão provisória do processo por entender que, em concreto, a culpa do arguido é elevada e as injunções e regras de conduta insuficientes, a Ma juíza excedeu os seus poderes, substituiu-se ao Ministério Público e violou o princípio do acusatório, consagrado no artigo 32.°, nº 5, da CRP;
4. A referida decisão violou, ainda, os artigos 11º e 12º da Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto (que definiu os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009) que preconizam a aplicação da suspensão provisória do processo ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas;
5. Ainda que, porventura, assim não seja, sempre se dirá que, no caso concreto nem a culpa do arguido é elevada, nem as injunções e regras de conduta propostas insuficientes para satisfazer as necessidades preventivas;
6. Por isso mesmo, a discordância judicial com a suspensão provisória do processo viola o disposto nos artigos 384.° e 281.° do Código de Processo Penal;
7. Assim, a referida decisão deverá ser revogada e substituída por outra que concorde com a suspensão provisória do processo, dessa forma se fazendo justiça.

Nesta instância, o Exmº Procurador-geral Adjunto acompanhou a motivação do recurso, pronunciando-se pela sua procedência.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Segundo a jurisprudência corrente dos tribunais superiores, o âmbito do recurso afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
- Pode o juiz discordar da suspensão provisória do processo por entender que a culpa do arguido é elevada e as injunções e regras de conduta insuficientes?
- No caso vertente, a culpa do arguido é elevada e as injunções e regras de conduta são desadequadas ou insuficientes?

II - FUNDAMENTAÇÃO:

O nº 1 do art. 281º do CPP dispõe que se o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;
d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.

Já no âmbito da anterior redacção do preceito se vinha entendendo que a análise do teor literal e a sua inserção sistemática no Código de Processo Penal evidenciavam o peso do Ministério Público na opção pela suspensão provisória do processo. Interpretando o preceito na sua anterior redacção, na parte em que referia que “… pode o Ministério Público decidir-se, com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo…”, o Acórdão desta Relação do Porto, de 09/11/2005 [1], concluiu que «a expressão literal “decidir-se” dá um especial peso à actuação do M.P, atribuindo-lhe a iniciativa quanto a esta medida. Não é a atribuição do poder de decisão, é certo, mas é a atribuição do relevo especial da vontade do M.P quanto à formação dessa decisão, designadamente o poder de iniciativa.
A localização sistemática do preceito (encerramento do inquérito, CAP. III) inculca a ideia de haver aqui uma atribuição, maxime “iniciativa” do M.P de condução do procedimento, uma vez que a intervenção do juiz de Instrução é aqui residual».
Mas se assim era já no domínio da anterior redacção da norma, a alteração legal operada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, veio reforçar significativamente a importância dessa opção do M.P., transformando num verdadeiro dever institucional aquilo que antes se apresentava basicamente como uma «faculdade», ainda que de faculdade tecnicamente vinculada se tratasse. Na verdade, onde antes se lia “… pode o Ministério Público decidir-se, com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo…”, lê-se agora “... o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo…”. Aquela faculdade, quase poder discricionário, foi convertida numa obrigação legal. Verificados os pressupostos enumerados na norma, o M.P. está agora obrigado a determinar a suspensão provisória do processo mediante imposição de injunções e regras de conduta.

A suspensão provisória do processo oferece-se, pois, com uma decisão do M.P., sujeita, no entanto, à concordância do juiz de instrução.
Qual o sentido e alcance desse juízo de concordância?
O assentimento do juiz de instrução traduz-se numa concordância tecnicamente vinculada. Isto é, confrontado com a decisão do M.P. de suspender provisoriamente o processo nos termos do art. 281º do CPP, o Juiz de Instrução Criminal deverá indagar se estão reunidos os pressupostos em que aquela decisão necessariamente se deve fundar, verificando:
- Se o crime indiciado é punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão;
- Se existe concordância do arguido e do assistente;
- Se o arguido não foi anteriormente condenado por crime da mesma natureza;
- Se o arguido ainda não foi objecto de suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza;
- Se não há lugar a medida de segurança de internamento;
- Se a culpa não reveste um grau elevado;
- Se é legítimo o juízo de prognose relativamente à eficácia do cumprimento das injunções e regras de conduta na perspectiva das concretas exigências de prevenção; e
- Se as injunções e regras de conduta a impor não ofendem a dignidade do arguido.
Consequentemente, se o juiz de instrução porventura não concordar com a decisão de suspensão provisória, impedindo assim que esta seja decretada, terá que fundamentar a sua discordância com base na falta de verificação de um ou vários dos aludidos pressupostos legais. É isto, a nosso ver, o que resulta da lei!

Passemos então à análise do caso concreto, nas duas vertentes impostas pelas conclusões do recurso.

