Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1247/07.4PTPRT.P1
Nº Convencional: JTRP00042819
Relator: CRAVO ROXO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: RP200907151247/07.4PTPRT.P1
Data do Acordão: 07/15/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO - LIVRO 382 - FLS. 305.
Área Temática: .
Sumário: Se os factos descritos na acusação do Ministério Público não integram o crime ali indicado, mas um outro, a decisão a tomar pelo juiz, no despacho a que alude o art. 311º do Código de Processo Penal, não deve ser a de rejeitar a acusação, mas antes a de operar a correcta qualificação jurídica desses factos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1247/07.4PTPRT.

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Acordam na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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No processo comum nº 1247/07.4PTPRT, do ..º Juízo Criminal do Porto, o Ministério Público acusou o arguido B………., em processo comum com intervenção de Tribunal singular, da prática de um crime de desobediência, previsto no Art. 139.º, n.º 4, do Código da Estrada e no Art. 348.º, n.º 2, do Código Penal.
No despacho que designa dia para julgamento, a senhora Juíza entendeu ser a acusação manifestamente infundada, pelo que ordenou o arquivamento dos autos.
É desse despacho que recorre agora o Ministério Público, para esta Relação.
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São estas as conclusões ipsis verbis do recurso (que balizam e limitam o seu âmbito e objecto):
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I. O Ministério Público acusou B………., arguido identificado nos autos acima referidos, de no dia 11 de Setembro de 2007, ter conduzido um veículo automóvel pela via pública, não obstante ter sido condenado, por sentença transitada em jul­gado no dia 3 de Julho de 2007 e nos termos do art. 69°, 1, a) e 2 C.P., na pena acessória de proibição de condução de veículos a motor pelo período de quatro meses e meio;
II. Operando a qualificação jurídica dos factos conclui-se, na acusação, que os mesmos integram a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo(s) art. 139°, 4 do Código da Estrada e 3 48°, 2 C.P..
III. Recebido o processo para prolação do despacho a que alude os art. 311° a 313° C.P.P., a Mmª Juíza alterou a qualificação jurídica, imputando ao arguido a prática de um crime de violação de proibições ou interdições, concluindo, após a alteração da qualificação jurídica, que, uma vez que da acusação não consta a data em que foi entregue ou apreendido o título de condução, a referida peça processual é manifestamente infundada por os factos não constituírem crime.
IV. Citando o AcRP de 13/12/2006, proferido no Processo n.° 0447381 (www.dgsi.pt) “Considera-se manifestamente infundada a acusação, cujos factos não constituam crime, alínea d) do n°. 3 da mesma norma. Manifestamente infundada é a acusação que, deforma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, seja porque os actos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de data para julgamento, uma flagrante violência e injustiça par ao arguido. Deve ser rejeitada a acusação quando, em face dos seus próprios termos, for desde logo evidente que não tem possibilidade de vir a proceder, submetendo-se o arguido a um julgamento inútil”.
V. São elementos típicos do crime p. e p. pelo(s) art. 353° C.P. (e referimo-nos à modalidade de comissão do ilícito vertida na acusação):
● a imposição de uma proibição (obrigação de non facere) como decorrência de uma pena acessória, mais precisamente, e in casu, a proibição de conduzir veículos motorizados por força da aplicação da sanção prevista no art. 69° C.P.;
● uma actuação em contrário a essa proibição, ou seja, a condução de veículo motorizado no período em que vigora a proibição;
● o conhecimento da proibição e a vontade de agir em desconformidade com a mesma.
VI. As proibições impostas por força da sanção acessória, como expressamente se refere no n.° 2 do artigo 69° C.P., produzem o seu efeito a partir do trânsito em julgado da sentença pelo que a partir desse momento o condenado não pode conduzir qualquer veículo automóvel.
VII. Diferente do imediato efeito da pena acessória é a sua específica execução, ou seja, os moldes pelos quais o ordenamento jurídico procura efectivar e garantir o estrito cumprimento da sanção imposta.
