Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
268/11.7GAVLC.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MELO LIMA
Descritores: RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
IDONEIDADE DO MEIO
VIOLÊNCIA
Nº do Documento: RP20120627268/11.7GAVLC.P1
Data do Acordão: 06/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No âmbito da ação típica do crime de Resistência e coação sobre funcionário, do art. 347.º, do Cód. Penal, constituirá violência todo o ato de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança.
II - É inidónea a ação do arguido que, sofrendo de “dependência de álcool”, recusa ser detido “desferindo pontapés para a sua retaguarda na tentativa de acertar em algum dos militares da patrulha (…), acabando por se desequilibrar e cair no chão”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO Nº 268/11.7GAVLC.P1

RELATOR: MELO LIMA

Acordam, em Conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

1 Para julgamento em processo Sumário, pelo 2ºJuízo do Tribunal Judicial de Vale de Cambra, o Ministério Público deduziu acusação contra B…, imputando-lhe a prática, em concurso real de infrações, de (i) Um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal; (ii) Um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, e (iii) Três crimes de injúria agravada, previstos e punido pelos artigos 181.º e 184.º, do Código Penal.

2 Realizado o julgamento, foi, a final, proferida DELIBERAÇÃO nos seguintes termos:
2.1 Absolver o arguido B… da prática do crime de resistência e coacção a funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal pelo qual vinha acusado
2.2 Condenar o arguido B…, em autoria material e concurso efectivo, pela prática de:
2.2.1 Um (1) crime de violência doméstica, previsto e punido pelos artigos 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;
2.2.2 Três (3) crimes de injúria agravada, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 e 184.º do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa cada;
2.3 Em cúmulo jurídico destas penas, condenar o mesmo arguido na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de €1.200,00 (mil e duzentos euros) e em 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;
2.4 Suspender a execução da pena de prisão por um período de 2 (dois) anos e 2 (dois meses), suspensão essa condicionada à sujeição pelo arguido das seguintes regras de conduta:
2.4.1 Sujeitar-se a um tratamento de desintoxicação alcoólica, a ser levado a cabo em instituição pública a designar, devendo o arguido fazer prova do início de tal tratamento no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da presente sentença;
2.4.2 Sujeitar-se e cumprir as directivas determinadas por essa instituição em coordenação com o IRS, relativas às concretas medidas de tratamento;
2.4.3 Sujeitar-se ao acompanhamento da sua situação, por parte da referida instituição e do IRS, sempre que solicitado pela Instituição e o IRS.
2.4.4 Devendo a instituição e o IRS dar conhecimento ao Tribunal da evolução do estado do arguido, devendo tais informações serem prestadas de 3 em 3 meses.
3 Inconformado, recorre o MINISTÉRIO PÚBLICO rematando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
3.1 O crime de resistência ou coacção a funcionário nos termos em que está previsto no artigo 347° no i do C. Penal, consiste em “empregar violência ou ameaça grave contra membro das forças militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções...”
3.2 Neste tipo legal de crime “incrimina-se uma actividade dirigida ao agente de autoridade, traduzida numa atitude de oposição à execução de um acto ou numa atitude de constrangimento para a prática de um acto do poder público, mediante actos de coacção física (uso da força física) ou psíquica (ameaça e acto material e violento como fim de impedir o agente de autoridade de exercer as suas funções), perturbadores da segurança e tranquilidade ou mediante a exteriorização de uma vontade de fazer nascer um mal sério, geralmente imediato, de natureza a influenciar a acção legal do agente da autoridade”
3.3 A violência a que se alude naquele preceito legal não tem que consistir numa agressão física, bastando a simples hostilidade idónea a coagir, impedir ou dificultar a actuação legítima do funcionário.
3.4 Tendo resultado provado em sede de audiência e julgamento que o arguido não logrou atingir nenhum dos elementos da GNR que se deslocaram ao local, porquanto os mesmos se desviaram dos pontapés por aquele desferidos.
3.5 Encontram-se preenchidos os elementos típicos do crime em apreço, tal como, de resto foi decidido no Acórdão da Relação do Porto de 21/9/05 WWW.dgsi.pt/jtrp: “A violência que é exigida pelo art. 347° do CP95 não tem que traduzir-se na prática de uma ofensa corporal.”
3.6 Assim, a Mma. Juiz ao absolver o arguido da prática do crime de resistência e coacção, p. e. p. pelo artigo 347° do Código Penal, pelo qual vinha acusado, apenas com o fundamento de não se ter verificado qualquer agressão física aos agentes da GNR os quais são dotados de especiais capacidades e qualidades para gerir/suportar situações de confronto, incorreu no vício de erro notório na apreciação da prova nos termos do disposto no artigo 410°, n.° 2, al. c) do Código de Processo Penal, violando ainda o disposto no artigo 347° do Código Penal.
3.7 Pelo que deverá a sentença ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de resistência e coacção, p. e. p. pelo artigo 347° do Código Penal,
4 Respondeu, no Tribunal recorrido, o ARGUIDO, dizendo, em síntese, que, no caso em apreço o comportamento do arguido não preenche os elementos objectivos do crime de resistência e coação sobre funcionário, pelo que bem andou o tribunal a quo ao decidir absolve-lo quanto à prática do mesmo.
5. Neste Tribunal da Relação a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido do provimento ao recurso revogando-se a sentença na parte atinente à não consideração da prática pelo arguido de tal crime, e ordenando-se a remessa dos autos à 1a instância de modo a que a mesma seja reformulada e condenado o arguido em conformidade.

