Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0711400
Nº Convencional: JTRP00040294
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: OFENSAS AO BOM NOME
PESSOA COLECTIVA
Nº do Documento: RP200705090711400
Data do Acordão: 05/09/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 484 - FLS 73.
Área Temática: .
Sumário: Não comete o crime de ofensa a pessoa colectiva previsto no artº 187º do CP95 quem, no âmbito do seu direito de petição e acção, através dos meios processuais e procedimentais adequados, imputa a uma Câmara Municipal uma ou mais ilegalidades.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1.Relatório
O “B………”, assistente nos autos de instrução n.º …/04.3TAVLC, recorreu para esta Relação da decisão instrutória que não pronunciou o arguido C………. pela prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva, p. e p. pelo art. 187º C. Penal, em concurso com um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365º C. Penal, alegando:
- Das diligências instrutórias não resulta justificação ou causa de exclusão da ilicitude;
- Mantêm-se os indícios que determinaram uma elevada probabilidade de o arguido poder ser condenado em julgamento;
- As afirmações do arguido são falsas e extrapolam o âmbito da crítica objectiva aceitável, atingindo o núcleo de prestígio, credibilidade e confiança do B………., sem razão justificativa, ou demonstração da verdade de tais factos ofensivos;
- Sendo que o arguido não tinha, nem demonstrou ter, fundamento sério para reputar de verdadeiros os juízos de valor e de facto expressos no escrito em apreço (fls. 34 e segs. dos autos), os quais ultrapassaram o exercício de um direito legítimo, para o insulto e a ofensa;
- Ao denunciar factos e lançar suspeitas que sabe não serem verdadeiros, o arguido praticou o crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365º do C. Penal;
- O facto de existirem acções do arguido contra o assistente não tem o efeito pretendido, no sentido de afastar a ilicitude, já que não é pela repetição de tais afirmações que estas se tornam verdadeiras e não existe decisão definitiva de qualquer autoridade que as ateste como verídicas;
- Ao não decidir deste modo, o M.ª juiz “a quo” violou o disposto nos arts. 180º, 182º e 183º, nºs 1 e 2, 187º e 365º do C. Penal, 286º e 308º do C. P. Penal e 2º, 18º, 25º, 26º, 37º da CRP;
Conclui pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que pronuncie o arguido.

O arguido respondeu à motivação apresentada, pugnando pela manutenção da decisão recorrida de não pronúncia.

Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral Adjunto emitiu parecer de que “foi acertada e legal (…) a decisão de não pronunciar o arguido, pelo que o recurso não deve merecer provimento”.

Cumprido o disposto no artigo 417º, 2 do CPP, não houve resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

