Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1236/11.4TXPRT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ELSA PAIXÃO
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
REVOGAÇÃO
DESCONTO
Nº do Documento: RP201403261236/11.4TXPRT-C.P1
Data do Acordão: 03/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O artigo 64.°, n.° 2, do Código Penal, estabelece que “a revogação da liberdade condicional determina a execução da pena de prisão ainda não cumprida”.
II - Esta norma deve ser interpretada no sentido de que o tempo que o condenado passou em liberdade condicional, sem cometer qualquer crime, não deve ser considerado tempo de prisão e como tal deduzido no tempo de prisão que ao condenado falta cumprir em virtude da revogação da liberdade condicional.
III - Tal interpretação não viola a garantia prevista no artigo 27º da Constituição da República Portuguesa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1236/11.4TXPRT-C.P1
1º Juízo do Tribunal de Execução das Penas do Porto

Acordam, em Conferência, as Juízas desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
No processo nº 1236/11.4TXPRT-A do 1º Juízo do Tribunal de Execução das Penas do Porto, por despacho judicial datado de 09.10.2013, decidiu-se que não há que proceder a qualquer desconto do tempo decorrido em liberdade condicional, caso esta seja revogada.
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Inconformado o arguido B… interpôs recurso, apresentando motivação, que remata com as seguintes conclusões (transcrição):
1. Notificado da decisão a quo, que determinou o cumprimento da prisão efectiva que não tiver sido executada nesse regime, e não concordando com a mesma, o Arguido interpõe o presente recurso.
2. Em consequência da condenação do Recorrente a uma pena de prisão de 9 anos, no âmbito do Processo n.º 51/09.00PBMAI, foi revogada a sua liberdade condicional, sendo que, na liquidação da pena, não foi considerado período em que o Recorrente esteve em liberdade condicional, o qual deve ser entendido como cumprimento de pena.
3. A liberdade condicional traduz-se na modificação da pena de prisão, surgindo como uma sanção não institucional que consiste numa intromissão no plano da condução da vida das pessoas que tem como objectivo a ressocialização. Trata-se, portanto, de um simples incidente ou forma de execução da prisão".
4. O período de liberdade condicional é de cumprimento da pena, embora sob a forma de liberdade condicional.
5. A parte da pena já cumprida pelo arguido, mesmo sob a forma de liberdade condicional, terá que relevar sobre todos os momentos da execução, nomeadamente quanto à determinação do meio da pena, dos dois terços da pena e dos cinco sextos da pena, sob pena de se violar o disposto no artigo 64º do C.P., como fez a decisão ora posta em crise. Pelo que, deverá ser revogado o despacho proferido, substituindo-se por outro que proceda a nova liquidação da pena que tenha em conta o referido período de tempo em liberdade condicional como sendo de cumprimento de pena para efeitos de contabilização dos 2/3, 5/6 e termo da pena.
Nestes termos e sempre com mui douto suprimento do Venerando Tribunal, deverá ser revogado o Despacho proferido pelo Tribunal de Execução de Penas do Porto, e, consequentemente, substituir-se por outro que proceda a nova liquidação da pena que tenha em conta o referido período de tempo em liberdade condicional como sendo de cumprimento de pena para efeitos de contabilização dos 2/3, 5/6 e termo da pena.
Porém, V. Exas. decidindo farão inteira Justiça.
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Em resposta ao recurso do arguido, o Ministério Público em 1ª Instância concluiu pela improcedência do mesmo. Terminou com as seguintes conclusões:
1 – B… tinha beneficiado de medida de flexibilização da pena, sendo-lhe concedida liberdade condicional, com efeitos a 31/12/2007, e que se manteria até ao termo da pena, em 01/02/2011.
2 - Porém, durante esse período, 17/01/2009 e 28/10/2010 cometeu novos factos ilícitos de natureza penal - dois crimes de sequestro, dois de roubo agravado, um de tráfico de menor gravidade e um de detenção de arma proibida, todos agravados pela reincidência - que lhe determinaram nova condenação em pena de prisão efectiva, de 9 anos.