6. Observada a Notificação a que alude o artigo 417º/2 do CPP, colhidos os Vistos, Realizada a Conferência, cumpre conhecer e decidir

II FUNDAMENTAÇÃO
Foi a seguinte a decisão proferida pelo Tribunal recorrido em termos de factos provados, factos não provados e motivação:

1. FACTOS PROVADOS
1.1 B… e C… casaram um com o outro no dia 4 de Novembro de 1992, tendo nascido dessa relação três filhos: D… (nascido a 22 de Fevereiro de 1993), E… (nascido a 19 de Setembro de 2001) e F… (nascido a 14 de Abril de 2004);
1.2 Divorciaram-se no dia 16 de Dezembro de 2005;
1.3 A relação entre ambos foi sempre problemática, pautada por muitas discussões, fruto do problema de dependência de álcool de que sofre o arguido;
1.4 No dia 14 de Agosto de 2011, numa esplanada da praia do …, em Ovar, o arguido dirigiu-se à sua ex-esposa e apodou-a de “minha grande puta”. Após, e como o filho de ambos quisesse dar um beijo à sua mãe, o arguido a isso o impediu dizendo que esta “tinha acabado de fazer um broche e tinha a boca toda suja”, o que fez na presença dos dois filhos mais novos que ali se encontravam;
1.5 No dia 16 de Agosto de 2011, cerca das 23h00, o arguido B…, dirigiu-se à residência de C…, sita no …, R/C, direito, na Rua …, em Vale de Cambra, e, após, com o uso da chave que ainda tinha em seu poder, introduziu-se na entrada do referido prédio, começou a tocar insistentemente na campainha da porta daquela;
1.6 Como aquela não tivesse ido abrir a porta, atirou uma pedra contra o vidro da porta da varanda, derrubou os vasos de flores que ali se encontravam e dirigindo-se à porta de entrada da sua ex-mulher, com um objecto que não se logrou identificar, mas que terá sido a chave da porta de entrada do prédio, com ela riscou a porta da entrada do apartamento de C… com os dizeres “puta”;
1.7 Durante o dia, o arguido já havia telefonado várias vezes àquela apodando-a de “puta”, “vaca”, “brochista”, tendo esta já solicitado a presença de elementos da GNR pois o arguido recusava-se a entregar os filhos de ambos;
1.8 Ainda nesse dia, face ao comportamento do arguido que não parava de tocar à campainha, a ofendida C… chamou a patrulha da GNR para se deslocar ao local no sentido de pôr termo ao comportamento do arguido;
1.9 Assim, ali compareceu uma patrulha da GNR constituída pelos Guardas G…, H… e I…;
1.10 O arguido, ao vê-los a chegar, disse-lhes que ali estava porquanto os seus filhos se encontravam sozinhos fechados em casa da ex-mulher;
1.11 Porém, o Guarda I… efectuou uma chamada telefónica para o posto a fim de confirmar quem havia telefonado a solicitar a comparência da GNR no local, no que o arguido, ao constatar que aqueles iriam perceber que a história que contava acerca dos filhos não era verdadeira, atirou uma pedra à janela da sala da casa da ofendida, tendo partido o respectivo vidro;
1.12 Nessa altura, ao presenciarem tal atitude, os militares da GNR deram voz de detenção ao arguido;
1.13 Contudo, o arguido não acatou tal ordem tendo começado a desferir pontapés para a sua retaguarda na tentativa de acertar em algum dos militares da patrulha, o que só não logrou conseguir visto que estes se conseguiram esquivar a tempo;