2. Fundamentação
2.1 Matéria de facto
A decisão recorrida, na parte que agora interessa, é do seguinte teor:
“(…) Dispõe o art. 308.º/1 do CPP que se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Por outro lado, estabelece o art. 283.º/2 do CPP, para onde remete o art. 308.º/2 do mesmo Código, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança [cfr. RC 31-03-1993, in CJ (1993) 2 65].
Decorre dos citados preceitos do CPP que a lei não faz depender a decisão instrutória de pronúncia da existência de uma forte possibilidade de condenação do arguido - circunstância que limita o espaço de manobra do MP - resultando ainda de tais preceitos que, na fase da instrução, não tem ainda aplicação o princípio do in dubio pro reo.
Como é referido por Marques Ferreira, Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Civil, Centro de Estudos Judiciários, pág. 232, em sede de pronúncia deixa de se "exigir o mesmo grau de certeza ou verdade requerida pelo julgamento final" ou a maior probabilidade de condenação do que de absolvição. Assim, de harmonia com as citadas disposições legais, a lei não exige a prova no sentido de certeza moral da existência de um crime, satisfazendo-se com a possibilidade razoável de do cometimento de tal crime pelo arguido - cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 183.
Como se tem sustentado uniformemente, indícios suficientes são aqueles que permitam a formação de um juízo de razoabilidade sobre a culpabilidade do arguido, com a produção da convicção de que ele poderá vir a ser condenado - por todos cf. Ac. RPt. 13.11.74, BMJ 241, pág. 347; Ac. RLx. 22.02.74, BMJ 234, pág. 338 e REv. 19.06.74, BMJ 238, pág. 295.
Ao contrário, o despacho de não-pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento (cfr. G. MARQUES DA SILVA, op. cit, vol. III, 205).
Assim sendo, há que apreciar, neste momento, se os indícios que existem nos autos, assentes nas provas coligidas tanto em fase de inquérito como em fase de instrução, são ou não suficientes para submeter o arguido a julgamento.
O arguido veio alegar que não se encontram verificados os elementos constitutivos dos crimes pelos quais o arguido foi acusado.
Na acusação deduzida contra o arguido são-lhe imputados os seguintes factos:
- O ora arguido elaborou e redigiu o requerimento que se encontra junto aos autos a fls. 34-43, que remeteu por correio aos Serviços do IGAT – Inspecção-geral da Administração do Território;
- Tal requerimento deu origem, na à instauração, naqueles serviços, ao Processo n.º S.P. .......-./2004;
- Do teor do requerimento consta o seguinte:
. “... No quadro da violação culposa do PDM e do RMEU”;
. “O PDM, o RMEU, e o RGEU e o Código Civil estão a ser violados culposamente pelo executivo da B………. de forma discriminatória e contra os interesses público e privado”;
. “Nunca se assistiu a nada semelhante em ………., nem no tempo da ditadura de Salazar ou do COPCON se verificaram tais abusos de poder contra os direitos fundamentais dos munícipes”;
. “a violação culposa do PDM e RMEU pela B………. tem características obscuras, discriminatórias e selvagens, incompatíveis com o exerci cio democrático e legal do poder local”;
. “... é incompatível com o mandato que foi confiado aos Senhores Presidente e Vereadores que pactuam com tais violações do PDM/RMEU”;
. “Ilegalidades relevantes violando culposamente os instrumentos de ordenamento”;
. “Como se o executivo da B………. tivesse sido mandatado para violar o PDM ... aplicável em benefício de alguns e à custa do prejuízo dos restantes e do interesse publico”;
. “O parecer dado pelos serviços de planeamento da Câmara Municipal está errado e manipulado, partindo do pressuposto errado e não inocente”;
. “A Câmara Municipal não embargou nem demoliu a obra estando a ocultar a ilegalidade até que os prevaricadores terminem a construção”;
“... o signatário está impedido de vedar a sua propriedade e usufruir livremente da mesma, o que constitui um prepotente e discriminatório abuso de poder (sem mandato para o efeito)”;
. “Os prevaricadores e a Câmara Municipal estão a violar de forma consciente, concertada e impune o PDM e o R.M.E.U”;
- “O signatário está convencido que a causa das violações e da associação entre prevaricadores e Câmara Municipal violadora do PDM/RMEU é gerada por influência dos financiadores das campanhas autárquicas e outras, os quais controlam totalmente o poder político local”;
. “Mais está convencido o signatário de que não é por coincidência que os prevaricadores são todos empregados dos principais financiadores partidários locais”;
