Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1224/08.8GCSTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP00042259
Relator: BORGES MARTINS
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
Nº do Documento: RP200903041224/08.8GCSTS-A.P1
Data do Acordão: 03/04/2009
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO - LIVRO 357 - FLS 246.
Área Temática: .
Sumário: No âmbito do nº 3 do art. 86º do Código de Processo Penal, o Ministério Público tem de indicar os fundamentos da decisão de aplicar o segredo de justiça, e não apenas afirmá-los em abstracto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1224/08.8.
2.º Juízo Criminal da Comarca de Santo Tirso.

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:


Nos autos supra mencionados, foi exarada decisão prevista no art.º 86.º, n.º3 do CPP, julgando não válido o despacho proferido pelo MP, a fls. 7 dos autos – que veio determinar a sujeição dos presentes autos a segredo de justiça, com fundamento numa Directiva da PGR, atendendo ao tipo legal que integra o objecto da investigação (crime p. e p. pelo art.º 152.º do CP), por o mesmo se inserir no contexto de criminalidade violenta e a publicidade dos autos ser, em concreto, lesiva para os interesses da investigação e da vítima.

Foi o seguinte o fundamento da decisão em causa:

Não se vislumbra qualquer motivação factual concreta procedente para o despacho proferido pelo MP. Não é pela simples circunstância de o objecto dos autos se reportar a um determinado tipo legal, ainda que o mesmo se integre no conceito de criminalidade violenta que se justifica a sujeição dos autos a segredo de justiça, já que com tal assunção por parte do MP, está a partir-se do abstracto e a não ponderar o concreto; já por referência ao que “em concreto” o MP alegou: interesses da vítima e interesses da investigação, importará ponderar que estamos perante uma alegação puramente genérica e vaga, não fundamentada em concreto por referência ao caso dos autos.
A título meramente exemplificativo, a decisão invoca no final a conformidade com o entendimento preconizado nos acórdãos deste Tribunal da Relação, publicados em www.dgsi.pt, datados de 7.5, 28.5, 4.6, 11.6, 25.6 e 24.9 do ano transacto.

Recorreu do mesmo o MP, com vista à sua substituição por outra decisão que valide a sujeição do presente processo a segredo de justiça, alegando, em síntese:
- não podia o JIC, sem mais, não validar essa determinação e a directiva invocada no despacho de aplicação de segredo de justiça;
- tratava-se de “validar” e não de “determinar”, o que já fora feito;
- é ao MP que compete determinar se a aplicação do segredo de justiça é ou não excessivamente onerosa;
- ao JIC compete apenas verificar se do seu ponto de vista das liberdades, existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter desproporcionado ou gravoso em excesso da medida;
- a decisão recorrida não ponderou as exigências de investigação;
- mostra-se insuficientemente fundamentada;
- ao exigir motivação concreta viola as regras da experiência comum que indicam que, neste tipo de situações em que a vítima reside com o agente e é dele dependente, aquela corre graves riscos quando este se apercebe que foi apresentada queixa e decorre um inquérito.

O M.º Juiz de Instrução Criminal sustentou s bondade da sua decisão, voltando a sublinhar a jurisprudência deste Tribunal.
O Exmo PGA neste Tribunal da Relação, no seu parecer, apelou para a mudança de tal orientação, no sentido das regras de bom senso e da experiência comum deste tipo de casos; e também da consideração que a tese recorrida é completamente contrária aos interesses da investigação e á eficácia desta, sem ao mesmo tempo se vislumbrarem interesses ou direitos do participado a salvaguardar.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação:

Preliminarmente, toma-se desde já posição quanto à alegada falta de fundamentação da decisão recorrida – a qual não foi arguida tempestivamente pelo MP no termos do disposto no artigo 123.º, n.º1 do CPP e que consequentemente a existir se deve considerar sanada.
Solução de resto sistematicamente adoptada nas demais decisões deste Tribunal que infra se comentarão.
No caso do presente recurso, concordamos plenamente com os argumentos contidos na jurisprudência citada pela decisão recorrida, os quais sinteticamente se poderão assim designar:
- a intervenção do JIC assume a fisionomia de garantia dos direitos dos sujeitos processuais;
- essa intervenção não pode ter um conteúdo tabelar ou de chancela;
- antes se traduz num juízo de concordância com fundamentos que têm de ser indicados e não afirmados em abstracto,
- ocorreu com a nova redacção do artigo 86.º do CPP uma mudança de paradigma;
- a regra passou a ser a da publicidade do processo e o segredo a excepção;
- inexiste um catálogo legal de crimes, no sentido de permitia a aplicação sem mais da medida em causa;
- o direito comparado aponta para a necessidade de a sujeição a segredo de justiça ser motivada;
- não incumbe ao juiz indicar meios de protecção da vítima que não contendem com possibilidade de defesa por parte do arguido;
- o juiz não está vinculado ao teor de uma circular da PGR.

