Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2740/11.0TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: TRIBUNAL DE COMÉRCIO
COMPETÊNCIA
DIREITOS SOCIAIS
CONTRATO DE SUPRIMENTO
REEMBOLSO DE SUPRIMENTOS
Nº do Documento: RP201403172740/11.0TJPRT.P1
Data do Acordão: 03/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 89º, Nº 1, C) DA LOFTJ
ARTº 243º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: I - Direitos sociais, para o efeito de fixação da competência dos tribunais de comércio, a que alude o art.º 89.º, n.º 1, al. c), da LOFTJ, são os inerentes à qualidade de sócio de determinada sociedade, decorrentes do contrato de sociedade e tendentes à protecção do sócio no âmbito dos seus interesses sociais.
II – A preparação e julgamento de acção que vise a condenação no reembolso de suprimento efectuado à sociedade integra o exercício de um direito social.
III - Todavia, se um sócio de uma sociedade tendo em vista a aquisição de um estabelecimento comercial para fazer parte da sociedade, entrega a um outro sócio determinada quantia para pagamento do preço ajustado, este acto não integra o conceito de contrato de suprimento se esse negócio não se chega a concretizar e a sociedade se dissolve.
IV - Mas ainda que se concretizasse, aquela entrega representaria uma nova entrada de capital em espécie e nunca um contrato de suprimento.
V - Assim, a competência para conhecer do pedido da restituição dessa quantia, tendo como causa de pedir a não celebração do citado negócio da compra do estabelecimento, é da competência do tribunal comum e não do tribunal de comércio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2740/11.0TJPRT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, 2º Juízo Cível.
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Caimoto Jácome
2º Adjunto Des. Macedo Domingues
5ª Secção

Sumário:

I- Direitos sociais, para o efeito de fixação da competência dos tribunais de comércio, a que alude o art.º 89.º, n.º 1, al. c), da LOFTJ, são os inerentes à qualidade de sócio de determinada sociedade, decorrentes do contrato de sociedade e tendentes à protecção do sócio no âmbito dos seus interesses sociais.
II – A preparação e julgamento de acção que vise a condenação no reembolso de suprimento efectuado à sociedade integra o exercício de um direito social.
III- Todavia, se um sócio de uma sociedade tendo em vista a aquisição de um estabelecimento comercial para fazer parte da sociedade, entrega a um outro sócio determinada quantia para pagamento do preço ajustado, este acto não integra o conceito de contrato de suprimento se esse negócio não se chega a concretizar e a sociedade se dissolve.
IV- Mas ainda que se concretizasse, aquela entrega representaria uma nova entrada de capital em espécie e nunca um contrato de suprimento.
V- Assim, a competência para conhecer do pedido da restituição dessa quantia, tendo como causa de pedir a não celebração do citado negócio da compra do estabelecimento, é da competência do tribunal comum e não do tribunal de comércio.

I-RELATÓRIO

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, residente na Rua … nº .., Hab. …, Vila Nova de Gaia instaurou a presente acção com processo sumário pedindo a condenação solidária dos Réus C…, Lda. e D… a restituírem-lhe a quantia de € 25.000,00.
Alega em resumo que:
-Constituiu com a R. sociedade C…, Lda. representada pelo R. D… a sociedade E…, Ldª, sendo a gerência exercida por si e pelo Réu D…, tendo sido acordado que a Ré venderia à nova sociedade o seu estabelecimento de restauração “F…”, avaliado em € 100.000,00 procedendo, assim, a um aumento de capital;
- ficou acordado então que o A. entraria com € 25.000,00 para aquisição de 1/4 do dito estabelecimento e os restantes € 75.000,00 seriam pagos em espécie pela R. sociedade através da entrega do mesmo;
- para o efeito contraiu um empréstimo de € 25.000,00 que entregou ao R. na qualidade de representante legal da Ré sociedade;
- tal montante foi entregue por cheque datado de 02/02./2010 e depositado no dia seguinte na conta de um dos RR.;
- posteriormente, porque se tivessem incompatibilizado foi a sociedade que tinham constituído dissolvida, não lhe tendo, contudo, os Réus devolvidos os referidos € 25.000,00.