. “Como acontecia antes de Cristo, hoje o PDM/RMEU e a Lei 27/96 são letras mortas em ……….”;
Considera a acusação que, com as expressões acima referidas, o arguido quis ofender, como ofendeu, a credibilidade, o prestígio, a confiança, a honra e consideração que é devida ao B………., e em particular do seu órgão executivo composto pelos membros da Câmara Municipal.
Pretendia, também por essa forma, o arguido que fosse, como foi, instaurado procedimento contra os Representantes do B………., e por via desse procedimento, a instauração de processo criminal contra os mesmos, pelos factos supra referidos.
Porém, e conforme é referido na acusação, tais factos não ocorreram tal como o arguido os participou, sabendo este que os mesmos não correspondiam à verdade.
A fim de apurar se a conduta do arguido integra ou não os crimes pelos quais foi acusado, cabe analisar cada um deles.
Quanto ao crime de ofensa a pessoa colectiva, dispõe o art. 187º do C.P. que: quem, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a pessoa colectiva, instituição, corporação, organismo ou serviço que exerça autoridade pública, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
No crime em análise protege-se o bom-nome da pessoa colectiva, organismo, serviço ou corporação que exerce autoridade pública, traduzidos na sua credibilidade, prestígio e confiança.
O que conta neste contexto é a imagem real que os outros têm da pessoa colectiva. O seu prestígio, credibilidade e confiança dependem muito da forma como a comunidade valora as actuações da pessoa colectiva ou instituição.
Por outro lado, não basta uma qualquer ofensa ao bom-nome da pessoa colectiva, organismo ou serviço. É ainda preciso que as entidades referidas exerçam autoridade pública.
O tipo objectivo comporta a afirmação ou propalação de factos inverídicos e que tais factos se mostrem capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa colectiva, corporação, organismo ou serviço. Para além disso, o agente da infracção não deve ter fundamento, para, em boa-fé, reputar verdadeiros factos inverídicos, Por fim a pessoa colectiva, instituição, corporação, organismo ou serviço tem de exercer autoridade pública.
Quanto ao crime de denúncia caluniosa, dispõe o art. 365º, nº1 do C.P que “quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento criminal, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
O bem jurídico protegido por esta norma tem sido muito discutido pela doutrina. No direito vigente tudo concorre a favor da interpretação que erige os interesses individuais em bem jurídico típico, reservando aos valores da realização da justiça uma tutela reflexa ou complementar.
A conduta típica caracteriza-se por denunciar ou lançar suspeita “por qualquer meio” não existindo quaisquer exigências de índole formal.
O preenchimento do tipo objectivo exige que a denúncia ou suspeita seja, no seu conteúdo essencial, falsa: que o agente não cometeu a infracção que lhe é imputada.
A denúncia ou suspeita tem de reportar-se a outra pessoa, o que afasta os casos de auto-denúncia. A pessoa denunciada tem de ser concretamente identificada ou, ao menos, identificável e, como tal, susceptível de ser processada.
A conduta, denunciar, ou lançar suspeita, pode ter por objecto, factos correspondentes a crime, contra-ordenação ou falta disciplinar.
O agente não tem de qualificar os factos, bastando a denúncia idónea de factos susceptíveis de, em concreto, provocarem a perseguição criminal, contra-ordenacional ou disciplinar do arguido.
A denúncia terá de ser feita ou a suspeita lançada directamente “perante autoridade” ou “publicamente”, entendendo-se como autoridade os tribunais bem como o Ministério Público e a as autoridades policiais.
Quanto ao elemento subjectivo, o crime de denúncia caluniosa só é punível a título de dolo, tendo o agente que actuar “com a consciência da falsidade da imputação” e “com a intenção de que contra ela se instaure procedimento”.
A consciência da falsidade significa que, no momento da acção o agente conhece ou tem como segura a falsidade dos factos objecto de denúncia ou suspeita. O que equivale a excluir a relevância do dolo eventual.
Relativamente à intenção de instauração de procedimento criminal, para que tal se verifique o agente terá de representar a instauração do procedimento como consequência necessária segura ou inevitável da sua conduta (excluindo-se, portanto, também, o dolo eventual)
