Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1060/11.4PAESP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: DIREITO DE QUEIXA
LEGITIMIDADE
LOCATÁRIO
GERENTE DE SOCIEDADE
PODERES PARA APRESENTAÇÃO DA QUEIXA
Nº do Documento: RP201309111060/11.4PAESP.P1
Data do Acordão: 09/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tem legitimidade para apresentar queixa por crime de dano p. e p. no art. 212º, nº 1, do CP, a sociedade que (não sendo proprietária) é locatária do equipamento danificado, estando legitimamente na sua posse, uma vez que tem interesse directo e imediato na conservação do estado desse equipamento, estando a fruir das suas utilidades funcionais, ficando, com os danos causados, privada do seu uso e fruição (ver ac. do STJ nº 7/2011).
II - Nessa medida, a sociedade locatária dos bens que foram danificados, assume a qualidade de ofendido, por ser titular dos referidos interesses também tutelados no crime de dano, e, como tal, era igualmente titular do bem jurídico protegido no crime de dano denunciado, tendo o Ministério Público legitimidade para promover o processo penal (v.g. deduzir acusação pública) e podendo aquela constituir-se assistente e deduzir pedido cível.
III - A apresentação de queixa traduz-se no exercício de um direito que cabe ao respectivo ofendido. Esse exercício do direito de queixa não se pode confundir com a assunção de uma obrigação para a sociedade ofendida. Por isso, o facto da sociedade ofendida apenas se obrigar com a intervenção de 2 gerentes não significa que para apresentar queixa-crime tivesse de estar representada pelos dois gerentes. Portanto, a queixa apresentada por um dos seus gerentes é regular, válida e eficaz.
IV - O gerente que representou a sociedade ofendida no exercício do direito de queixa tem igualmente poderes para, em representação daquela, constituir mandatário, como sucedeu quando foi outorgada a procuração junta aos autos. Ainda que assim não fosse, sempre se teria de considerar que a eventual irregularidade (que não nulidade insanável uma vez que não está prevista como tal em qualquer disposição legal, nem se enquadra em qualquer das situações previstas no art. 119º do CPP) de representação da sociedade ofendida estava sanada, desde logo por não ter sido arguida tempestivamente. De resto, sem conceder, a existir vício de forma quanto à procuração, apenas se estava perante uma irregularidade formal que só podia ser invocada pela própria sociedade e/ou pelo Advogado constituído, o que não sucedeu (para além de resultar dos actos praticados pelos gerentes, nomeadamente, quando foram ouvidos em julgamento, que existia uma deliberação tácita de ambos, validando todos os actos, o que sempre vinculava a mesma ofendida – cf. arts. 261º, nº 1 e 2, e 260º, nº 1, nº 2 e nº 4 do Código das Sociedades Comerciais).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: (proc. n º 1060/11.4PAESP.P1)
*
Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
*
I- RELATÓRIO
1. No Tribunal Judicial de Espinho, nos autos de processo comum (Tribunal Singular) nº 1060/11.4PAESP, do 1º Juízo, foi proferida sentença, em 15.01.2013 (fls. 351 a 374 do 2º volume), constando do dispositivo o seguinte:
Nestes termos, julgo a acusação deduzida contra o arguido totalmente procedente, e o pedido de indemnização civil formulado contra o mesmo parcialmente procedente, e, em consequência:
a) condeno o arguido B… pela prática, em autoria material, de um crime de dano, p.º e p.º pelo art.º 212.º n.º 1 do C. Penal, na pena de cento e cinquenta dias de multa, à taxa diária de sete euros, o que perfaz o quantitativo de mil e cinquenta euros;
b) condeno o arguido no pagamento de taxa de justiça que se fixa em três U.C.´s;
c) após trânsito, ordeno a remessa de boletins à D.S.I.C. (art.º 5.º n.ºs 1 a) e 3 do Decreto-lei N.º 57/98, de 18 de Agosto);
d) condeno o lesante, B…, a pagar à lesada, C…, Ld.ª, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 891,75 (oitocentos e noventa e um euros e setenta e cinco cêntimos);
e) mais condeno o lesante, B…, a pagar à lesada, C…, Ld.ª, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia global de € 1000 (mil euros), absolvendo-o do restante peticionado;
f) ainda condeno o lesante e a lesada no pagamento das custas cíveis do processo, na proporção do respectivo decaimento.
(…).
