Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8/06.2GAAMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: COELHO VIEIRA
Descritores: LENOCÍNIO
CÚMPLICE
Nº do Documento: RP201204118/06.2GAAMT.P1
Data do Acordão: 04/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Pratica, como cúmplice, o crime de lenocínio, o agente que transporta as mulheres para o estabelecimento com vista à prática de atos sexuais a troco de dinheiro, recebe dos clientes o dinheiro relativo ao pagamento dos encontros de cariz sexual entre as mulheres e os clientes, auxilia quem explora o estabelecimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 8/06.2GAAMT.P1

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

No T. J. de Amarante foi elaborado o seguinte Acórdão (transcrito em parte):-

(…)

I.
Em processo comum e para julgamento perante tribunal colectivo o Ministério Público acusou:
- B…, casado, comerciante de gado, nascido a 09-11-1960, natural de …, Baião, filho de C… e de D… e residente actualmente em …, Amarante;
- E…, comerciante de gado vivo, solteiro, nascido a 30-08-1983, natural de Fafe, filho de F… e de G… e residente em Rua …, …, …., Fafe;
- H…, solteiro, vendedor de legumes e fruta, nascido a 02-12-1979, natural de …, Porto, filho de I… e de J… e residente na Rua …, …, …, …, Penafiel;
- K…, divorciado, tratador de equídeos, nascido a 10-02-1977, natural de Penafiel, filho de L… e de M… e residente no …, Penafiel, actualmente detido, na situação de prisão preventiva,
pela prática de factos susceptíveis de integrarem a co-autoria material e na forma consumada de:
- oito crimes de lenocínio, punidos pelo artigo 170º do Código Penal, na sua versão anterior às alterações introduzidas pela Lei 59/2007, de 04 de Setembro, actualmente, p. e p. pelo artigo 169º do Código Penal;
- um crime de auxílio à emigração ilegal, p. e p. pelo n° 2 do art. 134°- A, do DL 34/2003 de 25 de Fevereiro.

Pelos arguidos não foi apresentada contestação escrita.

Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal.

Após o despacho que designou dia para julgamento mantiveram-se os pressupostos de validade e regularidade da instância, não existindo questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

Fundamentação
1. Factos provados
1. Ao menos no mês de Novembro de 2006, o arguido E… era o titular, como arrendatário, de um contrato de arrendamento do estabelecimento sito no …, …, Amarante composto por rés do chão e 1° andar, sendo a renda no valor de cerca de 1250 Euros, sendo senhorio N….

2. O estabelecimento está licenciado como café/bar, com o horário entre as 08.00 e as 02.00 horas, mas na realidade abre às 22.00 horas e encerra de madrugada, ao menos numa ocasião (18.11.2006) após as 05.00 horas.

3. O terceiro arguido H… desempenhava ali funções de porteiro, entregando cartões de consumo aos clientes.

4. O quarto arguido, K…, desempenhava as funções de “barman”, servindo as bebidas aos clientes.

5. Tal estabelecimento, instalado no rés-do-chão de uma vivenda, toda cercada com rede de arame e rede sombra, era composto, no seu piso superior, por seis quartos, uma cozinha e uma casa-de-banho.

6. Desde data não concretamente apurada, mas ao menos desde Novembro de 2006 e até Junho de 2007, a parte superior da referida habitação era usada para a prática de actos sexuais a troco de dinheiro, recorrendo para tal a mulheres, na sua maioria de nacionalidade brasileira, nomeadamente O…, P…, Q…, S…, T… e U…, V… e W….

7. O rés-do-chão do estabelecimento funciona como discoteca/bar.
Com efeito, é este local que as mulheres se dão a conhecer aos homens que aí se dirigem com o propósito de manterem relações sexuais e por estes são escolhidas após uma breve conversa sobre o preço destes serviços.
Em regra, as mulheres tentam ainda convencer os clientes a pagar-lhes uma bebida.
Do valor das bebidas que os clientes se oferecem a pagar reverte uma quantia a favor das mulheres.
Acertado o encontro sexual, que decorrerá nos quartos do piso superior da vivenda, cada mulher, juntamente com o cliente, leva o cartão de Cliente (consumo mínimo) e entrega-o ao barman, pagando o cliente 35 € ao arguido K….
Por indicação das mulheres os clientes saem, por vezes, pela porta de entrada da discoteca para o logradouro da vivenda, contornam a casa pelo alçado esquerdo e dirigem-se a uma porta colocada num acrescento a toda a altura da construção, feito em chapa de zinco, no qual estão colocadas umas escadas em ferro que dão acesso à varanda e, por sua vez, ao interior da habitação.
Por seu turno, a mulher que com ele acordou ter relações sexuais, desloca-se à parte interior do balcão, de onde retira a sua mala de mão, recebe do “barman”, o arguido K…, as chaves do quarto e uma chapa de identificação do n.º do quarto e acede ao piso superior, onde se encontram os quartos, os quais servem para a prática de actos sexuais.
Logo na ocasião em que recebiam as chaves do quarto, recebiam as mulheres a quantia de 25 EUR, entregue pelo arguido K… e relativa à deslocação aos quartos para os encontros destinados a relacionarem-se sexualmente com os diversos clientes, ficando os 10 EUR restantes na posse do arguido K….

8. No dia 18/11/2006, pelas 05h00m, encontravam-se no piso superior do referido estabelecimento, nos diversos quartos ali existentes, várias senhoras, as quais se encontravam a ter relações sexuais, individualmente, nos quartos da referida habitação, com os clientes que ali se haviam deslocado com essa finalidade.
Nessa data, estavam no referido estabelecimento vários objectos relacionados com o tipo de actividade ali desenvolvida, nomeadamente, vinte (20) preservativos da marca “…”, três (03) chapas com os números 1, 4, 7, que serviam para marcar os quartos.

9. No dia 26 de Janeiro de 2007, pelas 22h40m, pela GNR de Amarante foi interceptada a viatura de matrícula ..-..-KD, de marca Nissan – ligeiro misto de cor azul, sendo o seu condutor K…, o qual transportava quatro cidadãs todas de nacionalidade brasileira, V…, X…, Y…, Z…, e ainda um cidadão brasileiro de nome AB…, dirigindo-se todos para o estabelecimento em apreço, onde se encontravam a laborar.

10. No dia 17 de Junho de 2007, pelas 02h30m, encontravam-se naquele local, cerca de doze (12) senhoras e cerca de quinze (15) clientes, bem como o arguido B….
Uma das senhoras, cuja identificação não se logrou apurar, encontrava-se com um cliente, no 1º piso da referida habitação, ocupando o quarto n.º 1, os quais se encontravam completamente nus e tendo acabado de ter relações sexuais, a troco de dinheiro.

11. Nesse mesmo dia, encontrava-se no interior do referido estabelecimento a cidadã brasileira de nome O…, sobre a qual impendia o processo de expulsão com o número 298/06, tendo a mesma sido notificada da decisão ali tomada no dia 13 de Fevereiro de 2007.

12. Para o transporte das mulheres que trabalhavam no referido estabelecimento, era utilizada a viatura de marca Toyota de cor vermelha, modelo Hiace, matrícula ..-..-IV, a qual era habitualmente conduzida pelo arguido K…. Aquela viatura está registada a favor do arguido B…, incidindo uma reserva de propriedade a favor de locadora.