3 - Nessa sequência, foi revogada a liberdade condicional e determinado o cumprimento do remanescente da pena de prisão contabilizada em três anos e um mês.
4 - Entende o recorrente que o período em que se encontrou em liberdade condicional deve ser contabilizado para efeito de pena efectivamente cumprida, louvando-se para tal que a liberdade condicional é um incidente ou forma de execução da prisão.
Acrescenta que o douto despacho deve ser substituído por outro que efectue nova liquidação da pena tendo em conta esse período como sendo de cumprimento de pena para efeito de contabilização dos dois terços, cinco sextos e termo da pena. Entende que, a não ser assim, se viola o disposto no art. 64° do C.P.
5 - Só podemos discordar, como aliás o fizemos nos autos.
E, desde logo, nos louvamos nos doutos Acórdãos dos Tribunais da Relação devidamente citados no douto despacho posto em crime.
6 - A situação em causa não configura um cumprimento sucessivo de penas, mas antes o restante de uma pena já cominada, que não é alterada, e que sofre um tratamento autónomo. É a lei que assim o determina ao consagrar um regime especial no nº 4 do art. 63º do C.P.
7 - Veja-se ainda a posição assumida superiormente no Acórdão do TRC, proferida no P. nº 444/96.0TXEVR-B.Cl, in www.dgsi.pt, em que é Exº Relator o Dr. Jorge Jacob.
Nesse Acórdão, é expressivo.
"[...] a decisão que opera a revogação da liberdade condicional se limita a determinar o prosseguimento da execução da pena de prisão antes decidida' por um tribunal com competência para a impor e que foi interrompida por força de um incidente previsto na lei, relativo à execução da pena de prisão[...]"
E acrescenta:"Precisamente por força do carácter unitário da pena de prisão, o C.P. dispõe. No respectivo art. 64º, nº 2, que "a revogação de liberdade condicional determina a execução da pena de prisão ainda não cumprida", e não o cumprimento de uma pena de prisão equivalente ao período não cumprido, como seria mister se tivesse em vista uma pena autónoma, decorrente da revogação de liberdade condicional."
8 - Ou seja, a visão do recorrente não tem qualquer apoio legal, pelo que não lhe assiste qualquer razão.
9 - Termos em que nada justifica, por não se verificarem quaisquer erros ou omissões na apreciação da matéria de direito, a revogação do douto despacho do MMO Juiz a quo, e nenhuma norma legal foi violada.
Pelo exposto, e mantendo dessa forma a posição assumida processualmente, manifestamo-nos pela improcedência do recurso interposto.
Porém, V.Exas melhor decidirão, fazendo a habitual JUSTIÇA!
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O recurso foi admitido.
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Nesta Relação o Ilustre Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da não procedência do recurso.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente não apresentou resposta.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal [Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal” III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada]. [Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95].
No caso vertente e face ao conteúdo das conclusões do recurso, a questão que importa resolver consiste em saber se, havendo revogação da liberdade condicional, o período em que o condenado esteve em liberdade condicional deve ou não deduzir-se ao cumprimento de pena de prisão.
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Para tanto, vejamos primeiramente o despacho em apreço, cujo teor, no que ora importa salientar, é o seguinte (transcrição):
Vi o cômputo da pena, já homologado no quadro do processo da condenação, cujo termo, na sequência da revogação da liberdade condicional, se encontra previsto para 11.07.2016.
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Req. de fl. 499, entrado em 29.05.2013:
O artigo 64.º, n.º 2, do Código Penal, estabelece que “a revogação da liberdade condicional determina a execução da pena de prisão ainda não cumprida”.
Não há, assim, qualquer ‘desconto’ a operar, pois a norma é clara no sentido de impor o cumprimento da prisão efectiva que não tiver sido executada nesse regime, não cabendo aqui interpretação que admita a contabilização do tempo decorrido em liberdade condicional sem ocorrência de crime – neste sentido, v. o acórdão do TC n.º 181/2010, in DR, 2.ª Série, n.º 124, de 29 de Junho de 2010.
Assim, indefere-se o requerido.
