Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5155/06.8TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
JUROS DE MORA
LEI ESPECIAL
Nº do Documento: RP201104065155/06.8TDPRT.P1
Data do Acordão: 04/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As importâncias relativas a pedido de indemnização civil baseado na prática de crime de Abuso de confiança contra a Segurança Social, do art. 107.º, do RGIT, vencem juros de mora à taxa fixada no DL nº 73/99, de 19 de Março [lei especial].
II - E os juros são devidos desde o 15º dia do mês seguinte àquele a que dizem respeito as contribuições em dívida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 5155/06.8TDPRT.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
No 2º Juízo Criminal do Porto, 1ª Secção, foram julgados em processo comum (nº 5155/06.8TDPRT) e perante Tribunal Singular, os arguidos “B…, Lda.”, sociedade comercial com o NIPC ………, NISS ………, com sede na Rua …, nº …, Porto, e C…, devidamente identificado nos autos, tendo a final sido proferida sentença que decidiu:

“a) Condenar o arguido C… pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 105º, nº 1, e 107º, ambos do RGIT, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à razão diária de € 6 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 1.080, fixando-se, desde já, a prisão subsidiária em 120 dias.

b) Condenar a sociedade B…, Lda. por um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 105º, nº 1, e 107º, ambos do RGIT, em virtude do disposto no art. 7º daquele diploma legal, na pena de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa à razão diária de € 10 (dez euros), o que perfaz a quantia de € 2.600.

c) Condenar a sociedade arguida e o arguido nas custas do processo (…)

d) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Segurança Social, I.P., e, em consequência, condenar os demandados C… e B…, Lda. a pagar ao demandante a quantia de € 38.283,56 (trinta e oito mil, duzentos e oitenta e três euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal prevista para os juros civis, a contar desde 90 dias após o vencimento de cada uma das prestações em dívida, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-os do pagamento do montante dos juros peticionado.

e) Custas do pedido cível a cargo do demandante e dos demandados, na proporção do respectivo decaimento (cfr. art. 446º do Código de Processo Civil)”.

O assistente “Instituto da Segurança Social IP”, inconformado com a sentença, na parte em que julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e, em consequência, condenou os demandados C… e B…, Lda. a pagar ao demandante a quantia de € 38.283,56 (trinta e oito mil, duzentos e oitenta e três euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal prevista para os juros civis, a contar desde 90 dias após o vencimento de cada uma das prestações em dívida, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-os do pagamento do montante dos juros peticionado e condenou o demandante nas custas do pedido cível, na proporção do respectivo decaimento, interpôs recurso para esta Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

A. O presente Recurso vem interposto do Douta Sentença, a qual, julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização cível e, em consequência, condenou os Demandados C… e B…, Lda. a pagar ao Demandante a quantia de €38.283,56, acrescida de juros de mora, à taxa legal revistas ara os juros civis arts. 559º 804º 805º nº 2 b) e 806º n.º 3 do Cód. Civil e Portarias nºs 263/99 de 12/04 e 291/03 de 8/04 a contar desde 90 dias após o vencimento de cada uma das prestações em divida até efectivo e integral pagamento absolvendo-os do pagamento do montante dos juros peticionado bem como condenou o Demandante em custas do respectivo decaimento.

B. Porém, não pode o Recorrente conformar-se, desde logo, com a data de vencimento dos juros, com a taxa de juros aplicada e ainda com as custas do pedido cível.

C. O ISS, IP deduziu pedido cível contra os Demandados C… e B…, Lda., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de Euros: 38.283,56, relativa a quotizações retidas nos vencimentos dos trabalhadores e não entregues ao ISS, IP dos meses de Novembro de 2002 a Janeiro de 2004, acrescida dos encargos legais, vencidos e vincendos, calculados nos termos do Art. 16° do DL nº. 411/91, de 17.0utubro e Art. 3° do DL n.° 73/99, de 16.Março.

D. No caso do pedido de indemnização cível formulado pela Demandante subjaz uma obrigação legal (a obrigação jurídica contributiva), de cujo incumprimento resultará a violação ilícita do direito da Segurança Social receber, nos prazos fixados por Lei, os respectivos montantes descontados nos salários dos trabalhadores.