13. O estabelecimento referido, bem como a habitação situada no 1º andar deste, estavam organizados de forma a ali se praticarem relações de sexo entre os clientes que frequentavam o referido estabelecimento e as raparigas que para lá eram transportadas, ainda ou também mediante o uso das viaturas referidas, o que era feito com o intuito de serem obtidos lucros.

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2. Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa não se provou que:
a) Em data não concretamente apurada, mas situada em Fevereiro ou Março de 2005, o arguido E… celebrou com N… um contrato de arrendamento do estabelecimento referido sob o ponto 1 da matéria assente, ficando o arguido B… responsável pelo pagamento da respectiva renda e como o explorador do respectivo local;
b) O terceiro arguido H…, desempenha no estabelecimento em causa, ainda, funções de segurança, garantindo a segurança no seu interior;
c) Não era possível o acesso por parte do interior do estabelecimento de café/bar para aquele andar superior;
d) A exploração do estabelecimento, nos termos dados como assentes em 6 e seguintes, foi-o desde Março de 2005 – data em que foi celebrado o contrato de arrendamento do referido local –;
e) Aquela exploração era-o pelo arguido B…/ou pelo arguido E…;
f) Do valor de 35 EUR pago pelo cliente para manter relações sexuais, nos termos assentes em 7, § 5º, reverte para o arguido B… a quantia de 15€ e um outro montante não apurado para o arguido E…;
g) Cada mulher, nas circunstâncias de tempo, lugar e modo referidas em 7, §7, recebia ainda um papel das mãos do arguido K…;
h)Para receberem o pagamento da parte acordada quer no que respeita às bebidas, quer quanto à deslocação aos quartos para os encontros destinados a relacionarem-se sexualmente com os diversos clientes, o arguido K… que se encontra ao balcão procede às devidas anotações num caderno que guarda e em cartões que as mulheres trazem consigo;
i) Cada relação sexual com os clientes apenas pode demorar cerca de vinte minutos, sendo que não podem estar mais de quatro mulheres ausentes da sala do estabelecimento;
j) Os arguidos tinham conhecimento da situação de expulsão que sobre O… impendia;
k) Para o transporte das mulheres que trabalhavam no referido estabelecimento era o arguido B… quem utilizava a viatura sua propriedade;
l) Agiram os arguidos, de forma livre, de comum acordo e em comunhão de esforços, cientes e aceitando o resultado da conduta uns dos outros, mediante um plano previamente gizado por eles e em que cada um desempenhava as funções que lhe estavam determinadas, com o propósito concretizado de incentivarem aquelas mulheres, todas de nacionalidade estrangeira, na sua maioria brasileiras, a prostituírem-se, de forma a auferirem rendimentos que, no seu país de origem, não teriam, o que fizeram ainda com o propósito de obterem, para si, como obtiveram, elevados lucros;
m) Os arguidos, ao agirem da forma supra-descrita, fizeram-no com o propósito concretizado de obter lucro à custa da exploração da prostituição, indiferentes à degradação moral e física daí decorrente para tais mulheres, resultado este que representaram;
n) Sabiam os arguidos que sobre a cidadã brasileira de nome O… impendia o processo de expulsão com o número 298/06, a qual havia sido notificada do mesmo no dia 13 de Fevereiro de 2007, e, não obstante terem conhecimento da situação de ilegalidade de permanência em território nacional em que a mesma se encontrava, continuaram a, desde essa data, tê-la como trabalhadora naquele estabelecimento comercial, para o que lhe pagavam parte dos rendimentos por aquela obtidos pela prática da actividade supra-descrita, assim facilitando a sua permanência no nosso país, o que fizeram com intuito de obterem lucros, o que representaram e lograram conseguir.

(…)

Do enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos

Os arguidos encontram-se acusados pela prática de factos susceptíveis de integrarem a co-autoria material e na forma consumada de:
- oito crimes de lenocínio, punidos pelo artigo 170º do Código Penal, na sua versão anterior às alterações introduzidas pela Lei 59/2007, de 04 de Setembro, actualmente, p. e p. pelo artigo 169º do Código Penal;
- um crime de auxílio à emigração ilegal, p. e p. pelo n° 2 do art. 134°- A, do DL 34/2003 de 25 de Fevereiro.

