Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3420/10.9TJVNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: INVENTÁRIO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS COMUNS
Nº do Documento: RP201101313420/10.9TJVNF.P1
Data do Acordão: 01/31/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Enquanto a Lei nº 29/2009, de 29/06, que aprovou o regime jurídico do processo de inventário, não estiver regulamentada, e não tiverem decorrido 90 dias após a publicação dessa regulamentação, os cidadãos que pretendem instaurar processos de inventário têm o direito constitucionalmente garantido de o poderem fazer junto dos tribunais judiciais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3420/10.9TJVNF.P1 (Apelação)
Apelante: B……….

Sumário:
Enquanto a Lei n.º 29/2009, de 29/06, que aprovou o regime jurídico do processo de inventário, não estiver regulamentada, e não tiverem decorrido 90 dias após a publicação dessa regulamentação, os cidadãos que pretendem instaurar processos de inventário têm o direito constitucionalmente garantido de o poderem fazer junto dos tribunais judiciais.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
B………. intentou, em 20/10/2010, nos Juízos de Competência Cível de Vila Nova de Famalicão, acção de inventário para partilha da herança aberta por óbito de seus pais, C………. e D………..
Alegou que os inventariados deixaram bens móveis e imóveis situados no concelho de Vila Nova de Famalicão, sendo seus herdeiros os 11 filhos do casal, não estando os mesmos de acordo quanto à forma de partilhar a herança, razão pela qual se deve proceder a inventário com vista à partilha judicial do acervo hereditário, indicando como cabeça de casal, E………., filha dos inventariados, a qual vivia com os mesmos há menos de um ano à data da morte daqueles.
Distribuído o processo ao 4.º Juízo Cível daquele tribunal, foi proferido o despacho de fls. 15-16 que decidiu indeferir liminarmente o presente inventário, face à incompetência absoluta do Tribunal, por infracção de regras de competência em razão da matéria, uma vez que o processo deu entrada em juízo após a entrada em vigor da Lei n.º 29/2009, de 29/06, a qual atribui competência às conservatórias e notários para conhecerem dos pedidos de inventário instaurados após 18/7/2010.
Inconformado, apelou o autor, defendendo a revogação do despacho e a sua substituição por outro que julgue competente o tribunal recorrido.
Não foram apresentadas contra-alegações.

Conclusões da apelação:
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II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objecto do Recurso:
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objecto do recurso nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1 do Código de Processo Civil, redacção actual, sem prejuízo do disposto no artigo 660.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, a questão a decidir é a da competência absoluta do tribunal.

B- De Facto:
Os factos relevantes para a apreciação da apelação contam do antecedente relatório.