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Encontra-se novamente em execução a pena de prisão no âmbito da qual foi aplicado a B…, identificado(a) nos autos, o regime de liberdade condicional, posteriormente revogado devido ao cometimento de novos crimes.
A nova condenação determinou a imposição de pena de prisão efectiva, da qual falta ainda cumprir mais de metade.
Em face da regra especial prevista no artigo 63.º, n.º 4, do Código Penal, não é legalmente admissível proceder ao somatório das penas em causa nos autos, nem efectuar uma apreciação conjunta (nos termos do n.º 2 do citado artigo) para efeitos de eventual concessão de liberdade condicional.
As penas em presença são, deste modo, alvo de tratamento separado (ou autónomo), o que configura uma situação distinta do cumprimento sucessivo de penas tratado nos n.º 1 a 3 do artigo em referência, previsto para os casos de sucessão de penas em que a execução de nenhuma delas resulta de revogação de liberdade condicional [1].
Tem assim de se concluir que, no caso dos autos, a pena ora (novamente) em execução, em resultado de revogação de liberdade condicional, há-de ser cumprida por inteiro, com o que, por força da realidade jurídica em causa, sofre limitação a regra consagrada no artigo 64.º, n.º 3, do Código Penal [2].
Neste sentido se pronunciou o acórdão do TRE de 31 de Maio de 2011[3], publicado em www.dgsi.pt., bem como o acórdão do STJ de 03.08.2010 [4], cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt.
De igual modo, Paulo Pinto de Albuquerque defende que “se uma das penas que cabe executar se tratar de pena resultante de revogação de liberdade condicional, ela deve ser cumprida por inteiro, não entrando na soma de penas que cabe cumprir”, devendo essa pena ser executada em primeiro lugar, pois “a ordem de sucessão de execução das penas é a ordem pela qual transitam [em julgado] as respectivas condenações” [5].
Pelo exposto, entende-se não haver lugar a renovação da instância no âmbito da pena de prisão ora em execução, a qual será, em consequência, integralmente cumprida em regime de prisão efectiva [6].
Notifique, também o(a) recluso(a) e o seu defensor/mandatário, e comunique ao EP e à equipa de reinserção social.
Em conformidade, solicite ao processo n.º 329/01.0JELSB, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Cascais, que, no termo da pena (previsto para 11.07.2016), recoloque o(a) condenado(a) em cumprimento da pena de prisão que vinha cumprindo anteriormente, ao qual será também remetida cópia do presente despacho.
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O recorrente defende que o período de liberdade condicional é de cumprimento da pena, embora sob a forma de liberdade condicional, pelo que a parte da pena já cumprida pelo arguido, mesmo sob a forma de liberdade condicional, terá que relevar sobre todos os momentos da execução, nomeadamente quanto à determinação do meio da pena, dos dois terços da pena e dos cinco sextos da pena, sob pena de se violar o disposto no artigo 64º do C.P..
O Sr. Juiz do Tribunal de Execução das Penas decidiu que a pena ora (novamente) em execução, em resultado de revogação de liberdade condicional, há-de ser cumprida por inteiro, com o que, por força da realidade jurídica em causa, sofre limitação a regra consagrada no artigo 64.º, n.º 3, do Código Penal.
Vejamos.
Com interesse para a decisão consideram-se assentes os seguintes factos e ocorrências processuais:
1) Quando se encontrava no estabelecimento prisional de Pinheiro da Cruz em cumprimento da pena única de 9 anos de prisão, à ordem do processo n.º 329/01.0JELSB, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Cascais, pela autoria de crimes de tráfico agravado de estupefacientes, detenção de arma proibida, falsificação de documento e favorecimento pessoal, por decisão proferida em 28112/2007, o arguido foi colocado em liberdade condicional.
2) Foi fixada a data de 01/02/2011 para o termo do período da liberdade condicional, tendo o arguido sido libertado em 31/12/2007.
3) Por decisão transitada em julgado em 30/07/2012, proferida no processo n.º 51109.0PBMAI, do 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, por factos cometidos em 17/01/2009 e em 28110/2010, foi o arguido condenado na pena única de 9 anos de prisão efectiva, pela autoria de dois crimes de sequestro, dois crimes de roubo agravado, um crime de tráfico de menor gravidade de estupefacientes e um crime de detenção de arma proibida, todos agravados pela reincidência.