- Pode o juiz discordar da suspensão provisória do processo por entender que a culpa do arguido é elevada e que as injunções e regras de conduta são insuficientes?

Considerada a situação em abstracto, a resposta só pode ser uma: não só pode, como deve! É precisamente para que o juiz controle a legalidade da suspensão provisória do processo que a lei impõe a obtenção da sua concordância, sendo certo que esta se impõe a partir do momento em que se verifiquem os pressupostos apontados na lei. E entre esses pressupostos contam-se a inexistência de uma culpa de grau elevado – portanto, uma culpa que não exceda a mediania – e o juízo de adequação das injunções e regras de conduta às concretas exigências de prevenção, previstos nas alíneas e) e f) do nº 1 do art. 281º do CPP.
Precisamente porque se trata de uma imposição legal conformadora da intervenção judicial no controle da legalidade da suspensão provisória do processo, não vemos que ocorra inconstitucionalidade na interpretação que assim o entende, contrariamente ao sustentado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto no douto parecer que exarou a fls. 45/48. Salvaguardado, obviamente, o muito respeito pela posição em causa, proveniente, aliás, de magistrado que desde sempre nos habituou a pareceres coerentemente fundamentados e reveladores de profundo saber jurídico e sentido prático do direito, parece-nos que invocar, no caso, a inconstitucionalidade da interpretação apontada, equivale à invocação da inconstitucionalidade da própria norma legal quanto ao disposto nas alíneas e) e f). Estamos em crer, contudo, que a norma em causa, na sua configuração actual e apesar do manifesto reforço dos deveres de actuação do M.P. nos termos que acima apontámos, nada tem de inconstitucional. Aliás, restringir a análise da constitucionalidade do art. 281º à vertente do acusatório – a violação desse princípio constitucional constitui o cerne da argumentação do recorrente – subverteria a verdadeira dimensão da questão, ateando, simultaneamente, a fogueira da dispensável discussão corporativa que não raras vezes ilumina os escritos sobre o tema.
Na verdade, os princípios constitucionais nem sempre se afirmam de acordo com o princípio cartesiano do terceiro excluído, em termos tais que entre o ser e o não ser não há meio-termo. Olhar para cada um dos princípios constitucionais de per se permite, sem dúvida, vislumbrar os pilares do sistema constitucional; mas não mais do que isso! Só na sua interacção, na sua dialéctica imbricação, na compressão resultante da sua recíproca e simultânea vigência é que aqueles princípios ganham sentido útil e se apresentam ao intérprete na sua verdadeira dimensão e plenitude.
Expliquemo-nos, mas sem ir além do necessário: claro que o processo penal é conformado pelo princípio do acusatório, que na acepção restrita perfilhada pelo recorrente se traduz na balizagem da actividade jurisdicional (julgamento) mediante limites estabelecidos em prévia acusação deduzida por um órgão diferenciado (o acusatório tem, no entanto, um alcance bem mais vasto). Mas é também estruturado de acordo com um princípio da legalidade, cuja observância vincula o Ministério Público e que em última instância impõe a decisão judicial. Escreveu Figueiredo Dias [2], a propósito deste princípio, ainda na vigência do Código de 1929, que “bem se compreende que, relativamente a certos casos concretos, a promoção e a prossecução obrigatórias do processo penal causem à comunidade jurídica maior dano que vantagem – maxime, atento o pequeno significado da questão para o interesse público, ou conexionado este com dificuldades de prova, inflação do número de processos, pequena probabilidade de executar a condenação, etc. (…) – e que, em tais casos, se deixe ao M.P. uma certa margem de discricionariedade no procedimento. Ponto é que não se esqueça que poder discricionário não é sinónimo de arbítrio, mas concessão de uma faculdade que deve ser utilizada em direcção ao fim que a própria lei teve em vista ao concedê-la – no caso a preservação, em último termo, dos verdadeiros interesses da comunidade jurídica e dos valores prevalentes nela; (…). Assim, importará sempre acautelar a possibilidade de estrito controlo da decisão do M.P., quer pela reserva de subordinação hierárquica, quer admitindo a intervenção autónoma do ofendido ou impondo que, em caso de desacordo, a questão seja passível de decisão judicial”.
Serve esta extensa transcrição para introduzir a afirmação subsequente ao que antes se vinha dizendo, de que aqueles dois princípios – o do acusatório e o da legalidade – não se excluem reciprocamente nem conflituam entre si, antes se comprimem na sua inter-relação, de modo a complementarem-se.
Diga-se, de todo o modo, que mesmo a isolada consideração do princípio do acusatório não tem a virtualidade de suportar a posição sustentada pelo recorrente, já que sempre haveria que considerar aquele princípio não na conformação restrita que antes referimos, mas em toda a sua amplitude e retirando dele todas as consequências que a sua invocação comporta. Ora, a exacerbação deste princípio constitucional não terá outra virtualidade que não seja a de inverter o sentido com que foi esgrimido como argumento penalizador da intervenção judicial de controlo. Segundo as abalizadas palavras de Vital Moreira e Gomes Canotilho[3], “o princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação (…). Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: (a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação; (b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; (c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto é, o órgão que faz a instrução não faz a audiência de discussão e julgamento e vice-versa”.
É a vertente apontada em segundo lugar que obsta a uma imposição de injunções e regras de conduta inteiramente por conta e risco da entidade incumbida da realização do inquérito, à margem de qualquer controlo judicial, porque se as injunções e regras de conduta não são penas strico sensu, são, no entanto, um modo de sancionamento (da conduta criminalmente relevante), por muito que se pretenda dizer o contrário. Aliás, a confirmação desta afirmação basta-se com um olhar sobre as injunções e regras de conduta que o M.P. pretende impor nos presentes autos:
“- Entregar ao C………., situado na rua c………., nº …, ………., ….-… – Matosinhos, a quantia de € 30 por cada mês de suspensão, perfazendo a quantia total de € 180,00 (cento e oitenta euros), devendo juntar aos autos, mensalmente e até ao dia 8 de cada mês a que respeitar, prova de haver efectuado cada entrega correspondente à referida prestação mensal;
- A obrigação de não praticar, durante o período de suspensão do processo qualquer crime doloso, nomeadamente no domínio estradal;
- A entrega da sua carta de condução neste tribunal, no prazo de dez dias a contar da data da decisão de concordância, pelo período de quinze dias, sendo que conforme previsto no art. 69º, nº 1, al. a) do C. Penal é de três meses o mínimo da sanção acessória que lhe seria aplicada caso fosse julgado e condenado;
- Frequentar, durante o período de suspensão, o curso sobre condução segura, dinamizado pela prevenção rodoviária portuguesa, suportando os respectivos custos, que ascendem a cerca de € 230,00”.
Não serão penas, mas traduzem uma forma de sancionamento não propriamente inócua do ponto de vista da compressão do exercício de direitos. Aliás, em certos casos, as injunções propostas tendem a aproximar-se do ponto de intangibilidade dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados. Nessa medida, o princípio do acusatório acolhido na sua plenitude não prescinde do controlo judicial daquelas imposições comportamentais, ainda que restrito ao controlo da respectiva legalidade, o que pressupõe também o controlo do juízo de adequação, que a lei processual penal, aliás, prevê, até porque se tais medidas forem desajustadas, serão ilegais.