E. De acordo com o preceituado no n.º 3 do Art. 5° do DL n.º 103/80, de 9.Maio, conjugado com o Art. 16º do DL nº 411/91, de 17.0ut. e do nº 2 do Art.10° do DL nº. 199/99, de 8.Junho, que revogou o DL nº. 140-D/86 de 14.Junho, Art. 44° da lei Geral Tributária e Art. 3° do DL nº. 73/99, de 19.Março e, aplicáveis por força do Art.129º do Cód Penal, o Art. 798°, 804°, 805° e 806° do Cód. Civil, a obrigação pecuniária de pagamento de contribuições à Segurança Social e todas as operações indispensáveis à liquidação (autoliquidação) das contribuições estão a cargo das entidades contribuintes e constituem uma obrigação com prazo certo, i. é., vencem-se no dia 15 do mês seguinte aquele a que dizem respeito as contribuições e, por isso, em caso de incumprimento da relação jurídica contributiva perante a segurança social, os juros de mora deverão contar-se a partir do 15° dia do mês seguinte àquele a que as contribuições dizem respeito, pois é a partir deste momento que o devedor se constitui em mora e, é este também o momento da prática do facto ilícito, já que os 90 dias devem ser entendidos como uma condição de procedibilidade da acção criminal.

F. Ora, tendo os Arguidos/Demandados, efectuado todas operações indispensáveis à liquidação (autoliquidação) das contribuições, retido as quantias peticionadas nos autos e tendo decidido não as entregar (autoliquidar) à Segurança Social nos prazos legais, bem conhecendo a sua obrigação de entregar, mensalmente, juntamente com as folhas de remunerações pagas, os quantitativos retidos, constituíram-se devedores da Demandante, não só da quantia peticionada a título de quotizações, mas também, sem necessidade de interpelação, constituíram-se em mora, o que legitima o direito da Demandante exigir os respectivos juros legais, a partir do 15° dia do mês seguinte àquele a que as contribuições dizem respeito.

G. De igual modo, a taxa de juros de mora por dívidas ao Estado e outras Entidades públicas é a prevista no Art. 3° do referido DL n.º 73/99, de 19.Março (trata-se de lei especial que não pode ser derrogada pela lei geral, designadamente pelo Código Civil e Portarias que fixam as taxas de juros previstas naquele diploma legal), i. é, 1% ao mês se o pagamento se fizer dentro do mês de calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês de calendário ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente.

H. Foram, por isso, violados os Art. 5° n.º 3 do DL n.º 103/80, de 9.Maio, conjugado com o Art. 16º do DL nº. 411/91, de 17.0ut. e do nº 2 do Art.10° do DL nº. 199/99, de 8.Junho, que revogou o D.L. n:º 140-0/86 de 14.Junho, Art. 44° da Lei Geral Tributária e Art. 3° do DL 73/99, de 19.Março e, aplicáveis por força do Art. 129° do Cód. Penal, os Art. 798°, Art. 804°, 805° e 806° do Cód. Civil.

Não foi apresentada resposta ao recurso interposto pelo assistente “ISS, IP”.

Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral-adjunto apôs visto.

Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência, para julgamento.

2. Fundamentação
2.1 Matéria de Facto
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1) A sociedade comercial B…, Lda., com o NIPC ………, com o NISS ……… e com sede na Rua …, nº …, ….-…, nesta cidade do Porto, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto e tem como objecto a actividade de comercialização de veículos, peças e acessórios, reparação e recolha de automóveis, venda de óleos e gasolina e estação de serviço.

2) O arguido C… exerceu o cargo de sócio gerente da sociedade arguida no período de Novembro de 2002 a Janeiro de 2004.

3) Neste sentido, o arguido, no período acima indicado, foi titular dos poderes de administração e gestão da sociedade arguida, sendo o responsável por toda a actividade nela desenvolvida, dando as instruções e ordens a ela atinentes, nomeadamente, no tocante à retenção na fonte e ao pagamento das contribuições ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, no montante correspondente à percentagem de 11% dos salários ilíquidos auferidos pelos trabalhadores da sociedade que representava, à percentagem de 10% da remuneração dos membros dos órgãos estatutários e 8,3% dos pensionistas.