C- De Direito:
A questão a decidir é a seguinte: após 18/07/2010, ab initio, são os tribunais judiciais competentes, em razão da matéria, para apreciarem e decidirem acções de inventário ou tal competência encontra-se deferida às conservatórias e aos notários?
A decisão a proferir tem os seguintes pressupostos legislativos:
A Lei n.º 29/2009, de 29/06, aprovou o regime jurídico do processo de inventário e alterou, entre outros e no que ora releva, o Código Civil, o Código de Processo Civil (ao qual também aditou quatro artigos), o Código de Registo Predial e o Código de Registo Civil.
Segundo o legislador, este diploma visa dar cumprimento às medidas de descongestionamento dos tribunais previstas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 06/11.
Para cumprimento desse desiderato, o novo regime jurídico do processo de inventário atribuiu competência para a realização das diligências do processo de inventários “aos serviços a designar por portaria (…) e aos cartórios notariais”, tendo o juiz o “controlo geral do processo”, para os actos e nos termos definidos na mesma lei (artigos 3.º a 7.º).
O artigo 87.º, n.º 1[1] do diploma estipulou que entrava em vigor em 18/01/2010.
O artigo 84.º, por sua vez, prescreveu:
“A presente lei não é aplicável aos processos de inventário que, a data da sua entrada em vigor, se encontrem pendentes.”
Porém, em 15 de Janeiro de 2010 foi publicada a Lei n.º 1/2010, que, através do seu artigo 1.º, alterou o referido n.º 1 do artigo 87.º, diferindo a entrada em vigor da Lei n.º 29/2009, para 18/07/2010.
Por sua vez, o artigo 2.º desta Lei n.º 1/2010 prescreveu que este diploma produzia efeitos a 18/07/2010.
Apesar desta proclamação, a Lei n.º 44/2010, de 03/09, veio introduzir uma segunda alteração à Lei n.º 29/2009, e, entre outros, o artigo 1.º alterou o referido artigo 87.º, n.º 1, nos seguintes termos:
“1- A presente lei produz efeitos 90 dias após a publicação da portaria referida no n.º 3 do artigo 2.º.”
Não obstante esta estipulação, o legislador nos artigos 3.º e 4.º desta mesma Lei n.º 44/2010, respectivamente, quanto aos efeitos e quanto à entrada em vigor, estatuiu da seguinte forma:
“A presente lei produz efeitos desde o dia 18 de Julho de 2010.” (artigo 3.º)
“A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.” (artigo 4.º).
Resulta, pois, da conjugação destas normas, o seguinte:
- A Lei n.º 29/2009 entrou em vigor em 18/07/2010 (artigo 87.º, n.º 1, com a redacção dada pela Lei n.º 1/2010, de 15/01);
- Produz efeitos desde 18/07/2010 (artigo 2.º da Lei n.º 1/2010, de 15/01 e artigo 3.º da Lei n.º 44/2010, de 03/09);
- Porém, por força do artigo 87.º, n.º 1 (na redacção da pela Lei n.º 44/2010, de 03/09) só produz efeitos 90 dias após a publicação da portaria referida no n.º 3 do artigo 2.º, que estipula a necessidade de regulamentação para uma série de actos a praticar no decurso do processo de inventário.
Acresce, ainda, que Lei n.º 29/2009, de 29/06, prevê a publicação de regulamentação que concretize quais os serviços de registos e cartórios notariais com competência para a realização das diligências do processo de inventário (artigo 3.º, n.º 2).
Contudo, estas portarias ainda não se encontram publicadas.
Resulta do exposto que, para além da óbvia contradição entre o estipulado no n.º 1 do artigo 87.º da Lei n.º 29/2009, após a alteração dada pela Lei n.º 44/2010, e o artigo 3.º desta última Lei, inexiste regulamentação que concretize quais as conservatórias e os notários com competência para as novas acções de inventário.
Significa, assim, que formalmente a Lei 29/2009 está em vigor, mas é impossível a sua aplicação, já que, por um lado, retirou competência em razão da matéria aos tribunais judiciais para ab initio tramitarem os novos processos de inventário e, por outro lado, desconhecem-se quais os serviços de registos e notários que terão competência para a sua tramitação.
Esta situação, insólita, sem sombra de dúvida, lançou o novo regime numa espécie de limbo aplicativo, já que o cidadão necessitado de instaurar um processo de inventário, direito que não lhe pode ser negado face aos princípios estruturantes do Estado de Direito, vê-se manietado perante este impasse legislativo, sem saber onde instaurar o processo de inventário.[2]
Ora, afigura-se-nos que assistindo aos herdeiros o direito de não continuarem na indivisão, exigindo a partilha do acervo hereditário, através da instauração de inventário judicial nos termos da lei do processo, conforme decorre expressamente dos artigos 2101.º, n.º 1 e 2102.º do Código Civil, e que, por outro lado, a todo o direito, salvo quando a lei determine o contrário, corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo (artigo 2.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), importa interpretar as normas acima referidas de modo a não coarctar o referido direito, sob pena de denegação de justiça e de violação do princípio constitucional do acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva, conforme prescrito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Sendo assim, impondo a defesa dos direitos dos cidadãos a necessidade de lhe serem assegurados procedimentos judiciais, expeditos e céleres, de modo a obter uma tutela efectiva e em tempo útil, e não sendo possível a aplicação material e efectiva da Lei n.º 29/2009, de 29/06, dada a sua falta de regulamentação, a mesma não pode produzir efeitos no que concerne à exclusão da competência material dos tribunais judiciais para tramitarem os processos de inventário instaurados a partir de 18/07/2010, e enquanto a mesma Lei não puder efectivamente produzir efeitos.
É que tendo os tribunais, por incumbência constitucional, o dever de administrar a justiça em nome do povo e assegurar a defesa dos direitos dos cidadãos e interesses legalmente protegidos dirimindo os respectivos conflitos (artigo 202.º, n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa), o Estado de Direito não pode produzir normas que, na sua aplicação concreta e, quiçá, por causa de vicissitudes do processo político-legislativo, impeçam os cidadãos de exercer os seus direitos junto dos tribunais, ainda que tal suceda por um lapso de tempo mais ou menos prolongado no tempo, sem que lhes seja fornecida alternativa juridicamente válida e em tempo oportuno.
Conforme referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, o direito de acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva “…é, ele mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito…”, razão pela qual “…ninguém pode ser privado de levar a sua causa (relacionada com a defesa de um direito ou interesse legítimo e não apenas de direitos fundamentais) à apreciação de um tribunal, pelo menos como último recurso. Por isso, o art. 20º consagra um direito fundamental independentemente da sua recondução a direito, liberdade e garantia ou a direito análogo aos direitos, liberdades e garantias.”[3]
Por conseguinte, as normas jurídicas ainda que insertas em legislação ordinária, não prevalecem sobre as regras gerais de cariz constitucional respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, já que estas são directamente aplicáveis e vinculam entidades públicas e privadas, conforme decorre do artigo 18.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Em conclusão, enquanto a Lei n.º 29/2009, de 29/06, não estiver regulamentada, e não decorrerem 90 dias após a publicação dessa regulamentação, conforme prescreve o artigo 87.º, n.º 1 da Lei n.º 29/2009, de 29/06, na redacção dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 44/2010, de 03/09, os cidadãos que pretendem instaurar processos de inventário têm o direito constitucionalmente garantido de o poderem fazer juntos dos tribunais judiciais.