Registe-se, nesta sequência, e com o intuito confessado de introduzir mais adiante aquela que é a nossa opinião sobre o tema, que a suspensão provisória do processo não é exclusiva do M.P. nem tem que nascer necessariamente no decurso do inquérito. Também na fase de instrução pode o juiz, verificados os pressupostos previstos no art. 281º, decidir-se pela suspensão provisória, exigindo-se, desta feita, a concordância do Ministério Público (art. 307º, nº 2).
Temos assim que o Código de Processo Penal consagra duas situações de suspensão provisória do processo diferenciadas não apenas pela entidade a quem compete a iniciativa, mas também pela entidade que nela deve anuir: Decidida pelo M.P. no decurso do inquérito, pressupõe a anuência do juiz; decidida pelo juiz no decurso da instrução, pressupõe a anuência do M.P..
O sistema tende, pois, para o equilíbrio, consagrando um princípio de co-responsabilização das duas magistraturas na aplicação de soluções impostas pela necessidade cada vez mais afirmada de reservar o processo judicial de natureza penal para as situações que efectivamente o justificam, relegando as bagatelas penais e as questões menores para meios alternativos de tutela dos bens violados, naqueles casos em que a sanção penal verdadeiramente se não justifica ou pode com vantagem ser substituída por condicionamentos de outra natureza, como é o caso das injunções e regras de conduta.
Não se diga, pois, que na duplicidade do sistema que apontámos no penúltimo parágrafo está implícita uma subordinação do M.P. ao poder judicial ou, no segundo caso, uma subordinação deste último ao M.P.. Não foi esse o escopo da lei, que apenas terá reconhecido que “no âmbito da sua específica actividade, o poder judicial e o Ministério Público estão inter-ligados por uma recíproca osmose funcional” [4], de tal modo que “a separação institucional e funcional entre o Ministério Público e o juiz (…) não evita uma ampla correlacionação e co-actuação material das duas entidades dentro do processo penal” [5].

