Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
723/08.6PBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: AMEAÇA
AMEAÇA GRAVE
CONCURSO
Nº do Documento: RP20120229723/08.6PBMAI.P1
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A ameaça de morte tem punição no art. 155º, nº 1, alínea a), do Código Penal, prevalecendo essa norma sobre a do art. 153º, nº 1, do mesmo código.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 723/08.6PBMAI.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Maia com o nº 723/08.6PBMAI, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferida sentença que condenou o arguido como autor material de um crime de ameaça p. e p. nos artºs. 153º nº 1 e 155º nº 1 al. a) do Cód. Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros) e ainda a pagar à demandante D… a quantia de € 1.250,00 a título de indemnização pelos danos morais sofridos.
Inconformado com a sentença condenatória, dela veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
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6. Estando a ameaça de prática de crime contra a vida prevista no nº 1 do artº 153º e não sendo possível executá-la por meios que constituam um crime punível com pena de prisão não superior a três anos, a ameaça de morte só pode constituir o crime previsto naquela norma legal;
7. Mesmo que assim se não entenda, não constitui o crime de ameaça agravada, previsto naquela norma e na alínea a) do nº 1 do artº 155º, a ameaça com um anúncio de morte genericamente formulada, sem descrever os meios mediante os quais se poderá vir a concretizar;
8. As afirmações “da primeira vez escapaste mas desta vez vais para o cemitério” e “depois trato de ti”, porque não especificam a que arma se referem, nem quaisquer outros meios mediante os quais a ameaça se poderia vir a concretizar, constitui um anúncio de morte genericamente formulado e, como tal, um crime de ameaça simples;
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10. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova e violou, por erro de interpretação, nomeadamente o disposto nos artºs. 153º nº 1 e 155º nº 1 do CPP, 496º do CC e o princípio in dubio pro reo.
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Na 1ª instância, o Mº Público respondeu às motivações de recurso concluindo pela respetiva improcedência, quanto à alteração da matéria de facto provada, mas concordando com o recorrente quanto à qualificação jurídica de tais factos, que em sua opinião integram a prática de um crime de ameaça p. e p. no artº 153º do Cód. Penal.
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A assistente não respondeu às motivações de recurso, não obstante ter sido expressamente notificada.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência parcial do recurso, apenas no que respeita à qualificação jurídico-penal dos factos provados, que entende integrarem a prática pelo arguido de um crime de ameaça simples, p. e p. no artº 153º nº 1 do C.Penal, importando a redução da pena de multa aplicada para 60 dias à mesma taxa diária.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1. O arguido foi casado com C… e viveu com ela na Rua …, …, Maia, onde também morava D…, sua nora.
2. No dia 14/8/2008, no interior da aludida residência, na sequência de uma discussão sobre a partilha dos bens do casal, o arguido virou-se para a D… e disse-lhe de forma séria e convincente: “da primeira vez escapaste mas desta vez vais para o cemitério”, querendo com isto significar que a mataria.
3. Quando ouviu tal anúncio, a ofendida temeu pela sua vida e chamou a PSP. Apercebendo-se que a polícia vinha a caminho, o arguido disse a D… “depois trato de ti”.
4. Com o uso das expressões acima referidas o arguido quis causar medo à ofendida, como efetivamente causou, e sabia que a sua atuação era de molde a alcançar tal desígnio.
5. O arguido atuou de forma consciente e livre, sabendo que a sua atuação proibida e punida por lei.
Do PIC
6. A assistente temeu não só pela sua vida mas também pela vida da sua filha porque estava grávida de 7 meses.
7. A queixosa é professora do ensino secundário e sempre foi tida como séria e honesta.
8. É uma pessoa educada, recatada e sensata.
9. A demandante tinha receio de aproximação do arguido.
Mais se provou que:
10. O arguido não tem antecedentes criminais.
11. O arguido está reformado com uma pensão de 1.600,00€. Habita casa própria. Paga uma pensão de alimentos no valor de 250€ à ex-mulher. Possui um automóvel. Tem uma doença renal crónica.
