Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
625/10.6GBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: AMEAÇA
Nº do Documento: RP20120307625/10.6GBVNG.P1
Data do Acordão: 03/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não consubstancia a prática de um crime de ameaça a conduta de quem se desloca até junto da residência de outrem, bloqueia-lhe a entrada com um camião e, em tom elevado de voz, diz-lhe: “Anda cá fora, que eu estou à tua espera, cabrão”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo comum singular 625/10.6GBVNG do 3º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia

Relator - Ernesto Nascimento.
Adjunto – Artur Oliveira


Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

I.1. Remetido o processo à distribuição, foi proferido despacho a rejeitar a acusação pública, por manifestamente infundada, em virtude de os factos nela descritos não constituírem o crime de ameaça.

I. 2. Inconformado com o assim decidido, interpôs recurso o Magistrado do MP, pedindo a revogação de tal despacho e a sua substituição por outro que receba a acusação pública e designe data para audiência de julgamento, sustentando as seguintes conclusões:

1. o MP impugna o despacho que, com o fundamento de que os factos descritos na acusação não constituem crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º/1 C Penal ou qualquer outro, não recebeu a acusação deduzida contra o arguido B…, ao abrigo do disposto no artigo 311º/2 alínea a) e 3 alínea d) C P Penal e, em consequência, determino o arquivamento dos autos;
2. em face do teor da acusação formulada pelo MP e do disposto no artigo 153º/1 C Penal afigura-se-nos que deve entender-se que naquele despacho estão descritos factos susceptíveis de configurar um crime de ameaça, designadamente, os requisitos de,
- anúncio sério de um mal futuro contra a integridade física e bens patrimoniais de considerável valor;
- adequação a provocar medo e inquietação no ofendido, prejudicando, a sua liberdade pessoal/individual e a sua segurança e dos seus bens (cavalos);
3. em consequência, entende-se não estar verificada causa de rejeição da acusação por ser manifestamente infundada em virtude de os factos não constituírem crime em que se fundamentou o despacho recorrido;
4. como requisito legal, o objecto da ameaça tem de constituir crime “contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e auto-determinação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”, são os ensinamentos retirados do Comentário Conimbricense, da autoria do Prof. Taipa de Carvalho”, cfr. Ac. Deste Tribunal de 30.9.2009, proferido no processo 104/08;
5. discorda-se do entendimento que foi acolhido no despacho recorrido de que a fala de especificação concreta por parte do agente do mal que ameaça infligir à vítima significa que não está preenchido o requisito de existência da própria ameaça aos bens jurídicos elencados no tipo legal previsto no artigo 153º C Penal;
6. entende-se que esse entendimento que excluiu a expressão “anda cá fora que estou à tua espera, cabrão” (exclusivamente considerada) dirigida ao ofendido do conceito legal de ameaça é demasiado restritivo;
7. as expressões terão de ser apreciadas objectivamente, à luz da capacidade de entendimento do cidadão comum, em Portugal, no século XXI e mais concretamente naquela região do País e no meio sócio-cultural a que pertencem, quer o emissor, quer o receptor.
Será o homem médio português daquela zona geográfica do País, a determinar o sentido objectivo da expressão.
Se se concluir que a expressão, em concreto, atentas as personalidades e atitudes de quem a emite e de quem a recebe, tem sentido inequívoco e comummente aceite de representar a ameaça de ofensa à integridade física, então, não se pode excluir, bem pelo contrário, a possibilidade de provocar medo e inquietação na pessoa do visado, ademais proferida num contexto circunstancial de discussão. As palavras valem pelo seu sentido e pelo significado que se lhes atribuiu e não pela objectividade pura e dura, indiferente e insensível ao contexto e personalidades dos interlocutores;
