Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1245/11.3TBVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: ERRO SOBRE A ILICITUDE
NEGLIGÊNCIA
ARMA DE ALARME
Nº do Documento: RP201211071245/11.3TBVLG.P1
Data do Acordão: 11/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Deverá ser punido a título de negligência o agente que desconhece a proibição legal devido a uma falta de informação ou de esclarecimento se, podendo e devendo fazê-lo, se desleixou na recolha de informação.
II - Se, pelo contrário, a ignorância resulta de uma atitude de contrariedade ou de indiferença perante o dever-ser, então há uma deficiência da própria consciência ética do agente que lhe não permite apreender corretamente os valores jurídico-penais e, por isso, deve ser punido a título de dolo.
III - A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material ainda não esteja devidamente sedimentada na consciência ético-social, quando a concreta questão “se revele discutível e controvertida”.
IV – É patente a falta de consciência da ilicitude não censurável do agente que adquiriu a arma [arma de alarme] quando sabia que a sua aquisição era legal e desconhece que, posteriormente, o legislador entendeu dever “criminalizar” tal conduta.
V - O especial dever de informação só existe “para aqueles que pertencem ao setor da vida a quem se destina a correspondente regulamentação especial”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso 1245/11.3TBVLG.P1
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Acordam no tribunal da Relação do Porto

Nos autos de recurso contra-ordenacional supra identificados, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo, veio o arguido B…, residente na Rua …, Lote .., .° Esq. Traseiras, Valongo, a ser absolvido da prática da contraordenação p. e p. pelo artigo prevista e punida pelo artigo 97° da Lei n° 5/2006, de 23.2., pela qual tinha sido condenado na coima de €600,00.

Não conformada, a Ex.ma Magistrada do MP interpôs recurso e extraiu da sua motivação as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida padece do vício de falta de fundamentação, por violação do disposto no art. 374°, n° 2 do C.P.P., devendo ser a mesma declarada nula nos termos do art. 379°, n° l, al. a) do C.P.P., com as consequências legais previstas no art. 122° do mesmo diploma, uma vez que a fundamentação invocada pela Meritíssima Juíza a quo é manifestamente inconsistente e insuficiente para fazer sustentar as conclusões exaradas na factualidade provada e não provada de que o arguido desconhecia que actualmente a detenção de armas de alarme é proibida e que como tal o arguido não agiu de forma dolosa.
2. Isto porque o Tribunal recorrido baseou a sua convicção nas declarações do recorrente, o qual referiu quando adquiriu a arma em causa e para que efeito e que na altura a mesma era legal, não mais tendo pegado nela até à data, tendo sustentado ainda a sua dúvida quanto ao conhecimento ou não da proibição da detenção da arma de alarme, na circunstância do arguido ter adquirido a arma em 1989, altura em que a sua detenção não era ainda proibida, ao contrário do que sucede hoje.
3. Ora, a circunstância do arguido ter adquirido a arma em causa num período temporal em que a sua detenção não era proibida e de, entretanto, face às alterações legislativas ocorridas, tal detenção o ter passado a ser, não é suficiente para fazer nascer a dúvida sobre o conhecimento ou não desta proibição por parte do arguido, tanto mais que resulta do teor do recurso de impugnação judicial interposto pelo arguido, que em nenhum momento o mesmo contestou que cometeu a referida contraordenação (antes a tendo admitido) ou que desconhecia que a detenção da arma de alarme era proibida.
4. Sem prescindir, a Meritíssima Juíza a quo deu como provado que “No dia 07.09.2009, pelas 19h25m, na Rua …, n° .., .° Esq. Traseiras, Valongo, ameaçou a sua esposa C…, residente na Rua …, lote .., com uma arma de alarme (classe A) com carregador, sem número de série, marca F. T. (Fratelli Tanfoglio), MOd. …, calibre 8MM, com cano obstruído, com orifício na parte superior para a saída de (gases), resultantes da deflagração de cartuchos de alarme, com carregamento por carregador com capacidade para seis cartuchos metálicos carregados sem projétil, de percussão central, com cão, de cor preta e de fabrico italiano, tem a configuração de uma «pistola», arma de fogo curta, encontrando-se em bom estado de conservação e bom funcionamento, tendo confirmado ser sua propriedade, tendo vindo a ser entregue pela vítima aos agentes da PSP que se deslocaram ao local a pedido desta, vindo a arma a ser apreendida no local da ocorrência” (ponto l dos factos provados) e que “O arguido tinha adquirido a arma em 1989 como medida de segurança, altura em que a sua aquisição era livre, desconhecendo que actualmente a sua detenção é proibida” (ponto 2),
5. E como não provado que “O arguido agiu dolosamente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida por lei”.
6. Do texto da decisão recorrida e maxime da sua linha de raciocínio, resulta que não foi nem efectiva nem implicitamente indagado e ponderado na douta sentença a quo, se o arguido agiu com negligência, antes se tendo concluído que, perante o afastamento do dolo imputado na decisão administrativa, ao qual se cingiu a decisão recorrida, então importava, necessariamente, decidir-se pela absolvição do arguido.
7. Afastada a possibilidade de comissão do ilícito contra-ordenacional em apreço com dolo directo, o julgador não pode limitar-se a dar como não provado esse tipo de actuação, mas deve, outrossim, indagar se o arguido agiu com negligência, dado que se trata de um caso em que a punibilidade desta está expressamente prevista (cfr. arts. 8°, n.° l do RGCO e 104º, n.º 1 da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro).
8. A sentença recorrida padece, por isso e em nosso modesto entender, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410°, n° 2, al. a) C.P.P. e não sendo possível decidir a causa, impõe-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à questão concretamente identificada, ou seja, apurar se o arguido cometeu a aludida contraordenação a título negligente (nas duas modalidades de negligência).