Hoje, mais do que nunca, há que reconhecer que a atribuição ao Ministério Público do dever de suspender provisoriamente o processo penal quando verificados os requisitos previstos na lei não colide com o princípio constitucional da administração da justiça pelos tribunais, assim como não colide com o princípio da legalidade ou com o conceito de Estado de Direito. Vistas as coisas não do ponto de vista dum estrito princípio da legalidade na óptica da reserva da actividade jurisdicional ou de uma exacerbada preponderância do princípio do acusatório, antes considerando o primeiro daqueles princípios temperado pelo segundo, somos levados a concluir tanto pela constitucionalidade da norma como pela constitucionalidade da interpretação postergada na decisão em crise, por se revelar conforme com a norma. E ultrapassada esta questão, parece-nos que o que o sistema, nos termos em que se encontra plasmado em letra de lei, pretende e espera das magistraturas, é uma actuação ponderada e sem atropelos, vinculada aos princípios que conformam o processo penal. Uma e outra têm uma função a cumprir e devem cumpri-la. Do Ministério Público, espera-se uma utilização criteriosa do instituto da suspensão provisória, seguindo as directivas de política criminal numa actuação vinculada pelo princípio da legalidade. Da judicatura, espera-se uma actuação que respeite o princípio do acusatório, reconhecendo as atribuições impostas ao M.P. no domínio da suspensão provisória, abstendo-se de ultrapassar o âmbito do controlo que lhe é legalmente cometido e reservando a discordância para os casos de manifesta desconformidade legal da decisão de suspensão provisória.

Posto isto, é tempo de entrarmos na segunda questão suscitada no recurso.

- No caso vertente, a culpa do arguido é elevada e as injunções e regras de conduta são desadequadas ou insuficientes?

A culpa traduz-se essencialmente numa relação do agente com o facto típico, censurando-o por não ter agido de forma diversa, em conformidade com as exigências da ordem jurídica e o seu grau será tanto mais elevado quanto maior o desvalor do resultado – quanto maior o desvio relativamente à conduta esperada ou pressuposta pelo direito – apresentando-se assim como proporcional ao juízo de reprovação de que a conduta é passível. No caso vertente, dado o específico bem jurídico-criminal em causa, o juízo de culpabilidade deverá ser aferido a par do grau de ilicitude, implicando a consideração em concreto da taxa de alcoolemia apresentada pelo arguido, valorada numa escala que se inicia com a ilicitude juridicamente relevante, ou seja, 0,5 g/l (censurável do ponto de vista do direito, mas não do ponto de vista jurídico-criminal) e transita depois, com os 1,2g/l, para a ilicitude penal. Nessa medida, a taxa de 1,88 g/l, não sendo uma taxa “de fronteira” entre o ilícito de mera ordenação social e o ilícito criminal, também não é uma taxa elevada para efeitos criminais, ainda que se revista já de algum peso na determinação concreta da sanção.

Quanto às injunções e regras de conduta propostas, não poderiam ser mais adequadas. Registe-se, aliás, que não faz sentido esperar dessas imposições uma semelhança ou proximidade com a sanção penal abstractamente aplicável, por não ser esse, manifestamente, o sentido da lei. O que é necessário é que se ofereçam como eficazes num juízo de prognose relacionado com as finalidades de prevenção a alcançar.

Abreviando razões, diremos que não só a culpa, no caso concreto, não excede a mediania, como as injunções e regras de conduta avançadas pelo M.P., consideradas no seu conjunto, se apresentam com as vestes de uma total adequação à conduta em análise. Sendo assim, o recurso revela-se procedente.
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, dá-se provimento ao recurso e revoga-se a decisão recorrida, substituindo-a por decisão de concordância com a suspensão provisória do processo, nos termos do art. 281º do CPP, ex vi art. 384º do mesmo diploma.
Sem tributação.
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Porto, 08/07/2009
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Arlindo Manuel Teixeira Pinto
Artur Manuel da Silva Oliveira (voto vencido, conforme declaração que junto)

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[1] - in www.dgsi.pt, nº convencional RP200511090511871.
[2] - “Direito Processual Penal”, pag. 130 e ss.
[3] - “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª Ed., pags. 205/206.
[4] - José António Barreiros, “Processo Penal – 1”, pag. 300.
[5] - José António Barreiros, ob. e loc. cit., apud Figueiredo Dias, “O dever de obediência hierárquica e a posição do ministério público no processo penal”, RLJ, ano 106, pag. 173.