8. à luz destes critérios e tendo-se em consideração que no despacho de acusação rejeitado refere-se tão só a expressão utilizada pelo arguido, mas também o seu enquadramento/contexto em que foi proferida deve entender-se que os factos contidos na acusação que revelam um contexto de confronto entre arguido e ofendido, o qual teve necessidade de chamar a GNR para velar pela sua segurança permite que se atribua ao sentido da expressão utilizada pelo arguido, a vontade por ele manifestada de atingir – futuramente –a integridade física do ofendido, o que só dependia da vontade dele e aconteceria quando o ofendido saísse da sua residência e se deslocasse para o exterior da mesma;
9. a expressão “anda cá fora que estou á tua espera, cabrão” após bloquear a entrada da residência do ofendido com o seu camião, com a intenção de o intimidar e lhe provocar um sentimento de insegurança e intranquilidade, tendo presente as regras de experiência comum e a normalidade da vida no local em que foi proferida e a capacidade de entendimento do comum cidadão, traduzem a ameaça de que se irá futuramente atentar contra a integridade física do destinatário das expressões;
10. o arguido adoptou um comportamento ameaçador idóneo, mediante palavras e atitudes (bloqueou a entrada da residência do ofendido com um camião) susceptível de produzir o resultado típico que se pretende acautelar.
Com efeito, o arguido actuou com fortes propósitos intimidatórios que foram adequados a afectar a segurança, tranquilidade e liberdade de formação de vontade do ofendido (bens jurídicos acautelados, como já se referiu, pelo crime de ameaça);
11. discorda-se também do entendimento perfilhado pelo despacho recorrido de que a expressão que o arguido dirigiu ao ofendido de que “se não entregasse a égua, mataria todos os cavalos que visse, que iam directamente para a carne” não contém a ocorrência para o ofendido de qualquer mal e que se entendesse que ser referida aos seus bens, designadamente, os cavalos, impunha-se que na acusação se afirmasse isso mesmo, impondo-se a especificação do valor dos cavalos do ofendido eventualmente visados com a afirmação;
12. com efeito, a acusação faz constar que o arguido se dirigiu ao ofendido e se encontra junto da residência daquele quando lhe anunciou que mataria todos os cavalos que visse pelo que foi mencionado a ocorrência de um mal para os cavalos do ofendido;
13. por último, impugna-se a exigência do despacho recorrido que ara se considerar preenchido, em termos fácticos, o segmento de “bens patrimoniais de considerável valor” é necessário na acusação a especificação do valor dos mesmos;
14. existem bens que têm um valor patrimonial avultado, importante, valioso e significativo, que é pacífica e comummente aceite pela comunidade constituindo exemplo disso os cavalos referidos na acusação.
Com efeito, afigura-se-nos que a expressão utilizada pelo tipo legal não impõe a referência a uma quantidade pecuniária específica ou traduzida em unidades de conta, como entende o despacho recorrido mas antes aponta, ao que se nos afigura, para uma ordem de grandeza, não materializável em números concretos mas antes a ser interpretada de acordo com os critérios gerais da comunidade ou entendimento do cidadão comum, devendo ter-se em conta também o contexto sócio-económico em que os interlocutores se inserem;
15. deste modo, mesmo que assim não se entendesse, a falta de indicação do valor concreto dos cavalos cujo mal a infligir se anuncia na expressão verbalizada pelo arguido, não implicaria como condição necessária a rejeição da acusação por falta de fatos que constituam crime, nos termos do artigo 311º/2 alínea a) e 3 alínea d) C P Penal, como o fez o despacho recorrido:
16. entende-se terem sido violadas as normas previstas no artigo 153º/1 C Penal e 311º/2 alínea a) e 3 alínea d) C P Penal.

I. 3. Na 1.ª instância não foi apresentada qualquer resposta.

II. Subidos os autos a este Tribunal, pronunciou-se o Sr. Procurador Geral Adjunto, concordando com o teor da motivação, igualmente, no sentido da procedência do recurso, pois que a acusação não se apresenta ainda manifestamente infundada.