Em reforço desta linha de entendimento, apenas se acrescentam algumas notas:
O Acórdão de 24.9.2008, relatado pelo Exmo Desembargador Dr. Joaquim Gomes, mencionado também na decisão recorrida, transcreve o teor de alguns preceitos referentes a este tema e pertencentes ao Direito Comparado.
Entre eles, estão precisamente os arts. 329.º do CPP Italiano e 301.º -302.º da espanhola Ley de Enjuiciamento Criminal.
Esta última norma determina na verdade que o Juiz de Instrução poderá, a proposta do MP ou de qualquer dos sujeitos processuais, declarar o segredo de justiça, por tempo não superior a um mês.
Em anotação da mesma (Editorial Colex, Madrid, 2001, 12.º edição, pág. 193), pode ler-se o teor de decisão da STC, de 31.1.1985, da qual se salientam as seguintes passagens (tradução e negritos nossos): A admissão que faz a disposição constitucional de excepções à publicidade não pode entender-se como um poder em branco dado ao legislador, porque a publicidade processual está imediatamente ligada a situações jurídicas subjectivas dos cidadãos, que têm a condição de direitos fundamentais, direito a um processo público no art.º 24.2 da CE e direito a receber livremente informação.
Esta ligação entre garantia objectiva da publicidade e direitos fundamentais, leva a exigir que as excepções á publicidade previstas no art.º 120.º.1 se insiram na previsão normativa e, na sua aplicação judicial concreta, às condições fora das quais a limitação constitucionalmente possível se transforma em violação do direito. (...).
Referindo em seguinte que se pode afirmar a possibilidade de o processo penal, instrumento com que se pretende efectiva protecção dos direitos fundamentais, poder ter uma fase sumária sustentada pelo segredo e como tal limitativa da publicidade e da liberdade, volta a sublinhar: Mas requere-se na sua aplicação uma interpretação estrita.
O artigo 20.º, n.º2 da CRP, determina: Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consultas jurídicas(...). Acrescenta o n.º 3 deste mesmo preceito: A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
Por outro lado, e mais directamente atinente ao caso sub-judice, estabelece o art.º 26.º, n.º1 da CRP, como direito fundamental, que a todos são garantidos os direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
O artigo 86.º, n.º1 do CPP estipula: O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei.

Estas excepções não constam de nenhuma tipologia fixada em norma alguma.
Não fixou o legislador qualquer lista de tipos legais crime, cuja ocorrência pudesse desencadear “ope legis” um inquérito secreto.
É então o mesmo invocar essa lista ou invocar o bem jurídico protegido pelo tipo legal abstracto e a necessidade de defesa da vítima. Esta via chegaria ao mesmo resultado: derivar o secretismo dos autos de uma abstracção. Assim, nos casos em que se investiga o tráfico de droga, há o perigo de os arguidos particularmente violentos exercerem represálias ou intimidação, se souberem a identidade dos consumidores que assumiram em declarações ter-lhes adquirido droga; nos casos de violência escolar de alunos contra professores, poderão estar nas mesmas circunstâncias os alunos que depuserem contra colegas, nos crimes de abuso sexual contra crianças e adolescentes, reconhece-se a particular vulnerabilidade destes a chantagens, etc., até perfazer os crimes mais graves e frequentes, que são previstos no Plano de Política Criminal e transformando-se assim significativamente a excepção em regra.
É que na comissão do tipo legal de crime não há uma homogeneidade de situações.
Por outro lado, tratando-se de crime público, como é o dos presentes autos, qualquer notícia de eventual prática do mesmo, vinda de um qualquer terceiro, sujeitaria imediatamente a devassa secreta a intimidade da vida familiar, a qual como vimos é um dos primeiros direitos fundamentais do cidadão. Ficaria a tutela de tal bem constitucionalmente protegido bem menos firme.