1.14 Nisto, o Guarda H… agarrou o braço direito do arguido, enquanto o Cabo G… o agarrou pelo braço esquerdo, tendo o Guarda I… tentado algemar o mesmo;
1.15 Porém, o arguido continuou a desferir pontapés para a sua retaguarda de molde a atingir os militares da GNR, no que acabou por se desequilibrar e cair no chão;
1.16 Estando o arguido no chão, os militares da GNR aproximaram-se do mesmo a fim de o algemarem, no que aquele lhes disse: «sois uns filhos da puta», «sois uns canalhas», «soltai-me as algemas que eu fodo-vos»;
1.17 Após, foi o arguido conduzido à viatura da GNR tendo, durante o transporte até ao posto da GNR dito por diversas vezes “Chupó pau, chupó pau, o caralho”.
1.18 Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu livre e conscientemente, com o propósito concretizado de, por diversas vezes, maltratar psicologicamente a sua ex-esposa, com quem sabia ter estado casado e a quem devia respeito, o que fez na presença dos filhos menores de ambos, resultado esse que representou e logrou conseguir;
1.19 Não obstante a voz de detenção que lhe foi dada pelos militares da GNR, o arguido ao não acatar tal ordem a qual havia escutado e bem sabendo que os mesmos eram agentes da GNR, agiu livre e conscientemente, de forma a opor-se a que aqueles elementos da G.N.R praticassem acto relacionado com as suas funções, e ainda com o propósito concretizado de causar, como causou, ao desferir os pontapés na direcção daqueles que estes poderiam vir a sofrer acto atentatório da sua integridade física, e ainda de lhes molestar o corpo e a saúde, o que representou e conseguiu;
1.20 O arguido agiu ainda de forma livre e consciente, bem sabendo que, ao proferir as expressões supra referidas, estava a ofender na sua honra e consideração profissional os militares da GNR G…, H… e I…, os quais se encontravam devidamente fardados e no exercício das suas funções, o que representou e logrou conseguir;
1.21 O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
1.22 O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos pelos quais vinha acusado e mostrou arrependimento;
1.23 Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
1.24 O arguido é divorciado, encontra-se em tratamento de desabituação alcoólica; encontra-se de baixa médica da qual recebe cerca de 300 euros mensais; vive com os pais.
2. Factos não provados
Com relevo para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos que estejam em contradição com os dados como provados.
3. Motivação
O Tribunal formou a sua convicção com base na confissão integral e sem reservas do arguido, que de forma livre e espontânea confessou os factos, mostrou-se arrependido e explicou que tais factos se ficaram a dever a um período menos bom da sua vida, admitindo ser consumidor em excesso de bebidas alcoólicas, problema que ainda subsiste, encontrando-se em tratamento.
No que toca aos antecedentes criminais do arguido, o tribunal formou a sua convicção com base no certificado de registo criminal junto aos autos.
No que concerne aos demais factos, a nossa posição assentou nas declarações do próprio arguido, que nos mereceram no essencial crédito, pela forma coerente a que a este propósito depôs.
Valorou-se, ainda, as certidões de casamento e nascimento juntas aos autos.