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Voto vencido no que se refere aos fundamentos do acórdão.
A minha discordância prende-se não com uma eventual limitação do âmbito da apreciação do juiz de instrução – quando é chamado a pronunciar-se sobre a suspensão provisória do processo –, mas com o estatuto e o conteúdo jurisdicional que informam essa sua intervenção. Apresento as seguintes razões [extraídas do projecto de acórdão que apresentei no processo n.º 287/09.33PBMTS-A.P1]:
1. – A suspensão provisória do processo é uma modalidade de arquivamento do inquérito. A par do arquivamento tout court [apoiado na falta de indícios da prática de um crime, da identidade do seu autor ou de condições legais de procedimento], o Ministério Público tem duas outras modalidades de arquivamento: o Arquivamento em caso de dispensa da pena [artigo 280.º, do Código de Processo Penal] e a Suspensão provisória do processo [artigo 281.º, do Código de Processo Penal].
Esta última traduz-se numa medida de consenso e de diversão na solução do conflito penal, especialmente vocacionada para situações de pequena e média criminalidade. Constitui um ténue afloramento do princípio da oportunidade, todo ele regido por critérios legais e objectivos de funcionamento [oportunidade regulada?]: no fundo, perante indícios da prática de um crime e do seu autor o Ministério Público determina, uma vez verificados os requisitos estabelecidos pela Lei, a suspensão provisória do processo, por certo prazo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta. Se observadas e respeitadas as medidas, segue-se o arquivamento do processo; se incumpridas ou se o arguido vier a cometer, durante o prazo de suspensão, crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado, então o processo prosseguirá [artigo 282.º, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal].
Na suspensão provisória do processo o Ministério Público decide não exercer a acção penal. São casos em que as circunstâncias justificam – e nessa medida impõem – a cessação do dever de acusar, ou seja, a renúncia à pretensão punitiva do Estado pela não submissão do caso a julgamento. Fundamenta-se em razões de dignificação e de funcionalidade do sistema de justiça penal para casos em que as exigências de prevenção não justificam os custos do prosseguimento formal típico do processo – reserva de intervenção mínima do direito penal, desobstrução da máquina judicial, promoção da economia e celeridade processuais, prossecução de objectivos do programa político-criminal, evita a estigmatização e o efeito dissocializador relativamente a delinquentes ocasionais com prognóstico favorável, etc. [ver Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 67/2006, de 24 de Maio de 2006 (D.R. II série de 9 de Março de 2006)].
A suspensão provisória do processo é, assim, um arquivamento contra injunções e regras de conduta [Manuel da Costa Andrade, in “Consenso e oportunidade – Reflexões a propósito da suspensão provisória do processo e do processo sumaríssimo”, Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo Penal, p. 319], isto é, um arquivamento condicionado ao prévio cumprimento de injunções e regras de conduta. Claramente, as injunções e regras de conduta não são penas [Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 144/06]. Nem a suspensão provisória do processo é um despacho condenatório, ou sequer uma decisão assente num propósito de censura ético-jurídica. É, isso sim, uma espécie de transacção segundo a qual o arguido aceita respeitar determinadas injunções e regras de conduta e o Ministério Público se compromete a, caso elas sejam cumpridas, desistir da pretensão punitiva e a arquivar o processo [“justiça penal negociada”, como lhe chama Figueiredo Dias, in “Autonomia do Ministério Público e seu dever de prestar contas à comunidade: um equilíbrio difícil”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 17, n.º 2, pág. 204].
2. – O Ministério Público é um órgão do poder judicial, dotado de autonomia, a quem cabe, além do mais, «exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática» [artigo 219.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa e artigos 1.º e 3.º, alínea c), do Estatuto do Ministério Público (Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro)]. Toda a sua intervenção processual obedece a critérios de legalidade e de estrita objectividade [artigo 53.º, n.º 1, do Código de Processo Penal], pelos quais responde perante a sociedade [Figueiredo Dias, artigo citado, pág. 181 e ss.].
No âmbito específico do processo penal compete-lhe dirigir o inquérito [artigos 53.º, n.º 2, alínea b), 263.º e 264.º, do Código de Processo Penal], o que pressupõe não só o poder de orientar a investigação criminal [artigo 56.º, do Código de Processo Penal] mas também o de decidir, a final, pelo arquivamento [nas suas diversas modalidades] ou pela acusação [artigos 277.º, 279.º, 280.º e 283.º, do Código de Processo Penal].
