Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1087/11.6PCMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: ACUSAÇÃO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
QUESTÃO JURIDICAMENTE CONTROVERTIDA
Nº do Documento: RP201207111087/11.6PCMTS.P1
Data do Acordão: 07/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.
II - Os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado.
III - Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz no despacho do artigo 311º do CPP não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente.
IV - No caso dos autos o pomo da discórdia reside na destrinça entre o que se considera como mal futuro e como mal iminente.
V - Enquanto que uns consideram que, quando o anúncio é de um mal iminente, não há crime de ameaça, outros entendem que o mal iminente, embora esteja próximo, é ainda um mal futuro e a pedra-de-toque para distinguir o que é ameaça e o que são actos de execução de outro ilícito criminal que o agente tenha “decidido cometer” (art. 22° n° 1 do C. Penal ) estará na intenção que presidiu à conduta em questão.
VI - Para os primeiros, os factos descritos na acusação em análise não constituirá crime; já não assim para os segundos.
VII – Porque só em sede de julgamento deve ser ponderado o entendimento a seguir, não pode ser rejeitada a acusação por manifestamente infundada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal nº 1087/11.6PCMTS.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Na sequência do inquérito que correu termos nos serviços do MºPº de Matosinhos, o MºPº deduziu acusação contra o arguido B…, devidamente id. nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de ameaça p. e p. pelos art. 153º e 155º nº 1 al. a) do C. Penal e 86º nº 3 da Lei nº 5/2006 de 23/2.
Distribuídos os autos ao 4º juízo criminal do T.J. de Matosinhos, o Sr. Juiz proferiu despacho rejeitando a acusação, por a considerar manifestamente infundada.
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o MºPº, pretendendo a sua revogação e substituição por outra que receba a acusação e ordene o prosseguimento dos autos, formulando as seguintes conclusões:

1.°
O presente recurso incide sobre o despacho proferido ao abrigo do disposto no art.° 311.°, do Código de Processo Penal, que rejeitou a acusação deduzida nestes autos contra B…, por considerar que a mesma é manifestamente infundada, nos termos do art.° 283.°, n.° 3, al. b) e do art.° 311, n.° 2, al. b) e n.° 3, al. d), todos do Código de Processo Penal, por não conter os factos adequados a imputar ao arguido o crime de ameaças p. e p. no art.° 153.° e 155.°, n.° 1, al. a) do Código Penal.
2.°
No crime de ameaças, o dolo do agente é constituído por:
- a vontade de proferir certas expressões, consciente de que as mesmas anunciam um mal que constitui a prática de um crime;
- a consciência de que as expressões proferidas são adequadas a provocar receio ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do visado.
3.°
O despacho de acusação contém estes elementos de facto, quando diz que o arguido agiu voluntária, livre e conscientemente e quando refere que o arguido sabia que as suas palavras e actuação eram adequadas a causar medo e inquietação na pessoa do ofendido.
4.º
Por outro lado, se o tribunal entende que o mal anunciado só pode ser entendido como um mal futuro, então a consciência e a vontade do anúncio do mal, necessariamente se referem a um mal futuro.
5.°
O mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer.
6.°
Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu.
7.°
Sendo o mal iminente poderemos estar perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento.
8.°
Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.
9.°
Tudo depende da intenção do agente.
10.°
É que, para haver tentativa não basta a prática de actos de execução é necessário que esses actos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22°, n.°l, do Código Penal).
11.°
A acusação refere expressamente que a intenção do agente era de causar receio e inquietação na pessoa do ofendido.
12.°
Ora, se era esta a sua intenção, então o tribunal não tinha fundamento para considerar que a expressão proferida, acompanhada do empunhar da arma, traduz um acto de execução de um mal, ou seja, um acto de execução de um crime de homicídio ou de ofensas à integridade física.
13.°
A acusação, tal como está formulada, não pode ser considerada manifestamente infundada, pois contém todos os elementos de facto necessários ao preenchimento do tipo legal de crime que imputa ao arguido.
14.°
Por isso, o despacho recorrido violou o disposto no art° 153.°, do Código Penal e 311 n.° 2, al. d) do Código de Processo Penal, ao interpretar incorrectamente os elementos típicos do crime de ameaças, quer objectivos quer subjectivos, concluindo pela sua não verificação, tal como descritos na acusação.