4) Por decisão proferida pelo TEP em 23.11.2012 foi revogada a liberdade condicional aplicada em 31.12.2007, determinando-se a execução da pena de prisão ainda não cumprida no processo nº 329/01.0JELSB, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Cascais.
5) Tal decisão foi objecto de recurso e obteve confirmação, em 27.02.2013, pelo Tribunal desta Relação do Porto.
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Considerando os factos e ocorrências processuais supra elencados, importa determinar se o tempo que o recorrente permaneceu em liberdade condicional e, tendo esta sido revogada, deverá ser descontado para cumprimento do remanescente da prisão.
A liberdade condicional, de acordo com o nº. 9 do Preâmbulo do Código Penal (aprovado pelo Decreto-Lei nº. 400/82, de 23 de Setembro), ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, tem como objectivo «criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão (…) sobretudo daquele que sofreu um afastamento mais prolongado da colectividade».
De acordo com aquele regime, embora assumindo uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização, a liberdade condicional assumia também, em parte, a natureza de medida de segurança, na medida em que se tornava uma medida coactiva de socialização assente na alteração substancial da pena sem a necessária condenação (cfr. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2009, págs. 528-529).
Na alteração introduzida ao Código Penal pela Lei nº. 48/95, de 15 de Março, fazia-se depender a aplicação da liberdade condicional sempre do consentimento do condenado (nº. 1 do art. 61º); quanto aos pressupostos substanciais, dispunha o nº. 2 do art. 61º, tendo-se consagrado no nº. 4 do mesmo artigo do Código Penal (versão de 1995) uma limitação em relação aos crimes contra as pessoas ou de perigo comum e ao crime de tráfico de estupefacientes, em que a pena aplicada fosse superior a cinco anos de prisão (a liberdade condicional apenas poderia ser concedida cumpridos 2/3 da pena de prisão e desde que, naturalmente, se verificassem os requisitos materiais previstos na lei).
Como se assinalou no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº. 14/2009, de 21 de Outubro de 2009 (publicado no D.R., 1ª Série, nº. 226, de 20 de Novembro), «(…) o regime revertia para a satisfação de exigências de prevenção especial, marcadas pela prognose favorável quanto à futura condução da vida do condenado, mas também de imposições de prevenção geral positiva, traduzidas na compatibilidade da libertação com a defesa da ordem jurídica e da paz social».
No actual regime decorrente da Lei nº. 59/2007, de 4 de Setembro, que procedeu à alteração do art. 61º do Código Penal, desapareceu a excepção da colocação em liberdade condicional apenas cumpridos 2/3 da pena em relação aos crimes contra as pessoas ou de perigo comum e ao crime de tráfico de estupefacientes, em que a condenação em pena de prisão tenha sido superior a cinco anos de prisão.
O instituto da liberdade condicional, enquanto incidente de execução da pena de prisão, visa eliminar ou, pelo menos, esbater, o efeito criminógeno de tal pena e o consequente aumento das dificuldades dos condenados em regressarem, de forma integrada, ao seio da comunidade a que pertencem, terminado que seja o respectivo cumprimento (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 528 e 542).
Trata-se, portanto, de um "simples incidente ou forma de execução da prisão” (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal II, Pág. 536).
Não se trata de um instituto concebido como medida de clemência ou como mera compensação pela boa conduta prisional, mas antes concebido como um incentivo e auxílio ao condenado, uma vez colocado em meio livre, a não recair na prática de novos delitos, permitindo-lhe uma adaptação gradual à nova realidade e a consequente adequação da sua conduta aos padrões sociais. São pois, razões de prevenção geral positiva e de prevenção especial de socialização que estão na base do instituto, aliás, em plena conformidade com as finalidades das penas assinalados no art. 40º, nº 1 do Código Penal.
A colocação do condenado em liberdade condicional depende da verificação dos pressupostos previstos no art. 61º, do Código Penal.