12. O arguido é pessoa considerada pelos amigos e colegas de trabalho.
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Foram considerados não provados os seguintes factos: (transcrição)
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente Da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Ora, face às conclusões das motivações apresentadas, as questões que o recorrente pretende ver reapreciadas resumem-se à impugnação da matéria de facto, à qualificação jurídica dos factos provados e ao quantum fixado a título de indemnização.
Quanto à impugnação da matéria de facto:
Como se refere nos acórdãos do S.T.J de 15.12.2005 e de 09.03.2006[3], e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto[4].
E, como se refere no acórdão desta Relação do Porto de 26.11.2008[5], «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido directamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores», fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam».
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
Quando, no artigo 412º, nº 3, b), do C.P.P., se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
Ora, das motivações do recurso resulta com nitidez que o recorrente pretende pôr em causa os juízos formulados pelo Tribunal a quo quanto à credibilidade dos depoimentos da ofendida D… e da testemunha C…, em que assentou a decisão quanto à prova dos factos. Para tal, alega que as declarações por estas prestadas em audiência são contraditórias com as que prestaram em fase de inquérito, “o que lhes retira toda a credibilidade”.
Ora, como o próprio recorrente reconhece, as declarações prestadas em inquérito não podem ser valoradas pelo tribunal para a formação da sua convicção, e muito menos quando não se tiver procedido à respetiva leitura em audiência, com observância do formalismo previsto no artº 356º do C.P.P.
Acresce que as referidas testemunhas, em cujos depoimentos o tribunal assentou a sua convicção, foram unânimes quanto ao essencial das expressões proferidas pelo arguido e que foram consideradas como integrando o elemento objetivo do crime de ameaça: “… desta vez vais parar ao cemitério” e “depois trato de ti”.
Como se sabe, julgar pressupõe optar, escolher, decidir.
Mas ao optar, escolher e decidir, o julgador deve fazê-lo de forma devidamente fundamentada, expondo de forma clara e segura os elementos de facto que fundamentam a sua decisão, o processo lógico que lhe subjaz. Só então (quando a escolha, a opção por uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência é suportada pelas provas invocadas na fundamentação da sentença, não se detectando nenhum erro patente de julgamento, nem tendo sido utilizados meios de prova proibidos), tal decisão é inatacável, porque proferida de acordo com a sua livre convicção (artigo 127º do CPP).
Pelas razões acima indicadas, não nos cabe nesta sede pôr em causa o juízo de credibilidade que o Tribunal a quo formulou, apoiado na imediação, a respeito dos depoimentos da ofendida e da testemunha C…. Se o Tribunal a quo não considerou relevantes, para formular tal juízo de credibilidade, as eventuais contradições agora apontadas pelo recorrente, não nos cabe agora analisar essas contradições para formularmos um juízo de credibilidade alternativo a esse, já não apoiado na imediação.
Está, assim, em causa, tão só, o juízo de credibilidade da ofendida e das testemunhas em que o Tribunal a quo alicerçou a sua decisão. Esse juízo baseia-se em características que escapam a um juízo não assente na imediação.
Em suma, parece que o recorrente pretende um novo julgamento da matéria de facto pela Relação, o que não é possível, pelas razões atrás indicadas.
Assim, impõe-se a improcedência do recurso quanto a este aspecto.
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Quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos provados:
Louvando-se no Acórdão desta Relação do Porto de 25.03.2010[6], sustenta o recorrente que “não podendo a ameaça contra a vida através da prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos ser, ao mesmo tempo, ameaça simples e ameaça agravada, deverá optar-se em favor da previsão menos gravosa, em obediência ao princípio in dubio”, reduzindo-se a pena em conformidade.
Relativamente a esta concreta questão, quer o Sr. Procurador-Adjunto na 1ª instância, quer o Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação estão de acordo com o recorrente.
Vejamos:
Dispõe o artº 153º do Cód. Penal que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Por outro lado, o artº 155º do Cód. Penal qualifica a ameaça em função da especial gravidade do crime com o qual se ameaça, estabelecendo-se, entre outras circunstâncias que no caso não relevam, que o agente será punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, quando os factos previstos nos artigos 153º e 154º forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos.
A ameaça é, à partida, a ameaça dum mal e o mal ameaçado tem de constituir um crime[7], ou seja, a ameaça é, em síntese, a «promessa de cometer um crime».