4) Nesta qualidade, o arguido C…, no período de Novembro de 2002 a Janeiro de 2004, entregou as respectivas folhas de remunerações pagas aos seus trabalhadores, membros dos órgãos estatutários e pensionistas, nos serviços da Segurança Social, relativas ao mês anterior e deduziu do valor dos salários e retribuições pagos àqueles, as quantias relativas às contribuições por estes devidas àquela instituição, tudo nos montantes constantes da relação dos valores retidos e não entregues constantes das Tabelas que se seguem:

5) Todas estas quantias, no valor global de € 38.283,56 (trinta e oito mil, duzentos e oitenta e três euros e cinquenta e seis cêntimos) – pois estão excluídos os meses de Setembro e Outubro de 2001 –, reportadas às contribuições devidas pelos próprios trabalhadores, membros dos órgãos estatutários e pensionistas ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, que foram deduzidas nos seus salários e recebidas pelo arguido na qualidade de fiel depositário das mesmas, pertenciam ao Instituto de Gestão Financeira de Segurança Social e deviam por aquele ser-lhe entregues até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam os salários e retribuições, como era do seu conhecimento.

6) Mas, apesar de ter enviado para a Segurança Social as folhas mensais das remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores, membros dos órgãos estatutários e pensionistas, nos meses e anos mencionados, o arguido, por si e em representação da sociedade arguida, não entregou àquela entidade as contribuições retidas na fonte até ao termo do prazo legal, nem nos noventa dias posteriores.

7) Porém, à medida em que deduziu no vencimento dos trabalhadores e recebeu as mencionadas quantias de contribuições, pertença do Instituto de Gestão Financeira de Segurança Social, o arguido por si e enquanto representante da sociedade arguida, contra a vontade e sem autorização do legítimo dono, integrou-as no património da sociedade arguida e utilizou-as em proveito desta.

8) O arguido, por si e enquanto representante da sociedade arguida, não procedeu, igualmente, ao pagamento das respectivas e mencionadas quantias em dívida ao Instituto de Segurança Social, no prazo de trinta dias, acrescida dos respectivos juros legais, a contar das notificações que lhe foram feitas.

9) O arguido causou o correspondente prejuízo patrimonial à Segurança Social.

10) O arguido C… agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida.

Mais se provou que:

11) Por sentença datada de 12.04.2005, já transitada em julgado, proferida no Processo nº 642/04.5TYVNG, do 1º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, foi declarada a insolvência da sociedade arguida, com carácter limitado. Não tendo sido requerido o complemento de tal sentença, por decisão proferida em 08.06.2006, foi declarado findo o processo de insolvência em causa.

12) Nada consta do certificado do registo criminal da sociedade arguida.

13) O arguido C… já foi condenado, por sentença transitada em 19.09.2005, proferida no Processo Comum Singular nº 6370/02.9TDPRT, do 1º Juízo, 3ª Secção, dos Juízos Criminais do Porto, na pena de 2 anos de prisão, suspensa por 3 anos, pela prática, em 01.12.2001, de um crime de abuso de confiança fiscal. Tal pena foi declarada extinta, nos termos do disposto no art. 57º, nº 1, do Código Penal, em 14.01.2008.

14) O arguido C… é viúvo e vive unicamente da sua pensão, no valor de € 1.263,67. Presentemente, encontra-se internado num lar de terceira idade, pagando € 750 mensais.

15) Mensalmente, são descontadas, na pensão auferida pelo arguido C…, face às penhoras determinadas nos respectivos processos de execução, as quantias de 258,48 (com início em Abril de 2010 e até perfazer o total de € 103.648,57) e de € 387,12 (desde Maio de 2006 e até perfazer o total de 49.357,33).
16) A sociedade arguida encerrou a sua actividade em Fevereiro de 2004, na sequência de dificuldades financeiras que se foram acentuando a partir de 2001 e da perda da concessão da marca Fiat, ocorrida em Outubro de 2003. Face à escassez de recursos financeiros, o arguido optou por dar prioridade ao pagamento de salários e fornecedores, em detrimento do cumprimento das obrigações assumidas perante a Segurança Social.

17) O arguido C… era visto e tido como uma pessoa séria, honesta e cumpridora.