15.°
Violou igualmente o disposto no art.° 311.°, n.° 2, al. b) e 283.°, n.° 3, al. b), ambos do Código de Processo Penal, ao considerar a acusação manifestamente infundada por falta de narração dos factos.

Não foi apresentada resposta.
O recurso foi admitido.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto limitou-se a apor visto.
Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre decidir.

2. Fundamentação
É do seguinte teor a acusação deduzida pelo MºP e que foi objecto de rejeição:

No dia 19/08/11, pelas 19:30 horas, na Rua …, em …, Matosinhos, na sequência de uma discussão mantida com o ofendido, C…, o arguido deslocou-se ao interior da sua residência, e saiu logo depois empunhando uma arma de alarme transformada em arma de fogo, da marca …, melhor descrita a fls. 15.
O arguido apontou a arma ao ofendido ao mesmo tempo que dizia “eu mato-te, vou desgraçar a minha vida mas mato-te”.
O ofendido, juntamente com outras pessoas que se encontravam no local, refugiou-se atrás de um automóvel que ali se encontrava estacionado.
Nessa altura, o arguido efectuou um disparo na direcção de um portão que ficava a cerca de 10 metros do local onde aquele se encontrava escondido.
O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo que as suas palavras e actuação eram adequadas a causar medo e inquietação na pessoa do ofendido, como aliás era sua intenção.
Cometeu, pelo exposto, como autor material, um crime consumado de ameaças, p. e p. no art.° 153.°, e 155.°, n.° l, al. a), e 86.° n.° 3, da Lei 5/2006.

E é do seguinte teor o despacho recorrido:

O Tribunal é competente.
**
Da acusação manifestamente infundada: O arguido B… vem acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de ameaça p. e p. pelos arts. 153.° e 155.°, n.° 1, al. a), do CP.
Ora, a acusação do Ministério Público ou do assistente tem, conforme resulta dos arts. 283.°, n.° 3, al. b), e 285.°, n.° 3, do CPP, de narrar os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, sob pena de nulidade e rejeição da acusação, nos termos do art. 311.°, n.° 2, al. a), e n.° 3, al. d), do CPP.
Aliás, em obediência aos princípios basilares do processo penal, a solução legal referida para a acusação que não contenha os factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos típicos de um crime imputáveis ao arguido não pode ser outra, na medida em que a acusação, seja pública, seja particular, fixa o objecto do julgamento, delimitando a actividade de cognição a desenvolver pelo tribunal, de tal forma que, nos termos do art. 379.°, n.° 1, al. b), do CPP, é nula a sentença que, entre outros, condene o arguido por factos diversos dos descritos na acusação. Além disso, a fixação do objecto do processo com base na acusação, nos termos referidos, está também interligada com o direito de o arguido se defender das imputações que lhe são feitas (cfr art. 61.°, n.° 1, ais. b) e f), do CPP, e art. 32.° da Constituição da República Portuguesa), o que passa pela informação, em detalhe, dos factos objectivos e subjectivos que lhe são imputados e os termos em que tal é feito, conforme decorre do art. 6.° da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, na perspectiva em que aqui se consagra o direito de o acusado poder, desde logo, preparar a sua defesa.
O esquema legal delineado segue, assim, a estrutura acusatória que enforma o processo penal português, por imposição constitucional (art. 32.°, n.° 5, da Constituição da República Portuguesa).
Deste modo, quando os factos relatados na acusação não integram os elementos objectivos e subjectivos de um tipo criminal ou quando não são imputados factos que constituam crime, a prolação de sentença por outros factos que, por si ou conjugados com aqueles, integrassem um crime traduziria uma alteração substancial dos factos, conforme decorre do disposto no art. 1.°, al. f), do CPP, o que, consequentemente, determinaria a nulidade dessa decisão (art. 379.°, n.° 1, al. b), do CPP).
É certo que a lei apenas exige que a acusação narre sinteticamente os factos, conforme dispõe o art. 283.°, n.° 3, al. b), do CPP. No entanto, o facto de a narração poder ser sintética não significa que possa reconduzir-se a meras conclusões ou conceitos jurídicos, sem tradução factual. Exige-se, pelo contrário, que sejam narrados os factos susceptíveis de integrar algum tipo criminal, não bastando, de forma alguma, a alegação da descrição típica do preceito criminal e a identificação conclusiva da factualidade. Se assim não for, para além do vício processual em si mesmo, verifica-se também a frustração do direito de defesa do arguido, o qual fica sem saber do que, em concreto, está a ser acusado.
