Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1179/08.9TBPFR.P1
Nº Convencional: JTRP00043299
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
ABUSO DE DIREITO
JUROS REMUNERATÓRIOS
Nº do Documento: RP200912161179/08.9TBPFR.P1
Data do Acordão: 12/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO - LIVRO 821 - FLS 148.
Área Temática: .
Sumário: I – Abusa de direito o mutuário-consumidor que invoca a nulidade de um contrato de adesão celebrado com uma entidade financeira por não lhe ter sido entregue um exemplar do contrato no momento da respectiva assinatura, quando, na realidade, sobre a data do negócio decorreu um período de tempo que lhe permitiu fazer, e fez, o pagamento de 20 das 60 prestações mensais fixadas para o integral cumprimento do contrato, ao mesmo tempo que, pela via da referida excepção, pretende, contraditoriamente, que se produza o efeito previsto na al. b) do nº6 do art. 7º do DL nº 359/91, de 21.09, ou seja, que o pagamento seja reduzido ao montante do crédito concedido.
II – Estando, não apenas o capital mutuado, mas também os juros remuneratórios e outras despesas da entidade financiadora diluídos nas prestações mensais contratualmente fixadas a cargo do mutuário, em caso de vencimento antecipado de todas as prestações em falta, há que excluir da obrigação de pagamento, além do mais, os juros remuneratórios relativos àquelas prestações.
III – Se o capital, os juros remuneratórios e outras despesas incluídas no valor das prestações com vencimento antecipado não estiverem devidamente discriminadas, desconhecendo-se o valor de cada uma delas deverão as partes ser remetidas para liquidação oportuna.
IV – A perda do benefício do prazo tem carácter pessoal, não se estendendo aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1179/08.9TBPFR.P1 – 3ª Secção (Apelação)
Comarca de Paços de Ferreira
Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Teixeira Ribeiro
Adj. Desemb. Pinto de Almeida


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………., S.A., com sede na ………., n.º .., ….-… LISBOA, intentou acção com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, nos termos do Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro, contra C………., solteira, maior, nascida em 20/08/1983, residente no ………., …. – … ………. e D………., casado, nascido em 23/11/1982, residente no ………. n.º ., …. – … ………., alegando essencialmente o seguinte:

A A. recorrente, instituição de crédito, no exercício da sua actividade comercial, concedeu um crédito à primeira R. recorrida no valor de € 6.317,00, acrescido de juros e cláusula penal, esta em caso de mora, tendo em vista o pagamento do preço da compra de um veículo automóvel a terceiro (o Stand).
O valor do mútuo, acrescido dos juros, despesas e outros valores (comissão de gestão, imposto de selo e prémio de seguro) seria pago em 60 prestações mensais e sucessivas, sendo que a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações.
Em 10 de Agosto de 2007, a recorrida não pagou a respectiva (19ª) prestação, vencendo-se logo todas as prestações futuras. Contudo veio a pagar as prestações 20ª e 21ª, vencidas em 10 de Setembro e 10 de Outubro de 2007, respectivamente.
O 2º R. assumiu perante a A., a responsabilidade de fiador e principal pagador, por todas as obrigações assumidas pela R. C………. no contrato de mútuo, pelo que é também solidariamente responsável com a R. pelo pagamento à A. dos montantes em causa.
E concluiu:
«Nestes termos e nos mais de direito, deve a presente acção ser julgada procedente e provada e, por via dela, os R.R. serem condenados, solidariamente entre si, a pagar ao A. a importância de Euros 6.833,20, acrescida de Euros 1.531,66 de juros vencidos até ao presente – 23 de Julho de 2008 – e de Euros 61,27 de imposto de selo sobre estes juros e, ainda, os juros que, sobre a dita quantia de Euros 6.833,20 se vencerem, à taxa anual de 23,51%, desde 24 de Julho de 2008 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes juros recair e, ainda, no pagamento das custas, procuradoria e mais legal.»

Regularmente citados, apenas a R. C………. contestou a acção, excepcionando a nulidade do contrato, com os seguintes argumentos:
Limitou-se a subscrever um contrato-tipo, de adesão, previamente elaborado.
A A. não lhe comunicou de modo adequado todos os elementos das cláusulas particulares, nem, tão-pouco, lhe foi comunicada qualquer cláusula das condições gerais, extensas, complexas e em letra minúscula, como observa agora nos autos, juntas pela demandante.
Com efeito, a A. não pode prevalecer-se do seu conteúdo, sendo o contrato nulo.
Não lhe foi entregue qualquer exemplar do contrato escrito, pelo que não pôde reflectir sobre ele, e também por isso o negócio é nulo.
A nulidade do contrato acarreta um novo cálculo do valor das prestações, agora despido de juros e outros encargos, mantendo a R. o direito de pagar no tempo acordado.
Termina no sentido de que seja julgada procedente a excepção da nulidade do contrato, com os efeitos decorrentes do disposto no artigo 7.°, n.º 6, alínea b), do Decreto-lei nº 359/91 de 21/09, e atrás enunciados.
Requereu a gravação da audiência de julgamento.

Notificada, a A. respondeu à excepção da nulidade no articulado de fl.s 110 a 125, defendendo a respectiva improcedência, designadamente por abuso de direito da R. contestante.
Sendo verdade que no momento em que a R. apôs a sua assinatura no contrato de mútuo, não lhe foi entregue uma cópia ou exemplar de tal contrato, este, depois de assinado por ela e, posteriormente, por um representante da A., foi enviado para a residência da R. através de um dos dois exemplares subscritos.
Só depois da R. ter assinado o contrato no stand de venda do automóvel é que o vendedor enviou tal documento para a A. assinar; pelo que se está perante um contrato de mútuo entre ausentes, só perfeito depois de ambas as partes o terem assinado; razão pela qual não podia ser nem tinha que ser entregue à mutuária no momento em que ela o assinou.
O contrato não pode ser classificado como um contrato de adesão, porque houve negociação entre as partes relativa a algumas cláusulas.
Todos os esclarecimentos e informações complementares seriam prestados à R. se os tivesse solicitado, antes ou depois da subscrição do contrato, mas a R. nunca os solicitou.
Por regra, a A. não tem que, obrigatoriamente, ler e explicar aos seus clientes os contratos que com eles celebra.
Como ressalta da análise do contrato de mútuo dos autos, as Condições Gerais acordadas no mesmo não constituem qualquer formulário onde se possa inserir ou preencher o que quer que seja, pois tais Condições Gerais são directamente impressas no verso da folha que constitui o contrato de mútuo dos autos. Formulário onde se podem inserir cláusulas constitui a primeira folha do contrato de mútuo dos autos onde estão as Condições Específicas do mesmo e onde se encontram apostas as assinaturas dos R.R.
A A. cumpriu inteiramente os deveres de comunicação e informação de todas as cláusulas contratuais gerais. Se os R.R. não as leram, foi porque não as quiseram ler.
Reafirmando a legalidade do contrato, designadamente quanto ao direito de cobrar os juros peticionados e encargos, termina no sentido de que se julguem improcedentes as excepções deduzidas pela R., renovando a sua pretensão inicial.
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Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença pela qual o tribunal a quo julgou a acção improcedente por considerar nulo o contrato de mútuo e também nula a fiança concedida pelo 2º R. em benefício da 1ª R.
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Inconformada com a decisão, a A., B………., S.A., interpôs recurso de apelação com vista à condenação dos R.R. nos pedidos, no qual formulou as seguintes conclusões:

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A recorrida C………. respondeu ao recurso, concluindo assim:

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Pediu que se julgue o recurso improcedente.
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II.
Versando o recurso unicamente sobre matéria de Direito --- as parte não põem em causa a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo na sentença recorrida --- este tribunal tê-la-á como assente nos termos da conjugação dos art.ºs 685º-B e 712º, do Código de Processo Civil.
Excepção feita para as questões que sejam do conhecimento oficioso, as questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões da apelação da recorrente, acima transcritas [cf. art.º 685º-A, do Código de Processo Civil (v.d. Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra, 4ª edição, p.s 103 e 113 e seg.s)].
Importa, sobretudo, apurar se:
- O contrato de mútuo celebrado entre a A. e a R. C………. é nulo por preterição de deveres de informação impostos por lei à A. em benefício da R. enquanto consumidora; ou se, como refere a recorrente,
- Ao invocar a preterição daquelas formalidades, a recorrida age com abuso de direito, assim afastando a declaração de nulidade feita na sentença recorrida e o respectivo efeito jurídico (ali não declarado).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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III.
São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

a) A autora, no exercício da sua actividade comercial, por um lado, e a ré C………., por outro, subscreveram escrito particular, segundo o qual aquela primeiro concederia à segunda um crédito pessoal, emprestando a esta a quantia de € 6.317,00 (seis mil trezentos e dezassete euros), sob as seguintes condições:
com juros à taxa nominal de 19,51% ao ano;
a importância do empréstimo e os juros aludidos, bem como a comissão de gestão e o imposto de selo de abertura de crédito e os prémios de seguro de vida, deveriam ser entregues pela ré à autora, em 60 prestações mensais e sucessivas no valor de € 170,83, com vencimento a primeira em 10 de Fevereiro de 2006, e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes, importâncias aquelas a serem pagas – conforme ordem irrevogável dada pela ré C………. para o seu Banco – mediante transferências bancárias a efectuar em cada uma daquelas referidas datas, para conta bancária titulada pela autora, tudo como flui do teor de fls. 8 e 9 que aqui se dá por integralmente reproduzido;
b) Mais ficou a constar do escrito particular aludido na alínea anterior, que a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações e que em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 19,51% - acrescida de 4 pontos percentuais, isto é, um juro à taxa anual de 23,51%;
c) A ré não pagou a 19.ª prestação e seguintes, vencida a primeira em 10 de Agosto de 2007, tendo, contudo, efectuado o pagamento da 20.ª e 21.ª prestações vencidas em 10 de Setembro de 2007 e 10 de Outubro de 2007, respectivamente;
d) No escrito aludido em a), consta ainda a assinatura de D………. após a palavra - “O Fiador”- podendo ler-se no referido escrito que este ao subscrever o mesmo se assume perante o B………. como fiador e principal pagador de todas e quaisquer obrigações que para o mutuário resultem da assinatura do contrato;
e) A ré subscreveu o escrito aludido em a), para a aquisição de um veículo automóvel, matrícula ..-..-IG, marca Volkswagen, modelo ……….;
f) A ré limitou-se a subscrever o escrito aludido em a), já previamente elaborado, sendo que na data da respectiva assinatura não foi fornecida à ré qualquer cópia do contrato;
g) A autora é uma instituição de crédito, dedicando-se ao financiamento de aquisições a crédito, tendo sido no desempenho de tal exercício e funções que tomou contacto com a ré, sucedendo que quando um comerciante pretende vender determinado equipamento – no caso concreto, um veículo automóvel – a determinada pessoa que não tem possibilidade de o pagar a pronto, depois de ajustar com ela o preço, e as condições e o estado do equipamento, contacta a autora propondo-lhe que financie o crédito para a operação, de forma a que o vendedor receba o preço a pronto, e a autora providencie ao financiamento de tal aquisição a crédito;
i)[1] Após o ajuste do negócio, o fornecedor do veículo automóvel que a ré se propunha adquirir – o stand “E………., Lda.” – em seu nome e também em nome da dita ré, propôs à autora que concedesse empréstimo directo à mesma com destino à aquisição por ela do veículo automóvel da marca Volkswagen modelo ………., com a matrícula ..-..-IG, atento a ré não dispor de possibilidades de o pagar a pronto.
j) Após ter aprovado a concessão de crédito à ré e de ter comunicado ao referido fornecedor tal aprovação, a autora elaborou dois exemplares, o contrato de mútuo referido nos autos, que enviou ao fornecedor do veículo, para ambos os exemplares serem assinados pela ré, após o que o Stand os enviou para que fossem também assinados por um representante da autora.
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A 1ª instância, ainda através da sentença, deu como não provada a seguinte matéria:
1- Após ter aprovado a concessão de crédito à ré e de ter comunicado ao referido fornecedor tal aprovação, a autora elaborou dois exemplares, o contrato de mútuo referido nos autos, que enviou ao fornecedor do veículo, para ambos os exemplares serem assinados pela ré, após o que o Stand os enviou para que fossem também assinados por um representante da autora;
2- Depois de assinado por um representante da autora, esta tenha enviado para a residência da ré o exemplar do contrato de mútuo dos autos que lhe era destinado;
3- A autora tivesse comunicado à ré todos os elementos e cláusulas constantes do contrato dos autos.

IV.
Sendo estes os factos, tratemos então as questões que nos são colocadas nas conclusões da recorrente, que delimitam o objecto do recurso.