Como nota Taipa de Carvalho[8] perante o tipo em causa, a tutela penal da liberdade é, a um tempo, negativa e pluridimensional. «Negativa, na medida em que visa impedir as ações de terceiros que afetem a liberdade de decisão e de ação individual; pluridimensional, uma vez que assume as diversas manifestações da liberdade pessoal (liberdade de autodeterminação, de movimento, de ação, sexual) como autónomos objetos de proteção penal».
Segundo Miguez Garcia[9] “o bem jurídico protegido nos crimes contra a liberdade pessoal não é, pura e simplesmente, a liberdade, mas a liberdade de decidir e de atuar: liberdade de decisão (formação) e de realização da vontade. No crime de ameaça a proteção materializa-se também no sentimento de segurança: a ameaça é um crime de perigo contra a paz interior”.
É certo que o artº 153º do CP se refere à vida, à integridade física e ao património. Contudo, a tutela conferida a esses bens jurídicos é apenas indireta, pois o que diretamente se criminaliza é a lesão da liberdade de ação ou de decisão, ou seja, a liberdade pessoal.
Diferentemente do Cód. Penal de 1886 e da redação primitiva do Cód. Penal de 1982 (em que bastava a ameaça da prática de um qualquer crime)[10], a revisão de 1995 restringiu a amplitude deste elemento, especificando que o crime, objeto da ameaça, tem de ser “contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”.
No âmbito da Comissão Revisora do Código Penal de 1995 o Prof. Figueiredo Dias “salientou as dificuldades em tipificar as condutas de molde a evitar sobreposições. Quanto às ameaças, propõe-se um alargamento da matéria proibida e, por outro lado, estreita-se a sua aplicação pela indicação dos bens ameaçados”[11].
Ou seja, o legislador de 1995, entendendo que a referência genérica à “prática de crime” seria suscetível de nela fazer integrar qualquer facto ilícito típico, criando o perigo de tornar punível toda ou quase toda a atividade social do homem, enunciou, de forma a restringir, o âmbito criminal da norma, passando a constituir ameaça apenas a promessa de cometimento dos crimes enunciados no nº 1 do artº 153º.
E nessa enunciação não podia deixar de incluir os crimes contra a vida, não só por se tratar do bem jurídico a que atribui maior tutela penal, como bem supremo, mas também porque, entre as ameaças, ocorrem com mais frequência as vulgarmente denominadas “ameaças de morte”.
Porém, a inclusão dos crimes contra a vida no nº 1 do artº 153º do Cód. Penal, não significa que “a promessa” da prática de um crime dessa natureza constitua um crime de ameaça simples, punível com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias. Se assim fosse, não teria qualquer sentido útil a previsão da al. a) do nº 1 do artç 155º do Cód. Penal (correspondente ao nº 2 do artº 153º, na redação anterior à Lei nº 59/2007 de 04.09), sabido que aos crimes contra a vida o legislador fez corresponder a cominação com pena de prisão superior a 3 anos – com exceção dos crimes de homicídio a pedido da vítima (artº 134º) e de ajuda ao suicídio (artº 135º) que, pela sua própria natureza, não poderão constituir objeto de ameaça.
Como escreve Taipa de Carvalho[12] «O nº 2 do artº 153º estabelece uma agravação da pena abstrata quando “a ameaça for com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos”. A ratio desta agravação consiste na razoável consideração legislativa de que há, no geral dos casos, uma proporção direta entre a gravidade do crime objeto da ameaça e a perturbação da paz individual e da liberdade de determinação: quanto mais grave aquele for maior será essa perturbação. Este nº 2 do artº 153º prevê, portanto, um crime de ameaça qualificada pela gravidade do crime ameaçado. Acentue-se, porém, que as espécies de crimes que podem ser objeto das ameaças qualificadas são exatamente as mesmas do nº 1 do artº 153º, isto é, os bens jurídicos cuja ameaça de lesão constitui ameaça qualificada são os mesmos que vêm mencionados no nº 1. A especificidade do disposto no nº 2 reduz-se, exclusivamente, à exigência de que a pena estabelecida para os crimes (objeto da ameaça) referidos no nº 1 tenha um limite máximo superior a 3 anos de prisão. […] Sendo evidente que não tem sentido, para efeitos de decisão sobre se houve ameaça qualificada a questão de saber se a pena, a que explicitamente se refere o nº 2 (pena de prisão superior a 3 anos), é a pena estabelecida para o correspondente crime doloso ou por negligência – pois que estando em causa a ameaça de lesar a saúde, de matar, de violar, de incendiar uma floresta, etc., não pode deixar de ser a pena estabelecida para o crime doloso –, então ter-se-á de concluir que a ameaça de morte subsumir-se-á sempre ao artº 153º-2 (ameaça qualificada).