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Citados, os Réus apresentaram contestação onde, além do mais, excepcionaram a incompetência em razão da matéria do tribunal para o conhecimento do pleito, por tal competência ser do tribunal de Comércio.
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Após a realização de uma audiência preliminar, foi o processo concluso à Srª juiz que, conhecendo da excepção da incompetência em razão da matéria, se declarou incompetente considerando ser o tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia o competente para o pedido solicitado, absolvendo, assim os Réus da instância.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Autor interpor o presente recurso concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
A — A sentença em recurso encerra em si uma contradição insanável entre a respectiva fundamentação e a decisão tomada a final, pelo que viola claramente o disposto no art.° 615°, n.° 1, al. c) do C.P.C., enfermando, por essa via, de nulidade.
B — A douta sentença a quo, no que se reporta à respectiva fundamentação, após diversas considerações sobre o conceito jurídico de contrato de suprimento, conclui, simultaneamente, que:
a) O contrato celebrado entre Autor e Réus é um mútuo celebrado entre aquele e estes;
b) E, simultaneamente, um contrato de suprimento entre o Autor e uma terceira sociedade que não é parte na presente demanda.
C — O contrato de suprimento teria de ser, pela sua definição legal, um contrato de mútuo, celebrado entre o Autor e a sociedade que aquele constituiu com a Ré, representada pelo Réu-E…-, pelo que nunca poderia ser suprimento, «um contrato de mútuo celebrado entre o A. como sócio e os RR., sócio e sociedade.»
D — O que o Autor veio dizer ao Tribunal a quo, foi que celebrou um contrato de compra e venda com a Ré, então representada pelo Réu, de 1/4 de um estabelecimento comercial de que ela era proprietária e que a Ré ou o Réu ou ambos receberam o preço pago pelo Autor, no valor de 25.000,00€, e nunca lhe entregaram a coisa comprada, assim se locupletando com a referida quantia, no montante da qual se enriqueceu o seu património, à custa de equivalente empobrecimento do património do Autor, pelo que se verifica um enriquecimento sem causa dos RR. ou de um deles—aquele que se apurar ter ficado com o dinheiro—que o deve devolver, com os respectivos juros.
E — Não se divisa como pode o Tribunal a quo concluir, sem mais diligências— nomeadamente sem realizar audiência de discussão e julgamento—, que a versão dos factos apresentada pelos RR.—contrato de suprimentos e não de compra e venda—é a verdadeira.
F — Também não se entende como pode concluir-se pela existência de um mútuo e não de uma compra e venda, celebrado entre o Autor e os Réus, mas, a concluir-se assim, não se alcança como é que, se estamos perante um contrato de mútuo celebrado entre o Autor e os Réus, mesmo estes sendo sócios numa sociedade comercial, desse facto resulta a incompetência material do Tribunal a quo, uma vez que tal matéria é da competência dos Tribunais comuns e, dentro destes, dos Juízos Cíveis, como é o caso.
G — Ainda que se considerasse—por absurdo—que estamos perante um mútuo celebrado entre o Autor e a sociedade que constituiu com a Ré, representada pelo Réu, isso, sem mais, não significa que o referido contrato fosse classificado de suprimento. Basta acompanhar o raciocínio expendido pelo STJ, no Ac. 26.5.2009, proferido no Proc. n.° 1 78/09.8YFLSB.
H—Se a Meritíssima Juiz a quo entende que estamos perante um contrata de mútuo celebrado entre o Autor e a sociedade de que este e a Ré eram sócios, deveria ter averiguado se se trata de um mútuo mercantil ou de um contrato de suprimento ou de um contrato de mútuo civil e isso não é possível sem realizar a audiência de discussão e julgamento, pelo que a sua decisão violou o disposto no art.° 405.º do C. Civ. e 243.° e segs. do C. Soc. Comerciais.
— Mas, se, pelo contrário, a Meritíssima Juiz a quo entende que estamos perante um contrata de mútuo celebrado entre o Autor e os RR., como fez, devia ter-lhe aplicado as normas constantes dos art. 11 42.° e seguintes e 220.° do Código Civil, declarando-a nulo, por vício de forma, e condenar os RR. a restituir em singelo o capital mutuado ao Autor, ao não o fazer, violou aquelas normas.