1- A nulidade do contrato de mútuo
Os factos provados não deixam dúvida alguma de que entre a recorrente e a recorrida C………. se estabeleceu uma relação contratual típica de um contrato de mútuo.
Numa forma mais comum e generalizada, utiliza-se a expressão emprestar no sentido próprio do mútuo, de confiar uma coisa a outrem, com a condição de ser restituída ou de cedência temporária de uma coisa. Mas, tecnicamente, o art.º 1142º do Código Civil define o mútuo como o «contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade».
Por força do contrato em causa, que tem natureza real, em princípio, o beneficiário do empréstimo, pela entrega do dinheiro, adquire a propriedade do mesmo, o direito a ele, sendo a atribuição patrimonial efectuada pelo mutuante um elemento constitutivo ou integrante do contrato, que não existe sem tal entrega (art.º 1144º, do Código Civil).
No nosso caso, o negócio tem a especificidade de consistir na concessão de um crédito ou financiamento ao consumo, regulado pelo Decreto-lei nº 359/91, de 21 de Setembro[2].
A própria recorrente e a recorrida C………. reconhecem a aplicabilidade deste regime legal.
Em causa, no recurso, está a interpretação a dar ao art.º 6º, nº 1, conjugado com o art.º 7º, nº 1, daquele decreto-lei (diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem).
Dispõe assim a primeira das disposições legais citadas:
«O contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura.»
E do nº 1 do art.º 7º resulta que o contrato de crédito é nulo quando não for observado o prescrito no n.º l do art.º 6º.
Defende a recorrente que se trata de um contrato entre ausentes por não estar presente no momento em que a mutuária o subscreveu junto do fornecedor do bem (um automóvel), e que o fez apenas posteriormente, depois de ter recebido daquele a proposta assinada pela ora recorrida. Por isso, só depois de ter subscrito o contrato é que este ficou perfeito e em condições de viabilizar o decurso do período de 7 dias de reflexão do consumidor a que se refere o art.º 8º, nº 1.
Tendo sido enviada depois da assinatura de ambas as partes um exemplar do contrato para a recorrida, foram cumpridas tais formalidades legais e não se verifica a invocada nulidade, pois terá tido, a partir dessa data, a possibilidade de revogação concedida pelo art.º 8º, nº 1, segundo o qual «com excepção dos casos previstos no n.º 5, a declaração negocial do consumidor relativa à celebração de um contrato de crédito só se torna eficaz se o consumidor não a revogar, em declaração enviada ao credor por carta registada com aviso de recepção e expedida no prazo de sete dias úteis a contar da assinatura do contrato ou em declaração notificada ao credor, por qualquer outro meio, no mesmo prazo».
Pois bem.
O contrato de crédito ao consumo, aqui em causa, tal como os outros, pela sua natureza, só fica perfeito depois de assinado por ambas as partes, momento em que as mesmas se obrigam na constituição de direitos e deveres recíprocos (contratos bilaterais).
Havendo quem defenda que a cópia do contrato deve ser entregue ao consumidor logo que ele o assina, mas devendo ser ele o último a subscrevê-lo, afigura-se-nos que, de facto, em qualquer caso, seja o contrato celebrado entre ausentes ou não seja, é --- sob pena de nulidade --- indispensável a remessa de um exemplar do contrato escrito ao mutuário; data a partir da qual decorre o referido prazo de sete dias de reflexão para eventual revogação negocial. Só assim o mutuário consumidor subscritor do contrato entre ausentes não fica prejudicado --- como não pode nem deve --- relativamente aos contratantes presentes. A remessa posterior não prejudicaria a recorrida consumidora, pois ainda que tivesse recebido uma cópia do contrato não assinado pela mutuante quando ela própria o assinou em primeiro lugar, o referido prazo de reflexão não se iniciava, passando a dispor, de facto, de um prazo de reflexão que só mais tarde se iniciaria.
Assim, sabendo todos que, até por maioria de razão, também nos contratos entre ausentes, é indispensável o cumprimento integral do art.º 6º, nº 1 (cf., i.a., acórdão da Relação de Lisboa de 2 de Junho de 2009, publicado em “Direitos do Consumidor - colectânea de jurisprudência” editada pela DECO, 2003, p. 258), o que importa apurar, prima facie, é se, de uma ou outra forma, foi entregue à recorrida um exemplar do contrato de crédito escrito e assinado por ambas as partes.
A recorrente diz que sim, enquanto a recorrida diz que não! Mas, tratando-se de matéria de facto (que as partes não puseram em causa no recurso), é no que resulta assente nos autos que se deve buscar a resposta.
E o que resulta da decisão recorrida é que não se provou que “depois de assinado por um representante da autora, esta tenha enviado para a residência da ré o exemplar do contrato de mútuo dos autos que lhe era destinado;”.
Ora, o nº 4 do art.º 7º refere expressamente que a inobservância dos requisitos constantes do artigo anterior presume-se imputável ao credor e a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor.
Nos termos do art.º 344º, nº 1, do Código Civil, cabia à recorrente elidir a presunção referida no nº 4 do art.º 7º, e não o fez.
Pelo contrário, a recorrente, nas suas alegações, para defender a sua posição, parte do falso pressuposto de que entregou um exemplar do contrato à mutuária depois de ter sido assinado por ambas as partes. Alega que «o que é verdadeiramente relevante para o n.º l do referido artigo 6º do Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro, é que a concessão do crédito seja feita por meio de um contrato bilateral assinado por ambos os contraentes; que o contrato de crédito tenha que obedecer à forma escrita; e que, uma vez celebrado o contrato – o que implica a assinatura de ambas as apartes – seja entregue um exemplar desse contrato ao consumidor (conclusão 9ª)[3]. Ou seja, a recorrente considera praticamente indispensável a remessa de um exemplar do contrato ao consumidor mas, na verdade, não o enviou, pois disso não fez prova.

Quer pelo que resulta provado sob as al.s a), b), f), g) e i), quer pela análise directa do documento junto a fl.s 8 e 9 que enforma o contrato de crédito, com condições gerais e específicas, define-se tal negócio como um contrato de adesão. Na verdade o núcleo essencial modelador do regime contratual subscrito é constituído por um bloco de cláusulas que se aceita ou repudia, sem possibilidade de negociação e que o teor das cláusulas carecem de adequada informação para que o aderente saiba e pondere se é conforme aos seus interesses subscrever o texto impresso que lhe é proposto (cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Maio de 2008 e de 7.7.2009, in www.dgsi.pt).
Remetidos que somos também para o regime das cláusulas contratuais gerais (adiante designado por CCG), do Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 220/95, de 31 de Janeiro e pelo Decreto-lei nº 249/99, de 7 de Julho, até dos respectivos art.ºs 5º e 6º se extrai a importância que o legislador atribui aos deveres de comunicação das cláusulas contratuais gerais e de informação ao aderente, a par da atribuição do ónus da prova da comunicação adequada e efectiva ao contratante que submete a outrem as cláusulas daquele género.
Note-se que a autora também não demonstrou que tivesse comunicado à ré todos os elementos e cláusulas contratuais gerais constantes do contrato e que, quanto a elas, tivesse prestado as informações devidas, pelo que se sujeitou também aos efeitos previsto no art.º 8º, al.s a) e b), das CCG.

Não logrando a prova da remessa do exemplar do contrato para a 1ª ré, em qualquer ocasião, a recorrente deve arcar com as respectivas consequências. A recorrente nunca --- desde a data em que a mutuária subscreveu a proposta de adesão --- entregou à recorrida consumidora qualquer exemplar do contrato por elas assinado. E não o tendo feito, o contrato deve ser, em princípio, declarado nulo e de nenhum efeito (art.º 7º, nº 1).
Mas a solução desta questão prende-se com a análise da questão seguinte, que constitui excepção ao funcionamento da nulidade.
É o que vamos ver.