Não foi apresentada resposta.

Nesta Relação, a Ex.ma PGA emite douto parecer no qual se limita a afirmar que “Assiste, em nosso entender, total razão ao Ministério Público na lª instância, pelo que o acompanhamos, subscrevendo integralmente a sua muito bem elaborada motivação, onde de forma clara explana os argumentos que sustentam a sua tese, nada mais se nos oferecendo, por isso, acrescentar”.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

A Sr. Juiz considerou provado:
1. No dia 07.09.2009, pelas 19h25m, na Rua …, n°.., .° Esq. Traseiras, Valongo, ameaçou a sua esposa C…, residente na Rua …, lote .., com uma arma de alarme (classe A) com carregador, sem número de série, marca F.T. (Fratelli Tanfoglio), Mod. …, calibre 8MM, com cano obstruído, com orifício na parte superior para a saída de (gases), resultantes da deflagração de cartuchos de alarme, com carregamento por carregador com capacidade para seis cartuchos metálicos carregados sem projéctil, de percussão central, com cão, de cor preta e de fabrico italiano, tem a configuração de uma «pistola», arma de fogo curta, encontrando-se em bom estado de conservação e bom funcionamento, tendo confirmado ser sua propriedade, tendo vindo a ser entregue pela vítima aos agentes da PSP que se deslocaram ao local a pedido desta, vindo a arma a ser apreendida no local da ocorrência.
2. O arguido tinha adquirido a arma em 1989 como medida de segurança, altura em que a sua aquisição era livre, desconhecendo que actualmente a sua detenção é proibida.
3. O arguido encontra-se desempregado, aufere de subsídio de desemprego a quantia de €636,00 mensais, vive em casa própria e paga de empréstimo pela aquisição da mesma a quantia de €300,00 mensais, tem um filho de 6 anos que vive com a mãe e paga de pensão de alimentos aquele a quantia de €100,00 mensais.
4. Como habilitações literárias o arguido tem o 6° ano de escolaridade.

E considerou não se ter provado que:
O arguido agiu dolosamente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida por lei.

A Senhora Juiz assim fundamentou a sua convicção relativamente à factualidade provada e não provada:
O Tribunal fundamentou a sua convicção na apreciação crítica e conjugada do conjunto da prova produzida, analisada à luz das regras da experiência comum e da lógica.
Assim, o Tribunal atendeu às declarações do recorrente, o qual referiu quando adquiriu a arma em causa e para que efeito e que na altura a mesma era legal, não mais tendo pegado nela até à data.
Foram ainda considerados os documentos juntos aos autos.
A factualidade não provada fundamentou-se na ausência de prova.
Com efeito, o tribunal ficou com dúvidas quanto ao facto de saber se o arguido efectivamente tinha conhecimento que actualmente a detenção de arma de alarme é proibida por lei, pelo que existindo uma dúvida insanável a mesma terá de ser resolvida, perante o princípio em dúbio pró reo, a favor do arguido.

São duas as questões suscitas no presente recurso:
- A primeira, arguindo a nulidade da sentença por falta de fundamentação já que a M.ª Juiz não podia ter considerado provado que o arguido desconhecia que actualmente a detenção de armas de alarme é proibida e que, como tal, o arguido não agiu de forma dolosa, apenas com base nas declarações do arguido e no princípio do in dubio pro reo.
- A segunda, invocando o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada pois que, afastada a possibilidade de comissão do ilícito contra-ordenacional em apreço com dolo directo, o julgador não pode limitar-se a dar como não provado esse tipo de actuação, mas deve, outrossim, indagar se o arguido agiu com negligência, dado que se trata de um caso em que a punibilidade desta está expressamente prevista.