III CONHECENDO

1 Delimitação objectiva do recurso.
De acordo com as conclusões do Recurso, a questão decidenda reconduz-se à verificação dos elementos objetivo-subjetivos do tipo do ilícito ‘Resistência e Coação sobre Funcionário’ pº pº pelo artigo 347º/1 do CP, subsidiariamente, na confirmação daqueles, decidir qual o tribunal competente para a cominação da respetiva pena e, sendo reconhecida a competência deste Tribunal de recurso, como proceder à escolha e determinação da medida da pena.

2 CONHECENDO
2.1 Questão prévia.
Diz a Ex.ma Procuradora Adjunta em Conclusão do recurso interposto:
«Assim, a Mma. Juiz ao absolver o arguido da prática do crime de resistência e coacção, p. e. p. pelo artigo 347° do Código Penal, pelo qual vinha acusado, apenas com o fundamento de não se ter verificado qualquer agressão física aos agentes da GNR os quais são dotados de especiais capacidades e qualidades para gerir/suportar situações de confronto, incorreu no vício de erro notório na apreciação da prova nos termos do disposto no artigo 410°, n.° 2, al. c) do Código de Processo Penal, violando ainda o disposto no artigo 347° do Código Penal» [Supra I, 3.6]
Trata-se de uma conclusão em que a Digna Recorrente incorre em dois manifestos lapsos.
O primeiro, quando invoca o vício da decisão tipificado no erro notório da apreciação da prova [410º/2 al. c) do CPP].
Em manifesta confusão conceptual, a Ex.ma Procuradora-Adjunta identifica como erro na apreciação da prova o que, seguramente, pretende identificar como erro jus-subsuntivo ou erro na aplicação do direito ao caso concreto.
De todos consabido, verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que normalmente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, tudo por forma susceptível de ser alcançada pelo cidadão comum minimamente prevenido ou, ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida.