18) Decorre do relatório social do arguido que:
A trajectória de vida do arguido decorreu até aos 12 anos de forma normativa, junto dos seus pais, tendo nessa época passado a residir em Angola, junto dos tios paternos, por decisão familiar, território onde organizou todo o seu projecto familiar e profissional até aos 39 anos de idade.
Tendo constituído família ainda naquele país, também aí o arguido se iniciou na vida activa, na área comercial, após a conclusão de um processo de escolarização regular que o habilitou com a 4ª classe.
O arguido descreve a dimensão familiar e conjugal como extremamente gratificantes e fulcrais para a estruturação duma trajectória normativa, com especial incidência no investimento da valência laboral, enquanto meio de promoção de condições financeiras estáveis para a família. Nesta perspectiva, sobressai um registo de procura contínua de melhoria genérica de condições de vida, com repercussão que analisa como positiva durante muitos anos, ao nível da sua ascensão pessoal e social.
O regresso a Portugal, com o núcleo familiar constituído, ocorre de forma pouco planificada, uma vez que a saída do continente africano teria como finalidade a sua deslocação para o Brasil, o que não se verificou.
A integração em Portugal, onde sempre residiu o seu agregado de origem, é descrita como pacífica e positiva, ao nível da inserção familiar, sendo consubstanciada pelo investimento laboral na área comercial de forma bem sucedida, durante alguns anos, até à eclosão dos incidentes subjacentes ao presente processo.
O arguido investiu, inicialmente, na área do comércio de géneros alimentícios e, de seguida, no sector da reparação e comercialização automóvel, em registo de sociedade e também em nome individual. Avalia todas estas experiências como satisfatórias na área financeira e geradoras de mais valia pessoal e laboral.
Gerindo no decurso desta trajectória várias empresas, só na década de 80 adquiriu a firma em causa nos autos, em regime de sociedade com uma pessoa amiga. Nesta mesma empresa, terão exercido actividade laboral o seu irmão e os seus dois filhos, que o coadjuvaram na respectiva gestão nos últimos anos.
Em 2001 (é manifesto o lapso cometido na referência ao ano de 1991, pois a esposa do arguido faleceu em 2002 – cfr. fls. 55), na sequência do diagnóstico de doença do foro oncológico e subsequente perda de uma familiar, foi notado ao arguido um certo nível de descompensação psíquica. Esta época é coincidente com problemas sérios ao nível da gestão financeira da empresa, que originaram um outro processo judicial e que passaram a abalar a sustentabilidade daquela. Afirmou ter, nesta altura, injectado muito do seu património pessoal na empresa, com vista a evitar a sua falência, o que desencadeou tensões com os filhos.
Esta conjuntura terá conduzido, segundo afirmou, à falência do seu projecto laboral, mas também do projecto pessoal e familiar (já abalado com o falecimento da cônjuge), tendo em consequência promovido o isolamento familiar e social a que se encontra devotado no momento actual e que parece suscitar sofrimento.
Tal enquadramento é agravado pelo acentuar de problemática de saúde com o avançar da idade e com a necessidade de ter recorrido a uma instituição para residir, na ausência de retaguarda familiar estruturada que permita outro tipo de solução alternativa. Nesta medida, quer o irmão, quer os filhos do arguido, afastaram-se do seu percurso de vida, não o visitando sequer no Lar onde reside há aproximadamente dois anos.
O arguido apenas recebe apoio financeiro de uma sobrinha, sempre que tal se justifica, uma vez que a pensão de reforma de que beneficia, no valor de € 800, acrescida da pensão de sobrevivência da sua mulher, de € 400, se encontra sujeita, neste momento, a duas penhoras, recebendo na totalidade € 504, para suportar as despesas com a permanência no Lar, na ordem dos € 750.
É também aquela familiar e a sua mãe, irmã do arguido, que procuram propiciar momento de convívio regular com o arguido e apoio em função das suas necessidades de saúde, uma vez que apresenta problemas graves ao nível cardíaco que já o conduziram a várias intervenções cirúrgicas, aguardando outra para breve.

E considerou que não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa, designadamente, outros factos que estejam em contradição ou em desconformidade com os supra descritos, nomeadamente, que:
a) O arguido C… utilizou tais quantias em proveito próprio.