Em primeiro lugar, os arguidos vêm acusados pela prática de tantos crimes de lenocínio quantas as (mulheres) vítimas, ou seja, 8 crimes de lenocínio simples, p. e p. pelo art. 170º, n.º 1 do C. Penal.
Este entendimento não é pacífico.
No Acórdão da Relação do Porto, proferido no processo 595/05, disponível em www.dgsi.pt, é feita uma resenha histórica e doutrinal exaustiva sobre as posições em confronto, de que destacamos o seguinte: “(…) Para ANABELA RODRIGUES, “[...] com esta incriminação o bem jurídico não é, como devia, a liberdade, a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas persiste aqui uma certa ideia de «defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade» que não é encarada hoje como função do direito penal". Não obstante, a mesma autora acaba por considerar mais adiante que “[...] o crime só pode ser entendido como um crime de resultado, pretendendo proteger-se – como se pretende, apesar de tudo – o bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual da pessoa".
Também JOSÉ MOURAZ LOPES afirma, em comentário àquele artigo 170º, que “[...] no n.º 1 não se tutela, agora, a liberdade sexual de alguém, único fundamento para a punição dos crimes contra a liberdade sexual, onde, sublinhe-se, apenas deve estar em causa a liberdade e a autodeterminação de uma pessoa concreta e não qualquer opção moral sobre a vida sexual que cada um quer ter - nomeadamente de quem pratica a prostituição"; acrescentando que "[...] o que é tutelado, agora, no n.º 1, como bem jurídico, é uma determinada concepção de vida que não se compadece com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição”.
De forma mais peremptória, SÉNIO ALVES chega a afirmar que o bem jurídico tutelado não é a liberdade e a autodeterminação sexual, mas sim "[...] o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto”, propondo mesmo a transferência do crime em apreço para o Título IV ("Dos crimes contra a vida em sociedade”).
Também VERA LÚCIA RAPOSO defende que o bem jurídico tutelado pelo art.º 170º n.º 1 do Código Penal não se trata da liberdade sexual, mas de valorações morais sobre a condução da vida, sem dignidade penal, propondo, por isso, a sua descriminalização.
Já para PEDRO VAZ PATO a justificação para "[...] a punição de quem explora o, ou se serve do, exercício da prostituição por outrem "radica no princípio da protecção da dignidade da pessoa humana", assim afirmando que "[...] o bem jurídico não é o da moralidade sexual, nem estamos perante um «crime sem vítima». O bem jurídico protegido é o da dignidade da pessoa que se prostitui (ou se vê forçada a prostituir-se) e é esta a vítima do crime em questão (a vítima, e não o seu agente).
Por fim, é ainda apontado "como demonstrativo da sensibilidade de criminalização operada pelo art.º 170º do Código Penal" o facto de, em sede da Comissão Revisora, o Prof. Fig. Dias se "[...] ter mostrado favorável a uma acção descriminalizadora neste domínio", considerando que, "[...] no fundo se trata de um problema social e de polícia", sugestão que, contudo, não foi aceite pelo legislador.
Finalmente, no sentido de que o crime de lenocínio tutela a liberdade da pessoa, bem eminentemente pessoal, o estudo de JORGE DIAS DUARTE, amplamente citado.
A mesma dissidência que se verifica na doutrina reflecte-se na jurisprudência, podendo encontrar-se, assim, decisões distintas, quer quanto ao bem jurídico tutelado pelo crime de lenocínio, quer quanto à questão da unidade/pluralidade de infracções, quando são várias as pessoas cujo exercício da prostituição (ou de actos sexuais de relevo) seja fomentado, favorecido ou facilitado pelo agente da infracção.
Assim temos que:
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.2.86, BMJ, 354º, 350: O valor jurídico defendido na incriminação de lenocínio é o da liberdade individual no aspecto sexual. Se o agente, em sucessivos momentos, decide recrutar diferentes mulheres, aliciando-as ao exercício da prostituição, para viver do rendimento dos actos sexuais delas, torna-se autor de múltiplas infracções (concurso real).
Em sentido idêntico, o Acórdão Tribunal da Relação do Porto, de 7.06.89, CJ XIV Tomo III, pág. 232 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.04.83 BMJ 326º, 322.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Março de 1990, BMJ 395º, 312: Quem explorar profissionalmente e lucrativamente o ganho imoral de prostitutas, vivendo, total ou parcialmente, dessa actividade, constitui-se autor de um crime de lenocínio. O bem jurídico objecto de protecção no crime de lenocínio....identifica-se com a liberdade individual... na esfera sexual do indivíduo instrumentalizado na prossecução de acção criminosa. O aliciamento, nas sobreditas condições e em momentos sucessivos, de diferentes mulheres para o exercício da prostituição, tendo em vista viver à custa do rendimento dos actos sexuais por elas praticados, faz incorrer o agente na autoria de um número plural de infracções (concurso real).
No Acórdão de 23 de Outubro de 1985, do Tribunal da Relação de Coimbra, BMJ 350º, 396, decidiu-se também, quanto à questão do concurso: Há tantos crimes de lenocínio, em acumulação real, quantas as mulheres cuja prostituição o agente explora (e não é configurável a continuação criminosa, por estarem em jogo interesses eminentemente pessoais das ofendidas).
No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 13.01.89 BMJ 383º, 258: O interesse jurídico protegido (...) é também a personalidade.
Mais recentemente, o Acórdão de 14 de Outubro de 2002, deste Tribunal da Relação do Porto, pronunciou-se no sentido de que “na previsão normativa do n.º 1 do artigo 170º do Código Penal, epigrafado de lenocínio, o que está em causa, mais do que tudo, é a exploração de uma pessoa por outra, "uma espécie de usura ou extorsão em que a ameaça ou tráfico de protecção se pode confundir com exploração afectiva".
Finalmente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.1.2004, entendeu que na previsão normativa do n.º 1 do art.º 170º do Código Penal o que está em causa é a exploração de uma pessoa por outra, uma espécie de usura ou enriquecimento ilegítimo fundado no comércio do corpo de outrem por parte do agente (...) uma clara violação da dignidade humana, da integridade moral e física da pessoa humana e, por isso, obstáculo à livre realização da respectiva personalidade, valores constitucionalmente protegidos nos arts 25º e 26º da Constituição.
Em sentido contrário, decidiram v.g. os Acórdãos:
Do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.06.85, CJ X Tomo III, pág. 118: o crime do art.º 216º do Código Penal de 1982 é um crime qualificado ou agravado em relação ao do art.º 215º, estando numa relação de especialidade; a plúrima violação de ambos traduz-se numa unidade de conduta.
Da Relação de Coimbra, de 18 de Junho de 1991, segundo o qual " [...] o bem jurídico, no crime de lenocínio, não é eminentemente pessoal. Não é a prostituta que a lei quer proteger com tal incriminação, mas apenas o interesse geral da sociedade em que haja pudor e moralidade sexual e ganho honesto".
Da Relação de Lisboa, de 18 de Junho de 1991, para quem: "[...] o interesse protegido pelos arts 215º e 216º do Código Penal de 1982 não é de natureza eminentemente pessoal, mas social, no sentido da protecção dos valores ético-sociais da sexualidade, na comunidade".
Da Relação de Guimarães, de 14 de Outubro de 2002, em que, depois de se afirmar que o crime de lenocínio "visa proteger a liberdade e a autodeterminação sexual da pessoa, embora.....persista aqui uma certa ideia de defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade", se diz, algo contraditoriamente: O crime de lenocínio é um crime de execução continuada em que não estão em causa bens jurídico eminentemente pessoais. Por isso, comete um só crime, aquele que, em execução de uma única resolução criminosa, fomenta ou facilita a prostituição de várias mulheres, durante determinado período de tempo.
Do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.10.2003, Proc. 2301/03, 3ª secção: (…) protege-se o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto. Assim também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7.11.90, BMJ 401º, 205.”

A nosso ver, o bem jurídico protegido no artigo 170º, n.º 1 do Cód. Penal não é a liberdade de determinação sexual. Na verdade, na redacção consideranda do referido preceito (do mesmo modo na redacção actual) (contrariamente à redacção imediatamente anterior), tal crime existe, ainda que aquele que pratica a prostituição o faça livremente, sem quaisquer constrangimentos. Se a prostituta ou o prostituto, de maior idade e no perfeito estado das suas faculdades, pretende exercer a prostituição, o favorecimento que outro fizer dessa actividade, com intuito lucrativo, não tem a ver com a sua liberdade de determinação sexual.
Julgamos pois que a redacção consideranda (como a actual) do art. 170º, 1 (ora 169º) do C. Penal, ao delimitar o tipo, recortando-o apenas em função da acção de fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição, com intenção lucrativa, desligando-o (a não ser para efeitos de agravação) de qualquer aproveitamento de situações de dependência ou carência económica, ou de qualquer outra espécie, não está a querer punir a ingerência na formação da vontade de quem se prostitui, mas apenas o aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente, não é reconhecida como plenamente lícita.
O legislador, ao punir todo e qualquer aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de outros, pune essencialmente uma actividade, uma profissão (“Quem, profissionalmente…”- art. 170º,1) e não uma corrupção da vontade livre.
A diferença específica entre o lenocínio simples (art. 170º, 1 do C. Penal) e o lenocínio agravado (art. 170º, 2) radica na natureza do relacionamento entre quem explora e quem se prostituiu, isto é, radica na existência ou não da corrupção da livre determinação sexual: havendo livre determinação sexual de quem se prostitui, o lenocínio é simples; não havendo essa liberdade, o lenocínio é agravado.
Não poderemos deixar de reconhecer que existe uma diferença de fundo entre as normas do nº 1 e do nº 2:
- A primeira tipifica o crime de lenocínio, identificando-o com uma determinada actividade do agente, mas prescinde do conceito de vítima;
- a segunda, agrava a moldura penal em função da existência de uma vítima e das consequências para ela resultantes da conduta do agente;
- a primeira limita-se a tutelar “o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto” [Frase citada por Anabela Rodrigues no Comentário Conimbricense do Código Penal (tomo 1, pág. 519), por referência a Reis Alves, Crimes Sexuais; trata-se, em boa verdade, de citação do Ac. do STJ de 7 de Novembro de 1990, BMJ, nº 401, pág. 205 e ss. (na referida obra de Reis Alves é citada a fonte)];
- a segunda, traduz um crime complexo, tutelando, cumulativamente com aquele interesse, valores eminentemente pessoais, a saber, a liberdade de autodeterminação sexual.
Aceitamos, pois, contra o que vem sendo afirmado por alguns sectores da jurisprudência, que no tipo previsto no nº 1 está verdadeiramente em causa um crime sem vítima [Neste sentido, veja-se o Ac. da Relação de Guimarães, de 14 de Outubro de 2002, C.J., ano XXVII, tomo 4, pág. 286].
Ora, se o crime se afirma, por um lado, como delito de execução continuada e se é um crime sem vítima, teremos que recorrer, nos termos gerais, ao critério do art. 30º do Código Penal para determinar a unidade ou pluralidade de infracções em função do número de resoluções criminosas adoptadas pelo agente.
E se é verdade que se trata de questão do foro subjectivo, a resolver por recurso à consideração global dos factos objectivamente demonstrados, o que estes revelam é uma só intenção de obtenção de vantagens patrimoniais por recurso ao favorecimento da prostituição, independentemente do número de mulheres abrangidas por tal actividade no estabelecimento explorado. Donde se há-de concluir necessariamente pela formação de uma só resolução criminosa, consumando-se a realização de um só crime de lenocínio.