J — E absolutamente pacífica e constante a jurisprudência, no que diz respeito à fixação da competência em razão da matéria, quando afirma que a mesma se deve fixar tendo em atenção, antes de mais, os fundamentos ou causa de pedir invocados pelo Autor e o pedido que o mesmo formula.
K — Ora, o Autor, nos presentes autos, invoca como causa de pedir o incumprimento de um contrato de compro e venda de parte de um estabelecimento comercial, por parte da vendedora—a Ré—e a locupletação desta ou do seu legal representante—o Réu—, que o recebeu, com o preço pago pelo comprador—o Autor—, o que gera o enriquecimento sem causa de um ou de ambos os Réus.
L — A circunstância de a Ré e o Autor serem, então, sócios numa sociedade, bem como a de terem a intenção de que o estabelecimento em causa viesse a ser incorporado no património dessa sociedade, em momento posterior, servindo, quando o fosse, para realizar um aumento de capital, na proporção dos respectivos quinhões de compropriedade, são mero cenário ou contexto da relação jurídica estabelecida entre o Autor, como comprador, a Ré, como vendedora e o Réu, como legal representante da vendedora e pessoa que recebeu o preço.
M — A competência para a decisão deste pleito, atendendo à causa de pedir alegada e ao pedido formulado pelo Autor, é do Tribunal a quo e não do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, pelo que a sentença recorrida viola, também, as normas constantes dos art.os 1 8.°, 770 940, 96.° da L.O.F.T.J. em vigor.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. arts. cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são duas as questões a decidir:

a)- saber se a decisão padece de nulidade;
b)- saber se o tribunal recorrido é ou não competente em razão da matéria para o impetrado pedido de condenação formulado pelo recorrente.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria a ter em conta é que a que resulta do relatório e que aqui se dá por reproduzida.
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III. O DIREITO

Como supra se referiu são duas as questões que vêm posta no recurso, apreciemo-las então pela sua ordem cronológica posta pelo recorrente e decorrente da lei.

a)- nulidade da decisão

A recorrente imputa ao despacho decisório o vício grave da nulidade substancial (artigo 613.º, nº 3 do NC.P.Civil).
De todas as causas possíveis de nulidade, assaca-lhe esta: a contradição intrínseca [artº 615.º, nº 1 al. c) do NCPCivil].
A decisão é nula quando os seus fundamentos estiverem em oposição com a parte decisória, isto é, quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem, logicamente, a uma conclusão oposta ou, pelo menos diferente daquela que consta da decisão [artº 668.º, nº 1 al. c) do CPCivil].[1]
Esta nulidade substancial está para a decisão do tribunal como a contradição entre o pedido e causa de pedir está para a ineptidão da petição inicial.
A coerência ou justificação interna da decisão reporta-se à sua coerência com as respectivas premissas de facto e de direito, dado que a decisão não pode ser logicamente válida se não for coerente com aquelas premissas.
Como refere Antunes Varela[2] “Nos casos abrangidos pelo artigo 668.º nº 1 al. c), há um vício real de raciocínio do julgador (…): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.[3]
Ora, de harmonia com a alegação do recorrente o valor negativo apontado, decorreria do facto de a fundamentação jurídica desenvolvida não se coadunar com a decisão final tomada.
Cremos, porém, que isso não se verifica.
Com efeito, a Srª juiz, na fundamentação jurídica, o que refere é que o recorrente fez suprimentos à sociedade e que, constituindo o pedido do seu reembolso o exercício de um direito social, conclui que a competência para apreciação de tal pedido é do tribunal de Comércio face ao estatuído no artigo 89.º, nº al c) da LOFTJ.
Portanto, a decisão não está em contradição com a sua fundamentação e, embora os conceitos de contrato de mútuo e suprimento tenham sido utilizados sem a sua combinação ter sido feita de forma correcta e perceptível, o certo é que a decisão está em coerência lógica com a fundamentação.
Temos, assim, que concluir não se verificar a nulidade do despacho decisório com base no fundamento invocado pelo apelante.
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A segunda questão que vem posta no recurso consiste em:
-saber se o tribunal recorrido é ou não competente em razão da matéria para o impetrado pedido de condenação formulado pelo recorrente.