2- O abuso de direito
Nas suas alegações a recorrente pretende ainda demonstrar que, ao invocar a nulidade do contrato nos termos expostos, a recorrida abusa de direito. No essencial, substancia esse abuso no facto da recorrida ter pago 17 (adiante fala em 21, mas foram efectivamente 20) das 60 prestações mensais do crédito concedido nos exactos termos e montantes que acordou com a A. e que só após ter sido judicialmente demandada vem invocar a nulidade do contrato por preterição das formalidades legais.
A questão não é nova e são conhecidas divergências doutrinais e jurisprudenciais nesta matéria; divergências que são mais aparentes do que reais, pois que resultam sobretudo da análise de cada caso concreto e das suas circunstâncias particulares e não, propriamente, de uma posição rígida e formal na discussão do abuso de direito no âmbito da aplicação dos art.ºs 6º e 7º do Decreto-lei nº 359/91, de 21 de Setembro.
Com ecletismo, não podemos frustrar a mens legislatoris e os princípios que subjazem à concepção e manutenção da vigência do regime legal. Na hesitação e na dúvida, não descuraremos a primazia na defesa dos direitos dos consumidores. Logo do preâmbulo daquele diploma resulta a necessidade de «…instituir regras mínimas de funcionamento, de modo a assegurar o cumprimento do objectivo constitucional e legalmente fixado de protecção dos direitos dos consumidores.
Desde logo importa garantir uma informação completa e verdadeira, susceptível de contribuir para uma correcta formação da vontade de contratar.
…estabelecer mecanismos que permitam ao consumidor conhecer o verdadeiro custo total do crédito que lhe é oferecido.»
Diz a recorrente que o recebimento da quantia mutuada e o pagamento de 21 (mas foram apenas 20 nos termos dos factos provados) das 60 prestações criaram nela a expectativa de que a R., ora recorrida, considerava válido o contrato que confessadamente assinou, que pretendia cumprir e dele beneficiou.
Será que o interesse da Autora merece tutela?
Com vista a assegurar a correcta satisfação dos interesses dos contratantes, impõe a lei civil que os contratos sejam negociados (art.º 227º, nº 1, do Código Civil), integrados (art.º 239º, do Código Civil), alterados (art.º 437º, do Código Civil) e cumpridos (art.º 762º, nº 2 do Código Civil) de harmonia com os ditames da boa fé, sendo ainda certo que, se estes forem violados de modo manifesto, podem vir a tornar ilegítimo o exercício do direito assegurado contratualmente (art.º 334º, Código Civil).
A ideia de procedimento de boa fé está ligada a ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança no cumprimento dos negócios jurídicos e impõe às partes, quer nas negociações preliminares, quer na formulação das cláusulas definitivas, quer no cumprimento das obrigações (quer em relação ao devedor, quer em relação ao credor), que ajam sem embuste, nem dolo, para que os interesses de todas elas tenham a equilibrada solução prevista por cada uma delas e subjacente ao contrato.
O abuso de direito pressupõe que, no exercício do direito, a parte aja com excesso manifesto nos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334º, do Código Civil). O titular do direito invocado há-de propor-se exercê-lo "em termos clamorosamente ofensivos da justiça". Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que lançar mão dos valores éticos predominantes na sociedade e para os impostos pelo fim social ou económico do direito deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei.
A penalização do abuso de direito exige também, apesar da concepção objectiva decorrente do preceito legal, a necessidade de que, ao comportamento abusivo do autor se juntem os requisitos gerais, designadamente o nexo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (v.d. Coutinho de Abreu, in «Do Abuso de Direito», pág. 76 e A. Varela «Obrigações», 1970, págs. 371 e segs.).
Menezes Cordeiro, in “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, refere de modo lapidar que são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:
“1°- Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”

“Uma das funções essenciais do Direito é sem dúvida assegurar expectativas. A tutela das expectativas das pessoas é essencial a uma ordenação que pretenda ter como efeito a estabilidade e a previsibilidade das acções. Como se sabe, a confiança é um poderoso meio de redução da complexidade” social, limitando a quantidade e a variedade de informação que tem de ser elaborada pela pessoa na sua vida social, e desempenhando uma função de desoneração da formação de expectativas em cada caso e a partir do nada ...
...
Numa certa perspectiva, poderíamos dizer que a sua necessidade radica fundo nas próprias estruturas comunicacionais do “mundo-da-vida”, pois a desconfiança mútua permanente dilaceraria por certo quaisquer possibilidades de comunicação aberta…
...
Assim, o princípio pacta sunt servanda — independentemente de a aceitação da força vinculativa do mero consenso ser uma ideia já moderna, com raízes jusnaturalistas — tem subjacente também a ideia de fides, ideia que remonta aos períodos mais remotos da história, ao tempo mesmo da “invenção” do Direito pelos romanos — e não está só em causa naquele princípio a fidelidade à própria palavra, uma autovinculação por um qualquer poder da vontade, mas também a fidelidade às expectativas que se criou nos outros.
No venire contra factum proprium deparamos com uma relação especial entre o agente e o “confiante”, sendo a especial configuração dessa relação (com uma conduta que se pretende agora contrariar) que, por definição, leva à proibição do comportamento contraditório.
Para estarmos perante uma hipótese de venire contra factum proprium — e não apenas de qualquer outra forma de tutela da confiança —, terá de se poder afirmar a contrariedade directa entre o anterior e o actual comportamento. Será o caso, designadamente, quando a confiança foi dirigida a uma determinada situação jurídica — por exemplo, à validade ou eficácia de uma vinculação negocial ou à sua não invocação — ou a uma conduta futura do agente (uma realização de uma prestação, a celebração do contrato, etc.), que vem a ser contrariada pela sua posterior atitude.
...E deve rejeitar-se a aplicação automática dos pressupostos mencionados, após a sua enumeração e verificação no caso concreto. Antes todos deverão ser globalmente ponderados, m concreto, para se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta — com os ditames da boa fé em sentido objectivo” (cf. Sobre a Proibição do Comportamento contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Português, (Boletim da Faculdade de Direito – Volume Comemorativo, Coimbra 2003, pág.s 269 e seg.s).
Para que haja lugar ao abuso de direito, é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª ed., pág. 516).
A violação do princípio da confiança, revela normalmente um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou --- “venire contra factum proprium” --- que se enquadra na expressão legal “manifesto excesso”.
Ou ainda de outra forma, a conduta do agente, para ser integradora do “venire” terá, objectivamente, de trair o “investimento de confiança” feito pela contraparte, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, in concreto, uma clara injustiça.
Regressando ao nosso caso, como se impõe, não esquecemos que nesta matéria a parte mais fraca é o consumidor, cujo interesse a lei visa acautelar.
Dadas regras do ónus da prova, não podemos deixar de considerar que após a celebração do contrato não foi enviada cópia respectiva à Ré, mas daí não podemos concluir que só por isso estava e se manteve na ignorância relativamente aos termos do seu negócio.
Mas analisemos com mais pormenor o comportamento da R.
As empresas financeiras agem comercialmente através de estabelecimentos comerciais, têm uma sede e estabelecem, normalmente, contactos pessoais directos ou por correspondência com os seus clientes, não constando que alguma vez a recorrente tivesse recusado qualquer colaboração com a recorrida, ou que esta a tivesse solicitado, designadamente quanto ao envio e cópia do contrato.