Conhecendo

É evidente a falta de razão da Ilustre Recorrente quanto à primeira questão.
Estatui o n.º 2 do art.º 374º do CPP:
“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
A lei comina com a sanção da nulidade a sentença que não contiver estas menções – alínea a) do n.º 1 do art.º 379º do CPP.
Como bem refere o STJ[1], “A obrigatoriedade de indicação na sentença das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, estabelecida no art.º 374º, n.º 2 do CPP, destina-se a garantir que na sentença se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo, pois, uma decisão ilógica, contraditória, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova”.
No mesmo sentido aponta Damião da Cunha[2]: “é evidente que a motivação (a fundamentação) da decisão não é - e seguramente que o não será à luz do CPP - um qualquer documento narrativo de todas as operações mentais do juiz (do tribunal), mas sim a fundamentação de uma determinada opção decisória com a indicação das razões probatórias que conduziram, no essencial, a formar a convicção do tribunal”.
Vai ainda no mesmo sentido a posição de Marques Ferreira[3]: “Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão de experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. (…)
A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe inequivocamente o art.º 410º, n.º 2. (…)
E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respectivo efeito pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade”.
Para tanto, diz o STJ, “A sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência”.
A motivação existirá, e será suficiente, sempre que, no que aos autos interessa, uma vez analisada, se apure das razões que levaram o juiz a decidir desta forma e não de outra.

Compulsada a sentença, com facilidade sabemos por que razão a Sr.ª Juiz considerou não provado o elemento subjectivo do tipo objectivo: pelas declarações do arguido e porque, inexistindo outros meios de prova, ficou com dúvidas quanto ao facto em apreciação, razão pela qual fez operar o princípio do in dubio pro reo.
Não é, pois, nula, a sentença por falta de fundamentação.
O que a sentença pode, no entender da Ilustre Magistrada Recorrente, é padecer de erro (que não notório) na apreciação da prova.
Mas isso é questão que não foi suscitada (e não o podia ser) e escapa à sindicância deste Tribunal face ao disposto no n.º 1 do art.º 75º do RGCO.