As testemunhas ouvidas em sede de instrução (D………., E………., F………., G………., H………., I………., J………., L………., M………. e N……….) referiram que o arguido, ao endereçar ao IGAT a missiva que deu origem à dedução da acusação apenas pretendia defender os seus direitos, dirigindo-se ao organismo competente para o efeito uma vez que a assistente não lhe dava qualquer resposta às pretensões do arguido, praticava actos discriminatórios e de legalidade duvidosa relativamente a pretensões formuladas por outros cidadãos.
Disseram, ainda, que nunca foi intenção do arguido pôr em causa o nome da assistente, denegrindo a sua imagem ou reputação.
Ora, em face dos elementos juntos aos autos, resulta que o, arguido ao subscrever a missiva que enviou ao IGAT, se tenha baseado em factos que considerasse inverídicos.
Com o requerimento apresentado, o arguido pretendia submeter à apreciação da entidade administrativa, própria e competente, o IGAT a sindicância e investigação dos factos melhor descritos no requerimento em causa.
E com base nessa convicção, o arguido, intentou uma Acção Administrativa Especial de Impugnação de uma deliberação camarária que deferiu um pedido de viabilidade de construção de anexo apresentado por O………. bem como do despacho do Senhor Vereador do Pelouro das Obras Particulares, que deferiu o pedido de licenciamento apresentado em 04. 11.2003, pelo mesmo O………. .
O referido processo corre actualmente os seus termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu.
Os factos nesse processo constam do requerimento dirigido ao IGAT e que deu origem aos presentes autos.
O arguido intentou ainda Acção Administrativa e Especial contra o B………. E O………., para impugnação da deliberação de 05.05.2003 da O………. que deferiu o pedido de dispensa de licença ou autorização para a construção de um muro de vedação apresentado por O………., a qual corre actualmente termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu. Na referida acção o arguido, ali Autor, peticiona a declaração de nulidade do acto impugnado, e subsidiariamente a sua anulação.
A fundamentação da referida acção coincide parcialmente com a sustentação factual que o arguido colocou à apreciação do IGA T no requerimento em causa e tem como base factual a construção pelo contra-interessado de um muro de suporte e de um muro de vedação da sua propriedade sem qualquer licenciamento prévio ou autorização.
O arguido comunicou, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 69.° do Dec. Lei nº 555/99 de 16 de Dezembro, ao Ministério Público do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, a existência de uma construção ilegal, sita no ………., ………., levada a cabo por P………. e marido.
A referida factualidade também consta do requerimento apresentado ao IGAT.
O arguido comunicou, também, Ministério Público do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, a violação da alínea a) do nº3 do art. 12º, al. d) do artigo 48° n.º 3 do PDM, artigo 6° do RMEU, RGEU, no Proc. Administrativo n.º 31/00, em que é titular Q………. .
A referida factualidade também consta do requerimento apresentado ao IGAT.
O arguido comunicou ao Ministério Público do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu a violação dos artigos 2 º e 14º do RMEU, no Proc. Administrativo nº …/01, de que são titulares S………. e marido.
A referida factualidade também consta do requerimento apresentado ao IGAT.
Por último, o arguido remeteu ao Ministério Público do Tribuna Administrativo e Fiscal de Viseu, um pedido de dissolução da B………. e de perda de mandato do Sr. Vereador do Pelouro de Obras Particulares da mesma Câmara, nos termos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 27/96, de 1/08.
De todo o exposto, resulta que o arguido agiu junta das autoridades competentes para conhecerem os factos acima descritos que entendia integrarem a prática ou a omissão de actos administrativos que traduziam a violação da lei.
Perante a factualidade apresentada pelo arguido foi este notificado pelo IGAT de uma informação interna, de onde resultaram indícios de violação da lei, resultante de diligências levadas a cabo junto da B……….. e da Junta de Freguesia de ………. - doc. de fls. 212 a 221.
Daqui há que concluir que o arguido tinha sério fundamento para reputar os factos relatados ao IGAT como sendo verdadeiros, tendo comunicado os mesmos à entidade competente para a sua apreciação.
Assim sendo, entendo que não se verificam os elementos típicos dos crimes pelos quais o arguido foi acusado.
Nestes termos, com estes fundamentos, e ainda de harmonia com o preceituado no art. 308 º, n.º 1 do C.P.P., decido não pronunciar o arguido C……… determinando, consequentemente, o arquivamento dos autos (…)”