Em segundo lugar, quanto ao crime de auxílio à emigração ilegal, verifica-se que a matéria de facto provada não enquadra a previsão do tipo legal de crime em questão.
Efectivamente, apenas resultou que em 17 de Junho de 2007 encontrava-se no interior do estabelecimento AC… a cidadã brasileira de nome O…, sobre a qual impendia o processo de expulsão com o número 298/06, tendo a mesma sido notificada da decisão ali tomada no dia 13 de Fevereiro de 2007, sendo que a mesma ali trabalhava, não resultando apurado, porém, que tais factos fossem do conhecimento de qualquer dos arguidos.
Ora, os simples factos apurados descritos são insuficiente para preencher o tipo legal de crime em apreço, desde logo os elementos objectivos “favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a permanência ilegal de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa”.
Sendo certo de todo o modo, que ainda que assim não fosse, sempre não resultaria preenchido o elemento subjectivo (dolo) do mesmo tipo, nas suas vertentes de conhecimento e vontade de praticar o facto.
Ocorre, portanto, que não resultaram provados os factos integradores dos elementos típicos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime em apreço, pelo que estes não se mostram preenchidos.
Donde, não se mostrando preenchidos tais elementos, não é possível fazer aos arguidos (a qualquer deles) e no que respeita ao crime em questão um juízo de censura jurídico-penal.

Vejamos agora quanto ao crime de lenocínio.
Está aqui em causa o tipo legal de crime de lenocínio simples previsto no nº 1, do art. 170º do Código Penal[1].
Pratica tal crime, nos termos definidos no art. 170º, nº 1, do C.P., “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo”.
Encontra-se inserido este tipo legal de crime na secção intitulada “crimes contra a liberdade sexual”, onde o bem jurídico protegido é o da liberdade de determinação sexual de todas as pessoas, independentemente da idade (idade que é já um elemento determinante da protecção penal conferida pela criminalização das condutas previstas na secção II, com a epígrafe “crimes contra a autodeterminação sexual, onde o bem jurídico protegido engloba também o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual - cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, pág. 442).
Porém, como se adiantou já, considerando as condutas que actualmente são abrangidas pelo tipo legal previsto no nº 1, do art. 170º em apreço, pode questionar-se que aqui, ao invés da protecção da liberdade de expressão sexual da pessoa, “persiste uma certa ideia de defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade, que não é encarada hoje como função do direito penal e, de qualquer modo, não presidiu ao enquadramento dos crimes contra a liberdade sexual no título mais vasto dos crimes contra as pessoas e como uma forma que assumem os atentados contra a liberdade” (cfr. Anabela M. Rodrigues, Comentário ..., cit., pág. 519, defendendo por isso estarmos aqui perante um crime cuja incriminação é desprovida de sentido. A A. faz ainda referência ao facto de Reis Alves, in Crimes Sexuais, págs. 67 e segs., defender que o bem jurídico tutelado no crime de lenocínio “não é, nem deve ser, a liberdade e a autodeterminação sexual da pessoa, mas sim «o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto»”, “propondo a inserção sistemática dos arts. 170º e 176º no Título IV “Dos crimes contra a vida em sociedade”).
Já acima, a propósito da problemática do concurso de crimes, se deixou expressa a posição sufragada.
Como elementos objectivos de tal tipo de crime temos:
- o agente, que pode ser qualquer pessoa, homem ou mulher, e é “um terceiro relativamente aos intervenientes no acto sexual”. Na verdade, este é um intermediário ou medianeiro, “que actua com vista a satisfazer interesses de terceiros” (ob. e aut. cits., pág. 522 e 523);
- a vítima, que pode ser qualquer pessoa adulta - que tenha mais de 16 anos de idade (cfr. art. 176º do C.P.) -, homem ou mulher, estabelecendo-se “definitivamente o carácter neutro, em termos de género, deste tipo de crime” (idem, pág. 524);
- a conduta típica, que se traduz num acto de fomento, favorecimento ou facilitação do exercício por outra pessoa da prostituição ou da prática de actos sexuais de relevo.
Fomentar significa “incentivar a corrupção, ou, melhor dizendo, determiná-la (quando ainda não exista), agravá-la (se já existe) ou evitar que enfraqueça ou termine (quando já está em curso)”.
Favorecer ou facilitar significam “auxiliar ou apoiar, no segundo caso, diferentemente do primeiro, com contribuição directa dos meios ou instrumentos que levam à exclusão ou manutenção do status delituoso”.
Fomentando, “o agente colabora no processo de decisão”, enquanto favorecendo ou facilitando, “colabora no processo de execução”.
A primeira situação corresponde à situação denominada de “lenocínio principal”, enquanto as restantes correspondem ao denominado “lenocínio acessório”.
Em qualquer dos casos, porém, o agente “apenas colabora no encaminhamento da vítima para a prostituição ou para a prática de actos sexuais de relevo, mas não determina a sua vontade para a prática dos referidos actos”, não havendo qualquer coacção (ibidem, págs. 524 e 525);
- fazendo o agente do seu comportamento profissão ou tendo intenção lucrativa - “actividade profissional tem um significado que a liga a uma característica de habitualidade”, embora não de exclusividade, enquanto a intenção lucrativa “pode realizar-se através de uma actividade meramente pontual ou esporádica”.
A existência deste elemento típico “circunscreve a incriminação a actividades que trazem para o agente ganhos efectivos (actividades profissionais) e ganhos possíveis (actividade realizada com intenção lucrativa)” (pág. 528).
Sendo esta a configuração típica do crime de lenocínio, em análise, temos para nós estarmos perante um crime de resultado, pois apenas se preenche o tipo legal em causa quando a vítima efectivamente chega a praticar a prostituição ou actos sexuais de relevo - é dizer que apenas estamos perante a consumação do crime quando há efectivamente exercício da prostituição ou prática de actos sexuais de relevo (Anabela M. Rodrigues, ob. e loc. cits., págs. 530 a 532).
Acto sexual de relevo será o comportamento activo que, “de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade” e “representa um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima” (cfr. Figueiredo Dias, ob. e loc. cits., págs. 447, § 7, e 449, § 12).
Prostituição existirá quando se pratiquem actos sexuais de relevo “a troco de uma contrapartida”, “normalmente traduzida em dinheiro”.
Donde, para que se consume o tipo legal de crime de lenocínio, estando em causa o exercício da prostituição é suficiente a prática de um só acto sexual de relevo a troco de uma contrapartida; já se estiver em causa a prática de actos sexuais de relevo, em regra não será suficiente “a mera prática de um só acto sexual de relevo” (Anabela M. Rodrigues, ob. e loc. cits., pág. 532).
Ainda sobre os conceitos de fomentar, facilitar ou favorecer, veja-se Anabela Miranda Rodrigues, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, tomo 1, página 524 e ss., 1999 - Coimbra Editora.
A distinção entre lenocínio principal e lenocínio acessório não assume relevância em termos de incriminação, mas poderá ser relevante em sede de determinação concreta da pena, pois é mais desvaliosa a prática do lenocínio principal (isto é, o grau de ilicitude e de censurabilidade é maior quando o agente fomenta tal actividade e não se limita apenas a favorecê-la ou a facilitá-la).
Ademais, a conduta só é penalmente relevante se o agente agir profissionalmente ou com intenção lucrativa, como seguramente é o caso dos autos.
A ideia de profissionalismo prende-se com o carácter de habitualidade, ainda que não exclusiva.
Como é bom de ver, não é indiferente o facto do agente agir apenas com intenção lucrativa (compaginável com uma actuação pontual) ou com profissionalismo (com habitualidade), já que neste último caso o grau de censurabilidade da respectiva conduta é maior.
Quanto aos elementos subjectivos, estamos perante um tipo de crime que exige o dolo relativamente a todos os supra referidos elementos objectivos.