Já no que diz respeito à segunda questão colocada, a mesma é pertinente e poderia ter acolhimento.
Ponto é que da acusação constassem factos que permitissem apurar que, em vez de agir dolosamente, o arguido havia violado o dever objectivo de cuidado que, no caso, se traduziria no não cumprimento de dever de informação da norma proibitiva.
No entanto, no caso em pareço, a decisão sempre estaria prejudicada porque este é um dos casos em que é patente a falta de consciência do ilícito não censurável atendendo a que o arguido adquiriu a arma quando sabia que a sua aquisição era legal e só posteriormente o legislador entendeu dever “criminalizar” a conduta, tratando-se de “criminalização” questionável, só justificada, ao que nos é dado saber, para evitar que se detenham esse tipo de armas que podem ser transformadas, o que comporta perigo acrescido. E já não pela detenção em si.
A este propósito ensina Figueiredo Dias[4] que “o critério que nos permitirá dizer quando e onde pode falar-se de uma falta de consciência do ilícito não censurável há-de decorrer, na sua expressão mais geral, do que atrás ficou dito sobre o conteúdo material do conceito de culpa jurídico-penal[5] e o sentido da falta de consciência do ilícito àquela luz. Tal falta não censurável sempre que (mas só quando) o engano ou erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamente em uma atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais, pela qual o agente deva responder. Também a personalidade que erra sobre o sentido da valoração jurídica se mantém substancialmente «responsável», parecendo por isso dever arcar com a culpa pelo ilícito-típico cometido. Pode acontecer no entanto que, apesar do «erro de valoração» em que incorreu, a personalidade do agente venha ainda a revelar-se essencialmente conformada com a suposta e exigida pela ordem jurídica. Em casos tais - cujo fundamento repousa assim em uma consideração de certo modo paralela à que serve de base à inexigibilidade (…) – fica excluída a censurabilidade da falta de consciência do ilícito e, por aí, a culpa do agente (art. 17.°-1).
Em número limitado de hipóteses será relativamente simples para o aplicador determinar a existência de uma atitude pessoal juridicamente desvaliosa que impediu a consciência ética de decidir correctamente a questão do desvalor jurídico do facto. Nestes casos terá forçosamente de concluir pela censurabilidade da falta de consciência do ilícito. Tratar-se-á de casos em que é a própria qualidade juridicamente desvaliosa e censurável da personalidade (determinante de um embotamento, insensibilidade ou daltonismo da consciência ética) que vale imediatamente como censurabilidade da falta de consciência do ilícito: seria absolutamente contrário à essência fundante do pensamento da culpa, tal como a revelámos, desculpar um agente cuja «crueldade» lhe não permite aperceber-se da ilicitude de uma omissão de auxílio (art. 200°); ou cuja «brutalidade» obsta a que se aperceba da ilicitude de maus-tratos físicos infligidos a um seu assalariado menor (art. 152º -1a); ou cujo «egoísmo» o impede de concluir pela ilicitude do incitamento de outrem ao suicídio (art. 135°); ou cuja «tendência pedófila» lhe obnubila a consciência da ilicitude do abuso sexual de menor de 14 anos (art. 172°) - mesmo quando pudesse demonstrar-se terem sido precisamente essas características da personalidade que lhe furtaram a «capacidade» de conhecer a ilicitude.
A circunstância, porém, de não ser em muitos casos possível - sobretudo em vista da complexidade da situação e da discutibilidade da valoração jurídica - determinar positivamente a existência de uma qualidade pessoal censurável na origem da falta de consciência do ilícito não significa que, por isso, deva logo concluir-se pela negação da culpa. Pelo contrário, já atrás dissemos que a ligação do dolo de tipo a uma falta de consciência do ilícito e, portanto, a um erro de consciência ética, indicia a existência de uma culpa material e, na verdade, de uma culpa dolosa. O que falta acrescentar (e justificar) agora é que um tal valor indiciário pode ser invalidado se se lograr a comprovação de que, apesar daquela conexão, a atitude que fundamenta o facto é ainda determinada por pontos de vista de valor que a ordem jurídica reconhece e protege; de que, por outras palavras, apesar daquela conexão, no agente persistiu uma recta consciência e ético-jurídica, fundada em uma atitude e de fidelidade ou de correspondência a exigências ou pontos de vista de valores juridicamente reconhecidos”.
Em outro local, pergunta o mesmo Autor[6]: “Mas qual então a diferença de culpa que permite distinguir um erro que exclui o dolo e outro que o não exclui, mas exclui a culpa sempre que não for censurável?”.
E responde:
“(…) é, resumidamente, a seguinte: o erro excluirá o dolo sem­pre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência-ética do agente para o desvalor do ilícito; diversamente, o erro deixará persistir o dolo sempre que, detendo embora o agente todo o conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, actua todavia em estado de erro sobre o carácter ilícito do facto: neste caso o erro não radica ao nível da consciência-psicológica (ou consciência-intencional, BewuBtsein em alemão), mas ao nível da própria consciência-ética (ou consciência dos valores, Gewissen em alemão), revelando a falta de sintonia entre ela e a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger. Por outras palavras: no primeiro caso estamos perante uma deficiência da consciência-psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, conforma o tipo específico de censura da negligência. Diferentemente, no segundo caso estamos perante uma deficiência da própria consciência-ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, conforma o tipo específico de censura do dolo”.
Afirma Taipa de Carvalho[7], criticando a solução legal vigente: “(…) o desconhecimento da proibição legal, em rigor não pode excluir o dolo do tipo, pois que este se define como conhecimento e vontade de realizar o facto descrito no tipo legal; portanto, este dolo do tipo ou da factualidade típica não parece ter nada que ver com a proibição legal do facto típico. A proibição legal é proibição (materializada no próprio tipo legal) do facto, e não elemento do próprio facto, e, portanto, não é elemento do tipo legal. Donde que é estranho ao dolo do facto típico o conhecimento da proibição legal. E, portanto, o erro sobre a proibição legal não devia excluir o dolo da factualidade típica.
Que seja razoável que, em certos casos, se exija o conhecimento da proibição legal (que é o próprio tipo legal) para que se possa afirmar a culpa, está certo, mas não com base em que não há dolo do tipo, mas sim em que não há culpa, pura e simplesmente, a não ser que fosse exigível ao agente (por força da sua própria actividade, profissão, etc.) que conhecesse a proibição legal (que está materializada no próprio tipo legal). E, assim, se fosse cen­surável (culposo) o desconhecimento ou erro sobre a proibição legal, o agente seria punível por crime doloso; se tal erro fosse considerado não censurável (não culposo), pura e simplesmente não seria punido. Isto é, nesta hipótese o erro sobre a proibição legal seria tratado como erro sobre a ilicitude.
Mas reconheço que a questão do erro sobre a proibição legal pode, em relação a condutas cuja ilicitude material ainda não está sedimentada na consciência ético-social, ter um tratamento híbrido, visto que também este erro é como que uma figura intermédia entre o erro sobre a factualidade típica e o erro sobre a ilicitude. Isto é, nem é erro sobre a factualidade, nem é erro sobre a ilicitude material do facto, E, assim, parece, politico-criminalmente razoável que, apesar de existente e afirmado o dolo do tipo de ilícito (ilícito doloso), possa o agente ser punido por culpa negligente (relativamente a esse ilícito doloso), quando (obviamente, não conhecendo a proibição legal) for censurável esse desconhecimento da proibição legal”.
E acrescenta noutro passo[8]:
“(…) o erro sobre a ilicitude será censurável, ou não, consoante ele próprio seja, ou não, revelador de uma personalidade (de uma atitude ético-pessoal jurídica) indiferente perante o dever-ser jurídico-penal, isto é, perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente”.
Qualquer que seja a posição defendida, sempre o resultado será o mesmo no caso em análise.
A ignorância da lei, é verdade, a ninguém aproveita e, por isso, o erro, à partida, é censurável.
Na realidade, quando o agente desconhece a proibição legal devido a uma falta de informação ou de esclarecimento deverá ser punido a título de negligência se, podendo e devendo fazê-lo, se desleixou na recolha da informação.
Se, pelo contrário, a ignorância resulta de uma atitude de contrariedade ou de indiferença perante o dever-ser, então há uma deficiência da própria consciência-ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e, por isso, deve o agente ser punido a título de dolo.
A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material ainda não esteja devidamente sedimentada na consciência ético-social, quando a concreta questão “se revele discutível e controvertida”[9].
O que sucede no caso em apreço.
Com efeito, o comum dos cidadãos em Portugal ainda hoje ignora que é proibido deter uma arma de alarme, conclusão a que se chega se se fizer essa pergunta a um qualquer transeunte, e também a uma qualquer pessoa de formação idêntica à do arguido.
Mesmo alguns juristas ainda hoje ignoram a proibição.
Por outro lado, o próprio legislador só recentemente entendeu que devia proibir a conduta pois que nenhum preceito legal a proibia até à publicação da Lei 5/2006, de 23/2.
Acresce que o especial dever de informação só existe, na lição de Jescheck[10], “para aqueles que pertencem ao sector da vida a quem se destina a correspondente regulamentação especial”.
Que se conheça, o arguido não pertence a nenhuma classe profissional que tenha especial obrigação de conhecer a proibição de que o uso de arma de alarme é proibido. Como a Lei, de resto, não foi elaborada a pensar em nenhum sector da vida em particular.