Dizer: um vício de lógica jurídica ao nível da matéria de facto.
Ora, a Digna Recorrente, em boa verdade, não põe minimamente em causa a decisão de facto proferida, antes, entende que o acervo comprovado preenche os elementos objetivo-subjetivos do tipo do ilícito, assim conducentes não à absolvição – como decidido na instância recorrida, com prática de erro na afirmação da iuris dictio – mas à condenação do arguido, como autor material de um crime de resistência e coação sobre funcionário.
Um segundo lapso ressuma da citada conclusão.
Tem a ver com o pressuposto fundamento da decisão proferida identificado com o «não se ter verificado qualquer agressão física aos agentes da GNR os quais são dotados de especiais capacidades e qualidades para gerir/suportar situações de confronto».
Lida e relida a fundamentação jurídica emprestada à decisão não se duvida da referência feita à especificidade da força militarizada que enforma a GNR. Porém, já não se vislumbra em momento algum que o fundamento da absolvição tivesse a ver com a inexistência de qualquer agressão física aos agentes da GNR.
Diferentemente, o fundamento, como melhor se verá de imediato, teve a ver, por certo com aquela especificidade, mas conjugada, na atenção ao caso concreto, com a inidoneidade da atuação do arguido para inviabilizar os atos funcionais dos agentes da GNR.
1.1 Verificação dos elementos objetivo-subjetivos do tipo do ilícito
No momento da subsunção dos factos ao direito, teve o tribunal recorrido por certo que a factualidade comprovada não consentia a responsabilização do arguido enquanto autor de um crime de resistência e coação sobre funcionário pºpº pelo artº 347º/1 do CP.
O que justificou do seguinte modo:
«O bem jurídico protegido no crime de resistência e coacção sobre funcionário consiste na denominada “autonomia intencional do Estado” em face de ataques vindos do exterior da Administração Pública. Nos termos da incriminação, o legislador penal almejou o desiderato de evitar que aos funcionários ou membros das forças armadas ou de segurança sejam colocados entraves, por parte de quem não é funcionário, o mesmo é dizer, insurge-se às intenções estaduais, tornando-as ineficazes (Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 339). Apenas reflexamente se mostrando protegida a pessoa do funcionário incumbido de desempenhar determinada tarefa.
Quanto ao tipo objectivo de ilícito, estamos perante um crime comum no que respeita ao sujeito activo, sendo, no entanto, certo que o sujeito passivo há-de, impreterivelmente, ser um funcionário ou um membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança.
Por outro lado, importará notar tratar-se, de igual modo, de um crime de execução vinculada, porquanto nenhum outro meio, que não a violência ou a ameaça grave, conduz ao preenchimento do tipo. De resto, cumprirá salientar, que “tanto a resistência eficaz como a ineficaz estão compreendidas na ofensa típica”, sendo de exigir, para efeitos de consumação, “que a acção violenta ou ameaçadora tenham atingido, de facto, o seu destinatário” (Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., 342).
A acção materializa-se na prática de actos de violência ou ameaça grave contra autoridade, na pessoa de um seu agente e desenvolve-se em vista de uma finalidade específica dirigida à sua liberdade funcional.
Assim, incrimina-se uma actividade dirigida ao agente de autoridade, traduzida numa atitude de constrangimento para a prática de um acto do poder público, mediante actos de coacção física (uso da força física) ou psíquica (ameaça e acto material violento com o fim de impedir o agente da autoridade de exercer as suas funções) perturbadoras da segurança e tranquilidade ou mediante a exteriorização de uma vontade de fazer nascer um mal sério, geralmente imediato, de natureza a influenciar a acção legal do agente da autoridade.
Constituem, assim, elementos integradores do tipo de ilícito de resistência e coacção sobre funcionário:
● O impedimento da prática de acto relativo ao exercício de funções;
● O constrangimento à prática de acto relativo ao exercício de funções, mas contrários aos deveres do cargo;
● O emprego de violência ou ameaça grave.
Os meios utilizados - violência ou ameaça grave - devem ser entendidos, principalmente, do mesmo modo que no tipo legal de coacção previsto no artigo 154.º do Código Penal. Por violência entende-se todo o acto de força ou hostilidade idóneo a coagir o funcionário, levando-o a actuar de determinada maneira. E há ameaça grave sempre que a acção afecte a segurança e tranquilidade da pessoa a quem se dirige e seja suficientemente séria para produzir o resultado pretendido.
Todavia, o tipo legal de crime em apreço apresenta uma especificidade. Ora, deverá tomar-se em consideração que os destinatários da violência ou coacção possuem especiais qualidades no que concerne à capacidade para suportar pressões e que estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum. Isto mesmo refere Cristina Líbano Monteiro, in ob cit, o grau de violência ou ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se pela capacidade de afectar a liberdade física ou moral de acção de um homem comum. A utilização do critério objectivo-individual há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário. Assim, será natural que uma mesma acção integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar, por exemplo, um militar. Ou seja: nalgumas hipóteses desta concreta coacção que se considera, hão-de ter-se em conta não apenas as eventuais sub-capacidades do coagido ou ameaçado, mas talvez sobretudo as suas “sobre-capacidades”. É consabido que a jurisprudência vem divergindo no sentido do que se deve considerar bastante para a consumação do crime de resistência e coacção sobre funcionário.