No cumprimento do estatuído no artigo 417º/2 C P Penal, nada foi acrescentado.

Teve lugar o exame preliminar, onde se decidiu nada obstar ao conhecimento do recurso.

Seguiram-se os vistos legais.

Foram os autos submetidos à conferência.

Cumpre agora apreciar e decidir.

III. Fundamentação

III. 1. Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º/1 C P Penal.
No caso presente, de harmonia com as conclusões apresentadas, suscita o recorrente para apreciação, tão só, a questão de saber se os factos descritos na acusação são susceptíveis de integrar o tipo legal de ameaça.

III. 2. Para uma melhor elucidação da questão subjacente ao presente recurso, importa, desde já, recordar, o teor da acusação pública:

“no dia 16.6.2010, cerca das 18.30 horas, o arguido deslocou-se junto da residência de C…, sita na Rua …, …., …, Vila Nova de Gaia e tendo bloqueado a entrada com o seu camião começou a proferir contra o ofendido e em tom de voz elevado:”anda cá fora, que eu estou à tua espera, cabrão”, o que determinou que o ofendido solicitasse a comparência de elementos da GNR.
Depois de aqueles agentes de autoridade se terem retirado do local, o arguido voltou a dizer ao ofendido que:”se não entregasse a égua, mataria todos os cavalos que visse, que iam directamente para carne”.
As expressões do arguido através dos meios sobreditos, nas circunstâncias em questão, marcaram a personalidade do ofendido, criando no espírito do mesmo receio e inquietação de ser lesado, na sua integridade física e na dos seus cavalos e alteraram a sua liberdade de determinação.
O arguido actuou voluntária e conscientemente com o intuito de, com as mencionadas expressões, anunciar o se intuito de acometer os sentimentos de segurança e livre determinação do ofendido, sabendo que com a sua conduta a conseguiu intimidar e assustar, incutindo-lhe medo e receio pela sua integridade física e pela integridade dos seus cavalos.
Agiu com o conhecimento do carácter ilícito e da punbilidade da sua conduta”.

III. 3. Vejamos, então.

III. 3. 1. Os fundamentos do despacho recorrido.

Aqui se concluiu que os factos imputados ao arguido na acusação pública são insusceptíveis de subsunção no elemento objectivo do tipo legal.
Isto na consideração de que,
na expressão “anda cá fora que eu estou à tua espera, cabrão”, dirigida ao ofendido, o arguido não concretiza a ocorrência de qualquer mal que possa advir àquele, bem como não decorre da aludida afirmação que uma qualquer ocorrência dependa, tão só, e apenas, da vontade do arguido e,
no que concerne à segunda expressão, de igual modo, dela não decorre a ocorrência para o ofendido, de qualquer mal, sendo que a reportar-se a bens deste, designadamente cavalos, impunha-se que na acusação se afirmasse isso mesmo, impondo-se a especificação do valor dos cavalos do ofendido e eventualmente visados com afirmação,
donde, as aludidas expressões, por imprecisas, não podem fundamentar a censura jurídico-penal, censura esta que, constituindo-se a última ratio deve aplicar-se, tão só e apenas às acções claramente contidas no tipo legal, deixando fora de tal censura condutas cinzentas e ambíguas.

III. 3. 2. As razões do recorrente.

Por seu lado, o recorrente mostra a sua discordância perante tal decisão, pugnando por que,