VIII. A interpretação precisa do art. 69° C.P. leva a concluir que a obrigação que impende sobre o condenado de fazer entregar a carta no prazo de dez dias contados da data do trânsito em julgado da condenação não corresponde a um prazo de dilação da proibição de conduzir e que nesse prazo que a lei concede ao condenado ele já está obrigado a não conduzir e, se o fizer conscientemente, a violação da obrigação fá-lo-á incorrer na prática do crime p. e p. pelo(s) art. 353° C.P..
IX. Note-se, ainda, que a solução que o despacho acolhe é manifestamente iníqua, penalizando quem cumpre o prazo estipulado, entregando a carta nos dez dias que a lei fixa, em detrimento de quem, indiferente ao comando legal, se esquiva à entrega da carta;
X. Acresce que a pena acessória pode ser aplicada a qualquer cidadão que cometa um crime que se reconduza à previsão normativa do art. 69° C.P., independentemente de estar ou não habilitado a conduzir veículos motorizados, sendo que nestas situações a execução da pena coincide com o momento do trânsito em julgado, já que não há qualquer documento a entregar.
XI. O mesmo sucederá, aliás, quando o condenado não tenha em seu poder o título de condução por ter caducado ou por ter sido extraviado, não sendo exigível obrigar o condenado a requerer novo título apenas com o fito de exigir a entrega do documento: bastará a comunicação da proibição à entidade administrativa, que fica impedida de entregar novo documento no período em que vigorar a execução da pena.
XII. A imperatividade da obrigação de non facere determinada pela aplicação da pena prevista no art. 69° C.P. não está dependente da efectiva entrega da carta e há situações em que nem sequer a execução de tal pena exige a entrega do referido documento, mas, ainda assim, o condenado está obrigado, desde o trânsito em julgado da sentença, a observar a proibição nascida no momento do trânsito em julgado da sentença.
XIII. Assim sendo, do facto de não estar alegado na acusação que o arguido tinha entregado o título de condução não pode extrapolar-se qualquer conclusão válida quanto à não verificação dos elementos típicos do crime de violação de proibições ou interdições, uma vez que, para alegação da violação da proibição contida na sentença, basta alegar o respectivo trânsito.
XIV. Concluindo o fio da argumentação que se contrapõe à contida no despacho recorrido, dir-se-á que do texto da acusação constam todos os factos que se reconduzem aos elementos objectivos e subjectivos do crime de violação de proibições ou interdições, pelo que não deveria rejeitar-se a acusação por manifestamente infundada por os factos aí descritos não integrarem a prática de um crime.
XVI. O despacho recorrido violou, assim, por erro de interpretação, o disposto no art. 69° e 353°, ambos do C.P., e o art. 3 11°, 2 e 3, d) C.P.P. pelo que deverá ser revogado e ser substituído que designe dia para a realização da audiência de julgamento pela prática do crime p. e p. pelo(s) art. 353° C.P.
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Não houve resposta.
Já neste Tribunal, o Senhor Procurador-geral Adjunto, no seu parecer, considera não haver razão para o arquivamento dos autos, por não ser manifestamente infundada a acusação; entende que o juiz deveria ter recebido a acusação, com a alteração não substancial dos factos, designando dia para julgamento; assim, propende para a procedência do recurso.
Foi dado cumprimento ao disposto no Art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
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É este o teor do despacho recorrido:
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O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B………., imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 139, nº 4, do Código da Estrada e art. 348º, nº 2, do Código Penal.
Dispõe o art. 311º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
A acusação é manifestamente infundada quando, além do mais, os factos não constituírem crime (cfr. al. d) do nº 3 do preceito legal supra citado).
Ora, in casu, a acusação pública deduzida contra o arguido é manifestamente infundada porquanto, em nosso entender, os factos nela descritos não constituem crime.
Senão vejamos:
O Ministério Público imputa ao arguido os seguintes factos:
1) No âmbito do Processo Sumário nº …/07.3GCVFR, do .º Juízo Criminal de Santa Maria da Feira, foi o arguido condenado, em 18/06/2007, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292º, nº 1, do Código Penal, na pena acessória de proibição de condução de veículos a motor de quaisquer categorias durante quatro meses e meio, nos termos do art. 69º, nº 1, al. a), e nº 2, do Código Penal.
2) A referida sentença transitou em julgado em 03/07/2007.