Acontece que, revertendo ao caso dos autos, a acusação do Ministério Público não contém factos adequados a integrar o tipo de crime de ameaça pelo qual o arguido vem acusado.
Concretizando:
Segundo o art. 153.°, n.° 1, do CP comete o crime de ameaça, “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação...”.
Através da incriminação da ameaça, pretendeu o legislador reprimir juridico- penalmente os ataques ou afectações ilícitas da liberdade individual, acolhendo-a como bem jurídico intrassocial, e tutelando-a enquanto interesse jurídico individual e próprio de cada indivíduo à imperturbada formação e actuação da sua vontade, à possibilidade de, nas múltiplas formas de interacção social, tranquilamente se conformar e dispor de si mesmo, dentro dos limites traçados pela lei.
Do ponto de vista da conduta descrita e no sentido que interessa ao preenchimento do tipo legal, ameaçar corresponde ao acto de prometer ou pronunciar um mal futuro, anunciando, de modo explícito ou implícito, a intenção de causar uma determinada ofensa na esfera jurídica de outrem, consistente em danos físicos, económicos ou morais, necessariamente futuros. Posto é que, ao olhos do homem comum, dotado das características individuais do ameaçado, a concretização futura do mal anunciado seja credível e dependa ou apareça dependente da vontade do agente.
Nesta parte, importa precisar que a exigência da natureza “futura” do mal anunciado para o preenchimento do tipo de crime de ameaça afasta a punição por este crime das condutas que impliquem o anúncio de um mal iminente, podendo estas, quanto muito, integrar a prática de um crime na forma tentada, se o anúncio for acompanhado de algum acto de execução, porventura de ofensa à integridade física ou de homicídio, conforme, aliás, vem sendo defendido na generalidade da jurisprudência e doutrina.
Revertendo ao caso dos autos, de relevante, a acusação imputa ao arguido o alegado facto de este, durante uma discussão, ter apontado uma arma de fogo ao visado, dizendo- lhe que o matava, o que fez com intenção de causar medo e inquietação.
Atenta a qualificação jurídica do crime de ameaça, em especial na parte em que se alude à distinção entre “mal futuro” e “mal iminente”, os factos da acusação implicam a conclusão de que o mal anunciado assumia características de iminente, sem revelar, explícita ou implicitamente, uma “perpetuação” do anúncio. Note-se que a imagem global dos factos descritos na acusação revela notoriamente que o anúncio do arguido se dirigia ao exacto momento em que empunhou a arma, e como tal também foi entendido pelos presentes, dado que se terão escondido atrás de um automóvel.
Assim sendo, impõe-se a conclusão de que o bem jurídico protegido pela norma incriminadora, no caso, a liberdade de actuação futura do visado, não resulta atingido pelos factos descritos na acusação.
De facto, fazer, durante uma discussão, menção de atingir alguém com um objecto ou com um tiro, anunciando que se vai utilizar uma arma que se empunha, sem mínimo indício de perpetuidade do “anúncio” de agressão, configura o mero aviso de uma agressão imediata, com possíveis (se concretizado o anúncio) repercussões na vida ou integridade física do visado, mas não significa objectiva e necessariamente um anúncio de actos futuros.
Nesta parte, importa precisar que o que releva para a integração jurídica da conduta do arguido, mais concretamente para integração do conceito de “anúncio de mal futuro” não é propriamente a intenção do agente e a consequência para o visado. Na verdade, o que releva para este efeito é a conduta objectiva do arguido, e esta traduz apenas o anúncio, traduzido em actos de execução, de um mal iminente, mas não futuro.
