Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6733/09.9YYPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RP201010126733/09.9YYPRT.P1
Data do Acordão: 10/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 812º-E, Nº 1, A) DO C.P.C.
ARTº 15º DA LEI 6/2006 DE 27 DE FEVEREIRO
Sumário: I - A exequibilidade extrínseca do título complexo previsto no artº 15º, nº 2 da L. 6/2006 de 27 de Fevereiro, só se verifica quando o contrato de arrendamento seja acompanhado da prova da comunicação ao arrendatário da liquidação aritmética, prévia e extraprocessual, dos valores que considera compreendidos na prestação devida.
II - Por contraponto, deve ser negada tal exequibilidade extrínseca aos mencionados documentos quando a referida comunicação seja omissa quanto a esse particular requisito e, consequentemente, deve ser liminarmente indeferido o requerimento executivo que neles se baseie, por manifesta falta de título executivo — art. 812°-E, n° 1, a) do C.P.C., Artº 15º da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 6733/09.9YYPRT.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Desembargadora Maria de Jesus Pereira
Desembargador Marques de Castilho.
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto.
RELATÓRIO

Recorrentes: B………., C………. e D………..
Recorrida: E………., Limitada.
Juízos Cíveis do Porto – .º Juízo, .ª Secção.
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B………., C………. e D………. intentaram contra E………., Limitada, acção executiva para pagamento de quantia certa para haver desta a quantia de 6.654,96€, alegando:
- que na qualidade de senhorios requereram a notificação judicial avulsa da executada, na qualidade de arrendatária, comunicando-lhe a resolução do contrato de arrendamento entre eles vigente, nas referidas qualidades, celebrado em 5/07/1989, relativamente ao rés-do-chão, com entrada pelo nº …, do prédio urbano sito na Rua ………., nº …-…, ………., Porto, nos termos do nº 7 do art. 9º do N.R.A.U..
- que a comunicação da resolução do contrato de arrendamento, nos termos dos arts. 1083º e 1084º do C.C., produziu plenos efeitos, na medida em que a executada não fez cessar a mora no pagamento das rendas nos três meses seguintes à notificação judicial avulsa, a qual se consumou em 26/05/2009;
- que está a executada obrigada ao pagamento das rendas em dívida, desde a do mês de Setembro de 2007 até ao presente;
- que o valor da renda mensal era de 511,00€ em 2007, de 524,00€ em 2008 e de 539,00€ em 2009;
- que o montante em dívida, relativo a rendas, ascende a 7.144,00€, mas considerando pagamentos entretanto feitos pela executada, só se encontra em dívida o valor de 6.654,96€, montante ao qual acresce a indemnização mensal de valor equivalente ao da renda que for devida até efectiva restituição do locado.
Além de documentos comprovativos da vigência de um contrato de arrendamento que os vinculava enquanto senhorios (os exequentes) e arrendatária (a executada), juntaram com o seu requerimento inicial notificação judicial avulsa (efectuada em 26/05/2009) que requereram contra a executada e onde alegavam, além do mais:
- que mercê das actualizações legais, a renda devida, desde a vencida em 1/12/2008, ascende a 539,00€ mensais;
- que a aqui requerida não pagou a renda referente ao mês de Outubro de 2007, na data do respectivo vencimento (no 1º dia útil do mês imediatamente anterior,) apenas a depositando em 20/09/2007;
- que, nessas circunstâncias, entrou em mora, que não fez cessar nem nos oito dias a contar do seu começo, nem pelo pagamento do montante devido acrescido de 50% a título de indemnização, de modo a fazer caducar o direito à resolução do contrato por falta de pagamento de renda;
- que o valor da renda era, então, de 511,00€, pelo que para obter tal desiderato a requerida deveria ter depositado a quantia de 766,50€ (511,00€+255,50€), tendo apenas pago a quantia de 611,76€ em 20/09/2007 (520,00€ depositados na conta do senhorio e 15% que reteve na fonte);
- que idêntico atraso se verificou no pagamento da renda do mês de Julho de 2008, que só foi depositada em 4/06/2008;
- que até à data da entrada da notificação judicial avulsa e desde a constituição em mora, ocorrida em 1/09/2007, a requerida não pagou, além das rendas em atraso, a indemnização igual a 50% do devido;
- que persistindo a mora e enquanto não forem pagas integralmente as rendas em dívida e liquidada a indemnização prevista no art. 1041º do C.C., todas as rendas posteriores são consideradas em dívida para todos os efeitos, nos termos do art. 1041º, nº 3 do C.C.;
- que se mostram decorridos mais de três meses sobre a data em que a requerida começou a omitir o pagamento da renda devida, tornando-se inexigível aos requerentes a manutenção do contrato de arrendamento, assistindo-lhes o direito à sua resolução, nos termos do art. 1083º, nº 3 do C.C., resolução que tem de ser efectuada por um dos meios previstos no art. 9º, nº 7 da Lei nº 6/2007, de 27/02, entre os quais o ora utilizado, e com observância do disposto no art. 1084º, nº 1 do C.C.;
- que assim declaram resolvido o citado contrato de arrendamento.
Terminaram tal requerimento impetrando a notificação judicial avulsa da requerida, dando-lhe conhecimento de que consideram resolvido o contrato de arrendamento celebrado em 5/07/1989, referente ao rés-do-chão, com entrada pelo nº …, do prédio urbano sito na Rua ………., nº …-…, ………., Porto.

Submetido tal requerimento executivo a despacho liminar, foi o mesmo indeferido liminarmente, nos termos do art. 812º-E, nº 1, a) do C.P.C., por se considerar manifesta a insuficiência do título dado à execução para a finalidade pretendida (pagamento da quantia certa liquidada no requerimento executivo).
Para tal, observou-se no referido despacho:
‘Nos termos do art. 15.º, n.º 2 do NRAU «O contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida.»
Da cópia do requerimento de notificação judicial avulsa apresentado pelos exequentes com o requerimento executivo não consta qualquer referência ao montante das rendas em dívida peticionado no requerimento executivo, nem ao valor dos juros de mora, afigurando-se-nos ainda, por outro lado, que nunca pode haver execução para pagamento de quantia equivalente ao valor da renda após a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no título executivo previsto no art. 15.º, n.º 2, do NRAU (os documentos aí previstos só são título executivo para acção de pagamento de renda, e a renda só é devida até à resolução do contrato de arrendamento).
No sentido de exigir que do requerimento de notificação avulsa conste a liquidação do montante peticionado - por se entender que o significado útil da exigência da comunicação prevista no nº2 do artigo 15º do NRAU é o de «(...) obrigar o exequente a proceder a uma espécie de liquidação aritmética extrajudicial prévia dos montantes em dívida.», vd. Ac. do T.R. de Lisboa de 12-12-2008, processo n.º 10790/2008-7, disponível na base de dados do ITIJ da internet - http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/.’

Por se não conformarem com tal decisão, apelaram os exequentes, pretendendo a sua revogação e substituição por outra que ordene os termos subsequentes da execução, terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
I- É notório o engano da meritíssima juiz quando se refere a juros de mora, porquanto os exequentes não peticionam quaisquer juros.
II- Ao invés do que foi sentenciado, os exequentes, ora apelantes, já no requerimento de notificação judicial avulsa se referem ao montante das rendas em dívida. Vejamos como alegam e documentam expressamente:
- que a requerida não pagou a renda referente ao mês de Outubro de 2007, na data do respectivo vencimento, tendo entrado em mora que jamais fez cessar;
- que o valor da renda era, então, de 511,00€ pelo que para obter tal desiderato, a requerida deveria ter depositado na conta do senhorio a quantia de 766,50€ (511,00€+255,50€), mas, na verdade, apenas pagou 611,00€, em 20/09/2007;
- que idêntico atraso se verificou também no pagamento da renda do mês de Junho de 2008, que só foi depositada em 04/06/2008;
- que até ao presente, e desde a constituição em mora, em 01/09/2007, a requerida não pagou, além das rendas em atraso, a indemnização igual a 50% do que for devido (art. 1041º, nº 1, Cód. Civil), o que vale dizer que persiste a mora e que enquanto não forem pagas integralmente as rendas em dívida e liquidada a indemnização prevista no art. 1041º do CC, todas as rendas posteriores “são consideradas em dívida para todos os efeitos” ( art. 1041º, nº 3, CC ) – Ac. Rel. Porto, de 17/04/2008, no Proc. 0831655, in www.dgsi.pt;
- que, mercê das actualizações legais, a renda cifra-se actualmente (desde a que se venceu em 01/12/2008) em 539,00€ mensais - cf. itens 7º a 14º, do requerimento de notificação judicial avulsa (doravante designado NJA) que aqui dão por integrados.
III- Assim, o requerimento da NJA contem as referências necessárias e suficientes ao montante das rendas em dívida, montante esse que nele está, implicitamente, declarado.
IV- O montante exacto em dívida sempre foi determinável por via de simples cálculo aritmético, à luz do que determina o art. 46º, nº 1, al. c) do C.P.C., para a conformação de título executivo da espécie do que temos em apreço, com a particularidade de que o montante das rendas em dívida não constitui uma realidade estática, aliás é evolutivo, aumenta pelo decurso do tempo, enquanto a requerida não fizer cessar a mora.
V- A requerida/inquilina sempre conheceu o montante da renda em cada momento, bem como sempre soube o que pagou e o que deixou de pagar, pelo que o montante de rendas em dívida, tal como está explicado na NJA e no requerimento executivo, é perfeitamente inteligível, mormente para si.
VI- A douta sentença recorrida não aplica correctamente o art. 15º, nº 2, do NRAU, nem se acolita da melhor Jurisprudência Superior, segundo a qual: “Em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado da comunicação, serve de base à execução para entrega de coisa certa, sendo igualmente título executivo para a acção de pagamento de renda (art. 15º, nºs 1, al. e) e 2, da NRAU).” … “A visão redutora da 1ª instância, apegando-se demasiadamente à letra da Lei (O contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida), não corresponde minimamente à intenção anunciada do legislador. Perante a inoperância dos Tribunais, o fracasso das reformas legislativas e a consabida morosidade da Justiça … o legislador pôs nas mãos dos senhorios um meio expedito para reaverem os seus bens e cobrarem as suas dívidas relacionadas com o contrato de arrendamento” – Ac. Relação Porto, de 23/06/2009, no P.2378/07.6YYPRT-A.P1, em www.dgsi.pt.
VII- É legal e legítimo o pedido dos exequentes quanto à indemnização de valor mensal igual ao da renda que for devida até à efectiva restituição do locado, à luz do preceituado no art. 1045º do Cód, Civil, como vem sendo entendido, maioritária e quase unanimemente, quer pela Doutrina – Pereira Coelho e Pires de Lima, Antunes Varela, Obras citadas supra -, quer pela Jurisprudência Superior, de que se destacou como expoente, pela clarividência, o Ac. Relação Porto, de 21/04/2008, no P. 0850525, in www.dgsi.pt, também ante mencionado e parcialmente transcrito.
VIII- Pelo que, a douta sentença em crise viola, entre outros, o disposto no art. 15º, nº 2, do NRAU, o art. 46º, nº 1, al. c), do C.P.C. e o art. 1045º do C.C.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Delimitação do objecto do recurso

O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
Assim, positivamente, o thema decidendum consiste:
- em primeiro lugar, apreciar se os documentos juntos pelos exequentes com o seu requerimento executivo constituem ou não título executivo bastante e suficiente para a presente execução (execução para pagamento de quantia certa);
- depois, na hipótese afirmativa, apurar dos limites de tal título executivo, designadamente se ele é suficiente para fundar a pretensão relativa à indemnização de valor equivalente ao da renda, devida até entrega do local arrendado e vencida após a comunicação ao arrendatário aludida no art. 15º, nº 2 da Lei 6/2006, de 27/02.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto

A matéria factual a considerar é a exposta no relatório deste acórdão.
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Fundamentação de direito

Proibindo a justiça privada ou autotutela (art. 1º do C.P.C.), a ordem jurídica concede ao credor de prestação não satisfeita a faculdade de obter a sua efectivação coerciva, ou seja, a faculdade de satisfazer o interesse patrimonial correspondente ao seu direito (art. 4º, nº 3 do C.P.C.).
Através da acção executiva pode o credor obter a realização coactiva da prestação não cumprida, enquadrando-se esta, por isso, na efectividade da tutela jurisdicional e na garantia do acesso aos tribunais para a defesa dos direitos e interesses legítimos (art. 20º, nº 1 da C.R.P.)[1].
A finalidade da acção executiva consiste na obtenção do interesse patrimonial contido na prestação não cumprida, sendo o seu objecto, sempre (e apenas) um direito a uma prestação – nesse objecto contém-se somente a faculdade de exigir o cumprimento da prestação e o correlativo poder de aquisição dessa prestação, poder que corresponde à causa debendi e, portanto, funciona como causa de pedir da acção executiva (os factos dos quais decorre esse poder são os mesmos que justificam a faculdade de exigir a prestação)[2].
A faculdade de exigir a prestação, correlativa do poder de aquisição dessa prestação, designa-se por pretensão e apenas uma pretensão exequível pode constituir objecto de uma acção executiva – exequibilidade intrínseca, respeitante à inexistência de vícios materiais ou excepções peremptórias que impeçam a realização coactiva da prestação, e exequibilidade extrínseca, traduzida na incorporação da pretensão num título executivo, ou seja, num documento que formaliza, por disposição da lei, a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida (art. 45º, nº 1 do C.P.C.)[3].
A acção executiva pressupõe um direito de execução do património do devedor, ou seja, ‘um poder resultante da incorporação da pretensão num título executivo, pois que é desta que resulta que o credor possui não só a faculdade de exigir a prestação, mas também a de executar, em caso de incumprimento, o património do devedor’.[4]
O título executivo, que determina o fim e os limites da acção executiva, é a base desta (art. 45º, nº 1 do C.P.C.). Dele resulta a exequibilidade da pretensão executanda, pois incorpora o direito de execução, isto é, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito[5].
Apenas podem servir de base à execução os títulos indicados na lei – art. 46º do C.P.C.. Títulos executivos são tão só e apenas os indicados na lei – trata-se de enumeração taxativa, sujeita à regra da tipicidade[6], ficando assim subtraída à disponibilidade das partes a atribuição de força executiva a documento relativamente ao qual a lei não reconheça esse atributo, do mesmo modo que lhes está defeso negar tal força ao documento se ela for reconhecida pela lei.

A primeira questão suscitada pela presente apelação consiste precisamente em apurar da inexiquibilidade extrínseca da pretensão, ou seja, da falta de título executivo, pois esta constitui fundamento de indeferimento liminar e de rejeição oficiosa da execução – art. 812º-E, nº 1, a) e 820º do C.P.C..

Através de disposição especial (veja-se o disposto no art. 46º, nº 1, d) do C.P.C.), a lei atribui força executiva, para a acção de pagamento de renda, ao contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida (art. 15º, nº 2 da Lei 6/2006, de 27/02).
É um título múltiplo ou complexo, pois que são necessários dois distintos documentos para incorporar o direito à prestação (quer a faculdade de exigir a prestação, quer a faculdade de a executar) – o documento que demonstra a celebração do contrato de arrendamento e o que comprova a comunicação ao arrendatário dos montantes das rendas em dívida.
Como se refere no Ac. R. Porto de 6/10/2009[7], não se mostra evidente a utilidade desta específica previsão da exequibilidade do contrato de arrendamento uma vez que este, ‘nos termos gerais, sempre constituiria título executivo, por importar a constituição de uma obrigação pecuniária exigível – a obrigação de pagamento da renda – cujo montante está determinado ou é determinável mediante simples cálculo aritmético (art. 46º, nº 1, c) do CPC). Nestas condições e perspectivado o problema a partir do concurso entre regra geral e regra especial, parece que a finalidade conspícua desta previsão específica de exequibilidade do contrato de arrendamento consiste, afinal, na restrição da amplitude da exequibilidade que, nos termos gerais, por aplicação das regras que reconhecem força executiva aos documentos negociais – natureza de que nitidamente partilha o contrato de arrendamento – lhe seria atribuída (art. 46º, nº 1, c) do CPC)’.
Também não é de linear clareza a razão justificativa para a exigência legal, com vista à sua exequibilidade quanto à obrigação do pagamento da renda, do contrato de arrendamento ser acompanhado do documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida (ou seja, do valor das rendas em dívida). Efectivamente, a obrigação do pagamento das rendas e o correspectivo direito de as exigir resulta do contrato de arrendamento (arts. 1022º e 1038º, a) do C.C.), resultando ainda do próprio contrato o montante (certo) da prestação (o valor da renda), além de que tal obrigação tem prazo certo, tornando-se exigível com o simples decurso do prazo, não sendo por isso exigível qualquer interpelação para o seu vencimento (dies interpellat pro homine) – art. 805º, nº 2, a) do C.C.[8].
Porque o intérprete, na actividade hermenêutica (destinada a fixar o sentido e alcance decisivo dos preceitos legais), tem de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, devendo nortear-se pela unidade do sistema jurídico (art. 9º do C.C.), há-de considerar-se, preliminarmente, que a exigência vinda de referir, tem um sentido útil e relevante.
Assim, tal comunicação (comunicação dos montantes em dívida) tem de significar, em termos normativos, um efectivo e real acrescento de valor relativamente ao já ínsito ao contrato de arrendamento.
Em Direito, as palavras estão carregadas de sentido e, por isso, a comunicação estabelecida no normativo em questão não redunda na exigência duma desnecessária, estéril e absurdamente formalista e injustificada repetição dos elementos já presentes no próprio contrato de arrendamento, sendo necessário que a estes elementos aquela comunicação acrescente algo de novo, de relevante, de útil.
Por isso, afigura-se correcto entender que a razão de tal exigência legal (a comunicação ao arrendatário do montante em dívida) se reconduz à necessidade de o senhorio proceder a uma liquidação aritmética, prévia e extraprocessual, dos valores em dívida, de forma a conferir maior grau de certeza quanto aos montantes que considera compreendidos na prestação devida e que peticiona, tendo em conta a tendencial perdurabilidade do contrato e o carácter periódico da obrigação de pagamento da renda[9].