Estando em causa um contrato de adesão, se analisarmos as condições particulares do negócio, tal como resultam documentadas no contrato escrito junto com a petição inicial, podemos constatar que houve negociação, pois foram preenchidos espaços sobre matéria contratual muito significativa, como sejam, não apenas o valor do mútuo, mas também o número e valores das prestações, vencimentos e sua periodicidade, taxas de juro, despesas, seguro, comissão, etc.
Por outro lado --- deveras importante --- decorreu sobre a data da concessão do crédito um período de execução do contrato de quase dois anos, com um cumprimento sem reservas das prestações devidas pela demandada. Na verdade, pagou € 3.476,60 de um crédito de € 6.317,00; ou seja, mais de metade do valor do capitam mutuado. Naquele período de tempo deu azo à satisfação do seu interesse pessoal utilizando o bem de consumo que adquiriu, tirando partido do financiamento feito pela recorrente.
Ao pretender agora a declaração da nulidade do contrato, depois daquele comportamento positivo de cumprimento contratual e tendo retirado ao longo de tanto tempo as respectivas vantagens, a R. prossegue claramente uma conduta contraditória, pois deu à recorrente evidentes, permanentes e sucessivos sinais de que o contrato seria cumprido; que, da sua parte nada obstava ao seu cumprimento.
E se bem constatarmos os termos da petição inicial, também aí contraditoriamente, a recorrida, aceitando a existência do contrato escrito, invoca a nulidade do contrato, mas recusa os seus efeitos. Na verdade, a par da invocação da nulidade, pretende apenas o efeito emergente da aplicação do disposto na al. b) do nº 6 do art.º 7º do Decreto-lei nº 359/91, de 21 de Setembro, ou seja, a redução da sua obrigação ao montante do crédito concedido, mantendo ela o direito a realizar o pagamento nas restantes condições acordadas.
Ora, este efeito pressupõe precisamente que a nulidade não seja invocada.
Então, que efeitos teria no caso a declaração de nulidade do contrato?
Note-se que a Ex.ma Juíza, tendo declarado a nulidade do contrato, não extraiu daí as necessárias consequências como cumpria, designadamente em função da doutrina que subjaz ao “acórdão uniformizador de jurisprudência” (então “assento”) nº 4/95, de 28 de Março de 1995, e também não invocou razão para não o fazer.
Pese embora estejamos perante uma união ou coligação de contratos, a existir dependência, é a compra e venda que depende do contrato de crédito ao consumo e não este que depende da compra e venda. E isso emerge até do que resulta do art.º 12º, nº 1: «se o crédito for concedido para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro, a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito.»
A nulidade impõe que as partes reponham a situação anterior à celebração dos contratos (art.º 289º, nº 1, do Código Civil).
Nos termos da cláusula 3ª das condições gerais do contrato, juntas a fl.s 9, resulta que “o empréstimo considera-se utilizado com a emissão pelo B………. de uma ordem de pagamento, a favor do(s) Mutuário(s) ou do Fornecedor do Bem Financiado, de valor igual ao “Montante do Empréstimo referido nas Condições Específicas, deduzido, se for o caso, dos montantes referidos na alínea b) da Cláusula 6 destas Condições Gerais.” Ou seja, o montante mutuado tanto poderia ser entregue directamente à R. como ao vendedor do veículo, o que pode configurar a solução prevista no art.º 770º, al. a), do Código Civil: a prestação feita a terceiro extingue a obrigação se assim foi estipulado ou consentido pelo credor.
O contrato de mútuo é um contrato real quoad constitutionem, de que não se pode falar quando não ocorra entrega efectiva da importância mutuada. A circunstância de a entrega do dinheiro não ser feita directamente ao consumidor, mas sim ao vendedor do bem de que o credor financiou a aquisição não afasta a natureza real do contrato de crédito ao consumo na modalidade de mútuo, tendo-se esse contrato por cumprido com a entrega da importância mutuada ao fornecedor do bem adquirido pelo devedor. No fundo, o credor empresta dinheiro para o consumidor adquirir bens ou serviços.
Cada um dos dois negócios (mútuo e compra e venda), apesar da coligação, produz os seus efeitos próprios, vivem a sua independência em conformidade com o regime jurídico correspondente.
A coligação de contratos em questão é bilateral; mas essa bilateralidade “é imperfeita, pois não há uma reciprocidade simétrica, seja ao nível dos seus pressupostos, seja no âmbito dos seus efeitos”. É, enfim, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.6.2005, Colectânea de Jurisprudência II, p. 134, citando Fernando de Gravato Morais, o princípio da separação dos contratos coligados.
Não restam dúvidas que o Banco recorrente efectuou, àquele terceiro, a prestação a que se obrigou para com a, ou vis-à-vis da, ora recorrida, e tal assim de harmonia com o acordado com ela.
A causa dessa prestação era o contrato de mútuo.
Declarada que seja a nulidade, esse contrato não pode produzir outro efeito que não seja, de harmonia com o já mencionado art. 289º, n.º 1, do Código Civil a obrigação de reposição do statu quo ante, mediante a restituição das prestações efectuadas em cumprimento do nele acordado.
A obrigação de restituição impenderia, desde logo, sobre a ora recorrida, parte no contrato nulo, e por isso de modo nenhum alheio à entrega e circulação do capital financiado.
Colhendo-se este raciocínio no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.6.2005, in www.dgsi.pt, resulta do mesmo a seguinte posição que, assim se transcreve:
«Não obstante a sua ligação funcional – é o crédito que financia a aquisição do bem -, trata-se de relações contratuais distintas e autónomas e nada a tal tira ou põe o facto de, consoante art. 12º, nº 1, do decreto-lei citado, a validade e eficácia do contrato de compra e venda financiado estar dependente da validade e eficácia do contrato de crédito ao consumo.
Não se discute que, no quadro dos efeitos restitutórios subsequentes à declaração da invalidade ou ineficácia da compra e venda em consequência da invalidado e ineficácia do contrato de crédito, não obstante não ter contratado com ele efectivamente assista ao financiador o direito de exigir ao vendedor o reembolso do valor mutuado.
Permanece, de todo o modo, certo que a entidade financiadora que pagou o preço da compra e venda é um terceiro em relação a esse contrato, e não a parte nele sobre que, conforme art. 879°, al. c), recaía a obrigação de o satisfazer.
Em caso de nulidade dos contratos aludidos, esta última terá, por isso de restituir tanto o bem objecto do contrato de compra e venda, como, quando tal lhe for exigido, o satisfeito pela entidade financiadora em cumprimento do contrato de crédito ao consumo em que foi igualmente parte – recebendo, nesse caso, do vendedor o valor que este fica, por sua vez, obrigado a devolver.

Com efeito, nada a tal tirando ou pondo a lei reguladora do crédito ao consumo, a obrigação de reposição “inpristinum” imposta pelo art. 289°, nº 1, não pode, de harmonia com os princípios gerais, deixar de recair sobre quem efectivamente interveio, como parte, no acto nulo.