3) No dia 11/09/2007, pelas 16.37 horas, na Rua ………., área desta cidade e comarca, o arguido conduziu o veículo automóvel com a matrícula ..-..-GJ.
4) À data, encontrava-se o decorrer o período de proibição de condução de veículos motorizados.
5) O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, ciente de que desobedecia a ordem legítima, comunicada de forma regular e emanada de autoridade competente para o efeito.
6) Sabia igualmente que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Ora, estando em causa nos autos, conforme decorre dos factos supra transcritos, a violação de uma proibição imposta por sentença criminal a título de pena acessória, e não o incumprimento de uma sanção acessória de inibição de conduzir decretada por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, é evidente que tais factos não integram o crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo art. 348º, nº 2, do Código Penal, com referência ao art. 138º, nº 2 do Código da Estrada (a referência feita na acusação ao art. 139º, nº 4, deste código deve ter decorrido de manifesto lapso, pois aos factos dos autos já se aplica a redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23/02), mas sim o crime de violação de proibições ou interdições previsto e punido pelo art. 353º do Código Penal (v., neste sentido, Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 400), impondo-se, por isso, alterar, em conformidade, a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação.
Dispõe o art. 353º do Código Penal que:
“Quem violar proibições ou interdições impostas por sentença criminal, a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.”
Por sua vez, dispõem os nºs 2 e 3 do art. 69º do mesmo código, no qual se prevê a punição da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, que:
“2 – A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão (…).
3 – No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.”
O artigo 467º, nº 1, do Código de Processo Penal estabelece que “as decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva (...)”.
Por último, sobre a execução da proibição de condução, o artigo 500º do Código de Pro­cesso Penal, estipula o seguinte:
1 – A decisão que decretar a proibição de conduzir veículos motorizados é comunicada à DGV.
2 – No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.
3 – Se o condenado na proibição de conduzir veículos automóveis não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.
4 – A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido este período a licença é devolvida ao titular.
Ora, como se diz no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19/07/2006 (proferido no Processo nº 0612034, visualizável em www.dgsi.pt), que aqui seguimos de perto, da conjugação dos citados preceitos legais resulta claramente que:
a) Se a licença de condução já se encontra apreendida no processo, o cumprimento da pena acessória inicia-se, por força dos citados artigos 69º, nº 2, do Código Penal, 467º, nº 1, e 500º, nº 2, última parte, estes do Código de Processo Penal, a partir do momento em que a sentença transita em julgado;
b) Se a licença de condução não se encontrar apreendida no processo, o cumprimento da sanção acessória inicia-se a partir do momento em que aquele documento – quer porque foi voluntariamente entregue pelo condenado no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, quer porque lhe foi apreendido por ordem do tribunal – deixa de estar na posse do condenado e passa a ficar à ordem do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição, após o que será devolvido àquele. É o que resulta do disposto nos citados artigos 69º, nº 3, do Código Penal, 467º, nº 1, e 500º, nº 2 e 4, ambos do Código de Processo Penal.
A eficácia das penas não se confunde com a sua execução pois, sendo o primordial efeito do seu trânsito em julgado a possibilidade da sua imediata execução, nem sempre esta se mostra possível imediatamente a partir daquele, nomeadamente, porque o condenado se furta, com êxito, ao início do seu cumprimento.
Assim, ao conceder um prazo de dez dias, contados do trânsito em julgado da sentença, para que o condenado proceda à entrega da sua carta de condução, sob pena de ser decretada a apreensão da mesma, o que resulta da conjugação dos citados preceitos legais é que o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados apenas se inicia com aquela entrega e não com o referido trânsito em julgado.
Conclui-se, por isso, que o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor só se inicia no momento em que a carta de condução, após o trânsito em julgado da sentença, seja entregue ou apreendida [v., neste sentido, os Ac. da Relação do Porto, de 19/07/2006 (Processo nº 0612034), de 15/03/2006 (Processo nº 0441850), de 14/06/2006 (Processo nº 0543630) e de 10/01/2007 (Processo nº 0645759), todos visualizáveis em www.dgsi.pt).