Ora, em face da factualidade demonstrada, inexistem dúvidas de que o arguido K…, ao transportar as mulheres para o estabelecimento em causa e bem assim ao receber dos clientes o dinheiro relativo ao pagamento dos encontros de cariz sexual entre as mulheres e os clientes, auxiliou quem explorava o estabelecimento em causa (cuja identidade se não apurou)…
Não se julga já que as condutas apuradas se reconduzam ao facilitar ou favorecer o exercício da prostituição - chamado de lenocínio acessório -, sendo certo que não temos ademais elementos de carácter factual que nos permitam concluir que ele determinou alguém à prática da prostituição ou que da sua actuação tenha resultado a agravação dessa prática por alguém ou ainda que tenha impedido que essa prática por alguém tenha enfraquecido ou mesmo terminado.
As condutas apuradas, no que importa ao arguido K…, não se reconduzem a uma colaboração essencial no processo de execução do crime de lenocínio, posto que não detinha (ao menos não se provou que o detivesse) o domínio da totalidade ou mesmo de parte dos meios postos para o exercício da actividade de prostituição.
Ora, tal actuação enquadra-se, em nosso entender, na previsão do art. 27º do C.P., onde se determina a punição como cúmplice de quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso.
Efectivamente, os actos praticados pelo arguido em causa situam-se fora do facto típico previsto no art. 170º, nº 1, do Código Penal, não constituindo directamente facilitação do exercício da prostituição.
Porém, constituem indubitavelmente auxílio material a toda a actividade de exploração do estabelecimento “AC…”, já que era no fundo toda esta organização e actividade do estabelecimento que enquadrava (e beneficiava também de) o exercício da prostituição. Assim é que ocorrendo, por um juízo de inferência necessário, que das quantias auferidas a título de receitas pelo estabelecimento, nomeadamente as provenientes do exercício da prostituição, era remunerado o arguido K…, como o mesmo admitiu em audiência, pelas actividades que este efectuava/desempenhava.
Note-se que para existir cumplicidade (e não se tratar já de uma situação de autoria), o auxílio à execução terá de ater-se a factos situados fora do facto típico - cfr. Leal-Henriques - Simas Santos, C.P. anotado, 1º vol., 1995, págs. 255 a 280, nomeadamente o Ac. Do S.T.J. de 16/01/1990, citado a págs. 266.
Dúvidas não há também de que estamos perante um auxílio doloso por parte deste arguido atento o facto referido no ponto 14, o que consubstancia dolo directo, nos termos do aludido art. 14º, nº 1, do C.P..
Também a conduta deste arguido é culposa, dado que o mesmo é imputável e agiu com consciência da ilicitude, conforme resulta do mesmo ponto da matéria de facto.
Pelo que se conclui ter o arguido K… cometido, como cúmplice, o crime de lenocínio (simples) p. e p. pelo art. 170º, nº 1, do Código Penal.

Os demais arguidos terão de ser absolvidos da imputada comissão de um tal crime. Com efeito, pelas razões melhor expostas em sede de motivação da matéria de facto, não resultou demonstrada a participação ou comparticipação de qualquer dos demais arguidos na exploração da actividade de prostituição em causa.
Assim, absolutamente quanto aos arguidos B… e E…. Quanto ao arguido H…, o exercício da actividade de porteiro, com o âmbito restrito que se deu como provado, não pode ter-se como de auxílio à actividade de prostituição, posto que não emergindo uma colaboração àquela actividade.

Da determinação da medida da pena

Uma vez feita a qualificação jurídica dos factos, é chegado o momento de determinar a medida concreta da pena aplicável ao arguido.
Ao crime em causa corresponde a moldura penal de prisão de seis meses a cinco anos (art. 170º, nº 1, do C.P.).
Nos termos do art. 40º do C.P., a aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), não podendo a pena em caso algum ultrapassar a medida da culpa.
A determinação da medida concreta da pena faz-se, nos termos do art. 71º do C. Penal, em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele.
Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo (neste sentido, Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, pág. 234).

Estando em causa a actuação como cúmplice (à qual é aplicável a pena fixada para o autor, especialmente atenuada), relativamente ao mesmo crime de lenocínio, a moldura penal é de prisão de um mês a três anos e quatro meses (arts. 27º, nº 2, 73º, nº 1, e 170º, nº 1, do C.P.).
Quanto à medida concreta da pena, atendendo às circunstâncias referidas no art. 71º, nº 2 do C.P., há que relevar especialmente o seguinte:
- a intensidade do dolo, elevada, pois existiu na modalidade de dolo directo;
- as exigências de prevenção geral atenta a frequência com que ocorre este tipo de crime, a qual cria nas pessoas a sensação de alguma impunidade quanto à prática destas condutas;
- a conduta em causa - que integrava apenas o auxílio da parte do arguido à modalidade da conduta do autor de facilitar (e já não fomentar) o exercício da prostituição;
- o período temporal em que os factos ocorreram;
- o lapso de tempo já decorrido desde os factos;
- os actos concretos levados a cabo pelo arguido, consubstanciados numa actuação mais regular e interventiva;
- quanto às exigências de prevenção especial, as mesmas não se mostram demasiado elevadas, atenta a situação pessoal actual do arguido descrita na matéria de facto. Julga-se pertinente a citação, nesta sede, da conclusão final do relatório social junto aos autos, nos termos da qual: “dispõe da capacidade para concretizar um projecto de vida independente, valorado pelo desempenho profissional experiente, modelado por uma conduta de respeito pelas regras e pelos valores de convivência em sociedade e afastado dos anteriores convívios marginais.”
Julga-se, pois, adequada a pena concreta de onze meses de prisão.
No que se reporta à pena decidida ao arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 43º, n.º 1 do Código Penal, na redacção vigente, a aplicável por estatuir em benefício do arguido, cabe substituí-la e por pena de multa. Assim é que dispõe a citada norma que a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. Não se vislumbra que a execução da prisão seja necessária, atenta a inserção social, familiar e profissional (mediante a possibilidade de enquadramento laboral em meio livre) do arguido e o esforço que este vem fazendo, nos termos que resultam da matéria assente, de “repensar” a sua vida e os seus comportamentos.
Assim, decide-se substituir a pena de onze meses de prisão pela pena de 190 dias de multa (cfr. artigo 47º do Código Penal, aplicável ex vi nº1 do citado artigo 43º) à razão diária de 6 EUR.
*
Nos termos do disposto no art. 109º do Código Penal, há que declarar perdidos a favor do Estado, os identificadores dos quartos e os preservativos apreendidos.
Relativamente aos restantes bens, excepção feita à carrinha Toyota Hiace apreendida ainda, da qual se cuidará infra, não há lugar a tal declaração, desde logo porque não pode dizer-se que tais objectos tivessem servido directamente para a prática do facto ilícito em causa nos autos ou que a este se destinassem, até porque estavam destinados directa e primacialmente à actividade de bar e de “alterne” que no estabelecimento era exercida, sendo certo que esta última não é criminalmente punida.
Quanto ao veículo apreendido, inexiste fundamento para a respectiva declaração de perdimento a favor do Estado, atento o disposto no artigo 110º, n.ºs 1 e 2 a contrario do Código Penal.