Ressalvando sempre o devido respeito, não podemos concordar com a entendimento explanado no Ac. desta Relação de 25.03.2010, citado pelo recorrente e pelo Sr. PGA, no sentido de que “a ameaça com um anúncio de morte, genericamente formulado, sem qualquer concretização quanto aos meios a empregar, não pode deixar de estar prevista, tão só, no nº 1 do artº 153º do CP. e que a previsão de crime agravado pela al. a) do artº 155º, do CP tem de dirigir-se àqueles casos em que a descrição dos meios mediante os quais a ameaça – no caso, contra a vida – se poderá vir a concretizar, configura um crime da previsão do artº 155º, nº 1, al. a), do CP.”
Tal entendimento não tem, em nossa opinião, o mínimo apoio no texto legal. E, em conformidade com o disposto no artº 9º nºs 2 e 3 do Cód. Civil, não deve o intérprete considerar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, devendo presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Por outro lado, a interpretação que resulta do citado acórdão poderia levar à qualificação da ameaça de um crime de ofensa à integridade física grave (artº 144º, punido com pena de prisão de dois a dez anos) e, no entanto, integrar uma ameaça de morte “genericamente formulada” no tipo simples do artº 153º nº 1, quando o crime de homicídio é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos. Se o agente disser à vítima “hei-de arrancar-te os olhos” (privação de importante órgão – artº 144º al. a) seria mais severamente punido do que se disser “hei-de matar-te”.
É certo que a letra da lei – do artº 153º nº 1 e do artº 155º nº 1 al. a) – é suscetível de levar o intérprete a concluir que a ameaça de morte tanto pode integrar o crime de ameaça simples como o crime qualificado.
Entendemos, porém, que como atrás dissemos, o legislador apenas pretendeu enunciar no tipo base do artº 153º nº 1 quais os factos ilícitos típicos que podem ser objeto de ameaça, sem prejuízo de, relativamente aos mesmos ou parte deles, os vir a enquadrar na previsão normativa da ameaça qualificada do artº 155º nº 2.
Note-se, aliás, que o que acontece com a ameaça de crime contra a vida, ocorre igualmente com a ameaça de prática de crime contra bens patrimoniais de considerável valor. Neste caso, ou haverá crime de ameaça qualificada ou, pura e simplesmente, não haverá crime de ameaça. Isto porque, para haver crime de ameaça, a lei exige que o bem patrimonial seja de considerável valor e, no entanto, a generalidade dos crimes contra o património em que esteja em causa um valor considerável ou elevado (resultante do disposto no artº 202º do C.P.) são puníveis com pena de prisão superior a três anos – v.g. artºs. 204º e 213º do C.P.
A solução para a questão em apreço terá, assim, de encontrar-se no âmbito do concurso de normas, na medida em que existe pluralidade aparente de infrações – artº 153º nº 1/ artº 155º nº 1 al. a).
Como ensina o Prof. Cavaleiro Ferreira[13] “A locução concurso de normas vem designando, em direito penal, o problema da limitação da aplicabilidade de uma norma que seja consequência da aplicabilidade de outra norma ao mesmo objeto. O concurso de normas, enquanto considerado em abstrato, pode conduzir a duas soluções diferentes: ou à aplicabilidade simultânea das normas em concurso à mesma realidade de facto (concurso real de normas); ou à exclusão da aplicabilidade de uma norma por outra norma concorrente, que prevalece sobre a primeira (concurso aparente de normas, a que corresponde o concurso aparente de crimes).