Refira-se ainda que, quanto ao “anúncio de mal futuro”, seguindo o entendimento de que a natureza futura do mal ameaçado constitui um elemento típico do crime, deve salientar-se que tal elemento, que é objectivo, não se confunde com o elemento subjectivo do crime, no caso, o dolo. Uma coisa é a qualificação objectiva do anúncio, outra é a intenção do agente que está na base do anúncio, ainda que, é verdade, a significação objectiva das expressões/gestos dependa em grande medida da interpretação do sentido que se extrai, nomeadamente, da intenção do agente, mas, note-se, da intenção do agente que pode ser captada pelo teor do anúncio/gesto ou pelas circunstâncias em que esse anúncio/gesto é avançado. Ou seja, quando o agente diz que vai agredir ou matar o visado ou traduz esse anúncio em gestos, tal expressão ou gesto, por si só, não permite qualificar objectivamente o anúncio como ameaça de mal futuro ou de mal iminente. Mas, se esse anúncio/gesto é acompanhado ou traduz um acto de execução de um crime iminente, nomeadamente de ofensa à integridade física ou à vida, a natureza do anúncio/gesto que pode ser objectivada é somente a de uma ameaça de mal iminente, salvo se forem descritas outras circunstâncias que apontem no sentido contrário, circunstâncias essas que, a existirem, têm de estar descritas na acusação, a fim de se poder concluir pela natureza futura do mal anunciado, ou seja, pelo preenchimento dos elementos objectivos do crime de ameaça, o que não sucede no caso da acusação dos autos, que se limita a descrever a factualidade já referida.
Além disso, em rigor, seguindo o mesmo entendimento, a acusação também não descreve o elemento subjectivo do crime de ameaça, sendo certo que o dolo que é exigido é aquele que respeita aos elementos objectivos do crime. Nesta parte, importa salientar que não é propriamente a intenção (ou a consciência do efeito necessário ou a previsão e conformação, seguindo as várias modalidades do dolo) de causar medo que relevam, pois que estes resultados não constituem elementos do tipo, que até é de perigo (abstracto- concreto), mas sim a intenção de anunciar um mal que seja futuro e que se mostre adequado a, face às circunstâncias concretas da situação - que têm de estar descritas na acusação, para se concluir pelo preenchimento de todos os elementos típicos do crime a provocar o tal medo ou inquietação futuros, na sequência da natureza do bem jurídico tutelado, a liberdade pessoal. Ora, lendo a acusação, o que esta descreve é, objectivamente, um anúncio/gesto de mal iminente, para além de que também não descreve que a intenção do agente fosse anunciar que, no futuro, que não naquele exacto momento em que actuou, iria agredir ou matar o visado.
O facto de a intenção do agente ser amedrontar o visado não é suficiente para se julgar preenchidos os elementos objectivos do crime de ameaça, pois tal implicaria desconsiderar a relevância do elemento objectivo do crime, ainda que seja suficiente para afastar a integração de um qualquer crime tentado, na medida em que este exige o dolo de resultado. E mesmo o facto de, eventualmente - o que, diga-se não consta da acusação - o visado poder ter ficado com receio de uma futura ofensa também não é suficiente para se considerarem preenchidos os elementos típicos do crime de ameaça, pois, mais uma vez, antes de se atribuir relevância ao resultado, importa sempre verificar a existência de um anúncio de mal futuro, como elemento objectivo do tipo.
É certo que o entendimento preconizado pelo tribunal implica que algumas condutas socialmente censuráveis - fazer menção de agressão ou de homicídio, com mera intenção de amedrontar no momento o visado, o que pode até passar pelo apontar de armas - possam ficar impunes do ponto de vista criminal, mas este resultado é o que decorre do espírito do legislador que transparece da própria letra da lei e da unidade do sistema jurídico, seguindo as regras de interpretação das normas. Note-se, por exemplo, que o próprio legislador expressou, de forma clara, a sua intenção de não punir criminalmente as tentativas de ofensa à integridade física, como resulta do disposto nos arts. 23.°, n.° 1, e 143.° do CP, ainda que estas condutas sejam naturalmente censuráveis e até gravosas do ponto de vista dos potenciais resultados para a vítima, mesmo ao nível do receio de futuras ofensas. E, aliás, este exemplo serve também para ilustrar a fundamentação do tribunal sobre o preenchimento ou não dos elementos típicos do crime de ameaça e ainda para fundamentar o entendimento de que, quando existe um anúncio de mal dirigido a outrem, nomeadamente de ofensa à integridade física ou à vida, não tem de existir sempre um crime, seja o crime de ofensa/homicídio tentado, seja o crime de ameaça consumado. Recorrendo a um exemplo prático ilustrativo, por exemplo, se alguém faz o movimento com o braço típico de quem vai desferir uma estalada noutra pessoa, acompanhada da expressão “vou-te bater” - ainda que o uso da expressão seja irrelevante, face ao gesto de claro início objectivo de acto tendente a ofender o corpo do visado -, e se, quase a chegar ao corpo, porque a intenção do agente era somente atemorizar e intimidar o visado, evita o impacto, esta conduta não integra qualquer crime, nem mesmo um eventual “crime tentado não punível”, sem entrar na questão da relevância da desistência da tentativa. Não integra o crime de ameaça, pois que o anúncio é de mal iminente - a não ser que se verifiquem outras circunstâncias que revelem um efeito prolongado no tempo do anúncio sem potencialidade de afectar o bem jurídico, ou seja a liberdade pessoal do visado; e nem sequer integra a tentativa do crime de ofensa à integridade física (não punível por força do art. 23.°, n.°, 1, do CP), pois inexiste o dolo de ofensa. Por conseguinte, seguindo esta linha de raciocínio, mesmo do ponto de vista da coerência e da unidade da ordem jurídica, seria incongruente que, tendo por base aquele mesmo exemplo supra referido, o agente que pretendesse agredir e só não o conseguisse porque o visado se desviou, não fosse punido (porque, como se disse, a tentativa do crime de ofensa à integridade física não é punível), enquanto que o agente que apenas pretendesse atemorizar o visado com o gesto, mas que nunca teve intenção de agredir, já fosse punido, ainda que pelo crime de ameaça.