A Constituição da República Portuguesa, estabelece que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (artigo 211.º, nº 1) e que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais” (artigo 212.º, nº 3).
Na sequência destes princípios programáticos, também o legislador ordinário, nos arts. 66.º do Cód. de Proc. Civil e 18.º n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (doravante designada pela sigla LOFTJ), estabeleceu que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Assim, a competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial.
Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal não judicial. Isto é: os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual e, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual.
A competência material dos tribunais para as causas de natureza cível resulta de normas de atribuição directa ou indirecta, nesta última situação, por via da afectação das causas que não sejam afectas a outros tribunais.
Tendo em atenção a matéria das causas que lhe são atribuídas, distinguem-se os tribunais de 1ª instância em tribunais de competência genérica, a quem compete julgar as causas não atribuídas a outro tribunal e tribunais de competência especializada, que conhecem de determinadas matérias [arts. 64.º, n.º 2, e 77.º, n.º 1, alínea a), da LOFTJ].
Entre os tribunais de competência especializada contam-se os Tribunais de Comércio [art. 78º, al. e), da LOFTJ].
Com vista à determinação do seu sentido e alcance que não se cinge à letra da lei, importa, evidentemente, entrar em linha de conta com a chamada mens legis, ou se quisermos, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada de acordo com o artigo 9.º, n.º 1, do CCivil.
O limite é o de que não pode ser considerado um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. art. 9º, n.º 2, do CC), devendo, todavia, o intérprete presumir haver o legislador consagrado as soluções mais acertadas e expressado o seu pensamento em termos adequados (art. 9º, n.º 3, do CC).
Em suma, a lei deve ser interpretada, “(...) não apenas em função das palavras usadas pelo legislador, mas também em função de todo o condicionalismo envolvente do processo de criação e subsequente vigência, ou seja, à luz dos elementos extraliterais, entre os quais se contam os antecedentes históricos e as circunstâncias relacionadas com a sua elaboração e publicação, designadamente o exórdio dos diplomas em que é consubstanciada”.[4]
As soluções mais acertadas presumivelmente consagradas pelo legislador são as mais conformes com os valores inspiradores do sistema jurídico, captáveis no quadro da sua unidade.
Isto dito vejamos, então, o caso concreto dos autos.
O tribunal recorrido entendeu que a relação material controvertida que o recorrente trouxe aos autos se enquadra na al. c) do nº 1 do artigo 89.ºda LOFTJ.
Deste entendimento diverge o recorrente, por entender que ao caso não é aplicável a alínea c) do citado normativo.
Analisando.
De acordo com o art. 89°, n.º 1° da LOFTJ, compete aos Tribunais de Comércio:
a) O processo de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa;
b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As acções de dissolução e de liquidação judicial de sociedades;
f) As acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial;
g) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
h) As acções de nulidade e de anulação previstas no Código da Propriedade Industrial”.
A competência dos tribunais–que se fixa no momento em que a acção se propõe (art.º 22.º, n.º 1, da LOFTJ)–afere-se, como é entendimento comum na doutrina e pacífico na jurisprudência, pelos termos em que a acção foi proposta e pelo pedido do demandante, sendo, por isso, o pedido e a causa de pedir apresentados os elementos essenciais de referência para determinação da competência material do tribunal.[5]
O tribunal recorrido sobre a relação contratual que diz ter-se estabelecido entre o recorrente e os Réus verteu o seguinte:
“O A. e os RR. celebraram o contrato junto a fols. 14 e ss que intitularam de “contrato de sociedade por quotas”. Mas atentos os factos alegados pelo A. e a evolução dos mesmos, mais não estamos do que perante um contrato de mútuo celebrado entre o A. como sócio e os RR., sócio e sociedade”.
Diga-se, desde logo, que não se vê com que base, face aos factos vertidos na petição inicial e respectivo suporte documental, se afirma que um contrato de constituição de uma sociedade por quotas se transmudou num contrato de mútuo.
Uma coisa é um contrato de constituição de sociedade (cfr. artigo 7.º do C.S.Comerciais) outra coisa é um contrato de mútuo, seja ele que de natureza for, civil ou comercial (artigos 394.º e 1142.º, respectivamente, do C.Comercial e C.Civil).