O Código Penal não contém quaisquer diretrizes sobre a inaplicabilidade de uma das normas convergentes sobre a mesma realidade de facto e sobre a aplicabilidade de outra norma convergente que sobre a primeira prevalece e a exclui. Remete para a doutrina a discussão e apresentação dos critérios necessários. Seguindo a doutrina mais comum, o concurso de normas (concurso aparente de normas) verificar-se-á quando, entre as normas concorrentes, haja uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consunção.
Segundo o Prof. Cavaleiro Ferreira[14] “em todos estes casos terá lugar a prevalência de uma norma incriminadora sobre outra formal e aparentemente aplicável, e que, por isso, é excluída pela primeira. Para que tal aconteça é preciso que a matéria de facto seja totalmente valorada pelas duas normas convergentes, e de modo que seja incompatível a valoração conjunta de ambas as normas, prevalecendo uma só qualificação com exclusão da outra: sobre a matéria de facto abrangida por ambas as normas só poderá recair uma qualificação jurídico-penal, uma incriminação, a incriminação da norma prevalente. Esta situação tem lugar em três hipóteses, a que correspondem os critérios de definição de prevalência de normas e que se designam por especialidade, subsidiariedade e consunção”.
A especialidade é definida como a relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que numa lei (a lex specialis) se contêm todos os elementos de outra (lex generalis) e, além disso, ainda algum ou alguns outros elementos especializadores. Como refere o Prof. Eduardo Correia[15] “na base da parte especial de todos os sistemas criminais está, na verdade, um certo número fundamental de delitos (Grundtypen) que constituem por assim dizer a sua espinal-medula. Depois, partindo desses tipos e acrescentando-lhes certos elementos como circunstâncias modificativas (atenuantes ou agravantes que modificam a moldura penal abstrata), o legislador constrói outras figuras de delitos. E aparecem, assim, os crimes qualificados ou privilegiados.
No caso em apreço, a relação que se estabelece entre o tipo do artº 153º e o previsto no artº 155º nº 1 do Cód. Penal é, sem dúvida, uma relação de especialidade, estando o tipo-base previsto na primeira norma, à qual foram acrescentados elementos modificativos (quanto ao limite máximo da pena do crime ameaçado) que deram origem a um crime agravado na segunda norma, a qual contém necessariamente todos os elementos constitutivos da primeira. Sendo assim, resulta da estrutura da relação de especialidade que a norma especial prevalece sobre a norma geral e afasta inteiramente a aplicação desta (lex specialis derogat legi generali).
Daí que, sendo o crime objeto da ameaça punido com pena de prisão superior a três anos, o agente deva ser punido pelo crime agravado previsto no artº 155º nº 1 al. a) do Cód. Penal, excluindo-se definitivamente a aplicação do crime simples previsto no artº 153º nº 1.
Tendo assim decidido, a decisão recorrida não é merecedora de qualquer censura, improcedendo, assim, mais este fundamento do recurso.
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Quanto ao pedido cível de indemnização:
Sustenta o recorrente que pela extensão, gravidade e intensidade dos danos não patrimoniais sofridos pela demandante não se justifica a atribuição de um valor superior ao de um salário mínimo nacional, sob pena de locupletamento indevido da ofendida à custa do arguido.
Acontece, porém, que a parte da sentença que respeita ao pedido cível é irrecorrível.
Estabelece o art. 399.º do Cód. Proc. Penal que “É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.
O direito ao recurso é uma das facetas do acesso ao direito e uma das dimensões da tutela jurisdicional efectiva, que tem assento no art. 20º da C.R.P.
No entanto este princípio geral de recorribilidade das decisões judiciais, não é ilimitado, podendo haver restrições, tanto relativas à matéria penal, como à matéria cível.
Assim e segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, as limitações excepcionais ao recurso, justificam-se sempre que essa restrição seja proporcional e se contemporize com o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, sendo certo que não existe um direito constitucional ilimitado a um segundo grau de jurisdição.
Tratando-se de matéria penal essa restrição será apenas aceitável quando se confinar a decisões penais não condenatórias ou então que não afectem a liberdade ou outros direitos fundamentais do arguido[16].