a acusação rejeitada não pode ser considerada como manifestamente infundada, por os factos descritos não constituírem crime, porquanto aí estão descritos factos susceptíveis de configurar um crime de ameaça, designadamente, os requisitos de,
- anúncio sério de um mal futuro contra a integridade física e bens patrimoniais de considerável valor;
- adequação a provocar medo e inquietação no ofendido, prejudicando, a sua liberdade pessoal/individual e a sua segurança e dos seus bens (cavalos).
Assim,
1. entender-se que na expressão “anda cá fora que estou à tua espera, cabrão” não consubstancia a ameaça de infligir um mal, consubstancia uma interpretação demasiado restritiva.
Com efeito, defende, o recorrente, que tendo-se em consideração que no despacho de acusação rejeitado se refere, não só a expressão utilizada pelo arguido, mas também o seu enquadramento/contexto em que foi proferida deve entender-se que os factos contidos na acusação que revelam um contexto de confronto entre arguido e ofendido, o qual teve necessidade de chamar a GNR para velar pela sua segurança permite que se atribua ao sentido da expressão utilizada pelo arguido, a vontade por ele manifestada de atingir – futuramente – a integridade física do ofendido, o que só dependia da vontade dele e aconteceria quando o ofendido saísse da sua residência e se deslocasse para o exterior da mesma.
Esta expressão proferida após o arguido bloquear a entrada da residência do ofendido com o seu camião, com a intenção de o intimidar e lhe provocar um sentimento de insegurança e intranquilidade, tendo presente as regras de experiência comum e a normalidade da vida no local em que foi proferida e a capacidade de entendimento do comum cidadão, traduzem a ameaça de que se irá futuramente atentar contra a integridade física do destinatário das expressões.
Assim, o arguido adoptou um comportamento ameaçador idóneo, mediante palavras e atitudes (bloqueou a entrada da residência do ofendido com um camião) susceptível de produzir o resultado típico que se pretende acautelar, tendo actuado com fortes propósitos intimidatórios que foram adequados a afectar a segurança, tranquilidade e liberdade de formação de vontade do ofendido - bem jurídico acautelado pelo crime de ameaça.

Quanto à 2ª expressão - “se não entregas a égua, mato todos os cavalos que veja, vão directamente para a carne”.
Defende o recorrente, por um lado, que a acusação faz constar que o arguido se dirigiu ao ofendido e se encontra junto da residência daquele quando lhe anunciou que mataria todos os cavalos que visse, donde conclui pela menção da ocorrência de um mal para os cavalos do ofendido e, por outro, que existem bens que têm um valor patrimonial avultado, importante, valioso e significativo, que é pacífica e comummente aceite pela comunidade - constituindo exemplo disso os cavalos referidos na acusação.
Neste segmento, defende o recorrente que o tipo legal não impõe a referência a uma quantidade pecuniária específica ou traduzida em unidades de conta - como entende o despacho recorrido - mas antes aponta, para uma ordem de grandeza, não materializável em números concretos, antes a ser interpretada de acordo com os critérios gerais da comunidade ou entendimento do cidadão comum, devendo ter-se em conta também o contexto sócio-económico em que os interlocutores se inserem.

Conclui pela violação dos artigos 153º/1 C Penal e 311º/2 alínea a) e 3 alínea d) C P Penal.

III. 3. 3. São do seguinte teor as normas alegadamente violadas:

o artigo 153º/1 C Penal, prevê o crime de ameaça, na situação de alguém “ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”;
artigo 311º C P Penal:
“1. recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre s nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido par a julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) de não aceitar a acusação do assistente ou do MP na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente.
3. para os efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) se s factos não constituírem crime”.

III. 3. 4. Apreciando.
Temos então que, a acusação foi rejeitada, por se ter considerado como manifestamente infundada, dado que os factos ali descritos não constituem crime de ameaça.

A propósito da alínea d) do n.º 3 do artigo 311º C P Penal refere Germano Marques da Silva in Curso, III, 207/8, que, “esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”.
Crime na noção contida na alínea a) do artigo 1º do C P Penal, é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”.
Acusação manifestamente infundada é aquela que nos seus próprios termos não tem condições de viabilidade, no entendimento expressivo de Maia Gonçalves, o que acontece nos casos taxativos previstos no n.º 3 do artigo 311º C P Penal.
O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime, só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos constitutivos - objectivos e subjectivo - de qualquer ilícito criminal ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C P Penal.
Com a actual redacção do artigo 311º C P Penal, introduzida pela Lei 65/98 de 25AGO, manifestante que se quis excluir a possibilidade de rejeitar a acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária, como tinha sido fixado pelo Ac. do STJ 4/93, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 311º C P Penal.