*
2. O arguido B… interpôs recurso dessa sentença (fls. 377 a 405), apresentando as seguintes conclusões:
I. Atenta a natureza semi-pública do crime de dano, o qual necessita de ser integrado por uma queixa, o Ministério Público carece de legitimidade para o exercício da acção penal (cf. art. 49º Cód. Proc. Penal).
II. Obrigando-se a sociedade Ofendida/Assistente, "C…, Lda.", pela assinatura conjunta dos dois Gerentes, verifica-se que não foi apresentada validamente competente QUEIXA
III. Tanto a procuração forense de fls. 17 como a queixa apresentada foi apenas subscrita por um dos Gerentes da Ofendida/Assistente, quando era condição essencial para a validade das mesmas a intervenção de ambos os Gerentes, que são quem, em conjunto, pode vincular, válida e eficazmente, a Sociedade.
IV. Nos presente autos não existe queixa válida, pelo que há ilegitimidade do Ministério Público para promover o processo penal.
V. Tão-pouco podia ser admitido o requerido pela "C…, Lda." através do mandatário, que não se encontra válida e eficazmente constituído, nomeadamente o pedido de constituição como Assistente e o pedido de indemnização civil formulado, porque subscrito por mandatário sem poderes para o efeito, que não se encontra regularmente constituído, porquanto a procuração forense se encontra subscrita apenas por um dos Gerentes da Ofendida/Assistente.
VI. Foram, nesta parte, violados, nomeadamente, o art.º 212°/1 CP, os art.ºs 48º, 49º/1 e 74º/1 CPP, bem como o art.º do 256º/1 CSC.
SEM PRESCINDIR:
VII. O Tribunal "a quo" não apreciou devidamente a prova produzida em audiência de Julgamento, existindo, mesmo, um erro notório, já que existe desconformidade, patente, com o que realmente se provou e o que foi dado como provado (errada apreciação e valorização da prova).
VIII. Resultou, desde logo, provado que o ruído proveniente da música ao vivo tocada na esplanada do café da Ofendida/Assistente impediu o descanso, pelo menos, do Arguido e respectiva família, bem como que o Arguido se sentia "profundamente perturbado com a situação" (e não apenas "incomodado"), conforme se extrai das seguintes provas e factos:
IX. o Arguido tem 67 anos de idade e na noite dos factos, cerca das l,20h, dirigiu-se (trajando pijama) à esplanada do estabelecimento da Ofendida/Assistente, "D…", onde decorria uma espetáculo de música ao vivo.
X. o Arguido estava exaltado, conforme resulta do depoimento das Testemunhas E… e F…, sentindo-se "incomodado", mesmo "transtornado" com o barulho, conforme resulta do depoimento das Testemunhas G… e H….
XI. Mal andou o Tribunal "a quo" em dar como provado (apenas) que o Arguido que se sentiu «incomodado» com o barulho ln) da matéria provada], bem como em dar como não provado que tal barulho impedia o descanso do Arguido e respetiva família, bem como de toda a vizinhança [8) da matéria não provada].
Tanto mais que,
XII. Dos documentos juntos aos autos e da prova testemunhal produzida, resultou, ainda, - na perspectiva e opinião do Rec." - PROVADO, entre outros que supra se referem, que:
XIII. no dia 21/8/2011, pela 1,05h, o Arguido chamou a Polícia a sua casa, queixando-se de barulho proveniente daquele "D…", tendo o Agente da PSP I… escrito no relatório que: «Já no interior da residência, constatamos que de facto se ouvia ruído proveniente de música no referido estabelecimento» (cf. fls.); e no depoimento prestado em Audiência de Julgamento referido que o Arguido estava em pijama e se queixou que o barulho o impedia de descansar e estava, por isso incomodado;
XIV. o Arguido reclamou, por diversas vezes, quer por escrito, quer verbalmente, junto da Câmara Municipal … do barulho proveniente do "D…";
XV. o Sr. Vice-Presidente da Câmara Municipal … recusou a emissão de algumas licenças especiais de ruído para o "D…" com o seguinte fundamento: «por serem à terça-feira, perturbando o descanso dos residentes ...» (sublinhado nosso);
XVI. Acresce que, as Testemunhas G… e H…, vizinhos do Arguido, referiram que o barulho da música no "D…" era bastante incomodativo ("excessivo") e fazia com que o Arguido não conseguisse dormir e que se tinha queixado por diversas vezes de tal facto.