Quanto a nós, somos do entendimento que para a consumação do crime em análise necessário se torna que a acção violenta ou ameaçadora seja idónea a atingir de facto o seu destinatário ou destinatários, isto é, que essas acções os possam impedir de concretizar a actividade por estes prosseguida, neste sentido vide acórdão da RC, de 8.09.2010, in www.dgsi.pt, onde numa situação similar à dos autos se entendeu que inexistiram actos de violência idóneos a intimidar, perturbar e, no fundo, dificultar ou impedir a liberdade de acção dos agentes da GNR, traduzida, numa primeira fase, na revista da arguida e, depois, na detenção desta. De igual modo podemos ler no acórdão da RP datado de 5.07.06, in www.dgsi.pr, assim sumariado: “Não comete o crime de resistência e coacção sobre funcionário uma mulher que, após ser agarrada por 2 agentes da Polícia Municipal, para a levarem ao posto da G.N.R., esbracejou, tentou agredi-los com pontapés e se agarrou a uma corda que sustentava um toldo de feira, para evitar ser conduzida àquele posto.”.
No tocante ao tipo subjectivo de ilícito, exige-se uma perfeita congruência entre este e o tipo objectivo. A estrutura do crime em análise não é a de um delito de tendência ou de intenção, bastando para o seu preenchimento o dolo eventual (Cristina Líbano Monteiro, in obra citada pág. 339). Basta que o agente tenha actuado com dolo eventual, ou seja, e em consonância com o preceituado no art. 14.º, n.º 3 do Código Penal, que tenha representado o evento ilícito como consequência possível da sua actuação e, ainda assim, haja actuado, conformando-se com a sua produção.
Descendo ao caso concreto provou-se que no dia 16 de Agosto de 2011, face ao comportamento do arguido a ofendida C… chamou a patrulha da GNR, que se deslocou ao local no sentido de pôr termo ao comportamento do arguido. Ali compareceu uma patrulha da GNR constituída pelos Guardas G…, H… e I…. O arguido, ao vê-los a chegar, disse-lhes que ali estava porquanto os seus filhos se encontravam sozinhos fechados em casa da ex-mulher. Porém, o Guarda I… efectuou uma chamada telefónica para o posto a fim de confirmar quem havia telefonado a solicitar a comparência da GNR no local, no que o arguido, ao constatar que aqueles iriam perceber que a história que contava acerca dos filhos não era verdadeira, atirou uma pedra à janela da sala da casa da ofendida, tendo partido o respectivo vidro. Nessa altura, ao presenciarem tal atitude, os militares da GNR deram voz de detenção ao arguido. Contudo, o arguido não acatou tal ordem tendo começado a desferir pontapés para a sua retaguarda na tentativa de acertar em algum dos militares da patrulha, o que só não logrou conseguir visto que estes se conseguiram esquivar a tempo. Nisto, o Guarda H… agarrou o braço direito do arguido, enquanto o Cabo G… o agarrou pelo braço esquerdo, tendo o Guarda I… tentado algemar o mesmo. Porém, o arguido continuou a desferir pontapés para a sua retaguarda de molde a atingir os militares da GNR, no que acabou por se desequilibrar e cair no chão.
Analisada esta factualidade, verificamos que o arguido com a sua actuação procurou evitar ou dificultar a actuação dos militares da GNR no que à sua detenção diz respeito, num contexto latente de conflitualidade familiar.
Nesse contexto, o arguido, efectivamente, tentou pontapear e proferiu as expressões que se provaram, mas fê-lo perante três militares da GNR que têm capacidades e competências especiais para não se deixarem abalar por meras tentativas de obstar ao exercício das suas funções, e que levaram a cabo o acto a que se propunham que era a detenção do arguido.
Perante o circunstancialismo fáctico apurado, e em nosso entendimento, o comportamento adoptado pelo arguido não assumiu contornos de violência ou de ameaça grave que preencham o elemento objectivo deste tipo de crime. Ou seja, as especiais qualidades dos agentes de autoridade intervenientes no caso em apreço no que diz respeito à capacidade de cada um deles suportar/gerir pressões e determinadas situações de confronto, a actuação do arguido, que se traduz apenas na “tentativa” de desferir pontapés, contra os três militares da GNR, sem que conseguisse atingir qualquer deles e sendo algemado sem dificuldades, não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os actos funcionais acima concretizados, como o não foi, porque não se mostra tal comportamento adequado a anular ou a dificultar de forma significativa a capacidade de actuação dos três Militares na ocasião em causa, tanto mais que estes, como já se referiu, possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum.
À semelhança do defendido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, supra referido, que aqui vimos seguindo de perto, concluímos também aqui que o comportamento do arguido não preenche os elementos objectivos do crime de resistência e coação sobre funcionário, por não integrar os contornos de violência e de ameaça grave que a norma incriminadora exige.»