Ora, se o cumprimento da pena acessória da proibição de conduzir veículos com motor só se inicia no momento em que a carta de condução, após o trânsito em julgado da sentença que a aplicou, seja entregue ou aprendida, temos necessariamente de concluir que a violação de tal obrigação também só pode ocorrer a partir daquele momento.
No caso, não consta da acusação em que data é que foi entregue ou apreendida a carta de condução do arguido, apenas se fazendo referência à data em que transitou em julgado a sentença proferido no Processo Sumário nº …/07.3GCVFR, que aplicou àquele a pena acessória de proibição de conduzir pelo período de quatro meses e meio.
A ausência de tal facto leva a que não se possa concluir que o arguido, quando conduziu o veículo ..-..-GJ no dia 11/09/2007, violou a proibição em causa, pois não se sabe em que data é que aquele iniciou o cumprimento daquela pena, sendo certo e sabido, como vimos, que o início do cumprimento da mesma não se iniciou com o mero trânsito em julgado da respectiva sentença condenatória.
Assim, porque os factos que vêm imputados ao arguido na acusação deduzida nos autos não integram os elementos objectivos do tipo de crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo art. 348º, nº 2, do Código Penal, com referência ao art. 138º, nº 2, do Código da Estrada, nem o tipo de crime de violação de proibições ou interdições, previsto e punido pelo art. 353º do Código Penal, impõe-se a rejeição da acusação, por manifestamente infundada.
Por tudo o exposto, ao abrigo do disposto no art. 311º, nº 2, al. a), e nº 3, al. d), do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público, por se considerar a mesma manifestamente infundada.
Notifique e, após trânsito, arquive.
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Decidindo.
De harmonia com o disposto no Art. 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, o juiz pode rejeitar a acusação, quando esta é manifestamente infundada.
Este conceito jurídico encontra-se descrito nas alíneas a) a d) do n.º 3, da norma referida.
Assim, o juiz deve rejeitar a acusação, quando os factos ali descritos não constituam crime.
Como se escreveu no Ac. desta Relação, de 4.3.2009 (Isabel Pais Martins, relatora, dgsi.pt), a alínea d) do n.º 3 apenas consente a rejeição da acusação se os factos que dela constam não constituírem crime, ou seja, se no estrito quadro dos termos em que foi deduzida a acusação se verificar, pela leitura dos factos narrados na acusação, que eles não conformam a prática de crime.
É aqui que radica o fundamento do despacho recorrido.
Entende a senhora Juíza que, por não constar daquela peça se ou em que data foi entregue pelo arguido ou apreendida a sua carta de condução, falta um facto essencial, pelo que os descritos na mesma não representam um ilícito criminal.
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Nota-se, desde logo, uma contradição no despacho recorrido: ao ler o mesmo, fica-se com a ideia segura que a senhor Juíza entende haver lugar a uma qualificação diferente dos factos, propendendo para a prática de um crime previsto no Art. 353.º do Código Penal (crime de violação de imposições, proibições ou interdições), em detrimento daquele crime de desobediência.
Porém, no final – e sem justificar esta primeira conclusão – decide-se pelo arquivamento dos autos, com fundamento naquele Art. 311.º, n.º 3, alínea d), do Código Penal.
Com efeito, o raciocínio levado a cabo no despacho é contraditório.
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Importa, porém, verificar os seus fundamentos, para se decidir pela sua confirmação ou alteração:
Por sentença datada de 18 de Junho de 2006, o aqui arguido fora julgado e condenado na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 4,00 euros e ainda na pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor, pelo período de quatro meses e meio, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no Art. 292.º, n.º 1, do Código Penal e ainda punível nos termos do Art. 69.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do mesmo diploma legal.
Esta sentença transitou em julgado em 3 de Julho de 2007.
O arguido foi, contudo, detectado a conduzir um veículo automóvel, no dia 11 de Setembro de 2007, dentro daquele período de inibição.
Naquela sentença, o arguido fora formalmente advertido de que deveria entregar a sua carta de condução na secretaria do Tribunal, no prazo de 10 dias a contar do trânsito, com a cominação de ser ordenada a apreensão da carta de condução e de incorrer na prática de um crime de desobediência.