Assim dado como assente que no caso se verificam os indícios dos factos descritos na acusação, importa apreciar se dirigir a alguém as palavras que o arguido dirigiu ao ofendido, é susceptível de integrar o tipo legal de ameaça do artigo 153º/1 C Penal.
O tipo legal de crime de ameaças está inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal e visa sancionar, inequivocamente os ataques ou afectações ilícitas da liberdade individual, pretendendo tutelar a liberdade de decisão e de acção.
Ameaçar, etimologicamente, significa prometer ou pronunciar um mal futuro, anunciar a intenção de praticar, no futuro, um acto maléfico, donde, são 3 as características essenciais do conceito de ameaça:
mal,
futuro,
cuja ocorrência dependa da vontade o agente.

O crime de ameaça, hoje em dia após a revisão do C Penal operada em 1995, passou de crime material ou de resultado, a crime de mera actividade, como o era, aliás, no C Penal de 1886.
Passou a ser crime de perigo e concreto.
Assim, o que se exige, como elemento constitutivo e objectivo, deste tipo legal, é que a acção reúna certas características, não sendo necessário que em concreto, chegue a provocar medo ou inquietação, antes que de forma adequada a conduta do agente, provoque o resultado dos crimes materiais, de medo ou inquietação.
Para o preenchimento deste conceito de adequação, devemos fazer apelo, quer ao ponto de vista do visado, sentido, sensibilidade e personalidade do sujeito passivo, quer ao ponto de vista do que é geralmente reconhecido.
Não basta a simples ameaça para que se verifique o apontado tipo legal de mera acção e de perigo. Torna-se necessário que a ameaça, na situação concreta, seja adequada a provocar medo e inquietação. O critério para ajuizar da adequação da ameaça a provocar medo e inquietação, ou para prejudicar a liberdade de determinação, deverá, ser por um lado objectivo e por outro individual.
Objectivo, desde logo, no sentido de que a ameaça se deve considerar adequada, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida, bem como a personalidade do agente e a susceptibilidade de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa e, individual, no sentido de que devem revelar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada.
Por outro lado, o objecto da ameaça tem de constituir crime “contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”, são os ensinamentos retirados do Comentário Conimbricense, da autoria do Prof. Taipa de Carvalho.

III. 3. 5. E aqui chegamos ao ponto essencial do despacho recorrido.
No caso, a objectividade das circunstâncias, do contexto e dos factos em si denunciam que:

“no dia 16.6.2010, cerca das 18.30 horas, o arguido deslocou-se junto da residência de C…, sita na Rua …, …., …, Vila Nova de Gaia e tendo bloqueado a entrada com o seu camião começou a proferir contra o ofendido e em tom de voz elevado:”anda cá fora, que eu estou à tua espera, cabrão”, o que determinou que o ofendido solicitasse a comparência de elementos da GNR.
Depois de aqueles agentes de autoridade se terem retirado do local, o arguido voltou a dizer ao ofendido que: “se não entregasse a égua, mataria todos os cavalos que visse, que iam directamente para carne”.

III. 3. 5. 1. “Anda cá fora cabrão que estou à tua espera” constitui expressão que não revela nenhuma das apontadas características que a ameaça deve revestir.
Nem o anunciar de um mal, muito menos futuro e cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
Entendimento que se não altera pelo facto de o arguido ter encostado o camião à porta da casa do visado pelas suas palavras, porventura a traduzir uma demonstração de força ou de uma maior carga intimidatória na sua conduta inequivocamente hostil e provocatória.