Decisão:
Pelo exposto, decide-se:
a) convolados os oito crimes imputados, condenar o arguido K…, pela prática, como cúmplice, de um crime de lenocínio, p. e p. pelo art. 170º, nº 1, do Código Penal, na pena de onze meses de prisão, a qual se substitui pela pena de 190 dias de multa, à razão diária de 6 EUR, o que perfaz o montante global de 1.140 EUR.

b) absolver os arguidos B…; E…; H… e K… da prática do crime de auxílio à emigração ilegal, p. e p. pelo n° 2 do art. 134°- A, do DL 34/2003 de 25 de Fevereiro, de que vinham acusados;

c) absolver os arguidos B…; E… e H… da prática do(s) crime(s) de lenocínio do artigo 170º do Código Penal, de que vinham ainda acusados;

d) declarar perdidos a favor do Estado os identificadores dos quartos e preservativos, apreendidos nos autos (art. 109º do Código Penal), mais determinando a sua oportuna destruição;

e) ordenar a restituição de todos os restantes bens apreendidos nos autos a quem se mostrar com direito a eles, dentro do prazo de 90 dias.
Notifique o arguido B… do pedido de entrega do veículo apreendido, já constante dos autos, pela entidade locadora, abrindo-se oportuna conclusão à M.ma Juiz titular para a decisão da questão.
*
Custas pelo arguido K…, com taxa de justiça de 3 Ucs. Não pagam custas os demais arguidos.
*
Boletim ao registo criminal.
*
Comunique a presente decisão ao I.R.S., conforme solicitado.

Amarante, 4 de Outubro de 2011

(…)

XXX

Inconformado com o decidido, o arguido, K… veio interpor recurso, o qual motivou, aduzindo as seguintes:-

CONCLUSÕES

O recorrente é injusta e ilegalmente condenado por cumplicidade em pretenso crime de lenocínio.

É que, os factos elencados em 4, 7, 9 e 14 dos factos provados, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, não preenchem os elementos objectivos e subjectivos de qualquer crime de lenocínio,

Desde logo, inexistindo a prática de crime de lenocínio, por parte do arguido/ recorrente,

E não se tendo apurado a existência de qualquer autor do tal pretenso crime,

Não se compreende, a condenação do recorrente como cúmplice de tal pretenso crime, do qual não existe autor,

Não se verifica prova de qualquer actuação “moto próprio” profissional e com intuito lucrativo do arguido,

Pelo que há insuficiência para a decisão da matéria de facto e erro notório na apreciação da prova. (art. 410º n.º 2 a) e c) do CPP),

O que impõe procedência do recurso, a revogação da decisão e a absolvição do arguido, por manifesta violação dos arts. 170º, n.º 1, 27º n.º 2 e 73º n.º 1 todos do C.P.

TERMOS EM QUE e nos melhores de direito que doutamente serão supridos, deve o recurso ser julgado procedente, e revogada a decisão recorrida, substituindo-se por outra que absolva o arguido do crime do qual vem condenado, por tal ser de Lei e de
Justiça.

XXX

O Ilustre Procurador-Geral Adjunto veio emitir douto Parecer, por via do qual e em suma, entende que o recurso não merece provimento.

Cumprido que se mostra o disposto no art. 417º nº 2, do CPP, verifica-se que não foi deduzida qualquer resposta.

XXX

COLHIDOS OS VISTOS LEGAIS CUMPRE DECIDIR

O RECURSO

A 2ª instância tem poderes de cognição de facto e de direito – cfr. art. 428º, do CPP.

Tendo em conta a natureza disponível do direito ao recurso, este é balizado pelas conclusões extraídas da motivação delimitadoras do respectivo objecto – cfr. arts. 402º, 403º e 412º, todos do CPP.
Sem embargo, compete, também oficiosamente, a esta Relação, o conhecimento dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do nº 2, do art. 410º, do CPP, mas tão-só, quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou por apelo às regras da experiência comum (cfr Ac. do STJ nº 7/95 – in DR I. s., de 28/12/1995, em interpretação obrigatória, ainda actual).

Face a este “pano de fundo” quanto ao “thema decidendum” são as seguintes as questões a conhecer e decidir:-

- Os vícios da decisão – nº 2 do art. 410º, do CPPe o recurso em matéria de facto;

- A questão da Cumplicidade.

Vejamos:-

Vícios da decisão (nº 2 do art. 410º, do CPP):-

Na síntese feita pelo STJ (cfr. CPP Anot., Leal Henriques e Simas Santos – II vol., pags. 738 a 741) ali se diz o seguinte:-

O vício da insuficiência, para a decisão, da matéria de facto provada ocorre quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que “essa matéria de facto” não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso concreto; no cumprimento do dever de descoberta da verdade material (art. 340º, do CPP), podendo e devendo ter ido mais longe, o Tribunal não curou de indagar factos essenciais que se prendem com a subsunção jurídica ou medida da pena, ou de ambas.

O vício da contradição insanável entre a fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando, de acordo com um raciocínio lógico seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão insanável entre os fundamentos invocados.

Por sua vez, o vício do erro notório na apreciação da prova (cfr. art. 410º nº 2, al. c), do CPP), devendo ser patente ao homem comum, existe, …” quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado…ou quando usando de um processo racional e lógico se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica e arbitrária, contraditória ou notoriamente violadoras das regras da experiência comum, ou ainda quando se violam regras sobre provas vinculadas ou das “legis artis”… ( cfr. Ac. do STJ de 2/06/99 – proc. Nº 288/99).

No caso CONCRETO, o Recorrente K… vem aforar (conclusões) os vícios das als. a) e c) do nº 2, do art. 410º, do CPP, maxime, o do erro notório na apreciação da prova, ou (apenas aflorando) o da insuficiência, para a decisão, da matéria de facto provada.