Nesta sequência argumentativa pode mesmo ser enquadrado o caso dos autos, pois que, se o arguido tivesse tentado atingir o visado com um tiro e não o tivesse conseguido (independentemente da razão) e não fosse caso para se considerar a sua conduta como integradora do crime de ofensa à integridade física qualificado tentado (arts. 145.° e 132.°, n.° 2, do CP) - note-se que a qualificação do crime não é automática perante o preenchimento de alguma das circunstâncias previstas no art. 132,°, n.° 2, do CP, mas exige ainda a verificação do elemento “especial censurabilidade ou perversidade”) -, a sua conduta não seria punível, pois integraria o já referido “crime” de ofensa à integridade física simples tentado não punível, mesmo admitindo que o mero acto de tentar agredir é adequado a fazer o visado recear pela agressão iminente. Ora, se não é punível a conduta de quem tenta agredir efetivamente outrem, fazendo-o naturalmente recear por uma agressão iminente, muito menos deve ser punível a conduta de quem não tenta e não quer agredir, mas apenas atua de modo adequado a provocar o receio de agressão iminente, como se relata na acusação ter sucedido quanto à conduta do arguido.
Em suma, serve tudo o exposto para se concluir que o anúncio/gesto de mal iminente contra a integridade física ou a vida, quando a intenção do agente é a de apenas provocar medo ou inquietação, não é criminalmente punível, seja pelo crime de ameaça, seja por qualquer outro tipo criminal, tentado ou consumado.
Em todo o caso, apesar do exposto, a conduta relatada na acusação tem sempre relevância criminal no âmbito dos crimes de perigo comum, como é o caso do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.° da Lei n.° 5/2006, de 23.02, o que estará em discussão noutros autos (cfr. fls. 10 e ss.) e, portanto, não se cura de ser analisada no presente processo.
Concluindo, reitera-se que, no que poderia relevar, a acusação não contém factualmente descrito o elemento objectivo do crime de ameaça “anúncio de mal futuro” e o dolo referente a este elemento objectivo.
Por conseguinte, a acusação mostra-se desprovida de base factual imprescindível à integração do crime de ameaça pelo qual o arguido vem acusado, não narrando, ainda que de forma sintética, os factos susceptíveis de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena por esse crime, infringindo o disposto no já referido arts. 283.°, n.° 3, al. b), do CPP, com a consequente nulidade e rejeição da acusação, por manifestamente infundada, nos termos do art 311.°, n.° 2, al. a), e n.° 3, al. d), do CPP.
Decisão.
Nestes termos, atentos os princípios e os preceitos legais expostos, por manifestamente infundada, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 35 e ss. contra o arguido B… pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelos arts. 153.° e 155.°, n.° 1, al. a), do CP.
Notifique.

3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões suscitadas pelo recorrente reconduzem-se à de determinar se a descrição fáctica vertida na acusação pública preenche, ou não, todos os elementos típicos do crime de ameaça cuja prática ao arguido nela foi imputada.