2.2 Matéria de direito
O recorrente – B………. – insurge-se contra o despacho de não pronúncia do arguido, por entender existirem indícios suficientes da prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva (previsto no art. 187º do C. Penal) e de um crime de denúncia caluniosa (previsto no art. 365º, 1 do C. Penal).

Nas suas conclusões, o recorrente destaca o facto de serem falsas as afirmações feitas pelo arguido, num requerimento dirigido ao IGAT (Inspecção-geral da Administração do Território), sem que houvesse qualquer fundamento sério para reputar verdadeiros os factos expressos no escrito em apreço. Daí que, em seu entender, quando o arguido lança suspeitas que sabe não serem verdadeiras, pratique não só o crime de “ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço” (art. 187º do CP) como o crime de “denúncia caluniosa” (art. 365º, 1 do C. Penal).

No presente caso, os factos imputados ao arguido estão (documentalmente) provados, dado traduzirem as expressões utilizadas num requerimento por si subscrito, dirigido aos serviços do “IGAT – Inspecção-geral da Administração do Território”. Assim, o presente recurso tem por objecto saber se os dizeres constantes do referido requerimento integram ou não os aludidos crimes de ofensa a pessoa colectiva e denúncia caluniosa.

i) Ofensa a pessoa colectiva
Como se ponderou no Acórdão desta Relação, de 7-03-07 (proferido no processo 0610676) e de acordo com a doutrina aí referida, “(…) «uma instituição é credível quando, pela actuação dos seus órgãos ou membros, se mostra cumpridora das regras, actua em tempo e de forma diligente e, sobretudo, quando a sua prática corrente se mostra séria e imparcial (…). Uma instituição tem prestígio sempre que, pelos comportamentos dos seus órgãos ou membros, ela se impõe, no domínio específico da sua actuação, perante instituições congéneres e, por isso mesmo, perante a própria comunidade que serve e a envolve. Uma instituição é digna de confiança quando pela sua génese e actuação posteriores se apresenta, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem se pode confiar. Esta será talvez a qualificação que mais depende do juízo externo. Quer isto significar, de forma clara e indubitável, que a confiança é um valor que se pode construir mas está dependente, de maneira quase lábil e tantas vezes incontrolável, da representação externa que façam da instituição em apreço» - Comentário Conimbricense, Tomo I, pág. 681.
Estes valores, tutelados pelo artigo 187º do C. Penal, dizem imediatamente respeito ao crédito das respectivas instituições na sociedade e têm uma relação directa com o funcionamento da economia, da administração pública e da prestação de serviços.”

No requerimento que dirigiu ao IGAT, o arguido fez, em suma, as seguintes imputações aos órgãos da autarquia:
- Violação do PDM, RMEU e RGEU;
- Ilegalidades relevantes, violando culposamente os instrumentos de ordenamento;
- Errado parecer dos serviços de planeamento;
- Ocultação da ilegalidade pela Câmara;
- O signatário está convencido de que a associação entre prevaricadores e a Câmara Municipal é gerada por influência dos financiadores das campanhas autárquicas e outras.

Como se vê dos exemplos referidos, as imputações feitas giram em torno de alegada violação de lei, relativamente a procedimentos urbanísticos e de uma eventual “associação” entre prevaricadores e Câmara, na origem de tal violação.

O controlo da legalidade administrativa pressupõe que os particulares, nas suas relações com a Administração Pública, tenham o direito de apresentar petições, reclamações e queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição e da lei (direito de petição, previsto no art. 52º da Constituição), bem como de impugnar quaisquer actos administrativos que os lesem (art. 268º, 3 da Constituição), direitos que seriam intoleravelmente tolhidos se não pudessem concretizar a imputação dos vícios típicos dos actos administrativos, v.g. o vício de violação de lei e do princípio da imparcialidade. Daí que nos pareça particularmente claro que o exercício do direito de petição, junto do IGAT, através da queixa de determinadas ilegalidades e irregularidades, tenha de considerar-se legítimo e sem idoneidade para afectar o prestígio e a credibilidade do Município. Pelo contrário, a existência e o exercício, em concreto, de mecanismos de controlo administrativo ou jurisdicional, é um meio de garantir o prestígio e a confiança nas instituições, pois traduzem uma forma de hetero-controle do exercício do poder.