Como se deixou já antever, a decisão sob recurso identificou o punctum saliens da opção jus-subsuntiva adotada com a exigibilidade de que, para a consumação do crime “necessário se torna que a acção violenta ou ameaçadora seja idónea a atingir de facto o seu destinatário ou destinatários, isto é, que essas acções os possam impedir de concretizar a actividade por estes prosseguida”.
Corolário, se bem se interpreta, dos princípios jus-fundamentais da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito [Artigo 18º da CRP] [1] o tribunal recorrido entendeu eleger a idoneidade para a perturbação e/ou oposição à prática de ato relativo ao exercício da sua função por parte de funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, como critério reitor com sentido jus-prático-normativo. [2]
A partir do acervo fáctico comprovado, teve o Tribunal por certo que “os militares da GNR deram voz de detenção ao arguido” [3] mas que este não acatou tal ordem, “tendo começado a desferir pontapés para a sua retaguarda na tentativa de acertar em algum dos militares da patrulha, o que só não logrou conseguir visto que estes se conseguiram esquivar a tempo”.
Apoiada na doutrina – Sic, Comentário Conimbricense do código Penal - e em jurisprudência, nomeadamente deste Tribunal da Relação [Sic. Ac. TRP de 05.07.2006 (Processo 0640029; Relator: Dias Cabral)] [4] o Tribunal recorrido, na formulação de um juízo de exigência de racionalidade e de justa medida, entendeu dever concluir no sentido da apontada inidoneidade.
Juízo que bem fundamentou e cuja bondade de argumentação se acompanha.
Dê-se conta aliás, que esta exigência de idoneidade – dizer: constituirá violência todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança – é pressuposto comum à generalidade da jurisprudência deste Tribunal da Relação. [5] [6]
Esta valoração do grau de idoneidade não prescinde, como parece óbvio, das circunstâncias concretas concorrentes no caso. [7]
Assim procedeu o julgador, apreciando conjugadamente a força militarizada presente e interveniente, no exercício da sua função de segurança e salvaguarda da paz pública e a atitude assumida pelo arguido.
Em que se traduziu esta e em que concreto circunstancialismo?
Embora a fundamentação jurídica não chame o facto à colação, julga-se pertinente lembrar que ressuma do acervo fáctico comprovado a “dependência de álcool de que sofre o arguido” [Supra II, 1.3]
Pertinência até para melhor compreender o homem que recusando ser detido, reage “desferindo pontapés para a sua retaguarda (“para a sua retaguarda”, sic) na tentativa de acertar em algum dos militares da patrulha”, “acabando por se desequilibrar e cair no chão” [Supra II, 1.13 e 1.15]
Fraca e duvidosa violência esta, convenhamos: «Nisto, o Guarda H… agarrou o braço direito do arguido, enquanto o Cabo G… o agarrou pelo braço esquerdo, tendo o Guarda I… tentado algemar o mesmo; Porém, o arguido continuou a desferir pontapés para a sua retaguarda de molde a atingir os militares da GNR, no que acabou por se desequilibrar e cair no chão» !!!
Sem necessidade de particulares lucubrações exegéticas, não se afigura passível de censura o juízo adrede formulado no sentido de que «a actuação do arguido, que se traduz apenas na “tentativa” de desferir pontapés [“para a sua retaguarda”!, contra os três militares da GNR, sem que conseguisse atingir qualquer deles e sendo algemado sem dificuldades, não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os actos funcionais acima concretizados, como o não foi, porque não se mostra tal comportamento adequado a anular ou a dificultar de forma significativa a capacidade de actuação dos três Militares na ocasião em causa, tanto mais que estes, como já se referiu, possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum
Coadjuvantemente, valem aqui os ensinamentos de Cristina Líbano Monteiro que a sentença sub iudicio transcreve com inteira pertinência e que despiciendo se torna repeti-los.
Nesta conformidade, no acolhimento da fundamentação emprestada à sentença [425º/5CPP], confirma-se a douta decisão recorrida.