Por sua vez, tratando-se de matérias diversas da penal o Tribunal Constitucional tem entendido que existe um genérico direito de recurso dos actos jurisdicionais com um conteúdo mínimo de eficácia relativamente à obtenção de justiça, estando apenas vedada a abolição total do sistema de recursos ou a sua afectação substancial[17].
Nesta conformidade tem-se entendido que o critério de admissibilidade de recurso em função das alçadas do tribunal de que se recorre e do valor da sucumbência, tal como tem vindo a ser fixado pelo legislador ordinário, mostra-se proporcional e adequado.
Ora, os casos de inadmissibilidade do recurso relativamente à matéria penal, estão, para além de outras disposições específicas, como as dos artº. 42º nº 1, 45º, nº 6, 219º nº 1, 310º nº 1, 391º e 391º-F, expressamente assinalados no art. 400º nº 1.
Por sua vez, no que respeita à decisão sobre indemnização cível, no nº 2 deste artº. 400º, preceitua-se que “Sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”.
Assim, a admissibilidade do recurso – na parte da decisão respeitante ao pedido de indemnização civil - está dependente da verificação cumulativa de um duplo requisito: (1) que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre; (2) que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre.
No caso dos autos, o assistente/demandante formulou o pedido cível em 29.03.2010, sendo que o respetivo valor ascendia a € 2.000,00.
Ora, sendo a alçada dos tribunais de 1ª instância, à data em que foi formulado o referido pedido cível, de € 5.000,00 (art. 24º nº 1 da Lei nº 3/99 de 13/1 - LOFTJ - na redacção do Dec-Lei nº 303/2007, de 24/8) é manifesto que o valor do pedido não é superior à alçada do tribunal da 1ª instância.
Por isso, nos termos do artº. 400º nº 2 do CPP, é inadmissível o recurso dessa parte da decisão.
Tendo em vista o disposto nos arts. 420º nº1 al. a) e 414º nº 2 do CPP, a irrecorribilidade da decisão em matéria cível sempre será motivo de rejeição do recurso.
Por outro lado, esta Relação não se encontra vinculada ao despacho da 1ª instância que admitiu o recurso, como decorre do disposto no artº 414º nº 3 do C.P.P., impondo-se por isso a sua rejeição.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em rejeitar o recurso da parte cível e negar provimento ao recurso da parte crime, mantendo consequentemente a decisão recorrida.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
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Porto, 29 de fevereiro de 2012
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
António José Alves Duarte
___________________
[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Ambos relatados pelo Cons. Simas Santos e disponíveis em www.dgsi.pt
[4] V., neste sentido, Ac. do S.T.J. de 21.01.2003, relatado pelo Cons. Afonso Correia, também acessível em www.dgsi.pt
[5] Relatado pela Des. Maria do Carmo Silva Dias e publicado na RLJ ano 139º, nº 3960, pág. 176 e ss.
[6] Proferido pelo Desemb. Ricardo Costa e Silva, no Proc. nº 2940/08.0TAVNG.P1.
[7] Como referiu Eduardo Correia, para frustração do perigo de se tornar punível toda ou quase toda a atividade social do homem.
[8] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 341.
[9] In “O Direito Penal Passo a Passo”, Vol. I, pág. 238.
[10] Dispunha o artº 155º do CP/82 “1. Quem ameaçar outrem com a prática de um crime, provocando-lhe receio, medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação, será punido com prisão até um ano ou multa até 100 dias; 2. No caso de se tratar de ameaça com a prática de crime a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos, poderá a prisão elevar-se até 2 anos e a multa até 180 dias.”
[11] Cfr., Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 232.
[12] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 345 e 346, embora com referência à redação anterior à Lei nº 59/2007.
[13] In Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, pág. 528.
[14] Ob. e loc. citados.
[15] In A Teoria do Concurso em Direito Criminal – Unidade e Pluralidade de Infrações, pág. 127.
[16] Cfr. Acs. do Trib. Constitucional nºs. 265/94, 322/93, 610/96, 189/2001.
[17] V. Acs. do Trib. Constitucional nºs. 287/90, 447/93, 249/94, 270/95, 337/96, 496/96, 182/98 e 335/2006.