O que quer que fosse que o arguido pretendia do visado consubstancia na melhor das hipóteses, a ser algo de mal – o que não resulta, contudo, claro e inequívoco, da apontada objectividade, muito menos em termos de constituir crime contra os bens, vida, integridade física, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor - um mal com carácter iminente, a configurar acto de execução iniciado e enquadrado com o acto de imobilizar o veículo pesado à porta do visado, de o injuriar e de o desafiar a vir ter consigo. [1]
Porventura, na visão mais favorável à tese do recorrente, estaríamos perante um projectado crime de ofensa à integridade física, que o arguido, não praticou, contudo, sendo que as palavras e os actos mais não eram do que a manifestação de uma intenção de agredir o visado, no imediato.
“Ser o mal futuro, significa que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, ié, do respectivo mal.
Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Estamos perante uma ameaça quando alguém afirma “hei-de-te matar; já estaremos perante uma situação de violência quando alguém afirma “vou-te matar já”.
Que o agente refira ou não prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa, artigo 22º/2 alínea c) C Penal.
Enquanto que naquela primeira situação, ocorre o anúncio de um mal futuro, limitador da liberdade individual do visado, já na segunda, ocorre o anúncio de um mal actual, iminente, normalmente, à vida ou à integridade física, que começa e acaba ali, sendo levado à prática, integra o crime de homicídio ou de ofensa à integridade física, ou, então, o agente desiste de o executar, sem que, em qualquer destes dois últimos casos, o mal anunciado se projecte na liberdade de decisão e de acção futura da vítima. Ou então, não ocorre porque, no caso, o visado não aceita o repto que lhe foi lançado.
Com efeito, por outro lado, o elemento “ocorrência a depender da vontade do agente”, não se verifica, in casu, pois que estaria sempre dependente de o visado aceitar enfrentá-lo, aceitar o desafio para o encontro que lhe estava a ser endereçado.
Só se o visado saísse para o exterior é que a ocorrência tinha virtualidade para acontecer.

Assim, no caso, as circunstâncias, o contexto e os factos em si denunciam que o arguido, agastado, por qualquer razão, que se desconhece, com o visado, vai a sua casa, imobiliza o veículo pesado que conduzia à sua porta e, desafia-a a vir para a rua, chamando-o, ainda de cabrão.
Esta objectividade torna a interpretação dos factos, clara e evidente, a traduzir a intenção de no imediato resolver a questão que tinha com o visado, desde que este saísse para a rua.
Cremos que este contexto é revelador de um evidenciado, iminente, propósito de, no mínimo, ofender a integridade física do visado, integrando um acto executório do crime - no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa, artigo 22º/2 alínea c) C Penal: actos que previsivelmente serão seguidos de outros, que integrem um tipo legal de crime - (que, todavia, se não chegou a consumar, desde logo, porque o visado, aparentemente, não saiu para o exterior) e não de uma ameaça contra a sua liberdade.
Com efeito, a postura do arguido denuncia que ele tinha o propósito, estava predisposto, a – tudo o indica, discutir e agredir o visado, naquela ocasião e, não – como é elemento da factualidade típica do crime de ameaça - que estivesse a anunciar que num qualquer e incerto, momento futuro, o pretendesse vir a efectuar.
De resto, o arguido ao desafiar o visado para vir para a rua, naquele preciso momento, em que ele o esperava, visa transmitir a ideia de que de outra forma, em outro local, em outro momento, nada fará.
As palavras do arguido não denunciam, não exteriorizam que na sua mente a concretização do por si verbalizado fique reservada para um outro local e momento incertos e diversos.
Antes, que o que dele pretendia, era para ter lugar naquela ocasião, de imediato, desde que aquele saísse para a rua.