IV DECISÃO

Na improcedência do recurso, mantém-se a decisão recorrida.

Sem tributação.

Porto, 27 de Junho de 2012
Joaquim Maria Melo de Sousa Lima
Francisco Marcolino de Jesus
______________
[1] «….em se tratando de leis restritivas, o que está em causa é a relação que se estabelece entre os meios usados pelo legislador, no regime jurídico gizado, e os fins que ele mesmo se propõe alcançar». «….enquanto na adequação interessa saber se a providência legislativa adotada se mostra apta a alcançar o objetivo almejado, já na necessidade o que importa averiguar é se não existirá um outro meio que, podendo produzir sensivelmente o mesmo resultado, seja menos gravoso ou agressivo do ponto de vista dos direitos fundamentais. E, por sua vez, o que se prescreve na proporcionalidade stricto sensu é uma exigência de racionalidade e de justa medida, no sentido de que o órgão competente proceda a uma correta avaliação da providência adotada em termos qualitativos e quantitativos e, bem assim, para que esta não fique aquém ou além do que importa para se obter o resultado devido – nem mais, nem menos.» JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA ANOTADA, TOMO I, Coimbra editora, 2ªed, pág. 373
[2] No sentido da exigibilidade prático-normativa do princípio da proporcionalidade: CÓDIGO PENAL, COMENTADO Y COM JURISPRUDENCIA – LUIS RODRIGEZ RAMOS (Director), AMPARO MARTÍNEZ GUERRA (Coordinadora), 3ªEdición, La Ley grupo Wolters Kluwer, pág. 1409
[3] Voz de detenção sobre cuja legitimidade – conquanto jus-penalmente relevante - ora não se discute por não ser thema decidendum e, por de todo o modo, parecer a mesma justificada visto a atuação imediatamente subsequente ao apedrejamento da habitação da ex-mulher e à solicitação feita por esta da presença da autoridade policial.
[4] Acórdão em referência com significativa similitude fáctica à dos presentes autos. Já com relativa similitude fáctica mas com aparente divergência na solução jurídica, o Ac. TRP de 14.12.2011 (processo 76/11.5GCPRG.P1; Relator: José Carreto)
[5] Ex.g.: Acs. 26.11.2008, Processo 0815669, Relatora: Maria do Carmo Silva Dias [«Em termos genéricos, podemos dizer que se entende por violência todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança e, considera-se que há ameaça grave sempre que a acção afecte a segurança e tranquilidade da pessoa a quem se dirige e seja suficientemente séria para produzir o resultado pretendido»], 21.09.2005, Processo 0540048, Relator: Coelho Vieira [«…..violência consiste em todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das forças armadas, militarizadas ou de segurança. A utilização do critério objectivo individual há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário»]; 22.02.2006, Processo 0515856, Relator: Joaquim Gomes [«A violência aqui prevista não necessita de ser grave e nem sequer tem de consistir numa qualquer agressão física, consistindo antes num acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir, a impedir ou dificultar a actuação legítima do funcionário ou equiparado»].
[6] Assim, também, no apelo ao bem jurídico protegido: não já o princípio de autoridade, antes a «necessidade de que os agentes públicos que atuam ao serviço dos cidadãos, gozem da possibilidade de desempenhar as suas funções de garantia e proteção sem interferências nem obstáculos, sempre que atuem no exercício legítimo do seu cargo. Caso contrário, ressentir-se-ia a convivência cidadã que ver-se-ia seriamente afetada por acções que supõem um perigo para a mesma e que devem ser atacadas e perseguidas» (STS 4 junio [RJ 2000, 5240]) Vide: COMENTARIOS a la PARTE ESPECIAL del DERECHO PENAL – GONZALO QUINTERO OLIVARES (Director), FERMÍN MORALES PRATS (Coordinador), 8ª Ed., ARANZADI, THOMSON REUTERS, pág. 2066
[7] Neste sentido, «La gravedad de la intimidación y la resistência debe medirse com un critério objetivo, teniendo en cuenta las circunstancias de cada caso», Muñoz Conde, Derecho Penal, Parte Especial, 18ªEdição, Valencia 2009, pág.820]