São aquelas excepções as que estão no âmbito dos n.º 2 e n.º 3 do art.º 86.º do CPP. A primeira é em tudo idêntica à norma da Ley de Enjuiciamento Criminal supra mencionada, mais precisamente art.º 302.2.
A segunda – n.º 3 - tem que ser vista de forma articulada com o n.º 2 do art.º 86.º do CPP. Não é crível que num primeiro preceito o legislador tenha querido que o juiz, de forma necesssariamente fundamentada seja a entidade que dirima os interesses virtual ou realmente em conflito; e logo de imediato, o tenha considerado como não idóneo de exercer tal poder, quando reconhece ao MP idêntica possibilidade de decisão.
Só que o legislador não fica por aqui.
Podia ter optado pelo regime consagrado no art.º 329.º,ns.1 e 2 do CPP italiano, em que a definição da sujeição ou não sujeição do inquérito medida de segredo de justiça implica apenas a conjugação da sua previsão legal, em abstracto (n.º1) com a possibilidade de o MP, “com decreto motivato” (n.º 2), poder determinar o levantamento do mesmo.
Mas tal seria uma incongruência manifesta com a previsão normativa antes consagrada no artigo 86.º. E daí que tal definição ficasse sujeita a condição de aceitação por parte da autoridade judiciária que o legislador entende ser a mais idónea para delimitar a extensão processual dos interesses em conflito, por um lado, o secretismo que a investigação careça, por outro lado, a necessidade de informação de outros sujeitos processuais, como o arguido.
Não nos parece que o acto de validação do juiz assuma a fisionomia de homologação formal da decisão do MP, um simples requisito de executoriedade. Tal só seria admissível se esta assumisse um caracter puramente técnico, com teor apenas susceptível de ser representado pelo MP.
Mas não se afigura evidente que o Juiz de Instrução Criminal seja estranho às razões e mecanismos de investigação. Como se alega na presente motivação de recurso, é a ele que cabe dirimir as situações de conflito entre o interesse público da investigação e o interesse do arguido de ter acesso a informação processual.
Ora, como poderia ele dirimir tal conflito se lhe fosse alheia a noção das prioridades da investigação, das suas exigências fundamentais?

Mas mesmo que se admitisse que o despacho de validação assumisse aquela fisionomia, não podia prescindir para o efeito que a montante estivesse uma determinação do MP, devidamente fundamentada.
É o simples acto de concordância, de homologação ou validação formal, como se lhe queira chamar nessa óptica, não traduz apenas a significação de que o juiz perfilhou também a medida de imposição de segredo de justiça; igualmente a significação de que aderiu aos fundamentos subjacentes.
Estes não se podem esgotar com a invocação do tipo legal de crime.
Cremos todavia que a natureza mais lógica, do ponto de vista sistemático, para a intervenção judicial prevista no art.º 86.º, n.º3 do CPP é algo de similar ao que o Prof. Marcello Caetano designava de «acto complexo»: a aprovação de vários órgãos é necessária para a produção de um acto, incluindo a manifestação de vontade de cada um deles sobre o conteúdo do futuro acto - Manual de Direito Administrativo, I, Almedina, Coimbra, 1980, pág. 463. A especificidade da norma é reconhecer ao órgão que dirige o inquérito a possibilidade de tomar a iniciativa da resolução do conflito de interesses, que se traduz na invocação de uma excepção à regra.
Poder-se-á certamente sustentar que este sistema instituído pelo legislador torna a investigação mais difícil ou em alguns casos votada ao insucesso.
Mas essa foi a opção do legislador ao criar este novo paradigma legal.
Não estabeleceu sequer a possibilidade de num prazo mínimo, por exemplo 30 dias, em determinados tipos legais de crime, a regra poder ser a do segredo de justiça.
Poderia em tal prazo o MP carrear elementos de modo a mais solidamente alicerçar a sua pretensão.
Mas, de qualquer modo, não é ao órgão aplicador do Direito que incumbe «minorar» os efeitos mais gravosos, que do ponto de vista da investigação, a opção por um modelo radical, de sinal contrário, envolveu para o processo penal.
Simas Santos e Leal Henriques, no seu “Código de Processo Penal Anotado” (vol. I, 3.ª edição, 2008, Ed. Rei dos Livros, Lisboa) comentam mesmo o preceito novo nestes termos (negritos nossos):