Assim, a consequência do reconhecimento da nulidade do mútuo será, sempre, a imposição ao mutuário da restituição da quantia mutuada, não podendo o mesmo eximir-se aos efeitos restitutivos ou restitutórios da nulidade do contrato de crédito que subscreveu.»
Neste enfiamento, não bastaria declarar a nulidade do contrato de mútuo, havendo também que determinar a produção dos efeitos dessa declaração, ordenando a restituição de tudo o que foi sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (art.º 289º, nº 1, do Código Civil e citado acórdão uniformizador de jurisprudência nº 4/95, de 28.3.1995 17 de Maio, DR 1ª Série-A, de 17 de Maio de 1995.).
Como a recorrida recebeu do Banco recorrente o montante de € 6.317,00, seria este valor com os respectivos juros legais deduzido o montante já efectivamente entregue e juros devidos sobre esse montante que a 1ª R. teria de restituir ao Banco (cf. acórdão da Relação do Porto de 22.6.2009, www.dgsi.pt).
Os juros legais contam-se desde a citação (art.ºs 289º, nº s 1 e 3, 805º, nº 1, 806º e 1270º, do Código Civil).
Como se refere também na sentença recorrida, sendo a fiança uma garantia pessoal de pagamento do crédito concedida pelo 2º R., através dela o credor vê garantido o seu crédito, além do património do devedor, também pelo património do fiador que passou a responder pela dívida.
Porém, dada a natureza acessória da fiança (art.º 632º, nº 1º, do Código Civil), a mesma não seria válida se o não fosse a obrigação principal, pelo que a nulidade do contrato de crédito ao consumo acarretaria a invalidade da referida garantia, como considerou ainda a decisão recorrida, com a consequente improcedência da acção.
Aqui chegados, importa extrair a necessária consequência da eventual declaração de nulidade: os efeitos da invalidade contratual, concretizados nos deveres de restituir à recorrente a quantia mutuada na parte ainda não recebida, acrescida de juros legais e, eventualmente, até o veículo ao seu vendedor, tal como a extinção da fiança, sacrificariam muito mais o interesse da recorrida do que a manutenção da validade do contrato; ou seja, sairia sacrificado o interesse do consumidor.
Ora --- atenta a petição inicial --- não tendo a R. desejado os efeitos da nulidade do contrato, antes tendo revelado interesse na sua manutenção, com uma modificação que se nos afigura infundada, a afirmação da nulidade contratual no recurso não só trai o seu próprio interesse como se revela, por força de todo o circunstancialismo atrás descrito, num comportamento fortemente contraditório e violador da fides transmitida à A. durante quase dois anos no sentido de que deseja cumprir o contrato. Posição que, além de infundado, também contraditoriamente, a R. afirma e nega nesta acção visando um objectivo que, afinal, é uma simples modificação consistente na redução da dívida ao montante do crédito concedido, nos termos do referido art.º 7º, nº 6, al. b).
Todo o comportamento da R. vai no sentido de apenas explorar abusivamente as normas legais que protegem os consumidores para tirar vantagem de uma falta da contra-parte e obter a redução da sua obrigação de pagamento do financiamento efectuado pela recorrente.
Menezes Cordeiro, afirma ser possível que “em nome da boa fé, se possa bloquear a invocação de invalidades formais quando as mesmas forem determinadas por um contraente que, depois de aproveitar as vantagens do contrato, vem invocar a nulidade delas emergente. O reconhecimento de que este comportamento traduz abuso do direito funciona, então, através da chamada figura das inalegabilidades formais” – Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, Coimbra, pág.s. 203 e 205. E, citando-o, Fernando de Gravato Morais, in Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina, pág.s 107 a 111, considera também que o abuso de direito pode ser um meio adequado para o credor fazer face a tal situação, desde que os respectivos requisitos estejam em concreto preenchidos (art.º 334.° Código Civil). Para o efeito é legítima a pretensão do financiador que, v.g., sustenta que a arguição da nulidade formal ou procedimental pelo consumidor configura um venire contra factum proprium já que o direito está a ser exercido em contradição com a sua conduta anterior (por exemplo, o pagamento das prestações do mútuo durante um longo período de tempo). E dá ali exemplo de vários arestos dos Tribunais Superiores, designadamente desta Relação, em que o pagamento prolongado das prestações do empréstimo por parte do consumidor à mutuante, a par da utilização do bem, obstam à nulidade, por abuso de direito do consumidor, na modalidade de venire contra factum proprium.

Por todo o exposto, de facto e de direito, afigura-se-nos também que a recorrida abusou do seu direito e, como tal, não é de declarar a nulidade do contrato nem os efeitos decorrentes do disposto no art.º 7º, nº 6, al. b), do Decreto-lei nº 359/91 de 21/09, e atrás enunciados, invocados, por via de excepção, na contestação (cf., ainda neste sentido, mais recentemente, o acórdão desta Relação de 26.6.2008, in www.dgsi.pt).

Apenas uma palavra mais para referir ter sido notada uma incongruência na decisão posta em crise: o facto dado como provado sob a al. j) foi simultaneamente dado como não provado sob o item 1º da matéria não provada.
Não nos parece, no entanto, tal facto, indispensável à boa decisão da causa. Constitui apenas o reforço da ideia aceite por ambas as partes nos seus articulados e nas alegações de recurso de que o mútuo foi assinado pelos R.R. sem a intervenção directa da A. (“contrato entre ausentes”).
*
Sendo improcedente a matéria de excepção, a decisão deve prosseguir para conhecimento do pedido da acção, já que se mostra fixada a matéria de facto, contendo os elementos necessários, e se nos impõe a decisão por força da regra da substituição, como manifestação do princípio da economia processual (art.º 715º, nº 2, do Código de Processo Civil).
A nulidade foi o único meio de defesa invocado pela R.
Demonstrado o contrato de mútuo e a obrigação dele emergente para a R. de pagar o financiamento em prestações mensais e sucessivas, verifica-se que deixou de satisfazer essa obrigação a partir do 19º mês, ou seja, da 19ª prestação, em 10 de Agosto de 2007. E não provou que esse incumprimento não resultou de culpa sua, sendo, por isso, responsável pelo prejuízo que causou à A. (art.ºs 798º e 799º, do Código Civil).
Nos termos gerais, se, na data aprazada, o beneficiário do crédito não cumpre a obrigação pecuniária, dá-se a sua constituição em mora, independentemente de interpelação. É o efeito da aplicação do art. 805.°, n.º 2, al. a), do Código Civil.
O contrato prevê expressamente sob a cláusula 8ª, al. b), das condições gerais que «a falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento, implica o imediato vencimento de todas as restantes»; ou seja, a perda do benefício do prazo pela parte do consumidor. Este efeito, expresso no contrato, resulta também da própria lei nos termos do art.º 781º, do Código Civil (quod abundant non nocet). Mas não se prevê na lei nem no contrato a dispensa de interpelação do devedor para cumprimento antecipado; o que dali resulta é a antecipação da exigibilidade do cumprimento, razão pela qual o credor não fica dispensado de fazer a interpelação extrajudicial ou judicial para o pagamento. Por via de tal interpelação que o credor manifesta, perante o devedor, a sua vontade de se aproveitar do beneficio legal ou contratual posto à sua disposição. O vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não venceu constitui um benefício que a lei concede – mas não impõe – ao credor, não prescindindo consequentemente de interpelação ao devedor (cf. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, II, 7ª ed., p. 53; Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, 6ª edição., II, p.s 164 e 165; e Gravato Morais, in Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina, 2007, pág.s 196 e 197; e, na jurisprudência, entre muito outros arestos, na posição maioritária, v.d. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.3.2007, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, p. 153).
Por conseguinte, de um total de 60 prestações previstas no negócio, a R. recorrida deixou de pagar a 19ª e seg.s, vencida a 10 de Agosto de 2007, muito embora viesse a pagar as prestações 20ª e 21ª em 10 de Setembro e em 10 de Outubro do mesmo ano. Assim, tendo pago 20 prestações, é devedora de 40 prestações vencidas. Porém os juros só serão devidos, em princípio, desde a data em que a A. interpelou a R. para pagamento das 40 prestações; só nessa data lhe foram, efectivamente, exigidas e se poderá verificar a mora da R. devedora (art.º 805º, nº 1, do Código Civil).
Na falta de outros elementos, a interpelação para pagamento ocorreu apenas pela citação da R. nos presentes autos, ocorrida em 7.8.2008 (cf. fl.s 17), data a partir da qual se vencem, em princípio, os juros de mora.
Adiante voltaremos a este tema.