Actualmente, a decisão final do inquérito não prevê um controlo judicial. Só em casos de discordância relativamente à decisão do Ministério Público e mediante pedido específico, formulado de forma motivada e circunscrita, pode o juiz de instrução iniciar a fase de Instrução, com vista a comprovar judicialmente tal decisão [artigo 286.º, n.º 1: “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito…”; e artigo 287.º, ambos do Código de Processo Penal].
De facto, o princípio do acusatório [artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa] pressupõe, além do mais, que as entidades que investigam sejam distintas das que julgam. Esta separação envolve não só a correspondente responsabilização de cada um dos órgãos pela fase processual que dirige, mas, sobretudo, a manutenção de duas matrizes funcionais complementares mas independentes, em que a jurisdicional não exerce atribuições de fiscalização e de primazia sobre as decisões do Ministério Público no âmbito do inquérito.
3. – De facto, quando o Tribunal Constitucional se pronunciou pela inconstitucionalidade do artigo 281.º, da versão inicial do Código de Processo Penal [Acórdão n.º 7/87], recusou tanto a ideia de que a actuação do Ministério Público correspondia a uma usurpação do exercício da função jurisdicional, como a ideia de que a decisão de suspensão provisória do processo tomada pelo Ministério Público se pudesse tornar efectiva sem a intervenção do “juiz de instrução” [ver votos de vencido]. E assim, reclamando apenas a apreciação do juiz de instrução acabou por não prescrever uma especial dimensão a essa sua intervenção, que a tornasse diferente daquele que é o seu padrão de competência funcional no âmbito do inquérito.
É que todas as intervenções do juiz de instrução na fase do inquérito ocorrem, unicamente, para assegurar a tutela dos direitos fundamentais do arguido [ver artigos 268.º e 269.º, do Código de Processo Penal]. Isso mesmo tem vindo a ser reconhecido, de modo uniforme, pelo Tribunal Constitucional:
«(...)III - A intervenção do juiz só vale no âmbito do núcleo da garantia constitucional. Assim ocorre em toda a fase de inquérito ao Ministério Publico confiada pelo Código de Processo Penal actual, compreendendo o conjunto de diligencias que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, descobrir e recolher provas em ordem a decisão sobre acusação (artigo 262º, n. 1), justificando-se a intervenção do juiz-garante sempre que afectado aquele núcleo, consoante o elenco de situações descritas nos artigos 268º e 269º» [acórdão de 31-1-1990 (Tavares da Costa), processo 90-0180, in http://www.dgsi.pt].
«(…) sendo as intervenções do juiz meramente circunstanciais, e sempre com a finalidade de acautelar a rigorosa observância das normas e procedimentos que possam contender com os direitos fundamentais dos cidadãos» – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 583/2008, que cita o acórdão da Relação de Lisboa, processo n.º 10547/07.9 do TRL, Relator Almeida Cabral).
«(…) justificando-se a intervenção do juiz para salvaguardar a liberdade e a segurança dos cidadãos no decurso do processo-crime e para garantir que a prova canalizada para o processo foi obtida com respeito pelos direitos fundamentais» [acórdão de 9-1-1987, processo 86-0302, in http://www.dgsi.pt/atco];
«(…) Força é que essa concordância [relativa à suspensão provisória do processo] resulte de uma vontade esclarecida e livre. Mas é sobretudo por isso, porque as medidas comportam o risco de contender com direitos, liberdades e garantias e para assegurar que, pelo conteúdo e pelo modo dos comportamentos a que o arguido se compromete, não é afectada a zona de indisponibilidade de direitos fundamentais, que se faz intervir o juiz das garantias. O juiz fiscalizará, com base na ordem jurídico-constitucional dos direitos fundamentais a adequação, necessidade e proporcionalidade da (auto)limitação, bem como a sua racionalidade» [acórdão n.º 144/2006, de 22-2-2006, in http://www.tribunalconstitucional.pt/, todos acedidos em Junho de 2009].
No mesmo sentido vão os seguintes acórdãos da Relação de Lisboa:
«I - A competência do Juiz de Instrução durante a fase de inquérito – presidida pelo Ministério Público – está reservada para actos que interferem com direitos fundamentais e outras matérias que a lei reserva ao juiz, obedecendo a um quadro de intervenção tipificada, em que o Juiz é completamente alheio à estratégia investigatória delineada pelo MP, não exercendo qualquer controlo sobre o exercício da acção penal. Este é o reflexo da estrutura acusatória do nosso sistema processual penal. II - Durante o Inquérito, o Juiz só pode realizar diligências probatórias relativamente a matérias em que seja admitida a intervenção ex officio (arts. 212° e 213°, do CPP), incidindo apenas sobre factos susceptíveis de alterar as medidas coactivas, de modo a obter os elementos julgados necessários para tomar a decisão, não podendo, como em última análise pretendia o recorrente, deferir a realização de diligências que nada têm que ver directamente com a tomada desta decisão, e que bem poderiam conduzir a uma investigação paralela ou ao arrastar da investigação» [acórdão de 17.10.2007 (Conceição Gonçalves), processo 6918/2007-3, in http://www.dgsi.pt]; e