No entanto, para a sua demonstração, o Recorrente sob as roupagens de tais vícios apela a um alegado erróneo raciocínio de Direito, pois entende que os factos elencados como provados nos pontos 4, 7, 9 e 14 não preenchem os elementos objectivos e subjectivos do crime de lenocínio; e que inexistindo autor, não se compreende a condenação do Recorrente, como cúmplice.

Tal cai fora do âmbito de tais vícios e situa-se na vertente do direito.

Com efeito e como bem se anota no Ac. do STJ de 15/06/2004 – proc. Nº 2150/04- 5ª – “São realidades diferentes o erro por insuficiência de prova ou incorrecta valoração desta e o erro notório na apreciação da prova.
O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi; o erro notório na apreciação da prova, para além de ser ostensivo, prescinde da análise da prova produzida, para se ater tão somente ao texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa a impossibilidade de recurso a outros elementos, ainda que constantes do processo”.

Não se patenteia qualquer “evidência” de erro ou de ausência ou insuficiência de matéria de facto para a subsunção do crime.
O que o Recorrente invoca no caso concreto é que a factualidade assente não tem a virtualidade de subsumir-se juridicamente ao crime objecto de condenação e ainda porque inexistindo autor, não pode o Recorrente ser condenado como cúmplice.
Isto é, invoca ERRO DE DIREITO.
Improcede pois esta questão.

X

Tal não preclude, como é óbvio, o devido conhecimento da questão do recurso quanto à matéria de facto “qua tale”.

Assim:-

Recurso da matéria de facto (art. 412º ns. 3 e 4, do CPP):-

Dispõe o art. 412º nº 3 e 4, do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
3:- a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas
4:- Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

Temos dito, repetidamente que o recurso da matéria de facto não se destina a um novo julgamento e à aquisição de nova convicção de facto, mas sim a aquilatar da razoabilidade da convicção de facto adquirida pela 1ª instância, face às provas produzidas, sempre sem esquecer que a 1ª instância se encontra enriquecida pelo princípio da imediação, a qual naturalmente pressupõe o contacto “ao vivo” com os participantes processuais e, designadamente, com as provas prestadas oralmente em audiência, no caso, de livre apreciação e tendo em mente o disposto no art. 127º, do CPP.

Decidiu-se recentemente no Ac. Do STJ, de 23/11/2011, in www,dgsi.pt:-

(…)

Como o STJ vem decidindo, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova (art. 430.º do CPP), uma nova ou suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.
O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento pela 2.ª instância, dirigindo-se somente ao reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa, indicadas pelo recorrente, e não a todas as provas produzidas na audiência.
Por isso, o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, sendo certo que ao exercício dessa tarefa o tribunal de recurso apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas, pelo que, se entender que a valoração e apreciação feitas se mostram correctas, se pode limitar a aderir ao exame crítico das provas efectuadas pelo tribunal recorrido.

(…)

Conforme se decidiu (entre outros por todos) no douto Ac. do STJ de 19/05/2010 – in www.dgsi.pt(...):-
(...)
A motivação de recurso compreende dois ónus: o de alegar e o de concluir. O recorrente deve começar por expor todas as razões da impugnação da decisão de que recorre (enunciar especificamente os fundamentos do recurso) e, depois, indicar de forma sintética, essas mesmas razões (formular conclusões em que resume as razões do pedido).
São as conclusões da motivação que definem e delimitam o âmbito do recurso, ou seja, são as questões que o recorrente quer ver discutidas no tribunal superior.
Versando o recurso matéria de facto, deve ser estruturado nos termos definidos pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP: as indicações aqui exigidas são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto.
É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto.
A garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância.
O uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
O convite ao aperfeiçoamento pressupõe que não se esteja perante uma deficiência substancial da própria motivação, que necessariamente se reflectirá em deficiência substancial das conclusões.
Não se estando perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas perante deficiências substanciais da própria motivação, o princípio constitucional do direito ao recurso em matéria penal não implica que ao recorrente seja facultada oportunidade para aperfeiçoar em termos substanciais a motivação do recurso quanto à matéria de facto.
Tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso, o que o legislador reconheceu ao estatuir que o aperfeiçoamento das conclusões, na sequência do convite formulado nos termos do n.º 3 do art. 417.º d CPP, não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (n.º 4 da norma).
(…)

No caso CONCRETO não há o mínimo cumprimento na motivação dos identificados ónus, tal se reflectindo também nas conclusões extraídas da mesma; com efeito apenas se diz que os factos provados em 4, 7, 9 e 11 não preenchem os elementos típicos do crime de lenocínio.

Não é, assim, caso de aperfeiçoamento das conclusões, sabido é que estas não podem “ampliar ou modificar” o objecto do recurso devidamente delimitado na motivação e sendo certo que as conclusões “resumem” as razões do pedido (cfr. art. 412º nº 1, do CPP e Jurisprudência vinda de citar).

Inexistindo sustentação (do ponto de vista formal e substancial) para a possibilidade de alteração da matéria de facto estabelecida na decisão recorrida consideramos a mesma ASSENTE.

X

Face ao que vem de ser decidido quanto à matéria de facto, somos reconduzidos ao acima falado e alegado “ERRO DE DIREITO”, a bem dizer, à questão da CUMPLICIDADE relativamente ao crime de lenocínio do art. 170º, do C. Penal.

O crime de lenocínio:
Para além do que consta da fundamentação da decisão recorrida quanto à matéria e com a qual concordamos, entendemos de aditar o seguinte:-