XVII. Foi, nesta parte, violado, nomeadamente, o art.º 127º do Cód. Proc. Penal.
SEM PREJUIZO:
XVIII. O Tribunal "a quo" fundamenta que não se verifica uma causa de exclusão da ilicitude, por legitima defesa, porquanto «não se apurou que tal agressão tenha sido ilícita», com os seguintes argumentos: i) não foi quantificado o barulho; ii) fora emitida uma licença especial de ruído; iii) extemporaneidade da reclamação contra a validade da licença, nos termos do art. 162º/b do CPA.
XIX. Salvo o devido respeito, também aqui o Tribunal "a quo" não apreciou devidamente a questão, nem - tão-pouco - aplicou bem a Lei e o Direito, já que se encontram preenchidos os requisitos que a doutrina e os Tribunais alistam à legítima defesa: a) agressão actual e ilícita (no sentido geral de o seu autor não ter direito de a fazer) de quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro; b) defesa circunscrita ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão (com a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspecto da necessidade do meio); c) Animus deffendendi.
XX. Verifica-se, "ln casu", que o barulho proveniente do espetáculo de música ao vivo realizado na esplanada do "D…" era «objectivamente perturbador do sossego das pessoas» e ultrapassava «aquilo que é legalmente permitido».
XXI. Por um lado, é reconhecido pelo próprio Vice-Presidente da Câmara …, no despacho proferido em 11/10/2011 (cf. fls.), que tais espetáculos são perturbadores do «descanso dos residentes». Além disso, todas as testemunhas referem que o barulho é audível dentro da residência do Arguido e respetivos vizinhos: G…, refere que «o ruído era excessivo»; «eu não consigo dormir, ... o ruído às vezes era ensurdecedor», [cf. depoimento registado por meios informáticos, mino 4,00]; H…, confirma que «o ruído é perfeitamente audível dentro de casa»; «impede-me de descansar» [cf. depoimento registado por meios informáticos, mino 1,30]; I… (agente da PSP), confirma o que havia escrita na informação de fls.: «o espetácuto era cá fora, ... ouvia-se na casa...» [cf. depoimento registado por meios informáticos, mino 6,35].
XXII. Por outro lado, resulta das cartas de ruído referentes ao local da habitação do Arguido, juntas aos autos pela Câmara Municipal …, que a zona é classificada como «zona sensível», onde - segundo o "critério de incomodidade" - não pode existir uma diferença superior de 3 decibéis (dB), no período nocturno, nos termos do Anexo I do Dec.-Lei n.º 9/2007 (Regulamento Geral de Ruído), sendo do conhecimento geral que o valor de 3dB corresponde ao valor do ruído mínimo, sendo por isso claramente violador de tal limite legal o facto de se ouvir claramente em caso do Arguido o ruído proveniente dos espetáculos de músico ao vivo realizados na esplanada do "D…". Tal circunstância é, aliás, atestada pelas testemunhas, nomeadamente pela dita testemunha G…: «não pode haver uma diferença de mais de três decibéis, ... não temos mediações, mas qualquer grupo a tocar ... até a falar, é muito mais que essa diferença». [cf. depoimento registado por meios informáticos, min. 8,50].
XXIII. Isto é, apesar de não ter sido feito nenhum teste ou mediação do ruído, resulta a experiência comum, corroborada por um técnico, que o ruído que se ouvia em casa do Arguido, proveniente do espetáculo de música ao vivo, violava a Lei Geral do Ruído por ultrapassar o valor do critério de incomodidade (3 dB).
XXIV. Como se disse, e em resumo, o barulho provocado pelo espetáculo de música ao vivo realizado na esplanada do "D…" - situada a cerca de 40/50mts da habitação do Arguido [et. n) factos provados] - ultrapassava os limites legais e era, objectivamente, perturbador do sossego e descanso do Arguido, que se queixava (tanto à Ofendida/assistente, como às autoridades, tanto policiais como camarárias) há vários meses, sentindo-se, no mínimo «incomodado» [cf, m) factos provados], senão mesmo transtornado, estando, no dia e hora dos factos, «exaltado».
XXV. Irrelevante era que a actividade da Ofendida/Assistente fosse lícita - que não o era!, já que a doutrina e a jurisprudência entendem tal deve ser interpretado no sentido geral de "não ter direito de a fazer".
XXVI. O meio usado pelo Arguido foi idóneo a deter a agressão e o menos gravoso: para obstar à conduta da Ofendida/Assistente o Arguido não podia socorrer-se da autoridade, pois por diversas vezes a polícia não obstou que os espetáculos de música ao vivo se realizassem.