O que o recorrente alega é que, no dia 29 de Janeiro de 2010, foi constituída a sociedade “E…, Ldª”, tendo como sócios ele e a Ré sociedade C…, Lda. representada pelo Réu D…, sendo que, tal alegação tem correspondência com a cópia do contrato junta aos autos como doc. nº 1.
Portanto, dúvidas não existem de que segundo a alegação do recorrente foi celebrado um contrato de constituição de sociedade por quotas, todavia, esse contrato, num passe de mágica, não passou a ser um contrato de mútuo.
Questão diferente é como qualificar a relação jurídica, que o recorrente descreve factualmente na petição, sobre uma suposta venda de um estabelecimento comercial àquela sociedade “E…, Ldª”.
Ora, o que o recorrente pede é que os Réus sejam condenados a restituírem-lhe a quantia de € 25.000,00.
Para fundamentar tal pedido alega, em síntese, que após a constituição daquela sociedade “E…, Ldª” ficou combinado que a Ré venderia a esta nova sociedade o seu estabelecimento de restauração “F…”, avaliado em € 100.000,00 procedendo-se, assim, a um aumento de capital.
Nessa sequência, refere, ficou então acordado que ele entraria com € 25.000,00 para aquisição de 1/4 do dito estabelecimento e os restantes € 75.000,00 seriam pagos em espécie pela R. sociedade através da entrega do mesmo.
Para o efeito, alega ter contraído um empréstimo de € 25.000,00 que entregou ao Ré na qualidade de representante legal da Ré sociedade, por cheque datado de 02/02/2010 e depositado no dia seguinte na conta de um dos Réus.
Posteriormente, porque se tivessem incompatibilizado, foi a sociedade que tinham constituído dissolvida, não lhe tendo, contudo, os Réus devolvidos os referidos € 25.000,00.
Conclui, portanto, que houve um enriquecimento sem causa do Réu ou da Ré, ou de ambos solidariamente, na exacta medida daquele montante.
O tribunal recorrido entendeu que esta factualidade deveria ser qualificada como um contrato de suprimento e, pedindo o recorrente o seu reembolso, está o mesmo a exercer um direito social sendo, portanto, competente para a apreciação deste pedido o tribunal de Comércio.
Não cremos, salvo melhor entendimento, que se tenha decidido com acerto.
Sendo este o objecto da acção, afastada está, obviamente, a aplicação in casu do disposto nas alíneas a), b), d), e), f), g) e h) do citado artigo 89.º, n.º 1, da LOFTJ.
Resta averiguar se estamos perante acção relativa ao exercício de direitos sociais, como decidiu o tribunal recorrido, caso em que a competência material estaria legalmente atribuída ao Tribunal de Comércio.
Importa, assim, determinar o que são direitos sociais para o efeito de atribuição de competência material aos tribunais de comércio.
Já foi defendido, quanto ao recorte legal da competência destes tribunais, que a interpretação adequada deve ser “no sentido de não reatamento do modelo dos antigos tribunais de comércio, mas a de lhes atribuir competência em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade, designadamente as do contencioso das sociedades comerciais, da propriedade industrial, das acções e recursos previstos no Código de Registo Comercial, e os recursos das decisões em processos de contra-ordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência”, donde o apontar-se “no sentido de que a competência dos tribunais de comércio se prende com questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais e das sociedades civis sob a forma comercial, a qual deve orientar o intérprete na determinação do sentido e alcance do segmento normativo em análise”.[6]
No que tange aos processos de jurisdição voluntária, dentro, pois, dos processos especiais, o NCPCivivil no Livro V prevê no Titulo XV o Capítulo XIV referente ao exercício de direitos sociais (é esta a respectiva epígrafe), onde se incluem: “Do inquérito judicial à sociedade” (artigos 1048.º e segs.); “Nomeação e destituição de titulares de órgãos sociais” (artigos 1053.º e segs.); “Convocação de assembleia de sócios” (artigo 1057.º); “Redução do capital social” (artigo 1058.º), “Oposição à fusão e cisão de sociedades e ao contrato de subordinação” (artigos 1059.º/1060.º); “Averbamento, conversão e depósito de acções e obrigações” (artigos 1061.º e segs.); “Liquidação de participações sociais” (artigos 1068.º e 1069.º); “Investidura em cargos sociais” (artigos 1070.º e 1071.º).