O artigo 170º nº 1 do Código Penal, insere-se, pois numa opção de política criminal, tendo em conta a necessidade de combater o tráfico de pessoas para exploração sexual, assentando o bem jurídico na protecção da dignidade da pessoa no modo de explicitação comunitária da sua liberdade e autodeterminação sexual.
O artigo 170º/1 Código Penal protege um bem jurídico, de natureza constitucional, que é a dignidade da pessoa humana, constitutiva de um dos princípios fundamentais da República Portuguesa, conforme artigo 1° da Constituição da República, assumindo-se como uma dimensão de tutela jurídico-penal da garantia da dignidade humana, constitucionalmente consagrada e, protegida constitucionalmente pelo artigo 26°/2 da Constituição, aqui na vertente da dignidade, ínsita à auto-expressividade sexual co-determinando tal inciso, axiológico-normativamente, a expressividade comunitária do modo de exercício do direito à liberdade e autodeterminação sexual, ou dito de outro modo, vinculando esse exercício de autodeterminação sexual, com projecção e relevância ético-sociais, à dignidade da pessoa, de forma a que esta não constitua mera mercadoria, res possidendi, mero instrumento de prestação sexual, ainda que com o consentimento da vítima, explorada profissionalmente ou com intenção lucrativa por outrem”.
Na actualidade, o crime de lenocínio surge ainda como dimensão do tráfico de pessoas, em que o tráfico de mulheres é um fenómeno em crescimento, nomeadamente na União Europeia.
Como refere Anabela Rodrigues in O papel dos sistemas legais e a sua harmonização para a erradicação das redes de tráficos de pessoas, Revista do Ministério Público, ano 21º, nº. 84, 21 e ss. “As forças judiciais e policiais de vários Estados-membros têm também notado o aparecimento de grandes redes criminosas neste domínio. Aparentemente existem ligações com outras formas de criminalidade. Os elevados ganhos conseguidos pelas organizações criminosas envolvidas no tráfico de mulheres, levam obviamente a actividades de branqueamento de capitais e implicam, a criação de empresas fictícias envolvidas em actividades ilícitas. Algumas fontes também têm indicado que as mulheres vítimas de tráfico são frequentemente deslocadas de um Estado-membro para outro de forma a satisfazer clientes com novas prostitutas e a dificultar que as vítimas sejam detectadas pela polícia ou pelos serviços sociais (…). Depois de as mulheres serem transportadas para o país de destino existem várias formas para as forçar a iniciarem e /ou continuarem uma actividade de prostituição.”
Na União Europeia, os Estados-membros aprovaram a Acção comum de Fevereiro de 1997 com vista a “aperfeiçoar as disposições penais dos Estados-membros e a sua cooperação judicial no contexto do combate ao tráfico de seres humanos.
No que diz respeito às medidas a adoptar no plano nacional, os principais elementos contidos nesta Acção Comum são os seguintes:
- Criminalização de comportamentos tais como a exploração sexual de uma pessoa com fins lucrativos utilizando coação, ou falsas promessas, ou abuso de autoridade ou outra pressão que não permitia uma verdadeira opção a essa pessoa;
Tráfico de pessoas para obtenção de ganhos com vista a uma exploração sexual.” (idem, ibidem)
Como refere a mesma Distinta Professora, “No âmbito da incriminação, no Código Penal, do tráfico de pessoas (artigo 169º) e do lenocínio (artigo 170º), a alteração ao C Penal (Lei 65/98, de 2 de Setembro) veio retirar dos tipos legais o elemento “exploração de situação de abandono ou necessidade.” Esta alteração correspondeu às exigências de alargar, tornando-a mais fácil, a incriminação de certas condutas ligadas ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, ” (idem, ibidem, 26).
Aliás, bem se compreende o alargamento de tal incriminação uma vez que, as exigências probatórias são elevadas, é normalmente escassa a colaboração das vítimas, não sendo também “descurável, a circunstância de que algumas das vítimas, por ânsia de lucro ou necessidade de sustento de dependências tóxicas, preexistentes ou entretanto adquiridas, vencida a relutância inicial, adiram ou se conformem com a situação de exploração a que são submetidas e se neguem assim a qualquer acção de colaboração com as autoridades.” – Euclides Dâmaso Simões, -Tráfico de Seres Humanos, A lei Portuguesa e a importância da Cooperação Judiciária Internacional, in Polícia e Justiça, III série, nº 4, 260/1, (v. ainda a análise deste autor na sequência da Convenção de Palermo e Protocolo adicional à mesma, ratificados por Portugal e publicados no Diário da República de 2 de Abril de 2004, bem como a decisão Quadro de 19-7-2002, da União Europeia).
Como se disse em determinada altura, na discussão Parlamentar, na Assembleia da República, aquando da revisão do Código Penal: “O ritmo de mutações sociais que hoje vivemos traz consigo novas formas de criminalidade e agravamento quantitativo e qualitativo de certas formas de comportamentos criminosos a exigirem resposta não só dos aparelhos de investigação criminal como dos próprios textos básicos de política criminal.”
(…)

A cumplicidade é o auxílio doloso a outrem no seu facto antijurídico realizado dolosamente; o cúmplice limita-se a favorecer um facto alheio, não sendo necessário que o autor conheça o apoio que lhe é prestado, assim também se distinguindo da autoria que requer o domínio do facto na base e uma resolução comum de o cometer.
A cumplicidade pressupõe uma conexão entre o facto principal e o auxílio do cúmplice, mas as modalidades de cumplicidade são ilimitadas, de maneira que qualquer favorecimento doloso de um facto doloso alheio constitui cumplicidade ( cfr. CP Anot. L. Henriques e S. Santos – 3ª ed. 1º vol. – pag. 365).

No caso em apreço e face à factualidade provada e assente, não há qualquer dúvida de que o arguido K…, ao transportar as mulheres para o estabelecimento em causa e bem assim ao receber dos clientes o dinheiro relativo ao pagamento dos encontros de cariz sexual entre as mulheres e os clientes, auxiliou quem explorava o estabelecimento em causa (cuja identidade se não apurou)…
Não se julga já que as condutas apuradas se reconduzam ao facilitar ou favorecer o exercício da prostituição - chamado de lenocínio acessório -, sendo certo que não temos ademais elementos de carácter factual que nos permitam concluir que ele determinou alguém à prática da prostituição ou que da sua actuação tenha resultado a agravação dessa prática por alguém ou ainda que tenha impedido que essa prática por alguém tenha enfraquecido ou mesmo terminado.
As condutas apuradas, no que importa ao arguido K…, não se reconduzem a uma colaboração essencial no processo de execução do crime de lenocínio, posto que não detinha (ao menos não se provou que o detivesse) o domínio da totalidade ou mesmo de parte dos meios postos para o exercício da actividade de prostituição.
Ora, tal actuação enquadra-se, em nosso entender, na previsão do art. 27º do C.P., onde se determina a punição como cúmplice de quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso.
Efectivamente, os actos praticados pelo arguido em causa situam-se fora do facto típico previsto no art. 170º, nº 1, do Código Penal, não constituindo directamente facilitação do exercício da prostituição.
Porém, constituem indubitavelmente auxílio material a toda a actividade de exploração do estabelecimento “AC…”, já que era no fundo toda esta organização e actividade do estabelecimento que enquadrava (e beneficiava também de) o exercício da prostituição. Assim é que ocorrendo, por um juízo de inferência necessário, que das quantias auferidas a título de receitas pelo estabelecimento, nomeadamente as provenientes do exercício da prostituição, era remunerado o arguido K…, como o mesmo admitiu em audiência, pelas actividades que este efectuava/desempenhava.
Note-se que para existir cumplicidade (e não se tratar já de uma situação de autoria), o auxílio à execução terá de ater-se a factos situados fora do facto típico - cfr. Leal-Henriques - Simas Santos, C.P. anotado, 1º vol., 1995, págs. 255 a 280, nomeadamente o Ac. Do S.T.J. de 16/01/1990, citado a págs. 266.
Dúvidas não há também de que estamos perante um auxílio doloso por parte deste arguido atento o facto referido no ponto 14, o que consubstancia dolo directo, nos termos do aludido art. 14º, nº 1, do C.P..
Também a conduta deste arguido é culposa, dado que o mesmo é imputável e agiu com consciência da ilicitude, conforme resulta do mesmo ponto da matéria de facto.

No caso dos autos, a autoria necessariamente existente não se logrou identificar, pelo que é insustentável a argumentação do Recorrente relativamente à ausência de autoria.

Encontram-se preenchidos os elementos essenciais típicos do crime na “forma de crime” de cumplicidade.

De tudo resulta, em suma que o recurso é, sem dúvida, totalmente improcedente.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando inteiramente, a decisão recorrida.

O Recorrente pagará 6 Ucs de taxa de justiça.

PORTO, 11/04/2012
José João Teixeira Coelho Vieira
José Carlos Borges Martins
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[1] O actual artigo 169º do Código Penal mantém os elementos típicos do crime imputado, como bem assim a moldura penal que lhe corresponde, razão pela qual, nesta sede (como, adiante-se, em sede de determinação da medida concreta da pena), nada a relevar em função do imperativo constitucional de aplicação retroactiva in mitius de lei penal.