XXVII. Atendendo à idade do Arguido, ao estado de exaltação, à recorrência dos espetáculos de música ao vivo, à inércia das autoridades, temos que conceder que a conduta do Arguido foi adequada a impedir a violação do seu, inalienável, direito ao descanso e repouso.
XXVIII. Não se vislumbra, sequer, tendo em conta tendo os bens jurídicos protegidos e toda as circunstâncias já ocorridas, que de outros meios pudesse o Arguido socorrer-se: como se as autoridades nada fizessem e cansado da situação, interveio em legítima defesa do seu direitos.
Concluindo:
XXIX. a jurisprudência é pacífica em considerar que o facto de se tratar de uma actividade lícita não é requisito de que afaste a possibilidade de actuação em legítima defesa, de que são paradigmáticos o Acórdão do STJ de 6/5/1998 [in CJ do STJ, Tomo II, 1998, p. 76], em que se decidiu que não afasta o carácter ilícito da ofensa o facto de a emissão de ruído estar contida nos limites legalmente fixados e de tal actividade ter sido autorizada administrativamente, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14/3/1996 [in CJ, Tomo II, 1996, p. 193], estabeleceu-se que, mesmo que devidamente licenciado, um estabelecimento continua adstrito à obrigação de respeitar todos os direitos de personalidade que são juridicamente mais importantes, e o Acórdão do STJ, de 9/1/1996 [in CJ do STJ, Tomo I, 1996, p. 37] em que se entendeu que não deixa de ofender o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono, o facto de o ruído em pouco ultrapassar o máximo legal. Finalmente, no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 27/4/1995 [in CJ, Tomo II, 1995, p. 213], reconheceu-se o direito de oposição face à emissão de ruídos, mesmo que o seu nível sonoro seja inferior ao legal e a respectiva actividade tenha sido autorizada pela autoridade administrativa competente, sempre que esta implique a ofensa de direitos da personalidade.
XXX. Foi violado, nomeadamente, o art.º 31 do Código Penal, bem como o disposto no Dec.-Lei n.º 9/2007 (Regulamento Geral de Ruído).
FINALMENTE:
XXXI. Ainda que por excesso de defesa, não pode deixar o Rec.te de referir que é manifestamente excessiva, desajustada e desproporcional a condenação no pagamento à Ofendida/Assistente da quantia de EUR 1,000€ a título de indemnização por danos não patrimoniais.
XXXII. Não se provaram os principais factos alegados pela Assistente/Ofendida que justificariam o arbitramento de uma indemnização por danos não patrimoniais, sendo certo que tal depende que se trate de danos patrimoniais «que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito,» (art. 496º/1 Cód. Civil).
XXXIII. Pelo que se reitera infundada, tanto a condenação como o valor da mesma.
XXXIV. Da valoração da matéria provada a atribuição de tal indemnização (a título de danos não patrimoniais) é manifestamente exagerado o valor arbitrado de EUR 1,000€, quando apenas se provou que os factos foram comentados «por alguns habitantes da cidade de Espinho» [cf. v) factos provados].
XXXV. Atentas as demais circunstâncias, atentos os demais factos nos termos do art. 494º (ex vi art. 496º Código Civil), é exagerada a indemnização no valor de 1,000€, a título de danos não patrimoniais, arbitrada pelo Tribunal “a quo".
XXXVI. Foram, nesta parte, violados os art.ºs 494º e 496º Código Civil.
POR FIM:
XXXVII. o Arguido, Rec.te, mantém interesse no recurso interposto em 6/9/2012, a fls., dos doutos despachos de 25/6/2012 a fls., em que se apreciou a legitimidade da Ofendida para apresentação da Queixa e se admitiu a respetiva constituição como Assistente.
XXXVIII. Sendo que, por essa razão, não se coloca tal matéria em causa na douta Sentença recorrida.
Termina pedindo que seja julgado extinto o procedimento criminal e a instância civil, por inexistência de um pressuposto de procedibilidade e por impossibilidade superveniente da lide (art.º 287.º/e) CPC), que seja declarada a nulidade de todo o processado (por a "C…, Lda." ter intervido no processo como Assistente sem que o respectivo pedido tivesse sido efectuado por mandatário validamente constituído) ou, quando assim não se entenda, seja o arguido absolvido (por verificação de causa de exclusão da ilicitude, a legítima defesa, com as legais consequências, nomeadamente quanto ao pedido de indemnização civil formulado) ou, ainda assim não se entendendo, seja absolvido do pagamento à Ofendida de indemnização por danos não patrimoniais ou a indemnização fixada em valor nunca superior a 250€[1].