Podendo, embora, questionar-se a bondade da solução de inclusão destes processos especiais no âmbito dos processos de jurisdição voluntária[7], certo é que, não pode deixar de afirmar-se a natureza essencialmente societária das respectivas matérias, por fortemente radicadas, todas elas, no direito societário, fazendo sentido, por isso, falar aqui em “contencioso das sociedades comerciais”.
Tal como salienta a jurisprudência, o Código das Sociedades Comerciais, por sua vez, “também estabelece uma série de direitos concedidos aos sócios”, ligando-se aqui a competência dos tribunais de comércio a “questões relacionadas com a vida e actividade das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial, sendo este o princípio que deve presidir à fixação do sentido a atribuir à mencionada al. c)”.[8] [9]
Isto dito dúvidas não existem de que, se se puder afirmar que o pedido formulado pelo recorrente assente num contrato de suprimento, como o entendeu o tribunal recorrido, o direito de exigir o reembolso, quer por via de acção declarativa, quer por via da acção executiva, constitui um direito resultante da posição que o sócio ocupa ou ocupou na sociedade enquanto sócio e, como tal deve ser considerado o exercício de um direito social.[10]
Acontece que, pensamos, o pedido formulado pelo recorrente não assenta em qualquer contrato de suprimento.
O contrato de suprimento é um negócio jurídico estabelecido entre a sociedade e o sócio, que vem representando uma das formas mais frequentes de financiamento do ente societário; traduz, efectivamente, um investimento do sócio na “sua” sociedade, através da realização de empréstimos a esta e corresponde à fórmula mais antiga da ambição lucrativa: obter fortuna, sem correr risco empresarial.[11]
Como refere Alexandre Mota Pinto[12], no meio da heterogeneidade dos diversos modos possíveis de financiamento da sociedade, o capital alheio combina-se, tantas vezes com o capital próprio, como acontece quando um sócio realiza um empréstimo ou difere créditos, misturando a qualidade de sócio com a de credor.
Ora, o pressuposto primeiro da realização de suprimentos está na liberdade dos sócios quanto ao financiamento da sociedade, na medida em que, cumprida a obrigação de formação e conservação do capital social, cada sócio decidirá livremente, quando, em que montante e de que modo financia a sociedade.
Os sujeitos do contrato de suprimento são, linearmente, o sócio e a sociedade; aquele, como se tem entendido, pode ser também o accionista (da sociedade anónima), desde que seja o accionista empresário e não (apenas) o accionista investidor[13]; esta pode ser, por isso, uma sociedade anónima.[14]
O objecto do contrato de suprimento, o seu objecto imediato, é a entrega de– financiamento por–dinheiro (o mais habitual) ou de outra coisa fungível (243.º, n.º 1 do CSC), mas apenas devem ser sujeitos ao regime especial do contrato de suprimento os créditos que desempenhem na sociedade “a função económica de substituição do capital próprio”, mas como o seu apuramento nem sempre se revela capaz foi encontrado um critério, mais facilmente reconhecível e que o CSC considera ser a “permanência dos créditos dos sócios na sociedade”.
A permanência é, portanto, um elemento objectivo muito relevante, assente no tempo de duração dos créditos e indicador de que a entrega do sócio, que passou para a disponibilidade da sociedade, não foi feita de forma transitória, antes preenche as finalidades próprias de uma entrada de capital, os fins semelhantes aos do capital.
E como, ainda assim, a permanência continuava a ser um critério algo indeterminado, o legislador criou “índices de permanência”, isto é, presunções (ilidíveis) da existência de um contrato de suprimento, como a duração efectiva e o prazo estipulado.
Assim, perante o silêncio qualificador das partes, um contrato de suprimento indicia-se se (a) foi estipulado um prazo de reembolso superior a um ano, (b) se, não tendo sido estipulado qualquer prazo de reembolso, este não foi exigido durante um ano ou (c) se as partes estipularam um prazo de reembolso inferior a um ano, mas o reembolso, durante um ano, não veio a ser exigido–artigo 243.º, n.º 2 e n.º 3 do CSC.[15]
Feito, pela forma descrita, o recorte do contrato de suprimento é bom de ver que a factualidade alegada pelo recorrente na petição não preenche a sua facti species.