«I - Está excluída da esfera de atribuições do juiz, sempre que a instrução não for requerida, a apreciação dos indícios recolhidos no inquérito. II - Com efeito, não compete ao juiz a indicação e definição dos indícios verificados nem a designação de qual o crime pelo qual deverá ser exercida a acção penal, matéria da exclusiva competência do detentor da acção penal. III - Também se tem entendido uniformemente que só a omissão total de inquérito ou a omissão de diligências reputadas de obrigatórias se pode considerar susceptível de integrar omissão de diligências integradora da nulidade prevista no art.119º., al.d) do C.P.P. que não é confundível com a mera insuficiência de inquérito, nulidade sanável cuja apreciação pelo tribunal pressupõe a sua arguição tempestiva pelo interessado (art.120º., nº.2 al.d) do C.P.P.). IV - Deve, assim, proceder o recurso interposto pelo Ministério Público da decisão que, perante a acusação deduzida pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguês, declarou a nulidade do inquérito, decorrente da falta de promoção pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário. V - É que o Ministério Público, a quem compete a direcção do inquérito, realizou os actos que reputou essenciais para a descoberta dos factos imputados ao arguido e que, no seu critério, seriam susceptíveis de integrar o crime de condução em estado de embriaguez, não se vislumbrando que se impusesse a realização de outras diligências, nem que a factualidade apurada levasse necessariamente a configurar a possível incriminação de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º. do Código Penal» [acórdão de 18.09.2007 (Filomena Clemente Lima), Processo 5984/07 5ª Secção, in http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/jurel/jur_mostra_doc.php?nid=4204&codarea=57, ambos acedidos em Junho de 2009].
Assim, resulta claro, por um lado, que as funções jurisdicionais do juiz de instrução, no inquérito, se prendem com a prática ou a autorização de actos que se traduzam em ataques a direitos, liberdade e garantias das pessoas: não lhe são reconhecidas competências para sindicar a actividade e a diligência do Ministério Público na investigação, nem para ajuizar da decisão final do inquérito promovida por este. E por outro lado, que o legislador, na esteira do determinado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87, não divergiu desse plano funcional quando estipulou a intervenção do juiz de instrução na suspensão provisória do processo.
4. – Conjugando os quadros de competências assim definidos, concluo que é ilegal a intromissão do juiz de instrução na decisão de suspensão provisória do processo quando ela se não inscreva na defesa de factores garantísticos. É uma intromissão ilegal na esfera de competências do órgão responsável pelo inquérito, desde logo, porque não é requerida. Mas também porque actua fora do seu próprio contexto de competência jurisdicional no inquérito, que é o núcleo das garantias constitucionais do arguido — surgindo, aqui, a reivindicar uma mais vincada pretensão punitiva do Estado [!], indiferente ao consenso gerado e à definição das responsabilidades atribuídas ao Ministério Público.
Como refere Souto Moura: “(…) a iniciativa de suspensão e correlativas injunções e regras de conduta cabe ao Mº Pº. Qualquer intervenção do juiz à revelia do Mº Pº para se pronunciar sobre a justiça do caso e antes mesmo do exercício da acção penal seria inadmissível” [“Inquérito e instrução”, Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo Penal, 1988, pág. 115].
Também o Prof. Figueiredo Dias, referindo-se especificamente à suspensão provisória do processo é claro ao afirmar: «(...) a sua [do Ministério Público] decisão de promover ou não promover um processo não pode em caso algum (…) ser comandada pela sua discricionariedade livre (…); mas pode e deve ser comandada pela sua discricionariedade vinculada, isto é ainda, pela sua obediência à lei, aos juízos de valor legais e sobretudo aos programas político-criminais democraticamente definidos e aos quais o Ministério Público deve obediência estrita e pelos quais tem de prestar contas. (…) Uma legalidade que, deste modo, abarca a própria oportunidade discricionariamente vinculada, geradora de uma autonomia que não deve ser ensombrada ou, ainda menos, limitada por interferência de outros órgãos de administração da justiça penal» [escrito antes citado, pág. 205, com sublinhados nossos].
Tal como o juiz de instrução não aprecia, no inquérito, os indícios quando o Ministério Público decide arquivá-lo, nem pode agravar as medidas de coacção por ele propostas [artigos 278.º e 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]; tal como o juiz de julgamento, no momento em que recebe a acusação, não profere um juízo crítico sobre os indícios dos autos e a sua conformidade à acusação formulada [artigo 311.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal; mesmo no caso de notória insuficiência de prova indiciária, como realça o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/01]; assim também, nos casos de suspensão provisória do processo, o juiz de instrução não avalia os indícios do inquérito com vista a determinar que o grau de culpa do arguido é elevado ou que as injunções e deveres de conduta decididas pelo Ministério Público são insuficientes. Intervém, isso sim, para verificar se, na decisão proposta há questões que contendem com direitos fundamentais do arguido.