A nova regulação dada, pela Lei n.º 48/2007, ao segredo de justiça, veio substituir uma abordagem coerente em si e na referência constitucional, por um regime que só, por excepção, admite salvaguardar a relevância primordial da exclusão da publicidade para a integridade da investigação.
E, como se não bastasse essa salvaguarda excepcional é tutelada pelo juiz de instrução e não pelo responsável funcionalmente pelo inquérito, o Ministério Público, com grave prejuízo da sua função constitucional. Assim, se introduz mais uma entorse no modelo anterior, ao desenquadrar o juiz das suas funções de garantia e protecção de direitos fundamentais a que está vinculado, na procura de equilíbrio entre valores em conflito (um juiz das liberdades que intervém na protecção de segredos de interesse público, nos actos que afectem a liberdade e direitos constitucionais: integridade pessoal, privacidade das comunicações, perservação do direito à reserva pessoal do domicílio), que, portanto, deveria estar afastado dos resultados da investigação, da sua eficácia (...)
Mas não teria sido então de repensar o modelo de investigação, face á evolução dada ao segredo de justiça, quer ponderando a possibilidade de atribuir valor ás provas cuja recolha em inquérito está já sitiada, quer regressando a um modelo de informalidade contida e controlada, ao menos para a criminalidade de massas que evite os perigos que se enumeraram e que conduzam a uma citação directa para julgamento? Obviamente com a necessária cautela constitucional?
O que se disse conflui para uma pergunta fundamental, neste contexto e cuja resposta já está antecipada: o regime de segredo de justiça (externo e interno), por excepção vigiada e tutelada musculadamente pelo juiz de instrução, ainda se pode considerar «a adequada protecção do segredo de justiça» que a Constituição comete no n.º 3 do seu art.º 20.º ao legislador ordinário? – págs. 572-573.
Subjacente a esta problemática parece estar uma interpretação do teor do artigo 86.º do CPP que não deixa margem para dúvidas.
E, salvo o devido respeito, não parece que a via adoptada pela contestação, expressa na motivação de recurso, da tese em defesa consagrada na decisão recorrida, possa vir a solucionar uma eventual insuficiência ou incorrecção legislativas.

Decisão:

Pelo exposto, acordam os juizes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo MP, confirmando a decisão recorrida.
Sem tributação.

Porto, 4 de Março de 2009.
José Carlos Borges Martins
António Gama Ferreira Ramos (junto declaração)
Arlindo Manuel Teixeira Pinto

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Declaração de voto.
No processo penal, quer a actividade do JIC, quer a do Ministério Público, não constituem um fim em si mesmas, são actividades pré-ordenadas a um fim: a realização da justiça. Por isso, impondo-se as práticas pragmáticas, tenho dificuldade em perceber porque é que o JIC não «convidou» o Ministério Público a fundamentar e/ou esclarecer o seu requerimento, do mesmo passo que não compreendo, atentos os valores em causa — a celeridade é o mais visível — porque é que o Ministério Público, sem prejuízo de vincar no processo a sua posição, não optou por apresentar novo requerimento. Tornam-se, assim, os sujeitos processuais — principais actores na resolução da conflitualidade — protagonistas de uma indesejada litigância lateral, cuja responsabilidade primeira cabe ao legislador da Lei n.º 48/2007, que veio sobrepor campos de actuação antes perfeitamente demarcados.
A solução para que propendo é uma «via per mezzo» entre as extremadas posições retratadas nos autos, o que resulta da aplicação dos princípios gerais e do correcto balanceamento e ponderação concreta dos interesses e valores em conflito. Nessa ponderação, parece-me que tem sido esquecido que a partir de 1997, foi constitucionalizado o segredo de justiça, art.20º n.º 3 da Constituição em dois vectores: a) como meio de protecção da investigação penal e b) como tutela do segredo. No caso, estando em causa a «investigação», quanto ao mais admito que não há elementos bastantes, parece «quixotesco» ver a intervenção do JIC como o «juiz das liberdades; pelo contrário, a sua intervenção concreta ganha a forma de «fiscal da investigação», o que, no caso, está vedado pela Constituição e pela lei e desvirtua o princípio do acusatório. Os «papéis» estão bem definidos e importa não os trocar. E o juiz penal não pode esquecer que a obediência à lei começa pela Constituição.
O requerido pelo Ministério Público é sintético mas fundado. Depois o argumento de falta de fundamentação não deixa de ser «piedoso» quando, em regra, a prática processual, de todos os sujeitos processuais, balança entre o curto e estereotipado e o maçador mas também pronto a usar em qualquer situação, limadas umas pequenas arestas: singular plural, masculino feminino. E esta crítica começa por ser autocrítica. No mais e para uma pormenorizada desmontagem dos argumentos em que se louva, directa e indirectamente, a decisão recorrida, remeto, com a devida vénia, para a declaração de voto da Ex.ma Desembargadora Isabel Pais Martins no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 26.11.2008, relatado pelo Ex.mo Desembargador Pinto Monteiro.

Porto 4 de Março de 2009.
António Gama Ferreira Ramos