Motivação (transcrição):
O tribunal fundou a sua convicção:
- No teor das certidões da C.R.C. do Porto de fls. 46 a 60 e 364 a 367, nos documentos de fls. 61 a 84, nos mapas de fls. 82 a 84, nas folhas de remuneração de fls. 134 a 143, nos documentos de fls. 188 e 199, na certidão de fls. 458 e 468, no certificado do registo criminal dos arguidos de fls. 511 a 513, nos documentos de fls. 546 e 547 e no relatório social de fls. 562 a 566;
- No depoimento prestado pelas testemunhas: D… (Técnica Superior da Segurança Social), que confirmou os valores das contribuições devidas pela sociedade arguida, apurados através da análise das declarações de remunerações apresentadas por aquela sociedade e respectiva conta corrente, valores aqueles que continuam por liquidar; E… e F… (antigos funcionários da sociedade arguida), que descreveram a situação laboral e financeira da empresa enquanto lá trabalharam; G… (Técnico Oficial de Contas, que trabalhou para a sociedade arguida entre Junho/90 e Dezembro/2003), que descreveu com pormenor a situação económico-financeira da sociedade, as razões do seu declínio e encerramento e as opções que foram feitas em face da escassez de recursos financeiros (atrasaram-se os pagamentos à Seg. Social e às Finanças, privilegiando-se os pagamentos aos trabalhadores e fornecedores); e H… (gestor de conta da empresa, no Banco I…), que também descreveu a evolução negativa da situação financeira da empresa, acentuada aquando da perda da concessão da Fiat, ocorrida em Outubro de 2003, e as opções que o arguido fez quando viu que os recursos financeiros não chegavam para cumprir todos os compromissos (deu prioridade ao pagamento de salários), tendo ainda descrito a personalidade do arguido, enquanto pessoa e empresário.
Ora, face à prova supra descrita, o tribunal ficou firmemente convicto da veracidade dos factos relatados na acusação, só se tendo considerado como não provado que o arguido se apropriou, em proveito próprio, das contribuições devidas à Segurança Social, por falta de prova quanto a tal facto.

2.2 Matéria de Direito
O presente recurso tem como objecto a questão de saber qual a taxa aplicável aos juros de mora devidos ao demandante civil “Instituto da Segurança Social, IP” e qual a data do seu vencimento e, consequentemente, apreciar a condenação do demandante nas custas do pedido cível, “na proporção do respectivo decaimento”.
A sentença recorrida entendeu aplicável a “taxa legal devida para os juros civis”, “a contar desde 90 dias após o vencimento de cada uma das prestações em dívida”.
O recorrente, por seu turno, entende que são devidos juros de mora à taxa prevista no artigo 16º do Dec. Lei 411/91, de 17 de Outubro e art. 3º do Dec. Lei 73/99, de 19 de Março, desde o 15º dia do mês seguinte àquele a que dizem respeito as contribuições em dívida, calculados à taxa de 1% ao mês, aumentando uma unidade por cada mês de calendário, ou fracção.

Vejamos a questão.

A sentença recorrida, sobre esta matéria, referiu que ao montante do pedido cível acresciam juros de mora “ (…) não à taxa peticionada (por estar aqui em causa uma indemnização fundada na responsabilidade civil por factos ilícitos dos demandados e não outra), mas sim à taxa legal prevista para os juros civis (…) até efectivo e integral pagamento, a contar desde 90 dias após o vencimento de cada uma das prestações em dívida, até efectivo e integral pagamento”.

Este Tribunal da Relação tem defendido um entendimento contrário, como se pode ver dos seguintes acórdãos:

Acórdão desta Relação, de 27-09-2006, proferido no processo n.º 0416510:
“(…) Resulta da lei: 1. Existe mora a partir do 15º dia do mês seguinte àquele a que as contribuições dizem respeito.2. Trata-se, por isso, de obrigações com prazo certo.3. A taxa de juro devida pela mora é de 1% se o pagamento se fizer dentro do mês de calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente ao mês a que respeitem as contribuições. 4. Anteriormente a Março de 1999, a taxa de juro era de 15%, o que não tem relevância no caso em análise já que o pedido da Recorrente fica aquém do legalmente permitido.
Pois bem.
Sendo líquidos os créditos provenientes dos montantes descontados nos salários dos trabalhadores, é aplicável o disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 805 do Código Civil pelo que se verifica mora independentemente de interpelação.
A taxa de juros está, como se referiu, definida no n.º 1 do art.º 3º do Dec. Lei 73/99.
Trata-se de Lei Especial que não pode ser derrogada pela Lei Geral, designadamente pelo Código Civil e Portarias que fixam as taxas de juros previstas naquele Diploma Legal.
De resto, a alínea c) do art.º 3º do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, expressamente estipula que se aplicam subsidiariamente (às infracções fiscais não aduaneiras), quanto à responsabilidade civil, “as disposições do Código Civil e legislação complementar” (sublinhado nosso). É essa legislação complementar que tem aqui aplicabilidade como, de resto, foi intenção inequívoca do legislador (cfr. exórdio do DL 73/99.”