*
3. O MºPº respondeu a esse recurso (fls. 408 a 422), concluindo pela sua improcedência. Igualmente a assistente C…, Ldª respondeu ao mesmo recurso (fls. 423 a 436), concluindo pela sua improcedência.

4. O arguido B… também interpôs recurso (fls. 251 a 265) da decisão de 25.6.2012 (fls. 138 a 141 do 1º vol.), que se pronunciou sobre a legitimidade da ofendida C…, Ldª para apresentar queixa crime e para se constituir assistente, formulando as seguintes conclusões:
I. Atenta a natureza semi-pública do crime de dano, o qual necessita de ser integrado por uma queixa, o Ministério Público carece de legitimidade para o exercício da acção penal (cf. art. 49º Cód. Proc. Penal).
II. Apenas a Sociedade proprietária dos objectos alegadamente danificados (colunas de som e projector de luzes) era a titular do direito de queixa (art. 113º Cód. Penal) e como tal possuidora de legitimidade para o seu exercício, mas não apresentou queixa no prazo de seis meses, pelo que se mostra extinto o procedimento criminal pelos factos alegados na acusação.
III. Ao caso sub judice não é aplicável a doutrina definida no Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2011, de 27-04-2011, já que, salvo o devido respeito, os factos e os fundamentos que serviram de base a tal decisão não são comparáveis ou equivalentes.
IV. Ali defendeu-se que «o conceito de "ofendido" como titular dos interesses que a incriminação quis proteger, pode, assim, abranger tanto o proprietário, como aquele que tem a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa, com um mínimo de representação jurídica que justifica a tutela penal»,
V. ln casu, a Sociedade Ofendida/Assistente não ficou privada da disponibilidade do bem alugado (equipamento de som e luzes), como resulta inequívoco do teor da Acusação, do PIC e dos documentos juntos, não existe qualquer afinidade sequer de circunstâncias factuais que permita aplicar a doutrina do referido Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2011, de 27-04-2011.
VI. A proprietária do equipamento, a Sociedade J…, Lda., teve conhecimento em tempo útil dos factos e dos alegados danos e nada fez.
Ora,
VII. como vimos defendendo, nos crimes semi-públicos, a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal carece de ser integrada por uma queixa do ofendido, do sujeito passivo do crime, isto é, do titular do direito respectivo - cf. art.º 49°, nº1, do Cód. Proc. Penal.
VIII. A queixa só é verdadeiramente queixa e, por isso, o Ministério Público só tem legitimidade para exercer o processo penal, se ela for uma manifestação de vontade da pessoa certa, que no caso é o proprietário do bem.
IX. Verificando-se que, na situação dos autos, inexiste queixa válida resulta, imediatamente, atentas as considerações aduzidas, que sobreveio a ilegitimidade do Ministério Público para promover o processo penal.
X. Por isso, nos termos do art. 311°, n° 1, Cód. Proc. Penal, cumpria rejeitar a douta acusação deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério Público.
XI. Foram, nesta parte, violados, nomeadamente, os art.ºs 49º e 113º do Cód. Proc. Penal, bem como o art.º 212°, 1 Cód. Penal.
Paralelamente:
XII. Estando em causa nos presentes autos factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de dano, a Sociedade "C…, Lda." não tem legitimidade para se constituir Assistente. Pois,
XIII. como defendemos, na incriminação do referido art.º 212°, 1, o que se protege é o direito de propriedade do sujeito afectado.
XIV. Pelo que, com os fundamentos supra expostos, não pode a Sociedade "C…, Lda." ser admitida a constituir-se como Assistente, conforme decorre do disposto no art.º 68°, 1, Cód. Proc. Penal, pois não é titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime.
XV. O douto despacho recorrido violou, nesta parte, o art.º 68º, 1, a) do Cód. Proc. Penal.
Termina pedindo o provimento do recurso e, em consequência, seja proferida decisão que declare extinto o procedimento criminal por inexistência de um pressuposto de procedibilidade, sendo o arguido absolvido do pedido cível deduzido por impossibilidade da lide e igualmente seja proferida decisão que indefira a constituição como Assistente da sociedade "C…, Lda.".
*
5. A esse recurso intercalar respondeu a assistente (fls. 284), bem como o Ministério Público (fls. 288 a 291), ambos concluindo pelo seu não provimento.