O arguido, como se dá conta no despacho de pronúncia, para além do direito de petição, exercido através da queixa ao IGAT, também intentou nos Tribunais Administrativos uma acção impugnando a deliberação que deferiu o pedido de viabilidade de construção de um anexo apresentado por O………. (factos que também constam do requerimento dirigido ao IGAT), intentou nova acção administrativa especial, visando o despacho que deferiu o pedido de dispensa de licença ou autorização da mesma operação urbanística, comunicou ao MP junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu a existência de uma construção ilegal, sita no lugar de Santa Cruz (factualidade que também consta da queixa ao IGAT), comunicou ao MP junto do mesmo Tribunal Administrativo e Fiscal a violação dos artigos 2º e 14º do RMEU, no processo Administrativo 233/01 (factualidade que também consta da queixa ao IGAT) e remeteu ao MP junto do mesmo Tribunal, um pedido de dissolução da Câmara Municipal e de perda do mandato do Sr. Vereador do Pelouro de Obras Particulares.

A actuação do arguido, como claramente decorre do acima exposto, consiste unicamente na utilização dos mecanismos legalmente postos à disposição dos cidadãos, para controlo da legalidade da actuação da Administração Pública. Daí que o conteúdo da queixa não possa deixar de ser interpretado como a exteriorização de uma vontade do arguido, em fazer valer direitos que a Constituição e a lei lhe reconhecem.

É certo que no exercício de tais direitos, o arguido não pode pôr em causa a confiança e credibilidade das instituições. Mas também é verdade que essa confiança e credibilidade não são postas em causa só porque se age junto das entidades fiscalizadoras da actividade administrativa.

A nosso ver, a credibilidade só poderia ficar afectada quando fossem utilizados os meios legais para se afirmarem factos falsos ou, como diz a lei, “sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros” (art. 187º do CP).
No caso dos autos, o arguido está convencido da sua razão, pois só desse modo se explica que tenha intentado acções judiciais, discutindo a legalidade de actos administrativos e apresentado queixa ao MP, por factos ocorridos num concreto procedimento administrativo.

Do exposto resulta ser certo e seguro que a actuação do arguido se moveu (com ou sem razão, não interessa aqui) no âmbito do seu direito de petição e acção, pugnando por aquilo que julga ser o seu direito. Nesta medida, imputar uma ou várias ilegalidades a uma entidade pública, através dos meios processuais e procedimentais adequados, não pode de forma alguma ser um crime.

ii) denúncia caluniosa
Relativamente a este denunciado crime, o recorrente destaca a parte em que o arguido, na aludida queixa ao IGAT, diz estar convencido “que a causa das violações e da associação entre prevaricadores e Câmara Municipal é gerada por influência dos financiadores das campanhas autárquicas e outras, os quais controlam totalmente o poder político local”. Daí que tenha requerido a “investigação policial às coisas subjacentes à violação culposa dos instrumentos de ordenação territorial…”.

Para que exista este crime, é necessário que o agente tenha “consciência da falsidade da imputação”. Não basta assim (como defende o recorrente) não existir decisão definitiva sobre as acções administrativas onde se impugna a legalidade da actuação dos órgãos da autarquia. O arguido pode não ter razão, mas julgar que tem, do mesmo modo que a Administração pode cometer ilegalidades e estar convencida do contrário. O que é relevante (repete-se) não é esse aspecto, mas sim o da consciência da ilicitude (que aqui é um elemento subjectivo do tipo), traduzida na consciência de que se imputa a alguém um facto criminoso falso, apenas com a finalidade de ser instaurado um procedimento.

Se atentarmos na denúncia feita, o arguido diz-se convencido de que existe uma associação entre as ilegalidades apontadas e “os financiadores das campanhas autárquicas e outras”, requerendo uma “investigação policial”. O seu comportamento é adequado a esse convencimento, designadamente quando se dirige ao MP e pede a dissolução da Câmara e a perda de mandato de um vereador. Não indica, é certo, factos que possam justificar a bondade do seu convencimento, mas pede uma investigação policial.
Há assim elementos seguros para podermos considerar não verificado o referido elemento do tipo (consciência da falsidade da imputação), pelo que também nesta parte bem andou a decisão recorrida, não pronunciando o arguido.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Porto, 9 de Maio de 2007
Élia Costa de Mendonça São Pedro
António Eleutério Brandão Valente de Almeida
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves