Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
92/13.2TBLMG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
AUTO DE NOTÍCIA
Nº do Documento: RP2013121892/13.2TBLMG.P1
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em matéria de causas de suspensão e de interrupção da prescrição (quer do procedimento, quer das sanções), o regime do DL n.º 433/82, de 27 de outubro [RGCOC] é de aplicação subsidiária ao Código da Estrada.
II – A interpretação do n.º 3 do art. 170.º do Cód. Estrada segunda a qual o auto de notícia faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário, não se afigura como inconstitucional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 92/13.2TBLMG.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B…, arguido devidamente identificado nos autos, impugnou judicialmente a decisão da autoridade administrativa – Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária – que lhe aplicou a coima de € 180,00 e a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, por infracção ao disposto no art. 84º, nºs 1 e 4, do Código da Estrada, pugnando pelo arquivamento dos autos.
Efectuado o julgamento no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Lamego, foi proferida a seguinte decisão:
“(…)
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso interposto por B…, e, em consequência, manter na íntegra a decisão da autoridade administrativa que aplicou ao arguido a coima de €180,00 (cento e oitenta euros) e a sanção de inibição de conduzir, pelo período de 30 dias.”.
Inconformado com tal condenação, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação do Porto, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. O arguido vem acusado da prática da contra-ordenação prevista no artigo 84°, n.º 1 do Código da Estrada, por alegadamente no dia 03.05.2011, na E.N. …, KM 21,900, …, comarca de Lamego, utilizar o telemóvel durante a marcha do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-HQ.
2. Sobre a data da alegada prática dos factos decorreram dois anos, um mês e 28 dias.
3. Nos termos do preceituado no artigo 188° do C.E: "O procedimento por contra-ordenação rodoviária extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contra-ordenação, tenham decorrido dois anos."
4. A prescrição do procedimento é de conhecimento oficioso.
5. O C.E. não contém qualquer norma relativa ao regime de suspensão e interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação.
6. O legislador ao não prever no CE causas de suspensão e interrupção da prescrição do procedimento de contra-ordenação e ao não remeter a regulação de tal matéria expressamente para o disposto a esse respeito no RGCO pretendeu claramente afastar do procedimento de contra-ordenação rodoviária as causas de suspensão e interrupção.
7. O mesmo é dizer-se que o procedimento por contra-ordenação rodoviária não se suspende nem se interrompe.
8. No preâmbulo do Decreto-Lei 44/2005 de 23 de Fevereiro que criou a norma do artigo 188° do CE, pode ler-se: "Por outro lado, e porque as infracções ao Código da Estrada são actualmente infracções cometidas em massa e com especificidades próprias, para assegurar um incremento da eficácia do circuito fiscalização/punição, importa introduzir um conjunto de alterações ao nível da aplicação das normas processuais, porquanto verifica-se que a aplicação das normas do regime geral das contra-ordenações a este tipo de infracções permite o prolongamento excessivo dos processos, com a consequente perda do efeito dissuasor das sanções.
Pelo que se mostra necessário a introdução de normas processuais específicas, visando conferir maior celeridade na aplicação efectiva das sanções, de forma a reduzir significativamente o tempo que decorre entre a prática da infracção e a aplicação da sanção."
9. Salvo melhor opinião a questão a que procuramos responder passa necessariamente pela interpretação daquilo que foi o espírito do legislador aquando da redacção do Decreto-Lei 44/2005 de 23 de Fevereiro.
10. A aplicação do regime geral conjugada com a norma do artigo 188.° do CE conduz a um regime completamente contrário àquele que o legislador pretendeu edificar com o Decreto-Lei 44/2005 de 23 de Fevereiro.
11. Se não fosse criada a norma do artigo 188° do CE e se aplicasse apenas o regime geral o prazo máximo de prescrição, computadas as causas de interrupção e suspensão do procedimento e levando em conta o estatuído no artigo 28°, n.º 3 do RGCO, seria de dois anos.
12. Da aplicação conjunta do artigo 188° do CE e do estatuído no regime geral, computadas as causas de suspensão e interrupção, resulta que o prazo máximo de prescrição do procedimento é de três anos e meio.
13. Mal se compreende que se o legislador procurou criar normas processuais específicas, de forma a reduzir significativamente o tempo que decorre entre a prática da infracção e a aplicação da sanção, tenha alargado quase para o dobro o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional que, como dissemos, conduz precisamente ao resultado contrário.
14. O que o legislador pretendeu foi a definição de um regime específico com a criação de um prazo de prescrição próprio, não sendo aplicável subsidiariamente a esta matéria o disposto no RGCO.
15. O preâmbulo do diploma não determina a aplicação subsidiária do RGCO aos casos omissos, antes pelo contrário, afirma a necessidade de introdução de normas processuais específicas visando conferir maior celeridade na aplicação efectiva das sanções, de forma a reduzir significativamente o tempo que decorre entre a prática da infracção e a aplicação da sanção.
16. Neste sentido o CE vem estatuir a partir do seu artigo 169° um regime processual específico para as contra-ordenações rodoviárias.
17. A aplicação subsidiária do RGCO apenas é referia no artigo 186° do C.E.
18. Desta forma podemos concluir que quando o legislador pretendeu a aplicação subsidiária do RGCO o referiu expressamente pelo que se no que diz respeito à questão da interrupção e suspensão do prazo de prescrição do procedimento contra -ordenacional o legislador não faz essa remição é porque não tinha em mente a aplicação subsidiária daquele regime.
19. O elemento interpretativo permite concluir que o legislador se pretendeu afastar do regime geral inexistindo por isso qualquer vazio jurídico que justifique a aplicação analógica do preceituado naquele regime.
20. Nem a analogia poderia alguma vez ter aplicação neste caso já que tal ofenderia a exigência de determinabilidade do tipo contra-ordenacional que funciona também como tipo de garantia, na medida em que afecta a determinação dos requisitos de que depende em concreto a punição - devem ser objectivamente determináveis os comportamentos proibidos e todos os elementos da punibilidade sob pena de ofensa da função de garantia do tipo e no fundo do principio da legalidade ..
21. Tendo decorrido mais de dois anos sobre a alegada prática dos factos deverá o presente procedimento por contra-ordenação ser julgado extinto por prescrição.
22. Salvo o devido respeito o douto Tribunal recorrido interpretou erradamente o artigo 173°, n.º 3 do CE.
23. Por força desta norma, chegados à audiência de discussão e julgamento, na ausência de prova por parte do arguido, terá em regra de resultar provada a factualidade descrita no auto.
24. O artigo 170°, n.º 3 do C.E opera como que uma inversão do ónus da prova fazendo recair sobre o arguido o ónus de elidir a força probatória que é conferida por esta norma ao auto de notifica.
25. Em casos como o dos autos e talvez na maioria dos casos em que o arguido não esteja acompanhado por qualquer outra pessoa aquando da prática (ou não) dos factos vertidos no auto de contra-ordenação vê-se o mesmo na impossibilidade quase absoluta, senão mesmo absoluta, de elidir a força probatório do auto de contra-ordenação.
26. No nosso caso o arguido vinha acusado de, nas circunstâncias de tempo e lugar, descritas no auto de contra-ordenação, conduzir usando o telemóvel.
27. O arguido alegou no texto da sua impugnação que parou no sinal vermelho e, com o veículo parado, socorreu-se do telemóvel para ver as horas, tendo o militar da GNR que se deparou com a situação quando bateu ao vidro do automóvel, procedido ao levantamento da contra-ordenação em causa.
28. O arguido estava sozinho no automóvel pelo que de forma alguma poderá provar a sua versão dos factos que in casu poderia determinar um outro desfecho.
29. Como poderá então o arguido fazer a prova em contrário para retirar a fé que a lei atribui ao auto de notícia?
30. Assim a norma do artigo 170°, n.º 3 do CE faz recair sobre o arguido uma espécie de presunção de culpa, na medida em que permite ao julgador presumir desde logo que ele praticou os factos descrito no auto de notícia quando o mesmo não produza prova em contrário.
31. A presunção contida no artigo 173° n.º 3 do C.E viola o princípio da presunção de inocência plasmado no artigo 32°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e nos termos do qual todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
32. A norma constitucional refere "todo o arguido", não fazendo a distinção entre arguido em processo criminal e arguido e processo de contra-ordenação.
33. No caso concreto os elemento da GNR inquiridos em julgamento limitaram-se a confirmar as suas assinaturas no auto de noticia e um deles a confirmar que o mesmo era da sua autoria, não sabendo nem um nem outro em que local tinha ocorrido a contra-ordenação em causa, nem se o arguido tinha o automóvel parado ou estava a circular, nem se tinha parado ao sinal luminoso, nem se tinha o telemóvel encostado na orelha ou não (...), referindo várias vezes que não se lembravam dos factos em concreto atendo o tempo decorrido.
34. Mas, como refere a sentença em crise, não tendo sido produzida qualquer outra prova em contrário, deu-se como não provada a factualidade alegada pelo recorrente quanto a esta matéria e note-se que as declarações do arguido não mereceram fé desde logo por serem contraditórias com o que decorre do auto de notícia - tal a força probatória do auto!
35. Tal acontecer colide necessariamente a nosso ver com o princípio da presunção de inocência plasmado no n.º 2 do artigo 32° da CRP e com o direito de defesa previsto no n.º 10 dessa mesma norma.
36. Não existem motivos para que o auto de notícia por contra-ordenação rodoviária goze da presunção de fé de que não goza o auto de notícia em matéria criminal -não existe idêntica norma no regime processual penal.
37. Não pode colher o argumento segundo o qual o auto de notícia é um documento que vale como documento autêntico quando levantado ou mandado levantar por autoridade pública nos termos do preceituado no artigo 362° n.º 2 do Código Civil. É que se assim fosse então a sua força probatória só poderia ser elidida nos termos do preceituado no artigo 372° do mesmo diploma legal, ou seja, com base na sua falsidade, o que mais contenderia ainda com o princípio da presunção de inocência de que goza "todo o arguido" e constituiria uma clara e inadmissível inversão do ónus da prova.
38. Também o direito de defesa do arguido previsto no artigo 32°, n.º 10 da CRP se encontra fortemente limitado ou até mesmo coarctado porque conferir tal valor probatório ao auto de notícia significa em muitos casos retirar ao arguido o seu direito de defesa na medida em que, não dispondo de outros elementos de prova, vale em absoluto o constante daquele auto, nada o mesmo podendo fazer.
39. Conferir ao auto de notícia tal valor probatório constitui uma limitação inconstitucional do direito de defesa de que o arguido goza já que tal limitação fere o núcleo essencial desse direito.
40. Na verdade o arguido conduzindo sozinho nada poderá fazer para elidir os factos constantes do auto de notícia levantado pelas autoridades, sobretudo nos casos em que a contra-ordenação é presenciada pelo autuante (resulta do que ele relata ter visto) e não depende dos resultados apresentados por aparelhos técnicos.
41. Apenas devem valer para formar a convicção do julgador as provas produzidas e examinadas em sede de audiência de discussão e julgamento e o auto de notícia valerá como prova quando o julgador se convença da positividade dos factos nele descritos diante da análise crítica de toda a prova na audiência e segundo o princípio da livre apreciação da prova.
42. A norma do artigo 170°, n.º 3 do CE é inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência de todo o arguido previsto no artigo 32°, n.º 2 da CRP e por constituir uma limitação excessiva ao direito de defesa prevista no n.° 10 da mesma norma. 43. Do artigo 172°, n.º 5 do CE consta que "o pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores determina o arquivamento do processo, salvo se à contra-ordenação for aplicável sanção acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma".
44. Por outro lado consta do artigo 141°, n.º 1 do CE que "pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada às contra-ordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes."
45. Resulta da sentença em apreço que a sanção acessória de inibição de conduzir não foi suspensa in casu pelo facto de o arguido não ter pago voluntariamente a coima.
46. Salvo melhor opinião o douto Tribunal a quo interpretou erradamente o artigo 141°, n.º 1 do CE.
47. O arguido, como decorre do texto da sua impugnação, discorda em absoluto da prática da contra-ordenação.
48. Por força do disposto no artigo 172°, n.º 5 do CE, o arguido só poderia discutir em Tribunal a prática da contra-ordenação de que vem acusado se não efectuasse o pagamento voluntário da coima pois caso procedesse ao pagamento voluntário da coima o processo apenas prosseguiria restrito à aplicação da sanção acessória.
49. O arguido não pode ser sancionado ou ver diminuídos os seus direitos por pretender exercer o seu direito de defesa no que toca à prática da contra-ordenação, com a impossibilidade de suspensão da execução da sanção acessória que lhe vier a ser aplicada na hipótese de não lhe ser reconhecida razão quanto à questão da prática da contra-ordenação.
50. A leitura conjugada dos artigos 141°, n.º 1 do C.E e 172°, n.º 5 do mesmo diploma legal, impõe que o arguido para beneficiar do regime de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir tenha de pagar voluntariamente a coima e com isso renunciar ao seu direito de defesa quanto à prática da contra-ordenação.
51. Ou seja, tem de se conformar com a prática da contra-ordenação de que vem acusado ainda que a não tenha cometido.
52. O arguido que discorde da prática da contra-ordenação e que reúna os pressupostos de que a lei faz depender a suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir tem duas hipóteses: paga a coima, ficando impedido de exercer o seu direito de defesa quanto à prática da contra-ordenação, para poder beneficiar da suspensão da execução da sanção acessória ou, não paga a coima para poder por em causa a prática da contra-ordenação e fica impedido de beneficiar do regime da suspensão da execução da sanção acessória e por conseguinte fica efectivamente inibido de conduzir.
53. Na maior parte dos casos, tanto mais se levarmos em conta que para a maioria das pessoas hoje o automóvel se afigura como essencial à vida em sociedade, os arguidos são forçados a pagar as coimas para poderem beneficiar do regime da suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir que de outra forma não é possível.
54. Dessa forma poderão beneficiar do regime da suspensão da execução da sanção acessória, o que não acontece se Impugnarem a prática da contra-ordenação e não obtiverem vencimento ainda que demonstrem ao Tribunal que afinal a conduta praticada merece uma menor censurabilidade que lhe foi dirigida pela autoridade administrativa.
55. A suspensão da execução da sanção acessória jamais deve ficar dependente do pagamento da coima uma vez que o não pagamento da mesma é essencial ao exercício do direito de defesa do arguido quanto à prática da contra-ordenação, direito que lhe é constitucionalmente atribuído.
56. Os critérios determinantes da suspensão da execução da sanção acessória deverão ser tão só aqueles que a lei penal fixa para a suspensão das penas, nomeadamente a personalidade do arguido, as suas condições de vida e a sua conduta anterior e posterior ao facto.
57. O artigo 141º, n.º 1 do C.E faz depender a suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir do pagamento antecipado da coima.
58. A norma do artigo 141°, n.º 1 do CE ao fazer depender a suspensão da execução da sanção acessória do pagamento da coima compele o arguido que dela pretenda beneficiar a pagar a coima, ficando assim impedido de impugnar a prática da contra-ordenação.
59. Tal viola o seu direito de defesa previsto no artigo 32°, n.º 10 da CRP o que determina a inconstitucionalidade da norma do artigo 141°, n.º 1 do C.E.
Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o douto suprimento que a V /Exas. merecerá, deverá o presente recurso ser julgado procedente e em consequência:
a) Declarar-se extinto por prescrição o presente procedimento contra-ordenacional;
b) Declarar-se inconstitucional a norma do artigo 170°, n.º 3 do C.E por violação do princípio da presunção de inocência de todo o arguido previsto no artigo 32°, n.º 2 da CRP e por constituir uma limitação excessiva ao direito de defesa prevista no n.º 10 da mesma norma.
c) Declarar-se inconstitucional a norma do artigo 141°, n.º 1 do C.E por violação do direito de defesa do arguido previsto no artigo 32.°, n.º 10 da CRP.
*
Respondeu o Ministério Público junto do tribunal “a quo”, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º, 2 do CPP, tendo o arguido respondido, mantendo a posição anteriormente assumida.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência. *
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A sentença recorrida deu como assente a seguinte matéria de facto (transcrição):
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos
No dia 3 de Maio de 2011, pelas 11.30 horas, na Estrada Nacional nº …, ao km 21.900, …, comarca de Lamego, o recorrente utilizou o telemóvel, durante a marcha do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-HQ, que conduzia.
Ao utilizar o telemóvel, durante a marcha do veículo, o recorrente não agiu com o cuidado devido.
O recorrente não tem averbado no seu RIC a prática de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave.
Do recurso de impugnação:
O recorrente trabalha num posto de combustíveis em …, exercendo as funções de técnico operador de combustíveis, auferindo €700,00 mensais.
Vive com uma companheira, que é cabeleireira, e com três filhos menores de idade, de 9,7 e 3 anos, que estão a seu cargo.
Tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade.
Necessita da carta de condução para se deslocar para o trabalho, que dista cerca de 5 km da sua habitação.
Factos não provados:
Do recurso de impugnação
O arguido encontrava-se parado perante o sinal vermelho dos semáforos ali existentes. Aproveitando esse facto, pegou no telemóvel para ver as horas, porque não tinha relógio.
Foi abordado, subitamente, por um guarda da GNR, que bateu no vidro da porta do veículo, causando-lhe um susto, tendo feito sinal para encostar mais à frente.
Autuado no momento, em €120,00, não pagou por não concordar com a infracção e por não dispor, no momento, daquele montante.
Estava parado há alguns segundos perante o sinal vermelho dos semáforos.
Não provocou qualquer perturbação ou perigo para a sua condução ou para o trânsito. A decisão administrativa extraviou-se por acção dos seus filhos.
Encontrou-a recentemente no meio do livro de histórias das crianças. Há dois anos, a sua ex-mulher abandonou o lar conjugal.
Já esteve desempregado.
Os demais factos alegados no requerimento de impugnação são conclusivos ou irrelevantes para a decisão da causa.
Provas que serviram para formar a convicção do tribunal:
Para prova dos factos supra enunciados valorou-se, desde logo, as declarações do próprio recorrente que admitiu que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no auto de notícia, conduzia o veículo ali identificado.
Porém, quanto ao uso do telemóvel, não obstante admitir que pegou no mesmo, afirmou que o fez só para ver as horas e quando se encontrava parado nos semáforos ali existentes, estando accionado o sinal vermelho.
Ora, nesta parte, as declarações do arguido não nos convenceram, desde logo porque contraditórias com o que decorre do auto de notícia, onde se lê que o recorrente utilizava o telemóvel durante a marcha do veículo, auto cujo teor se daqui por integralmente reproduzido, e que foi confirmado pelos agentes da GNR de …, C…, que elaborou o auto, e D…, que testemunhou a situação e assinou o auto.
Assim, tendo em atenção que o auto de notícia, documento que vale como documento autêntico quando levantado ou mandado levantar pela autoridade pública (art. 363.º, n.º 3, do CC), faz fé em juízo (art. 170.º, n.º 3, do CE), cujo teor foi confirmado pelas testemunhas acima aludidas, não tendo sido produzida qualquer outra prova em contrário, deu-se como não provada a factualidade alegada pelo recorrente quanto a esta matéria.
Quanto aos demais factos dados como provados, atendeu-se ao declarado pelo recorrente. E quanto à necessidade da carta de condução para se deslocar para o trabalho, resulta das regras da experiência comum, à luz das quais é legítimo presumir que o recorrente necessita de conduzir para o local de trabalho, uma vez que reside em Lamego e trabalha em …, cuja distância ascende a cerca de 5 km, como é do nosso conhecimento funcional.
No que concerne à matéria de facto dada como não provada, resultou da total ausência de prova nesse sentido.
2.2. Matéria de Direito
De acordo com a motivação do recurso e respectivas conclusões, o arguido insurge-se contra a decisão recorrida, fundamentalmente por entender que: (i) ocorreu a prescrição do procedimento contra-ordenacional; (ii) o art. 170º, n.º 3 do C. Estrada é inconstitucional, por violação do princípio de presunção de inocência do arguido e por constituir uma limitação excessiva do direito de defesa; (iii) o art. 141º, 1 do C. Estrada, ao fazer depender a suspensão da sanção acessória do pagamento da coima, é também inconstitucional.
Analisemos cada uma das questões suscitadas.
(i) Prescrição do procedimento contra-ordenacional
No essencial, o arguido sustenta que não são aplicáveis às infracções previstas no C. da Estrada, as causas de suspensão e de interrupção da prescrição previstas no RGCO. Em seu entender, o Dec. Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro (que alterou o C. Estrada) pretendeu regular exaustivamente a matéria da prescrição e, desse modo, afastar o regime subsidiário previsto nos artigos 27º-A e 28º, 3 do Dec. Lei 433/82.
Vejamos.
O Código da Estrada, com a redacção resultante do Dec. Lei nº. 44/2005, de 23/02, contém, na parte respeitante à prescrição, dois artigos: o art. 188º, relativo à prescrição do procedimento, e o 189º relativo à prescrição das sanções (coimas e sanções acessórias). E, contrariamente ao que sustenta o recorrente, o legislador não esgotou nesses dois artigos toda a matéria relativa à prescrição, desde logo porque nada disse sobre o início do prazo de prescrição das sanções.
Ora, se não fosse aplicável o regime subsidiário, previsto no artigo 29º, 2 do Dec. Lei nº. 433/82, segundo o qual o prazo de prescrição das coimas se conta a partir do “carácter definitivo ou do trânsito em julgado da decisão condenatória”, ficaria um vazio legal inaceitável, relativamente a um elemento essencial do regime da prescrição.
Tanto basta, a nosso ver, para que se justifique a aplicação subsidiária do regime sobre a suspensão e interrupção da prescrição (quer do procedimento, quer das sanções) previsto no RGCO, como decorre expressamente do disposto no art. 132º do Código da Estrada:
As contra-ordenações rodoviárias são reguladas pelo disposto no presente diploma, pela legislação rodoviária complementar e, subsidiariamente, pelo regime geral das contra ordenações.”
Deste modo, o regime jurídico aplicável ao presente caso é o que decorre do Código da Estrada e, em tudo o que ali não estiver expressamente regulado, o regime que decorre dos artigos 27º-A e 28º do Dec. Lei n.º 433/82.
Tendo em conta os factos dados como provados, e sendo de dois anos o prazo da prescrição (art. 188º do C. Estrada), é manifesto que a mesma não ocorreu.
Com efeito, os factos foram cometidos em 03-05-2011; a decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima foi proferida em 24-09-2011; o arguido foi notificado dessa decisão em 10-11-2011; o processo foi remetido a tribunal em 28-01-2013; o recurso (da decisão da autoridade administrativa) foi admitido em 08-02-2013 e, por carta registada com AR, foi o arguido notificado desse despacho, em 14-02-2013; o arguido foi notificado data do julgamento em 22-03-2013.
Ocorreram assim factos suspensivos da prescrição, desde a notificação do despacho que admitiu o recurso, em 14-02-2013, até ao máximo de 6 meses - art. 27º-A, n. 1 al. c) e nº. 2 do Dec. Lei 433/82
E ocorreram factos interruptivos da prescrição, tendo o último deles sido a decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima, em 24-09-2011 (art. 28, 1, d) do Dec. Lei 433/82). Assim, em 24-09-2011 ainda não tinha decorrido todo o tempo da prescrição e, a partir dessa data, começou a correr um novo prazo de dois anos. O prazo da prescrição terminaria pois em 24-09-2013. Mas dado que em 14-02-2013 se suspendeu a prescrição (pelo prazo máximo de seis meses), o prazo da prescrição só ocorrerá 6 meses depois (de 24.09.13), isto é, em 24-03-2014.
Da aplicação do regime previsto no art. 28º, 3 do RGCO resulta que também não ocorreu a prescrição, pois mesmo inutilizando todos os prazos de interrupção, nos termos ali previstos, a prescrição só ocorre 3 anos e 6 meses depois da data do facto. Assim, tendo o facto ilícito ocorrido em 3 de Maio de 2011, o mesmo só prescreve em 3 de Novembro de 2014.
É portanto claro que, quer na data em que foi proferida a sentença em 1ª instância, quer na presente data, não prescreveu o procedimento contra-ordenacional.
(ii) Inconstitucionalidade do art. 170º, 3 do C. Estrada.
Sustenta o arguido que o artigo 170º, n.º 3 do C. Estrada é inconstitucional, por violação do princípio de presunção de inocência do arguido, previsto no art. 32º, 2 da CRP, e por constituir uma limitação excessiva ao direito de defesa, previsto no n.º 10 da mesma norma.
Em seu entender, o disposto no art. 170º, n.º 3 do C. Estrada equivale a uma verdadeira presunção de culpa ou de responsabilidade do arguido, inadmissível em direito sancionatório, por força nos n.ºs 2 e 10 do art. 32º da CRP.