O mesmo entendimento foi seguido no acórdão desta Relação, de 5-11-2003, proferido no processo n.º 0343440:
“No caso sub judice temos dois regimes aplicáveis à taxa de juros: a regra geral e a especial, prevista no D/L nº 73/99, aplicável às dívidas ao Estado e, por força do disposto no art. 16º do D/L nº 411/91, às dívidas ao demandante. Nestes dois diplomas legais não é feita qualquer distinção entre dívidas resultantes e não resultantes da prática de um crime para a aplicação de um ou outro dos regimes. Sendo assim, tem de ser dada prevalência à lei especial, que não foi derrogada pela lei geral.”

Também no acórdão desta Relação, de 18-05-2005, proferido no processo n.º 0510599, se decidiu do mesmo modo:
“Baseando-se a indemnização na prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, os juros de mora são calculados à taxa prevista no DL n.73/99, de 19 de Março”.

Tal entendimento foi igualmente seguido no acórdão desta Relação, de 9-05-2007, proferido no processo n.º 0644421:
“ No caso de condenação em indemnização baseada na prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social os juros de mora são os previstos nos artºs 16º do DL nº 411/91 e 3º do DL nº 73/99”. “(…) O facto ilícito típico culposo, gerador da obrigação de indemnizar, consiste na não entrega à Segurança Social, do valor das deduções das contribuições devidas pelos trabalhadores, efectuadas no valor das remunerações destes, e na subsequente apropriação desse valor.
Logo, a relação jurídica subjacente tem como objecto imediato (ou conteúdo) a obrigação de entrega, por parte da entidade empregadora – de que o condenado era gerente - daquelas contribuições à Segurança Social. Assim sendo, os juros de mora aplicáveis são os fixados nos diplomas acima transcritos, e não os “civis” aplicados na Sentença. Aqui aplica-se o Princípio Geral do Direito de que Lei Especial revoga Lei Geral. (…)”

Do mesmo modo decidiu o acórdão desta Relação, de 11-04-2007, proferido no processo n.º 0647201:
“I. Procedendo o pedido de indemnização civil baseado na prática de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, a taxa dos juros de mora é a fixada no DL nº 73/99, de 19 de Março. II. Tais juros são devidos a partir do primeiro dia imediatamente a seguir ao termo do prazo de entrega da prestação à Segurança Social”.

Julgamos que deve ser este o entendimento a seguir, por ser o mais correcto.

É verdade que, como diz a sentença recorrida, estamos no domínio da responsabilidade civil extracontratual conexa com a responsabilidade penal, sendo assim aplicável o regime regulado pela “lei civil” (art. 129º do C. Penal). A lei civil, sobre os prejuízos causados pelo incumprimento de prestações pecuniárias, diz-nos o seguinte:

“Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar da constituição em mora” – art. 806º, 1, do C. Civil.

Tais juros corresponderão aos juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado, ou houver convenção das partes (art. 806º, 2 do C. Civil).

Estabelece finalmente o n.º 3 do mesmo artigo 806º que, “quando se trate de responsabilidade por facto ilícito”, pode o credor provar que a mora lhe causou dano superior aos juros devidos, nos termos do número anterior.

Destes preceitos resulta que, na responsabilidade civil por factos ilícitos, como é o presente caso, em que o incumprimento da prestação é também um ilícito criminal, o credor tem direito a ser ressarcido de todos os danos que lhe causou esse incumprimento, sendo que tais danos só corresponderão aos juros legais, cuja taxa é fixada nos termos do art. 559º do C. Civil, quando o dano sofrido não for superior. Por isso, se o capital vencia um juro superior à taxa legal, os juros de mora a atender serão os mais elevados (art. 806º, 2 do C. Civil). Do mesmo modo, se as partes tiverem estipulado uma taxa de juro superior, será esta a devida pela mora (arts. 806º, 2 e 810º do C. Civil). Se o credor provar que a mora lhe causou um dano superior aos juros legais, será deste dano que é ressarcido.
Segundo o art. 559º C. Civil, os juros legais são fixados através de Portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças.