E uma vez concedida, nos termos do art. 57º Código Penal, aplicável por força do art. 64º, nº 1 Código Penal, a pena é considerada extinta, se, decorrido o período de liberdade condicional, não houver motivos que possam conduzir à respectiva revogação.
O que, desde logo, pressupõe, de forma inequívoca, que o arguido cumpriu a parte final da sua pena mediante a forma de liberdade condicional.
Nos casos em que o condenado cumpre sucessivamente penas de prisão, a lei estabelece um regime especial.
Nestes casos há que atender ao que dispõe o artigo 63º do Código Penal:
1. Se houver lugar à execução de várias penas de prisão, a execução da pena que deva ser cumprida em primeiro lugar é interrompida quando se encontrar cumprida metade da pena.
2. Nos casos previstos no número anterior, o tribunal decide sobre a liberdade condicional no momento em que possa fazê-lo, de forma simultânea, relativamente à totalidade das penas.
3. Se a soma das penas que devam ser cumpridas sucessivamente exceder seis anos de prisão, o tribunal coloca o condenado em liberdade condicional, se dela não tiver aproveitado antes, logo que se encontrem cumpridos cinco sextos da soma das penas.
4. O disposto nos números anteriores não é aplicável ao caso em que a execução da pena resultar de revogação da liberdade condicional”.
Quer dizer, a primeira regra a observar é a de que a execução da pena que deva ser cumprida em primeiro lugar se interrompe logo que se atinja metade do respectivo cumprimento, iniciando-se então o cumprimento da pena seguinte, e assim sucessivamente (art. 63º, nº 1 do Código Penal).
Depois, o tribunal deve apreciar a concessão da liberdade condicional quando o possa fazer, em simultâneo, relativamente a todas as penas (art. 63º, nº 2 do Código Penal) ou seja, quando todas elas tenham sido cumpridas em metade e no mínimo de seis meses, verificada que seja a previsão das alíneas a) e b) do nº 2 do art. 61º do Código Penal, ou quando todas elas tenham sido cumpridas em dois terços e no mínimo de seis meses, verificada que seja a previsão da referida alínea a).
Porém, se o somatório das penas a cumprir sucessivamente exceder seis anos de prisão, o condenado é colocado em liberdade condicional, se ainda o não tiver sido, cumpridos que sejam cinco sextos daquele somatório (art. 63º, nº 3 do Código Penal).
Sempre no pressuposto de que não ocorreu a revogação da liberdade condicional.
Pois se uma das penas que cabe executar se tratar de pena resultante de revogação de liberdade condicional, ela deve ser cumprida por inteiro, não entrando na soma das penas que cabe cumprir, sendo que a ordem de sucessão de execução das penas é a ordem pela qual transitam as respectivas condenações (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, anotações 2. e 5. ao artigo 63.º (p. 217).
Efectivamente, o artigo 64.º, n.º 2, do Código Penal, estabelece que “a revogação da liberdade condicional determina a execução da pena de prisão ainda não cumprida”.
E esta norma deve ser interpretada no sentido de que o tempo que o condenado passou em liberdade condicional, sem cometer qualquer crime, não deve ser considerado tempo de prisão e como tal deduzido no tempo de prisão que ao condenado falta cumprir em virtude da revogação da liberdade condicional. E tal interpretação não viola a garantia prevista no artigo 27º da Constituição da República Portuguesa.
O condenado, ao infringir os deveres de comportamento resultantes de se encontrar em liberdade condicional, nomeadamente através do cometimento de crime, sabe que esta medida lhe irá ser revogada. A parte da prisão não executada funciona também como um desincentivo à quebra das regras de conduta impostas pelo tribunal, já que a ameaça do cumprimento do remanescente serve de advertência para o estrito cumprimento das mesmas, que não visam senão a ressocialização do condenado.
E não se pode escamotear que a revogação da liberdade condicional não ocorre de forma automática, exigindo um juízo de ponderação sobre o caso concreto, seja por via da apreciação da culpa na violação dos deveres e regras de conduta impostos, seja por via da avaliação das finalidades que basearam a liberdade condicional aquando do cometimento de novos crimes.