O arguido não tem qualquer razão.
Como se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-12-2006, proferido no processo 06P366,
“O art. 170.º, n.º 3, do CE, ao declarar que o auto de contra-ordenação faz fé em juízo, quando levantado e assinado pela autoridade ou agente da autoridade, sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário, não acarreta qualquer presunção de culpabilidade nem envolve qualquer manipulação arbitrária do princípio in dubio pro reo, quando devidamente interpretado e aplicado, isto é, no sentido de que a fé em juízo consiste na atribuição de um reforçado valor probatório concedido a certas comprovações para factos presenciados pela autoridade ou agente da autoridade, sem que tal valor afecte o princípio da presunção de inocência e o direito de defesa (com destaque para o exercício do contraditório), tal qual se mostra consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP.”.
Note-se a este respeito que a sentença recorrida deu como assente a matéria constante do “auto de contra-ordenação”, tendo em conta que o seu teor foi confirmado “pelas testemunhas acima aludidas, não tendo sido produzida outra prova em contrário” – fls. 50.
Deste modo, o Tribunal não baseou a matéria assente unicamente no auto de notícia, mas na sua conjugação com o depoimento das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento. Ora, a convicção do julgador, formada com base no depoimento da testemunha que presenciou o facto e acreditando na veracidade do seu depoimento, demonstra que, no caso, o julgador teve por base não apenas a credibilidade do auto, mas sobretudo a credibilidade de quem, no exercício das suas funções, presenciou e relatou em tribunal o que viu.
Por outro lado, a questão que o arguido levanta não é nova, tendo sido apreciada no Tribunal Constitucional logo em 1988, no acórdão de 17-09-88, julgando conforme à Constituição a força probatória especial atribuída aos elementos colhidos pelas autoridades rodoviárias, nos ternos seguintes:
“(…)
I- Não julga inconstitucional a norma constante da segunda parte do n.º 5 do artigo 64º do Código da Estrada, que atribui aos elementos colhidos através de aparelhos de fiscalização de transito, aprovados pela Direcção-Geral de Viação, o valor de que gozam os autos de notícia nos termos do artigo 169º do Código de Processo Penal de 1929.
II - O valor probatório do auto de notícia fundado na determinação, por aparelho de medição adequado, da velocidade de um veículo, não incide sobre a culpa ou a responsabilidade do transgressor, mas apenas sobre o facto concreto da medição da velocidade, não impedindo que o réu continue a presumir-se inocente.
III- Tal valor probatório não obriga a dispensar a produção, em julgamento, de qualquer outra prova que se repute necessária, designadamente para questionar o próprio auto de notícia.
IV- Acresce que a audiência de julgamento se há-de subordinar ao princípio do contraditório e realizar-se com observância das regras da oralidade e imediação.
V- E se ficar a pairar no espírito do julgador dúvida sobre a velocidade a que seguia o infractor, sempre essa dúvida se há-de resolver a favor deste, por força do principio "in dubio pro reo".
(…)”.
No mesmo sentido decidiu o Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.ºs 87/87, 118/87, 127/87, 155/87, 203/87, 212/87, 253/87, 254/87.
A justificação dada pelo TC, para concluir pela conformidade constitucional de preceitos semelhantes, foi a seguinte:
“(…)
Assim, pois, a fé em juízo dos autos de notícia a que se refere o art. 169.º do CPP não acarreta qualquer presunção de culpabilidade, nem envolve, necessariamente, qualquer manipulação arbitrária do princípio in dubio pro reo. A presunção contida na fé própria do auto de notícia refere-se – como se disse já – «a certas comprovações materiais, que não à culpa ou à ‘culpabilidade’ do agente e não obriga minimamente – bem pelo contrário (cf. o § 3.º do art. 169.º citado) – a dispensar a produção em julgamento de qualquer outra prova que se repute no caso necessária» (cf. o Ac. 368 da C. Const. publicado no apêndice ao DR, de 18-1-83).