A compra do estabelecimento comercial nos termos alegados, a ter-se concretizado, nunca poderia ser considerada um contrato de suprimento.
De facto, considerado o acto em si, a sua qualificação só poderia ser de compra e venda do estabelecimento, nada mais que isso.
A questão é como considerar essa aquisição quando o respectivo preço não é pago pelo respectivo comprador (neste caso pela constituída sociedade E…, Ldª) mas sim pelos sócios.
Parece-nos, que o pagamento do respectivo preço só poderia ser considerada um aumento do capital social.
O capital social, que é constituído pela soma das subscrições dos sócios, constitui um dos aspectos patrimoniais e financeiros de uma dada sociedade e o seu valor é uma menção obrigatória dos respectivos estatutos [art. 9.º, nº 1 al. f) do C.S.Comerciais e tem como funções: a determinação da situação financeira da sociedade; a quantificação dos direitos dos sócios; a garantia de terceiros. A situação líquida da sociedade afere-se em função do capital social.
Um sócio, utilizando aqui a expressão genérica “sócio” abrangendo quer os sócios em nome colectivo ou por quotas, quer os accionistas das sociedades anónimas, como a vertente, entra para a sociedade com uma contribuição patrimonial em dinheiro ou em espécie assumindo, em contrapartida, o status de sócio.
No contrato de sociedade os sócios subscrevem uma participação social e obrigam-se a realizar ou liberar o respectivo valor (artigo 980.º do C.Civil).
A obrigação de entrada constitui-se (a par com o dever de participar nas perdas) como a principal obrigação dos sócios. É o que resulta, em termos gerais, do citado art.980º do C.Civil que estabelece a contribuição com bens ou serviços por parte dos sócios como um dos essentiala negotii do contrato de sociedade. E é o que resulta também, no que às sociedades diz respeito, do artigo 20.º do CSC que, de forma imperativa, estabelece como obrigações essenciais dos sócios a obrigação de entrada e a de quinhoar nas perdas.
Se a obrigação de entrada, enquanto obrigação originária e fundacional (no sentido que está na origem da atribuição da qualidade de sócio e que sem ela não é possível a constituição ou fundação de uma sociedade), não deixam as novas entradas em caso de aumento de capital de apresentar semelhante relevância jurídica.
Daí que as novas entradas para aumento de capital possam ser em dinheiro ou em espécie ficando estas últimas sujeitas às mesmas regras de avaliação e integração previstas para a constituição da sociedade (artigo 89.º, nº 1 do CSC).
Por entrada em sentido técnico-jurídico deve entender-se toda a contribuição patrimonial do sócio para a sociedade que se destina ao pagamento das participações sociais que adquire. A entrada abrange, pois, os bens entregues pelo sócio cujo valor corresponde ao valor nominal das participações sociais que subscreve, como ainda o valor excedente que o sócio tem de desembolsar para as adquirir [artigo 295.º, nº 3 al. a) do CSC].
A lei, apenas, admite dois tipos de entradas: as entradas em indústria (entradas com trabalho ou serviços por parte dos sócios) as quais não são admissíveis nas chamadas sociedades de capitais (artigos 202.º, nº 1 e 207.º, nº 1 do CSC); e as entradas em bens, rectius, entradas de capital.
Estas últimas podem repartir-se em entradas em dinheiro e em entradas em espécie.
Ora, postos estes breves considerandos, se a compra e venda do estabelecimento comercial tivesse chegado a concretizar-se, o valor de € 25.000,00 que o recorrente alega ter entregue aos Réus seria considerada uma nova entrada em dinheiro enquanto a entrada da Ré C…, Lda. (também sócia da sociedade E…, Ldª) seria uma entrada em espécie, ou seja, as novas entradas corresponderiam a um aumento de capital social e nunca um contrato de suprimento, como foi entendido pelo tribunal recorrido.