III. 3. 5. 2. A 2ª expressão imputada ao arguido, “se não entregasse a égua, mataria todos os cavalos que visse, que iam directamente para carne”, aliada àquela outra, traduz a ideia de um aparente conflito motivado por negócios equinos, mal resolvidos.
Da mesma forma se mantém válido, tudo o que acima se disse a propósito da 1ª expressão – esta, no entanto, absolutamente, inócua e vaga.
No entanto, esta 2ª expressão - proferida cronologicamente, depois, acto contínuo, à saída dos agentes de autoridade do local - é susceptível de traduzir aqui, já, o anunciar de um mal, futuro, traduzido no abate dos cavalos que a acusação mais adiante alega serem do visado, ainda que sem qualquer referência concreta e directa ou por reporte ao seu valor - o que seria sempre exigido pela factualidade típica da norma em causa que pressupõe que os bens patrimoniais objecto da acção intimidatória possuam valor considerável.
Isto porque se os bens patrimoniais não forem de considerável valor não há, sequer, crime de ameaça.
Nem se diga que ao valor se pode chegar pela objectividade ou pela subjectividade.
Isto foi o que se quis (e pretendeu) acabar com a reforma do C Penal de 1995 ao fixar, ao estabelecer no artigo 202º, a definição, concretização, objectiva dos valores para efeito de crimes contra o património – que é o crime visado na ameaça feita pelo arguido.
Por referência ao valor, em cada momento, da UC aqui se balizou o que deve ser considerado como valor diminuto, como valor elevado e como valor consideravelmente elevado.
Se assim é, não pode deixar de se entender que bem andou o despacho recorrido ao considerar que o elemento “considerável valor” se deveria traduzir na alegação/especificação/concretização do valor dos animais, por forma a permitir avaliar se está ou não preenchido o tipo legal.
Ainda que não necessariamente, pelo seu valor, pecuniário, aquisitivo ou de troca, mas sempre reportado a valor de referência que se traduza, que tenha a virtualidade de, integração daquilo que se considera como considerável valor.
Considerável valor que há-de equivaler no quadro definido no artigo 202º C Penal a valor elevado. [2]
Não pode – como pretende o recorrente – que este valor seja atendido, se tenha por verificado, desde logo, porque considerável, significa, notável, poderoso ou respeitável.
Se estes são, é certo, os significados daquela expressão, deveria, no entanto, a acusação traduzir tal realidade, alegando facto concretos que permitissem, desde logo, concluir pelo preenchimento de tal conceito.
E, não omitir – como ocorre, in casu - de todo, qualquer alegação, sequer aproximativa ou contextualizada, nesse sentido.
A alegação, agora em sede de recurso, de que cavalos, tem um valor patrimonial considerável, atribuível por qualquer elemento da comunidade não remedeia a omissão absoluta – que a acusação patenteia - de qualquer referência que permita concluir pelo valor dos mesmos.
Nem se pode – como também aqui entende o recorrente – em face do texto legal, considerar que a exigência do tipo, em apenas conceder ressonância e dignidade jurídico-penal, nos casos em que os animais tenham considerável valor, se satisfaz com a alegação – mais uma vez apenas e tão só em sede de recurso – de que o legislador “aponta, tão só, para uma ordem de grandeza não materializável em números concretos, mas antes, a ser interpretada de acordo com os critérios gerais da comunidade ou entendimento do cidadão comum, devendo ter-se em conta, também, o contexto sócio – económico em que os interlocutores se inserem”.
Assim não é, com efeito, dada a evolução recente do texto legislativo, que objectivando o valor de referência pressuposto no tipo legal, visou, além do mais, colocar termo às intermináveis e inconclusivas - para a segurança e unidade do sistema - decisões, que fazendo apelo aos mais variados - e puramente subjectivos, alguns deles - critérios e factores a que se deveria atender na consideração do valor, o que traduzia uma incerteza, casuísmo e discricionariedade, incompatíveis com a certeza e segurança na aplicação do Direito e mormente, no que ao caso interessa, na qualificação de factos como jurídico-penalmente relevantes.
A definição da fronteira entre o que é crime e o que não é, não se compadece com o recurso ao subjectivismo a que o recorrente faz apelo.
Seria um regresso ao passado de má memória, por traduzir uma nefasta experiência em sede de hermenêutica das normas substantivas, incriminatórias do Direito Penal.