Do que vem de ser dito se conclui que não há lugar ao reenvio do processo para novo julgamento (se a acusação permitisse apurar a violação do dever objectivo de cuidado) porque sempre estaríamos perante um caso de falta de consciência da ilicitude não censurável e, por isso, tratar-se-ia de acto inútil que a lei proíbe.

Improcedem, pois, todas as conclusões da motivação.

DECISÃO:
Termos em que, na improcedência do recurso, se mantém e confirma a douta sentença recorrida.
Sem tributação por dela estar isenta o MP.

Porto, 7 de Novembro de 2012
Francisco Marcolino de Jesus
Élia Costa de Mendonça São Pedro
_________________
[1] Acórdão de 30/4/92, proc. 42544, citado pelos Drs. Leal Henriques e Simas Santos, “Código de Processo Penal Anotado”, II vol
[2] O caso julgado parcial, Publicações da Universidade Católica, Porto 2002, p. 104
[3] Jornadas de Direito Processual Penal, Edição do CEJ, Almedina 1997, pgs. 229 e 230
[4] Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pp [585-587]
[5] Segundo o Autor, citado pelo Prof. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Publicações da Universidade Católica, Porto 2006, vol. II, p. 302, tal conceito implica a censura que se faz ao agente do facto ilícito porque a sua personalidade ético-jurídica não cumpriu o mandato existencial de conformação-construção do seu ser, da sua pessoa, de acordo com as exigências ético-sociais consideradas fundamentais e indispensáveis à vida em comunidade
[6] Temas básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001, pp. [290,291]
[7] Direito Penal, Parte Geral, Publicações da Universidade Católica, Porto 2006, vol. II, pp. [159, 160]
[8] Idem, p. 328
[9] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, p. 588
[10] Tratado de Derecho Penal, Editorial Bosch, I vol., p. 631