Todavia, como tal aquisição do estabelecimento (na alegação do recorrente) não se chegou a concretizar, tendo a sociedade “E…, Ldª” sido dissolvida (alegação do recorrente), então, a entrega dos € 25.000,00 por parte do recorrente (na sua alegação) aos Réus, deixou de ter causa justificativa e, portanto, a relação material controvertida fundamenta-se, sem sombra para dúvidas no enriquecimento sem causa (artigo 473.º do C.Civil).
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Perante esta perspectiva resulta manifesto que a presente acção não se dirige ao exercício de quaisquer direitos sociais, não caindo, por isso, na esfera de competência dos tribunais de comércio, antes se compreendendo no âmbito mais genérico da competência dos juízos cíveis.
Não será, pois, o tribunal de comércio o competente para preparar e julgar esta acção, mas sim o tribunal comum, no caso o 2º Juízo Cível da Comarca do Porto, onde os autos foram intentados.
Destarte, é forçosa a procedência da apelação, não podendo subsistir o juízo de incompetência material formulado pelo Tribunal a quo, nem a decorrente absolvição da instância dos Réus.
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Procedem, assim, as conclusões formuladas pelo recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente revogando, assim, o despacho recorrido, por o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a acção ser, não o Tribunal de Comércio, mas sim o 2.º Juízo Cível da comarca do Porto onde os autos deverão continuar a ser tramitados.
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Custas pela parte vencida a final e na proporção em que o for.
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Porto, 17 de Março de 2014
Manuel Domingos Fernandes
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
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[1] Acs. da RC de 11.01.94, BMJ nº 433, pág. 633, do STJ de 21.10.88, BMJ nº 380, pág. 444 e de 30.05.89, BMJ nº 387, pág. 456 e da RC de 21.01.92, CJ, I, pág. 86.
[2] Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 671.
[3] No mesmo sentido escreve Alberto dos Réis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 141 “(…) o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.
[4] Vide Acs. STJ de 12.02.2004 e de 18 de Março de 2004 in www.dgsi.pt.
[5] Cfr., por todos, os Acs. do STJ, de 12/02/2004 e de 30/01/2013, tal como os Acs. do Trib. Rel. Porto de 20/04/2004, de 31/03/2011 e de 23/02/2012, bem como doutrina e jurisprudência neste último citadas, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido veja-se o citado Ac. do STJ, de 12/02/2004 e também o de 05/02/2002, CJ, Ano X, Tomo 1, pág. 68, e Paula Costa e Silva "Sobre a Competência dos Tribunais de Comércio", ROA, Lisboa, Ano 62, 2002, págs. 210 e segs.
[7] Designadamente, para além da sua possível complexidade, pela carga de litigiosidade/ conflitualidade que podem comportar.
[8] Cfr. Ac. do Trib. Rel. Porto de 20/04/2004.
[9] “Se a lei não define o que são direitos sociais, é também certo deverem nestes “incluir-se, desde logo, e como é natural, os direitos dos sócios previstos no art. 21.º do Código das Sociedades Comerciais”, bem como “os direitos de acção de anulação de deliberações sociais, de requerer inquérito judicial por falta de apresentação de contas e de deliberação sobre elas, de propor acção judicial de responsabilidade contra membros da administração, de preferência nos aumentos de capital por novas entradas em dinheiro e o direito à quota de liquidação (cfr. art.ºs 59.º, 67.º, 77.º, 156.º, 266.º e 458.º, todos do CSC)”-cfr. o citado Ac. do Trib. Rel. Porto de 23/02/2012.
[10] Cfr. neste sentido Acs. desta Relação de 20-05-2002 e 24-04-2008 in www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Código das Sociedades Comercias, Vol. III, Coordenação de Jorge M. Coutinho de Abreu Almedina, 2001, p. 627.
[12] Do Contrato de Suprimento, O financiamento da sociedade entre capitais próprios e capital alheio, Coimbra, Almedina, 2002, p. 27
[13] Embora o STJ tenha vindo a seguir o entendimento – proposto por Raúl Ventura – de o regime dos suprimentos só abranger accionistas detentores de, pelo menos, dez por cento do capital social (STJ, 14.02.94 e 9.02.99, CJ/94, T. III e CJ/99, T. I).
[14] Alexandre Mota Pinto, obra citada, pág. 299.
[15] Cfr. Código das Sociedades Comercias, Vol. III, cit. 637/639.