O recorrente considera que o despacho recorrido, ao rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada por falta de narração de factos, interpretou incorrectamente os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de ameaças, violando o disposto nos arts. 153º do C. Penal e 311º nº 2 al. b) e 283º nº 3 al. b), ambos do C.P.P. Em seu entender, e ao contrário do que ali foi considerado, o despacho de acusação contém todos os elementos de facto necessários ao preenchimento do tipo legal de crime cuja prática nela vem imputada ao arguido. Por um lado porque, quando diz que o arguido agiu voluntária, livre e conscientemente e refere que o mesmo sabia que as suas palavras e actuação eram adequadas a causar medo e inquietação na pessoa do ofendido, contém todos os elementos de facto necessários à descrição do dolo requerido pelo tipo. Por outro, porque o mal iminente não deixa de ser um mal futuro e o que distingue a existência de ameaça da tentativa de execução do mal anunciado é a intenção do agente, e, no caso, porque a acusação refere expressamente que a intenção do arguido era a de causar receio e inquietação na pessoa do ofendido - o que não permitia considerar que a expressão proferida, acompanhada do empunhar da arma, traduz um acto de execução de um crime, de homicídio ou de ofensa à integridade física, que ele “decidiu cometer” – estamos perante a primeira.

Remetidos os autos para julgamento, nos casos em que, como sucede no presente, não houve instrução, “o juiz aprecia a conformidade da acusação com o quadro normativo que a regula, confinando-se a não admissão a julgamento às situações tipificadas no nº 2”[2] do art. 311º do C.P.P., respeitando a da al. a) desta norma à rejeição da “acusação manifestamente infundada”. Neste conceito compreende-se a acusação que padeça de deficiências estruturais de tal modo graves “que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade”[3], encontrando-se taxativamente enumerados no nº 3 do preceito os casos em que, para efeitos do nº 2, a acusação se considera manifestamente infundada. De entre eles, interessa-nos aqui em particular o que vem previsto na al. d), que se verifica quando os factos descritos na acusação “não constituírem crime”. Excluída, pela redacção que a Lei nº 65/98 de 25/8 deu ao preceito em referência e que fez caducar o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/93, a possibilidade de rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária, este fundamento “só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa”[4], seja devido a uma insuficiente descrição fáctica, seja porque a conduta imputada ao agente não tem relevância penal. É, no entanto, necessário, nesta fase processual de triagem, que os factos descritos não constituam inequivocamente crime, não bastando que assim seja entendido por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência. A interpretação da referida al. d), que não é, nem podia ser tão clara como as que contemplam os demais fundamentos de rejeição da acusação por manifesta falta de fundamento, “não pode, na sua interpretação ir além do que a estrutura dos princípios processuais admite.
Ou seja só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.
E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado.
Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja.”[5]
“No saneamento do processo [art. 311.º, do CPP], só há lugar à rejeição da acusação se ela se revelar “manifestamente infundada” [n.º 3], o que não abrange os casos em que a acusação trata questão juridicamente controversa.”[6]
“Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz no despacho do presente artigo [311º do C.P.P.] não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente.
Assim, por exemplo, o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na al. d) do n.º 3 («Se os factos não constituírem crime») se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime.”[7]
Ora, no caso, o que se verifica é que existem divergências, nomeadamente a nível da jurisprudência, que se reflectem na integração dos factos descritos na acusação rejeitada no tipo legal do crime de ameaça cuja prática foi imputada ao arguido.
Este ilícito criminal, que tutela a liberdade de decisão e de acção, tem como elementos constitutivos o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal que constitui crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, a adequação da ameaça a provocar ao visado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, e o dolo genérico, em qualquer das suas modalidades[8].
“São três as características essenciais do conceito de ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente: O mal tanto pode ser de natureza pessoal (…) como patrimonial (…). O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. (…) Necessário é só (…) que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos da tentativa (cf. Art. 22º-2 c)). Indispensável é, em terceiro lugar, que a ocorrência do “mal futuro” dependa (ou apareça como dependente (…) da vontade do agente). Esta característica estabelece a distinção entre a ameaça e o simples aviso da advertência. (…)”[9]
O pomo da discórdia reside, precisamente, na interpretação que se faz da destrinça entre o que se considera como mal futuro e como mal iminente. Enquanto que uns consideram que, quando o anúncio é de um mal iminente, não há crime de ameaça[10], outros entendem que o mal iminente, embora esteja próximo, é ainda um mal futuro e a pedra-de-toque para distinguir o que é ameaça e o que são actos de execução de outro ilícito criminal que o agente tenha decidido cometer[11] ( art. 22º nº 1 do C. Penal ) estará na intenção que presidiu à conduta em questão[12].