Nestes termos, importa revogar o despacho recorrido, julgando procedente a apelação.

As custas devidas pela apelação serão suportadas pelos interessados, na proporção dos respectivos quinhões (artigo 446.º, n.º 1 do CPC).

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogam o despacho recorrido, declarando o 4.º Juízo Cível de Vila Nova de Famalicão competente em razão da matéria para os termos do presente processo de inventário.
Custas nos termos sobreditos.

Porto, 31 de Janeiro de 2011
Maria Adelaide de Jesus Domingos
Ana Paula Pereira Amorim
José Alfredo de Vasconcelos Soares de Oliveira
___________________
[1] Os n.º 2 e 3 do mesmo preceito estipulam a entrada em vigor para o dia seguinte ao da publicação da Lei, no concernente aos aditados artigos 249.º-A a 249.º-C e 279.º-A do CPC e artigos 73.º-A a 73.ºC do Regime do Registo Nacional de Pessoas Colectivas.
[2] O legislador, ciente da situação, tem vindo a dar esclarecimentos sobre a questão, não se deixando de sublinhar, mais uma vez, a estranheza de todo este procedimento. Assim, ainda antes da publicação da Lei n.º 44/2010, de 03/09, veja-se o Comunicado emitido pelo Ministério da Justiça, em 19/07/2010, onde são referidas as alternativas, que sem seu entender, se abrem aos cidadãos:
“1.ª) Aguardar a publicação da nova lei para intentar o processo de acordo com o regime vigente;
2.ª) Instaurar o processo de inventário nos tribunais apesar da entrada formal em vigor do novo regime do Inventário após 18 de Julho, apesar do risco de rejeição do processo por incompetência, apesar de, assim que a nova lei entrar em vigor, todos os actos praticados fiquem «ratificados».”
O texto integral deste Comunicado pode ser consultado em: <http://www.portugal.gov.pt/pt/GC18/Governo/Ministerios/MJ/Notas/Pages/20100719_MJ_Com_Inventario.aspx> [Consult. 16 Dez. 2010].
Já após a publicação da Lei n.º 44/2010, de 03/09, através do Gabinete de Imprensa do Ministério da Justiça, em 17/11/2010, foi prestado outro Esclarecimento, agora de teor interpretativo, sobre a competência dos tribunais para a tramitação dos processos de inventário instaurados após 18/07/2010 e até à produção de efeitos da Lei n.º 29/2010, de 29/06. Veja-se o texto integral em:
<http://www.citius.mj.pt/Portal/article.aspx?ArticleId=272>[Consult. 16 Dez. 2010].
[3] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Artigos 1º a 107º, Coimbra Editora, 2007, p. 408-409.