No caso dos autos, os exequentes (senhorios) efectuaram à executada (arrendatária) a comunicação a que alude o art. 1084º, nº 1 do C.C., pois que destinada à obtenção da resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas (art. 1083º, nº 3 do C.C.).
É incontroverso que através de tal comunicação o senhorio pode obter título executivo quer para a execução de entrega de coisa certa (entrega do local arrendado - art. 15º, nº 1, e) da Lei 6/2006, de 27/02), quer para a execução para pagamento de quantia certa (acção de pagamento de renda – art. 15º, nº 2 da Lei 6/2006, de 27/02)[10]. Necessário é, todavia, que a comunicação preencha os requisitos legalmente estabelecidos e, designadamente, no que à execução para pagamento de quantia certa importa (é este aspecto que interessa à economia da apelação), que nela sejam comunicados ao arrendatário os montantes que o senhorio entende serem devidos.
A pretensão do senhorio, no que concerne à obtenção das rendas, só estará incorporada no título executivo, tal qual este é normativamente delineado no art. 15º, nº 2 da Lei 6/2006, de 27/02, desde que na comunicação endereçada ao arrendatário conste o montante que ele (senhorio) considera ser-lhe devido a esse título.
Só nessas circunstâncias se poderá afirmar ter o senhorio exequente um direito de execução do património do devedor executado – não apenas a faculdade ou o direito de exigir judicialmente do arrendatário a prestação (art. 817º do C.C.), mas antes, e é isso que releva nos processos executivos, a faculdade de executar o património do arrendatário com vista a obter a satisfação de tal prestação pecuniária.

Em resumo, pode dizer-se que a exequibilidade extrínseca do título complexo previsto no art. 15º, nº 2 da Lei 6/2006, de 27/02, só se verifica quando o contrato de arrendamento seja acompanhado do comprovativo de que o senhorio fez comunicar ao arrendatário o montante que considera ser-lhe devido a título de rendas.
Por contraponto, deve ser negada tal exequibilidade extrínseca aos mencionados documentos quando a referida comunicação seja omissa quanto a esse particular requisito e, consequentemente, deve ser liminarmente indeferido o requerimento executivo que neles se baseie, por manifesta falta de título executivo – art. 812º-E, nº 1, a) do C.P.C..