Ora, “a pena de prisão ainda não cumprida” a que se alude no nº 2 do artigo 62º do Código Penal é justamente aquele remanescente que faltava cumprir ao condenado aquando da concessão da liberdade condicional, que o arguido, mercê da revogação demonstrou não ser da mesma merecedor.
Quer dizer que o tempo que o condenado cumpriu em liberdade condicional não deve ser considerado para efeitos do tempo de prisão, nem deduzido na pena de prisão que ao condenado falta cumprir em virtude da revogação da liberdade condicional.
Acresce que, se o legislador entendesse que o período durante o qual o arguido beneficiou da liberdade condicional até esta lhe ser revogada, fosse descontado no cumprimento da pena de prisão aplicada, tê-lo-ia deixado consagrado, como o fez no artigo 80º, nº 1 do Código Penal, relativamente à detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação. Neste sentido, vide, entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional nº 181/2010, in DR, 2ª Série, nº 124, de 29.06.2010 e nº 477/07, de 07.09.25, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt; acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26 de Maio de 2009 e de 15.12.2010 e acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 31 de Maio de 2011, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Anote-se que o acórdão da Relação de Lisboa, de 15.05.2012, disponível em www.dgsi.pt, indicado pelo recorrente não se adequa aos presentes autos, pois o que ali está em causa é saber se uma pena (única de 2 anos e 4 meses), que foi declarada extinta, por decisão transitada em julgado, deve ou não ser tida em conta, de forma integral, na liquidação da pena em causa. Situação que não tem qualquer paralelismo com a situação em causa nos presentes autos.
Revertendo para o caso dos autos.
Ao recorrente B… foi concedida liberdade condicional, com efeitos a 31/12/2007, e que se manteria até ao termo da pena, em 01/02/2011. Porém, durante esse período, em 17/01/2009 e 28/10/2010 cometeu dois crimes de sequestro, dois de roubo agravado, um de tráfico de menor gravidade e um de detenção de arma proibida, todos agravados pela reincidência, tendo sido condenado por decisão transitada em julgado em 30.07.2012 na pena única de 9 anos de prisão. Nessa sequência, foi-lhe revogada a liberdade condicional e determinado o cumprimento do remanescente da pena de prisão contabilizada em três anos e um mês.
Ora, a situação em apreço não configura um cumprimento sucessivo de penas, mas antes o restante de uma pena já cominada, que não é alterada, e que sofre um tratamento autónomo. É a lei que assim o determina ao consagrar um regime especial no nº 4 do art. 63º do Código Penal.
Em face da regra especial prevista no artigo 63.º, n.º 4, do Código Penal, não é legalmente admissível proceder ao somatório das penas em causa nos autos, nem efectuar uma apreciação conjunta (nos termos do n.º 2 do citado artigo) para efeitos de eventual concessão de liberdade condicional.
Assim, considerando que foi revogada a liberdade condicional que havia sido concedida ao condenado recorrente, deverá o mesmo cumprir a pena de prisão ainda não cumprida, ou seja, o remanescente que lhe faltava cumprir aquando da concessão da liberdade condicional (três anos e um mês), sendo que o tempo que cumpriu em liberdade condicional não deve ser considerado para efeitos do tempo de prisão, nem deduzido na pena de prisão que ao condenado falta cumprir em virtude da revogação da liberdade condicional.
Assim, não se prevendo expressamente tal desconto, face à interpretação acima expendida e não se verificando a invocada violação do disposto no artigo 64º do Código Penal, bem andou o Sr. Juiz do TEP ao indeferir a pretensão do recorrente.
Improcede, desta forma, o recurso.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto por B…, mantendo integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3UC’s.
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Porto, 26 de Março de 2014
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva
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[1] Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette falam a este propósito de doutrina da soma (para os casos regulados nos n.º 1 a 3 do artigo 63.º) e de doutrina da diferenciação (para a situação prevista no n.º 4 desse artigo) – in Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris?, 2008, anotações 5. e 8. ao artigo 63.º (p. 203).
[2] Norma que, desde logo, emprega a expressão pode, a qual afasta uma ideia de obrigatoriedade.