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Nos termos do disposto no Art. 69.º, n.º 2, do Código Penal, a proibição de conduzir veículos com motor, decretada em sentença, produz efeitos a partir do trânsito em julgado da decisão.
Porém, a jurisprudência mais recente e praticamente unânime tem vindo a entender que esta eficácia da sentença apenas se refere às situações em que a carta já se encontra apreendida, à data da publicação da sentença; não, assim, quando o arguido ainda a tem em seu poder.
E tem toda a razão de ser esta interpretação da norma, uma vez que o n.º 3 da norma citada prevê que o arguido possa entregar o título até 10 dias após o trânsito em julgado.
Como se verifica dos autos, a carta de condução ainda não fora entregue pelo arguido, apesar de ter decorrido já esse prazo do trânsito em julgado da decisão condenatória; e exactamente nesse período, o arguido foi detectado a conduzir.
Entendeu o Ministério Público que o crime de desobediência estava consumado, pelo que proferiu o seu libelo acusatório.
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Não é esse o nosso entendimento; mas também desde já se diz que não sufragamos a tese defendida no despacho recorrido:
Com efeito, o único crime de desobediência – que o Ministério Público não acusou – referir-se-ia ao facto de, apesar de devida e expressamente advertido e notificado para o fazer, o arguido não ter entregue a sua licença de condução dentro do prazo que lhe foi arbitrado; aí, sim, haveria crime de desobediência (sendo certo que o Ministério Público estará sempre a tempo de acusar por esses factos).
Porém, os factos trazidos a julgamento não preenchem os elementos essenciais do crime de desobediência qualificada, previsto no Art. 348.º, n.º 2, do Código Penal, por referência ao disposto no Art. 138.º, n.º 2, do Código da Estrada (e não no Art. 139.º, n.º 4, atendendo à versão deste diploma vigente à data dos factos).
Mas preenchem em absoluto, por outro lado, os requisitos objectivos e subjectivos do Art. 353.º do mesmo diploma, pelo menos em sede indiciária: ou seja, o crime de violação de imposições, proibições ou interdições.
Com efeito, prevê esta norma pena de prisão até dois anos, ou pena de multa até 240 dias, ao agente que violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena acessória.
Foi este o raciocínio inicial patente do despacho recorrido, mas não levado às suas últimas consequências.
Como resulta bem claro, os factos descritos no libelo acusatório descrevem uma actividade que cabe em pleno, ponto por ponto, na previsão deste Art. 353.º.
E assim, nunca poderia a acusação ser taxada de manifestamente infundada: o crime existe e está ali descrito com todas as circunstâncias necessárias, embora com uma diferente integração jurídica.
Se o arguido vai ou não ser por ele condenado, já é matéria que não nos deve preocupar agora.
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Nunca se poderia, aliás, aceitar a situação que o despacho recorrido causaria: apenas porque o arguido não apresentou a carta de condução, nunca o mesmo seria sancionado, ainda que detectado a conduzir – o que seria desajustado e incompreensível, em face da situação de um outro condenado que tenha cumprido a advertência legal... (sem ter aqui em conta o outro eventual crime de desobediência que resulta da leitura da sentença condenatória).
Será assim mister considerar que o crime citado se encontra descrito e configurado no libelo, sem necessidade de qualquer aditamento factual.
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E se os factos ali estão, apenas a sua qualificação jurídica é diversa: em vez de um crime do Art. 348.º, n.º 2, teremos um crime do Art. 353.º, do Código Penal.
Tal operação é permitida, se tivermos em conta o disposto no Art. 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal: tratando-se de simples alteração não substancial da acusação, importará fazer a respectiva comunicação, no momento oportuno (que poderá ser, bem se vê, no despacho que designa dia para o julgamento).
Deste modo, o recurso merece provimento, devendo os autos seguir para julgamento, ainda que com a referida alteração.
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Decisão.
Pelo exposto, acordam nesta Relação em julgar procedente o recurso do Ministério Público, revogando o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, respeitando o disposto no Art. 358.º do Código de Processo Penal, designe dia para julgamento, configurando os factos como integradores de um crime previsto no Art. 353.º do Código Penal.
Não são devidas custas.
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Porto, 15.7.2009
António Luís T. Cravo Roxo
António Álvaro Leite de Melo