No caso dos autos, foi o requerimento executivo liminarmente indeferido por manifesta falta de título executivo, com fundamento, precisamente, no facto de a comunicação enviada à executada arrendatária pelos exequentes senhorios não conter qualquer referência ao montante das rendas em dívida.
Analisado o comprovativo da referida notificação (a notificação judicial avulsa aludida no relatório desta decisão) verifica-se que nela, efectivamente, os exequentes senhorios não comunicaram à executada arrendatária o montante que consideravam em dívida – ou seja, não procederam, extraprocessualmente, à liquidação aritmética dos valores em dívida.
Importa realçar que não satisfaz esse requisito a mera referência ao valor mensal devido a título de renda – esse é um elemento seguro, que resulta já do próprio contrato de arrendamento (e, eventualmente, das comunicações enviadas com vista à actualização anual da renda). O que é exigível, como se expôs, é que o senhorio proceda a uma liquidação aritmética, prévia e extraprocessual, dos valores que considera compreendidos na prestação devida e que peticiona, de forma a conferir maior grau de certeza quanto à sua pretensão, tendo em conta a tendencial perdurabilidade do contrato e o carácter periódico da obrigação de pagamento da renda.
Exige-se, pois, que a liquidação dos montantes tidos por devidos seja exposta de forma clara e expressa na referida comunicação.
Da configuração normativa do título executivo em causa resulta que, para a sua formação (enquanto tal), a liquidação da obrigação deve estar nele expressamente contida e efectuada (o cálculo aritmético dos montantes devidos) – não contendo o documento tal prévia e extraprocessual liquidação, deve ser a tal documento (mesmo acompanhado do documento que demonstra a celebração do contrato de arrendamento) negada exequibilidade extrínseca e logo, o estatuto de título executivo (sendo certo que tal falha, porque intrínseca ao título executivo, é insuprível, não podendo por isso ser sanada por eventual liquidação aritmética da obrigação que o exequente leve a cabo no requerimento executivo).

Considerando o exposto, tem de concluir-se pela improcedência da apelação, já que não merece qualquer censura o douto despacho recorrido.

A apreciação da segunda questão fica prejudicada, pois tinha como pressuposto necessário a procedência da apelação no que à primeira questão concerne (art. 660º, nº 2, 1ª parte, ex vi art. 713º, nº 2, ambos do C.P.C.).

Sumariando o acórdão, nos termos do art. 713º, nº 7 do C.P.C.:
I- A exequibilidade extrínseca do título complexo previsto no art. 15º, nº 2 da Lei 6/2006, de 27/02, só se verifica quando o contrato de arrendamento seja acompanhado do comprovativo de que o senhorio fez comunicar ao arrendatário o montante que considera ser-lhe devido a título de rendas – ou seja, quando o senhorio, na referida comunicação, procedeu a uma liquidação aritmética, prévia e extraprocessual, dos valores que considera compreendidos na prestação devida.
II- Por contraponto, deve ser negada tal exequibilidade extrínseca aos mencionados documentos quando a referida comunicação seja omissa quanto a esse particular requisito e, consequentemente, deve ser liminarmente indeferido o requerimento executivo que neles se baseie, por manifesta falta de título executivo – art. 812º-E, nº 1, a) do C.P.C..
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DECISÃO
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Pelo exposto, na improcedência do recurso, acordam os Juízes desta secção cível em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
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Porto, 12/10/2010
João Manuel Araújo Ramos Lopes
Maria de Jesus Pereira
Augusto José Baptista Marques de Castilho

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[1] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 603.
[2] Autor e obra citados, p. 606.
[3] Autor e obra citados, pp. 606 a 608.
[4] Autor e obra citados, p. 626.
[5] Ferreira de Almeida, Algumas considerações sobre o problema da natureza e função do título executivo, RFD, 19 (1965), p. 317.
[6] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, 1998, pp. 65/66.
[7] Relatado pelo Exmº Sr. Desembargador Henrique Antunes, no sítio www.dgsi.pt/jtrp.
[8] Cfr. o citado acórdão da R. Porto de 6/10/2009 e o Ac. R. Lisboa, de 12/12/2008 (relatado pelo Exmº Sr. Desembargador Tomé Gomes), no sítio www.dgsi.pt/jtrl.
[9] Cfr. os acórdãos citados na nota anterior e bem assim o Ac. R. Porto de 12/05/2009 (relatado pelo Exmº Sr. Desembargador Guerra Banha), no sítio www.dgsi.pt/jtrp.
[10] Cfr. Ac. R. Lisboa de 21/04/2009 (relatado pelo Exmº Sr. Desembargador Arnaldo Silva), no sítio www.dgsi.pt/jtrl.