[3] Relatado por Sénio Manuel dos Reis Alves; escreveu-se neste acórdão que, “necessariamente, uma das penas há-de ser cumprida por inteiro” e que “o mais razoável é que o seja a pena remanescente resultante da revogação da liberdade condicional, que mais não seja porque a pena inicial já foi objecto desse regime de excepção; mas também porque a impossibilidade de apreciação conjunta da liberdade condicional resulta, no caso, precisamente do facto de estarmos perante pena resultante de revogação de liberdade condicional – n.º 4 do art. 63.º do CP”.
[4] Relatado por Fernando Fróis; considerou-se neste acórdão, em segmento não incluído no sumário publicado, que “quando uma das penas a executar constitui o remanescente de pena resultante de revogação da liberdade condicional, ela não pode entrar na soma das penas, tendo de ser cumprida integralmente”.
[5] Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, anotações 2. e 5. ao artigo 63.º (p. 217).
[6] Não se mostra aplicável in casu a regra prevista no artigo 61.º, n.º 4, do Código Penal, uma vez que a execução da prisão foi interrompida pela liberdade condicional, encontrando-se a ratio legis daquela norma em privações prolongadas da liberdade, igualmente apontando neste sentido o lugar paralelo (para estes efeitos, por exemplo, nada distingue uma situação em que está em causa uma única pena de 6 anos e 6 meses de prisão, daquela em que duas penas autónomas, a cumprir em sucessão, perfazem, em soma, idêntico período temporal) em que se traduz o artigo 63.º, n.º 3, do mesmo diploma legal, ao introduzir a ressalva “se dela não tiver antes aproveitado” – neste sentido também o acórdão do STJ proferido em 14.08.2009 no processo n.º 514/00.2TXCBR, do 2.º Juízo deste TEP do Porto, processo n.º 490/09.6YFLSB (neste acórdão escreveu-se, para além do mais, que “ao dispor pode, a lei está claramente a afastar o regime automático do nº 4 desse art. 61º, remetendo somente para as modalidades facultativas da liberdade condicional, previstas nos nºs 2 e 3 do mesmo artigo”), e o acórdão do mesmo STJ, proferido em 03.08.2010, no processo n.º 3670/10.8TXPRT-C, do 1.º Juízo deste TEP.
Acresce que a jurisprudência do acórdão do STJ n.º 3/2006, de 23.11.2005, in DR de 09.01.2006, n.º 6, Série I - A, pp. 175 e seg., não se mostra aplicável no caso, atenta a substancial diferença das situações em causa. Na verdade, nos presentes autos não se constituiu o condenado em ausência ilegítima, antes lhe tendo sido facultadas todas as condições, nomeadamente legais (através da aplicação do regime da liberdade condicional), em ordem à sua plena reinserção social, o que, todavia, não se conseguiu obter.
Para ilustrar a questão em apreço atente-se no seguinte exemplo (outros seriam prefiguráveis, redundando até em superior incongruência): o condenado é colocado em liberdade condicional aos dois terços (que correspondem a 4 anos e 4 meses) de uma pena de 6 anos e 6 meses de prisão, regime que é alvo de revogação; depois de retomado o cumprimento da pena é o condenado obrigatoriamente (ope legis, se se entender que vale a regra do artigo 61.º, n.º 4, do Código Penal) colocado, novamente, em liberdade condicional, depois de cumprido o curto período de 1 ano e 1 mês de prisão (lapso temporal que, somado aos 4 anos e 4 meses anteriormente cumpridos, perfaz 5 anos e 5 meses, ou seja, cinco sextos da aplicada pena de 6 anos e 6 meses de prisão). Não pode ser. Não estamos já, claramente, dentro da ratio legis que presidiu à consagração da ‘válvula de segurança’ subsequente a privações prolongadas da liberdade. Diferentemente, uma tal solução é susceptível de colocar em causa a eficácia e a efectividade da pena imposta (sem prejuízo de, em casos justificados, ope judicis, poder ser concedida a liberdade condicional dita facultativa, em regime de renovação anual da instância – artigos 64.º, n.º 3, do Código Penal, e 180.º, n.º 1, do C.E.P.).