De outro passo, entende a A. que, tendo cada prestação o valor de € 170,83, a dívida é de € 170,83 x 40 prestações, ou sejam € 6.833,20, devendo ainda acrescer-lhe juros vencidos e vincendos.
O contrato aqui em causa não se afasta do que normalmente se estipula nos contratos deste género. A prestação é mensal e engloba vários elementos: capital mutuado, os juros remuneratórios, as comissões, os impostos (designadamente o imposto de selo sobre os juros) e os prémios referentes aos seguros (cf. condições específicas contratadas).
Em matéria de juros remuneratórios, deve entender-se, conforme jurisprudência agora não só largamente maioritária, mas também uniformizada pelo recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2009, publicado no DR, 1ª Série, de 5 de Maio de 2009, cuja fundamentação foi logo seguida no acórdão do mesmo Tribunal de 14 de Maio de 2009 (Relator Sebastião Povoas), in www.dgsi.pt, e doutrina mais especializada nesta matéria, de que é exemplo o ensinamento do Prof. Gravato Morais, ob. cit., p.s 199 e seg.s, à luz da aplicação do art.º 561º do Código Civil, que em sede de vencimento antecipado das prestações se releva o decurso do tempo de modo a não haver lugar ao pagamento dos juros remuneratórios. Tem sido acolhida a tese da natureza distinta das duas prestações --- de capital e de juros --- justificando-se o seu tratamento diferenciado. Os juros remuneratórios, enquanto prestação duradoura periódica, não se podem vencer antes do período a que respeita, ao contrário da dívida de capital. Não pode o mutuante obter uma vantagem superior à do cumprimento atempado do contrato. Por isso, os juros remuneratórios não cabem no âmbito do art.º 781º do Código Civil.
Estão em causa parcelas distintas, «representando uma a parte fraccionada do capital mutuado e a outra parte dos juros remuneratórios devidos pela privação do capital durante o período de execução do contrato (obrigação de capital e obrigação de juros)» (cf. citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.3.2007).
No caso sub judice, os juros estão pré-calculados e incluídos nas prestações mensais, com o capital, no pressuposto do cumprimento de um programa contratual, que consiste em a mutuária ir liquidando prestações constantes, diluindo e antecipando o pagamento dos juros remuneratórios desde o momento em que passou a dispor do capital. Mas, tal prática não contém a virtualidade de retirar aos juros remuneratórios a sua natureza de frutos civis (art.º 212°, nº 2, do Código Civil) representativos do preço de utilização do capital, sempre relacionados com o tempo dessa utilização.
Como se refere ainda naquele aresto do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto rendimento financeiro do capital, os juros geram-se em função do decurso do tempo, do mesmo modo que só se mantêm até ao momento de restituição do capital que se destinam a remunerar.
Consequentemente, citando-se ali um acórdão do mesmo Alto Tribunal [com o nº 4524/06 – 1ª (Revista)], «se o mutuante, exercendo o direito previsto no art. 781° do Cód. Civil, provoca o vencimento da totalidade das prestações, visando a recuperação imediata da totalidade do capital, não poderá exigir mais que o capital e a remuneração pela respectiva disponibilidade até ao momento da restituição, ou seja, dos juros remuneratórios incluídos nas prestações, apenas são devidos os abrangidos pelas prestações de capital vencidas».
Seria, de resto iníquo que o financiador viesse cobrar o pagamento de juros remuneratórios correspondentes ao período que medeia entre a data da interpelação e a data em que a última prestação se venceria – que normalmente é muito longo (cf. acórdão da Relação de Lisboa de 27.9.2005, Colectânea de Jurisprudência, IV, p. 108).
E vistas coisas nesta linha, devemos concluir que a mutuária não está obrigada a pagar os juros remuneratórios inerentes às 40 prestações em falta e já vencidas apesar do seu valor estar integrado nas próprias prestações.

A “comissão de gestão”, prevista no contrato, (cf. cláusula 6ª, al. b) das condições gerais), na falta de elementos em sentido contrário e visto o teor do contrato (condições especiais), está também diluída no valor das prestações mensais estabelecidas, pois corresponde a despesas, não apenas relacionadas com a formalização do contrato, mas também com a cobrança de valores realizados por transferência bancária (v.d. cláusula 6ª, al. a) da condições gerais). Neste caso também não deve ser considerado no valor da antecipação do pagamento tudo o que, àquele título, a mutuária teria que pagar mensalmente como despesa de cobrança que o incumprimento fez desaparecer (relativamente às 40 prestações em falta), mas apenas as despesas que ali figurem como tendo sido efectuadas com a formalização do contrato.

De excluir são também os prémios relativos ao “seguro de protecção total” (cf. cláusula 13 das condições gerais da apólice) a que o contrato se refere e que, também pela razão atrás enunciada, está diluído no valor das prestações sucessivas. Ora, invocada a perda do benefício do prazo não se verifica jamais o risco previsto no contrato. O consumidor deixa, p. exemplo, de poder alegar a sua incapacidade superveniente para o trabalho como justificação para o não pagamento das prestações do crédito. Cessa deste modo o fundamento para a sua cobrança (Gravato Morais, ob. cit., p. 203).

Quanto às --- denominadas no contrato --- “despesas de transferência de propriedade”, na falta de outros elementos, também neste caso se devem ter como diluídas nas 60 prestações contratadas. Mas, sendo uma despesa relacionada com a realização do financiamento, em si mesmo considerado e tendo ele sido integralmente realizado, afigura-se-nos que deve ser totalmente suportada pela R. mutuária. Deverá, por isso, acrescer ao capital vencido e ainda não pago.