4 – O especial valor probatório dos autos de notícia, reconduzindo-se, ao cabo e ao resto, a simples prova de interim, também não põe em crise o direito de defesa do réu. De facto, a audiência de julgamento não se destina apenas à «reprodução» do auto de notícia, antes servindo também para a produção de provas que o juiz considere necessárias – necessárias, designadamente, para questionar o pr6prio auto de notícia, pondo em dúvida a veracidade das «comprovações» ou «verificações» materiais dele constantes (cf. o citado § 3.º do art. 169.º do CPP, conjugado com os arts. 19.º e 47.º do Dec. Lei n.º 35 007, de 13-10-45). Além disso, há-de ela subordinar-se, por imperativo constitucional, ao princípio do contraditório (cf. o art. 32.º, n.º 5, da CRP) e, bem assim, de realizar-se com observância dos demais princípios que a regem (o da oralidade e o da imediação). Daqui resulta que o réu, que pode aí fazer-se assistir por um defensor da sua escolha, tem assegurado o direito a um processo público e leal (a due process of law, a fair process), a um processo, em suma, que lhe assegura todas as garantias de defesa, de que fala o n.º 1 do art. 32.º da CRP.
(…)” – cfr. Acórdão proferido no processo n.º 525/02, de 30.09. 2003.
Note-se que nem sequer está vedado ao legislador criar presunções em matéria penal, desde que elidíveis – cfr., no sentido da admissibilidade de presunções, desde que elidíveis, os Acórdãos n.ºs 63/85, 447/87, 135/92 e 922/86 (sobre a responsabilidade criminal dos directores de periódi­cos) e 252/92 (sobre presunção de origem estrangeira de determinadas mercadorias).
Ora, no presente caso e como já referimos, o julgador ouviu o arguido e as testemunhas em audiência de julgamento, sob os princípios da oralidade, imediação e contraditório, tendo logrado afastar a dúvida sobre a prática dos factos imputados ao arguido. Deste modo, impõe-se concluir que o tribunal não aplicou qualquer norma que possa considerar-se inconstitucional.
(iii) Inconstitucionalidade do art. 141º do CE
Entende ainda o arguido que o artigo 141º do C.E, conjugado com o n.º 5 do art. 172º, é inconstitucional, por fazer depender a suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir, do pagamento antecipado da coima.
Na sua óptica, resulta deste regime (aplicado na decisão recorrida) que o arguido, para beneficiar da suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir, se vê obrigado a pagar voluntariamente a coima e, com isso, renunciar ao seu direito de defesa relativo à prática da infracção.
A nosso ver, o arguido não tem razão.
Na verdade, a interpretação dos citados artigos que reputa inconstitucional, não foi aplicada na decisão recorrida.
É certo que, como decorre do Acórdão n.º 45/2008, de 23/1/2008, o Tribunal Constitucional decidiu “julgar inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, segundo a qual, paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infracção”.
Ora, como decorre do referido acórdão, foi julgado inconstitucional o n.º 4 do artigo 175º do C.E (na redacção do Dec. Lei 44/2005, de 23/2) na interpretação segundo a qual o arguido que pague voluntariamente a coima (para beneficiar das vantagens desse pagamento) não pode discutir em Tribunal a existência da infracção.
Contudo, a nosso ver, o artigo 141º do Código da Estrada não é inconstitucional, interpretado no sentido de impor ao arguido o pagamento da coima, como condição de aplicação do regime de suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir.
Na verdade, não estando o arguido impedido de discutir a existência da infracção, o pagamento da coima é apenas uma condição de suspensão da execução da sanção acessória, ao lado das demais; por exemplo, o dever de frequentar acções de formação - art. 141, 3, al. b) do CE, ou a prestação de caução de boa conduta - art. 141º, 3, a) do C. Estrada.
Está assim no âmbito dos poderes de conformação do legislador ordinário, definir os requisitos de que depende a suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir, sendo razoável e racional que, entre esses requisitos, imponha o pagamento da coima, desde que (como já referimos) não impossibilite o arguido de discutir a verificação da infracção.
Não se verifica assim qualquer inconstitucionalidade.
Finalmente, importa sublinhar que, no caso dos autos, o arguido não pagou a coima e, portanto, não podia beneficiar do regime previsto no art. 141º, 1 do C. Estrada, por falta de um dos requisitos de que dependia a sua aplicação.
Nestes termos, impõe-se negar provimento ao recurso.
3. Decisão
Face ao exposto, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo arguido, fixando a taxa de justiça em 4 UC.

Porto, 18/12/2013
Élia São Pedro
Donas Botto