Contudo, relativamente às contribuições devidas à Segurança Social, existe um regime especial:
Com efeito, nos termos do art.º 5.º n.º 3 do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, “o pagamento das contribuições deve ser feito no mês seguinte àquele a que disserem respeito, dentro dos prazos legalmente em vigor”.

E o art.º 16º do Dec. Lei 411/91, de 17 de Outubro, diz-nos o seguinte:

“1 - Pelo não pagamento das contribuições à segurança Social nos prazos estabelecidos são devidos Juros de mora por cada mês de calendário ou fracção.
2 - A taxa de juros de mora é igual à estabelecida para as dívidas de Impostos ao Estado e é aplicada da mesma forma”.

A taxa de juros de mora estava fixada em 15%, até Março de 1999 - art.º 83º do Código de Processo Tributário já revogado.

Em Março de 1999 foi publicado o DL 73/99, de 16 de Março, que dispõe no n.º 1 do seu art.º 3º:
“A taxa de juros de mora é de 1%, se o pagamento se fizer dentro do mês de calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente ao mês a que respeitem as contribuições”.
Deste modo, existindo um regime especial de onde resulta que a falta de entrega das prestações tributárias confere ao credor o direito a juros de mora mais elevados que os decorrentes da aplicação da taxa definida na Portaria a que alude o art. 559º do C. Civil, deve ser este o regime aplicável.

Tal resulta, desde logo, do facto de se tratar de um regime especial e, portanto, afastar por esse motivo o regime geral – art. 7º n.º 3 do C. Civil

Resulta ainda do facto de o nº 2 do art. 806º do C. Civil só mandar aplicar a taxa legal quando não haja outra taxa aplicável por acordo das partes, ou quando não for devido um juro mais elevado. Se as partes podem convencionar um juro de mora mais elevado, por maioria de razão o legislador o pode fazer. Daí que, existindo uma taxa de juro prevista em lei especial, a mesma seja aplicável por força do art. 806º, 2 do C. Civil.

Resulta finalmente do próprio art. 806º, n.º 3 do C. Civil, pois este preceito pretende ressarcir todos os danos emergentes da falta de pagamento. Se mesmo quando não há crime a taxa de juro de mora é a fixada na lei especial, isso significa que a real dimensão do dano emergente do incumprimento é, pelo menos, o somatório do incumprimento da prestação e dos juros de mora devidos por aquele atraso previsto na lei aplicável.

Sendo aplicável o regime especial, os juros de mora são devidos desde o 15º dia do mês seguinte àquele a que dizem respeito as contribuições em dívida e à taxa de 1% ao mês, aumentando uma unidade por cada mês de calendário ou fracção, nos termos dos arts. 16º do Dec. Lei nº 411/91, de 17 de Outubro e 3º do Dec. Lei 73/99, de 16 de Março.

Nestes termos, impõe-se julgar procedente o recurso e, consequentemente, condenar os demandados a pagar ao demandante/recorrente a quantia de €38.283,56 (trinta e oito mil, duzentos e oitenta e três euros e cinquenta e seis cêntimos), relativa a quotizações retidas nos vencimentos dos trabalhadores e não entregues ao “ISS, IP”, dos meses de Novembro de 2002 a Janeiro de 2004, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, isto é, desde o 15º dia do mês seguinte àquele a que dizem respeito as contribuições em dívida e à taxa de 1% ao mês, aumentando uma unidade por cada mês de calendário ou fracção, até efectivo e integral pagamento.

Face à procedência do recurso do demandante civil, impõe-se, em consequência, revogar a decisão recorrida também na parte em que condenou o demandante nas custas do pedido cível, “na proporção do respectivo decaimento”, ficando as custas do pedido cível a cargo dos demandados (art.446º, 1do Cód. Proc. Civil).

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo demandante civil “Instituto da Segurança Social, IP”e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, nos termos acima expostos.
Sem custas neste recurso, por não ter havido oposição.

Porto, 06/04/2011
Élia Costa de Mendonça São Pedro
Pedro Álvaro de Sousa Donas Botto Fernando