No que concerne ao imposto de selo sobre os juros moratórios vencidos e que entretanto se vençam, dúvidas não são de colocar quanto à admissibilidade da sua cobrança.
*
Relativamente aos juros moratórios, a A. invoca a cláusula penal que consta da cláusula 8ª, al. c) das condições gerais do contrato: «Em caso de mora, e sem prejuízo do disposto no número anterior, incidirá sobre o montante em débito, e durante o tempo da mora, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual acrescida de quatro pontos percentuais, bem como outras despesas decorrentes do incumprimento, nomeadamente uma comissão de gestão por cada prestação em mora».
Pretende então a A. que o atraso no pagamento seja sancionado à R. com a aplicação de uma taxa de juro de 23,51% ao ano desde a data do vencimento das 40 prestações em falta, ou seja, desde 10.8.2007, acrescida de imposto de selo respectivo, até integral e efectivo pagamento.
Nos termos do art.º 7º, nº 2, do Decreto-lei nº 344/78, de 17 de Novembro, na redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-lei nº 83/86, de 6 de Maio, a cláusula penal devida por virtude da mora não pode exceder o correspondente a quatro pontos percentuais acima das taxas de juros compensatórios referidas no número anterior, considerando-se reduzida a este limite máximo na parte em que o exceda, sem prejuízo da responsabilidade criminal respectiva.
As estipulações apostas no contrato de crédito parecem manter-se dentro dos parâmetros impostos, pelo que se nos afiguram válidas.
Como ensina Gravato Morais, citando dois acórdão (um do Supremo Tribunal de Justiça e outro da Relação de Lisboa), ob. cit., pág.s 189 e 190, «…estando aqui em causa a determinação das taxas de juros remuneratórias (para as operações de crédito activas) há que salientar o Aviso 3/93 do Banco de Portugal, de 20.5.1993, que consagra a liberalização das mesmas. Daqui decorre um efeito mediato importante: as cláusulas de juros moratórias traduzem-se, na prática, em valores percentuais elevados, que, no caso é de 23,51, ou seja, o juro contratual de 19,51%, acrescido de 4 pontos percentuais.

Mas, qual é o valor pecuniário sobre o qual devem recair os juros moratórios?
Acontece que, à semelhança de outras situações de contratação de crédito a pagar em prestações sucessivas, no caso, o mutuante não discrimina os valores que compõem cada uma das prestações quando estas reflectem juros remuneratórios, comissões, despesas, prémios de seguro, imposto de selo, etc. Conhecemos o valor global de cada prestação (€ 170,83) e que apenas é devida uma parte de cada uma delas (da 19º e a da 22º à 60ª).
Sem a discriminação do que é devido por prestação em falta, não é possível chegarmos aqui a um valor líquido, tal como não seria possível obter o respectivo pagamento por parte da R.
A quem é imputável a falta de liquidação?
Manifestamente à A. que, além do mais, cumula indevidamente os juros remuneratórios com os juros moratórios apesar da antecipação do vencimento.
Se, em princípio, os juros de mora são devidos desde a citação, dispõe também o art.º 805º do Código Civil, sob o nº 3, que se o crédito foi ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor.
Ora, a falta de liquidez é, no caso, pelo que já ficou dito, imputável à entidade financiadora que não discriminou as diversas quantias integradoras de cada prestação mensal. Pior ainda, …manteve incluídos juros remuneratórios em cada uma delas.
Com efeito, concluímos que os juros são devidos desde a data em que a parte for notificada da decisão da liquidação, a realizar oportunamente.

Já atrás discutido e agora em síntese, temos que tais juros deverão recair apenas sobre:
a) O capital em dívida integrado em cada uma das 40 prestações em falta (excluída a parte de cada prestação relativa a juros remuneratórios);
b) A despesa efectuada com a formalização do contrato (não estão incluídas as despesas de cobrança) na parte em que estão englobadas nas referidas 40 prestações;
c) As despesas de transferência de propriedade, também apenas na parte em que estejam distribuídas nas mesmas 40 prestações.
Acresce, necessariamente, o que for devido a título de imposto de selo sobre os juros moratórios vencidos desde a citação e vincendos.
*
A situação do R. fiador
A perda do benefício do prazo tem carácter pessoal, pois não se estende aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia. É o que emerge do art.º 782º do Código Civil, sem que a lei distinga entre garantias reais e garantias pessoais.
Assim, podendo a A. exigir, como exigiu por via da acção, à R. devedora C………. o cumprimento imediato da obrigação, terá que esperar o seu vencimento normal para exigir o cumprimento ao 2º R., D………., garante/fiador da obrigação (sem prejuízo do eventual reforço de garantias que, para o caso, não releva).

Desta feita, deverá a R. C………. ser condenada com observâncias dos fundamentos que ficaram expostos, cumprindo-se igualmente a lei com a absolvição do R. D………. do pedido.
*
SUMÁRIO (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. Abusa de direito o mutuário/consumidor que invoca a nulidade de um contrato de adesão celebrado com uma entidade financeira por não lhe ter sido entregue um exemplar do contrato no momento da respectiva assinatura, quando, na realidade, sobre a data do negócio decorreu um período de tempo que lhe permitiu fazer, e fez, o pagamento de 20 das 60 prestações mensais fixadas para o integral cumprimento do contrato, ao mesmo tempo que, pela via da referida excepção, pretende, contraditoriamente, que se produza o efeito previsto na al. b) do nº 6 do art.º 7º do Decreto-lei nº 359/91, de 21 de Setembro, ou seja, que o pagamento seja reduzido ao montante do crédito concedido.
2. Estando, não apenas o capital mutuado, mas também os juros remuneratórios e outras despesas da entidade financiadora diluídos nas prestações mensais contratualmente fixadas a cargo do mutuário, em caso de vencimento antecipado de todas as prestações em falta há que excluir da obrigação de pagamento, além do mais, os juros remuneratórios relativos àquelas prestações.
3. Se o capital, os juros remuneratórios e outras despesas incluídas no valor das prestações com vencimento antecipado não estiverem devidamente discriminadas, desconhecendo-se o valor de cada uma delas deverão as partes ser remetidas para liquidação oportuna.
4. A perda do benefício do prazo tem carácter pessoal. Não se estende aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.
*
V.
Termos em que se acorda nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida que se substitui pela seguinte deliberação:
A) Julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência:
1- Absolve-se o R. D………. do pedido; e
2- Condena-se a R. C………. a pagar à A:
a) O capital em dívida integrado em cada uma das 40 prestações mensais em falta e que são a 19ª e a 22ª até à 60ª (excluída, portanto, a parte de cada prestação relativa a juros remuneratórios);
b) A despesa efectuada com a formalização do contrato (não estão incluídas as despesas de cobrança) na parte em que estão englobadas nas referidas 40 prestações;
c) As despesas de transferência de propriedade, também apenas na parte em que estão distribuídas nas mesmas 40 prestações;
Quantias que deverão ser, oportunamente, objecto de liquidação (art.º 661º, nº 2, do Código de Processo Civil).
3- Mais se condena a R. C………. no pagamento dos juros de mora sobre a quantia global que se vier a liquidar, à taxa anual de 23,51%, vencidos desde a data da notificação da decisão da liquidação, até integral pagamento e aos quais acresce o que for devido a título de imposto de selo sobre esses mesmos juros.
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Custas pela apelante B………., S.A. e pela R. C………., na proporção de metade.
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Porto, 16 de Dezembro de 2009
Filipe Manuel Nunes Caroço
Manuel de Sousa Teixeira Ribeiro
Fernando Manuel Pinto de Almeida

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[1] Não foi designada a al. h).
[2] Diploma que transpôs para o direito interno as Directivas Comunitárias nºs 87/102/CEE, de 22 de Dezembro de 1986, e 90/88/CEE, de 22 de Fevereiro de 1990.
[3] O sublinhado é nosso.