Para a primeira, os factos descritos na acusação em análise não constituirão crime; já não assim para a segunda.
Pensamos não dever aqui tomar posição acerca desta controvérsia, na medida em que entendemos que só depois de realizado o julgamento é que deve ser ponderado qual o entendimento a seguir. O que para nós temos como certo é que, sendo por demais sabido que não existe uniformidade na jurisprudência em torno desta questão – existem, ao invés, sólidas correntes antagónicas - e sendo ela crucial para aferir da relevância penal e subsunção jurídica dos factos cuja prática vem imputada ao arguido na acusação, não é no momento da prolação do despacho de saneamento do processo que deve ser feita a opção por um dos entendimentos em confronto. E isto porque, perante os entendimentos divergentes, não é possível afirmar, para fundamentar a sua rejeição, que a acusação é manifestamente infundada – poderá eventualmente vir a ser julgada improcedente, o que é um efeito jurídico distinto da rejeição.
Assim sendo, e sem necessidade de mais alongadas considerações, embora por razões não inteiramente coincidentes com as invocadas pelo recorrente, haverá que determinar a alteração do decidido.

4. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgam procedente o recurso e revogam o despacho recorrido, determinando que seja substituído por outro que, a inexistirem outros fundamentos para a rejeição da acusação, proceda ao respectivo recebimento.
Sem tributação.

Porto, 11 de Julho de 2012
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas
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[1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] cfr. Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas, dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, pág. 766.
[3] cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado e comentado, 12ª ed., pág. 605.
[4] cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 779.
[5] cfr. Ac. RC 12/7/11, proc. nº 66/11.8GAACB.C1.
[6] cfr. Ac. RP 13/7/11, proc. nº 6622/10.4TDPRT.P1.
[7] cfr. Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 644.
[8] Sendo por demais evidente a falta de razão do que se considera, no despacho recorrido, acerca da falta de adequada descrição do elemento subjectivo do tipo.
[9] cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, t. I, pág. 343
[10] cfr. Acs. RP 25/9/02, proc.º 0240259, 22/1/03, proc.º 0210754, 17/11/04, proc.º n.º 0414654, 23/2/05, proc.º 0510031, 30/3/05, proc.º 0510587, 25/1/06, proc.º n.º 0544124, 17/5/06, proc.º n.º 0411428, 22/11/06, proc.º n.º 0614091, 20/12/06, proc.º n.º 0645320, 28/11/07, proc.º n.º 0712156, 28/5/08, proc.º n.º 0841544, 22/6/11, proc nº 41/10.0GAVMS.P1 e 7/3/12, proc nº 625/10.6GBVNG.P1, RG 1/2/10, proc. nº 495/05.6GBMR.G2 e RC 7/3/12, proc. nº 110/09.9TATCS.C1 e 30/5/12, proc. nº 366/10.4GCTND.C1.
[11] Casos claros em que não há ameaça, mas sim tentativa da prática de outro crime são os que foram analisados nos Acs. RP 28/5/03, proc.º 0340713, RL 11/12/03, proc. nº 7569/2003-9 e 3/11/09, proc. nº 1092/02.3PBOER.L1-5, e RE 4/11/10, proc. nº 13/07.1GLBJA.E1.
[12] Na órbita deste entendimento, cfr. Acs. RP 16/2/00, proc.º n.º 9910861, 7/1/08, proc. nº 1798/07-2 e 13/7/11, proc nº 416/10.4TAOAZ.P1 ( este com a nuance de considerar que o critério distintivo se dever ir buscar a razões teleológicas ligadas à especificidade dos bens jurídicos tutelados pelas normas em equação, podendo o tradicionalmente usado, da temporalidade, funcionar como adjuvante ), RG 18/5/09, proc. nº 349/07.1PBVCT, RC 9/9/09, proc. nº 363/08.0OGAACB.1 e 23/9/09, proc. nº 541/04.0GBPBL.C1, RL 11/2/10, proc. nº 105/08.0PCPDL.L1-9 e 9/3/10, proc nº 1713/06.9TALRS.L1.5, e RE 6/9/11, proc nº 428/09.0PBELV.E1.