Deste modo, cabe-lhe:
● Verificar se os indícios recolhidos apontam para a existência de um crime e para a identificação do seu autor; e se são suficientes para poder levar o caso a julgamento;
● Verificar se a concordância do arguido e do assistente são livres e esclarecidas;
● Confirmar a ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza e a ausência da aplicação anterior de suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza;
● Certificar-se que não é caso de aplicação de medida de segurança de internamento;
● Verificar se as injunções e regras de conduta aplicadas ofendem a dignidade do arguido e se são desproporcionadas, revelando uma restrição excessiva e injustificada [seguindo de perto João Conde Correia, in “Concordância judicial à suspensão provisória do processo: equívocos que persistem”, Revista do Ministério Público, Ano 30º, Jan-Março 2009, n.º 117, pág. 43 a 83].
Essas são, em minha opinião, as funções que respeitam o quadro específico [genético] de competências do juiz de instrução no inquérito, o juiz das liberdades [Raul Soares da Veiga, “O Juiz de instrução e a tutela de direitos Fundamentais”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, pág. 197]. E as que respeitam a competência material exclusiva do Ministério Público para dirigir, realizar e decidir o inquérito.
Por outro lado, esta é a leitura que se harmoniza com o disposto no artigo 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [se o juiz de instrução sindica, avalia e “julga”, ele próprio, o grau de culpa do arguido e a adequação das medidas, para quê exigir-se a “concordância do Ministério Público”?], distinguindo-se, claramente, da rejeição do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo [artigo 395.º, do Código de Processo Penal – aqui, a Lei concede ao juiz de instrução o poder de rejeitar a “sanção” proposta por se revelar insusceptível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, e até de ele fixar sanção diferente, na sua espécie ou medida].
Por fim, esta é também a solução que se coaduna com o facto de a lei não prever, no inquérito, qualquer intervenção do juiz de instrução no arquivamento simples [Cui licet quod est plus, licet utique quod est minus – quem pode o mais, pode o menos], pelo que menos sentido faz esperar uma sindicância judicial à bonomia da decisão do Ministério Público nos casos em que o arquivamento impõe o cumprimento de certas medidas e resulta de um consenso entre a acusação e o arguido.
5. – Em suma: o juiz de instrução não julga o inquérito. Como a investigação criminal está entregue ao Ministério Público e aos órgãos de polícia criminal que o coadjuvam, cabe ao juiz de instrução assegurar que a defesa beneficia das garantias constitucionais e infra-constitucionais estabelecidas. Tal é a razão de ser da sua intervenção no âmbito do inquérito e, como nada o excepciona, também no caso da suspensão provisória do processo: é para garantir que o processo cumpre os pressupostos exigidos por lei e que as medidas propostas e aceites não contendem com direitos, liberdades e garantias do arguido, não para exercer revista sobre a decisão do órgão acusador, propondo a agravação das medidas ou eliminando a possibilidade desta forma de arquivamento por considerar que o grau de culpa o não consente. É essa a sua atribuição funcional – e a sua grandeza.
Sobre a convergência, no essencial, da competência exclusiva do Ministério Público para dirigir o inquérito e do controlo das garantias jurisdicionais em beneficio da defesa pelo juiz de instrução, ver “Actes du 6 ème Congrés de l’Association syndicale des magistrats”, Revue de Droit Penal et de Criminologie, 1990, pp. 809 e ss. Alinhamento de princípios – não de modelos de práticas concretas – que muito deve à Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa, R.(87) 18, sobre a “simplificação da justiça penal”, adoptada em 17 de Setembro de 1987.]
Daí que, em meu entender é inconstitucional a interpretação dada ao artigo 281.º, do Código de Processo Penal, na medida em que admite a discordância do juiz de instrução com base na consideração de um mais gravoso índice de culpa do agente e [ou] da insuficiência das medidas propostas pelo Ministério Público – por violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, que fixa a estrutura acusatória do processo criminal. Com o que o despacho recorrido extravasou as suas competências. Assim, defendi que tal despacho é nulo [artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal] e que deveria ser substituído por outro que procedesse à avaliação dos autos nos termos acima definidos.
Naturalmente, com esta interpretação não formulo opinião sobre o modelo político-criminal que nos governa. Apenas dou expressão àquela que me parece ser a leitura integrada que respeita o quadro legal vigente. Certos de que algumas ideias são modelares. Nas palavras de Maria Ângela Alvim: “Inútil, inútil, inútil, / quem lê no ar brusco? / Capricho, a flor é fútil / num vaso etrusco” [Superfície – Toda a poesia, Assírio & Alvim].

Artur Oliveira