De resto e, mesmo que fosse atendível - que não é, de todo, a argumentação do recorrente – o certo é que não constando da acusação qualquer referência a qualquer um dos agora invocados factores com o auxílio dos quais se deveria interpretar e integrar o conceito de considerável valor – sequer sem a alegação deste conceito de direito, cujo preenchimento ficasse a cargo do Tribunal [3] – não se poderia – mormente nesta fase do processo - considerar como estando o valor expresso ou implícito, por forma a dar dignidade penal aos factos.
Nenhum conhecimento empírico, nenhuma regra de experiência comum ou própria do julgador, permite concluir que “os cavalos” - (cuja raça, características e número de resto se desconhece, podendo, desde logo, ser 2 ou 200, saudáveis ou doentes), enquanto objecto do crime a que se reconduz a ameaça – da acusação tenham valor superior a € 5.100,00.

Mas decisivamente, contudo, também aqui a ocorrência não está dependente da vontade do agente. O mal em que se traduz a ameaça, apenas será concretizado se o visado não entregar a égua. Donde, a ameaça apenas se concretizaria, se o visado, porventura – tudo o indica - não aceitar desfazer o negócio – entregando a égua.

III. 3. 6. Em conclusão:

ser o mal futuro significa apenas que o agente não o pretende concretizar de imediato, que a sua consumação não está iminente;
o receio, a inquietação, o medo que afectem ou prejudiquem a liberdade de determinação e de acção do visado, tem que ser provocado pelo anúncio de um mal futuro;
o condicionamento ou inibição – que sempre pode existir, perdurando por maior ou menor período de tempo – resultando do anúncio de um mal iminente, não tem a virtualidade de fazer integrar a previsão do tipo legal de ameaça, pela simples razão de que o mal anunciado não tinha o carácter de futuro;
a conduta injuriosa, intimidatória e provocatória, ainda que causando incómodo e apoquentando o visado - que desde logo é traduzido pela chamada, ao local, das autoridades policiais – não se revela, contudo, adequada e idónea, a provocar o medo ou a inquietação, que tem que resultar do anúncio de um mal futuro;
não tem, pois, potencialidade de o condicionar e/ou de o inibir, pressupostas pelo tipo legal.

Deste modo e por não se verificar, em qualquer das expressões, todos os elementos objectivos do tipo de ilícito, falhando ali o anúncio desde logo, do mal e aqui, do facto de a ocorrência do mal futuro anunciado, depender da vontade do arguido, bem andou o despacho recorrido ao rejeitar a acusação pública – que ao contrário do que considera o MP neste Tribunal, já se evidencia, neste momento, como manifestamente infundada, não carecendo de prosseguir o processo para julgamento, para que tal adjectivação se perfectibilize ou aperfeiçoe.

IV. Dispositivo

Nestes termos e com os fundamentos acabados de expor, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto pelo MP., confirmando-se a decisão recorrida.

Sem tributação.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2012.Março.7
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
Artur Manuel da Silva Oliveira
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[1] O que só, aparentemente é contrariado pelo facto de se o arguido bloqueou a entrada da casa do visado, naturalmente que da mesma forma bloqueou a saída, donde o visado mesmo que o quisesse enfrentar, não podia, estava fisicamente impossibilitado, pela posição do veículo do arguido.
[2] Neste sentido, Taipa de Carvalho no Comentário Conimbricense.
[3] Se se deve entender que a noção de considerável valor equivale ao conceito de valor elevado definido na alínea a) do artigo 202º C Penal e este é aquele “que exceder 50 UC avaliadas no momento da prática do facto”, sendo que no ano de 2010 o valor da UC era de € 102,00, por isso, ao tempo valor elevado e no caso, o considerável valor, seria o que excedia o valor de € 5.100,00.