*
6. Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (fls. 449 e 450 do 2º volume), concluindo pela rejeição dos recursos (intercalar e principal) por manifesta improcedência.
*
7. Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP, respondeu a assistente (fls.455 a 461) concluindo pela manutenção das decisões sob recurso.
Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
*
8. Na sentença sob recurso foram dados como provados os seguintes factos:
a) o arguido, no dia 23 de Outubro de 2011, cerca da 1h20min, junto ao D…, sito na Rua .., n.º …, em Espinho, dirigiu-se, em pijama, aos sistemas de som e luz do referido bar e, acto contínuo, derrubou as colunas de som e o projector de luzes, atirando-os para o solo;
b) o D… é explorado pela assistente C…, Ld.ª;
c) as colunas de som e o projector de luzes pertenciam a J…, Ld.ª;
d) a assistente alugou a J…, Ld.ª, pelo valor de € 492, as colunas de som e o projector de luzes aludidos em a);
e) em consequência da actuação do arguido, as colunas e o projector ficaram com estragos e com parte dos seus componentes partidos, o que provocou à sociedade C…, Ld.ª um prejuízo patrimonial de € 891,75, já com I.V.A. incluído;
f) o arguido agiu livre e conscientemente, tendo representado como possível que com a sua conduta provocaria estragos nas colunas de som e no projector de luzes, tendo-se conformado com tal possibilidade;
g) sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
h) nas circunstâncias de tempo e de lugar mencionadas em a), encontrava-se a decorrer, na esplanada do D…, um concerto de música ao vivo, tocada por uma banda, a qual utilizava as colunas de som e o projector de luzes referidos em c);
i) o arguido é casado;
j) aufere, a título de pensão de reforma, cerca de € 303 mensais;
k) explora, juntamente com a esposa, uma mercearia, retirando do exercício desta actividade cerca de € 500 a € 600 por mês;
l) é sócio, juntamente com outra pessoa, de uma sociedade por quotas que tem por objecto a construção, a compra e a venda de edifícios, sociedade essa que possui inscritas em seu nome na Conservatória do Registo Predial competente sete fracções autónomas;
m) o arguido sentiu-se incomodado com o barulho proveniente do concerto referenciado em h);
n) a habitação do arguido localiza-se a cerca de quarenta/cinquenta metros da esplanada aludida em h);
o) a assistente possuía uma licença especial de ruído, emitida pela Câmara Municipal …, válida entre as 21h do dia 22 de Outubro de 2011 e as 2h do dia 23 de Outubro de 2011;
p) à data aludida em a) a assistente possuía uma licença, emitida pela Inspecção-geral das Actividades Culturais e válida até 27 de Julho de 2014, que lhe permite, entre o mais, levar a cabo espectáculos de música ao vivo;
q) a licença a que se aludiu em o) foi exibida ao arguido aquando do descrito em a);
r) a lesada, pela obtenção da licença especial de ruído mencionada em o) pagou à Câmara Municipal … € 20,20;
s) com a contratação da banda a que se aludiu em h) a lesada despendeu € 300;
t) nas circunstâncias de tempo e de lugar mencionadas em a), a esplanada do D… encontrava-se com a sua lotação esgotada;
u) na sequência do descrito em a), muitos dos clientes que se encontravam no D… ausentaram-se deste;
v) o descrito em a) foi comentado por alguns dos habitantes da cidade de Espinho.

Quanto aos factos não provados consignou-se o seguinte:
Nada mais foi dado como provado, com relevo para a decisão da causa, designadamente, que:
1) as colunas de som e o projector de luzes pertencessem a C…, Ld.ª;
2) mercê do descrito em a) tivesse ocorrido uma quebra de facturação no dia 23 de Outubro de 2011 e no mês seguinte;
3) nos Sábados subsequentes a 23 de Outubro de 2011 e mercê da actuação do arguido tenha havido uma redução de clientes no D…;
4) o descrito em a) tenha chegado ao conhecimento de toda a cidade de Espinho e tenha sido motivo de comentário de grande parte dos seus habitantes;
5) as pessoas que exploram o D… e os funcionários deste tenham tido a necessidade de procurar justificar, perante clientes e fornecedores, o mencionado em a);
6) a empresa identificada em c), na decorrência do descrito em a) e receosa de que tal se voltasse a repetir, não tenha voltado a alugar o material de som e as luzes à lesada;
7) os clientes referenciados em u) tenham-se ausentado do D… sem pagarem o consumo que hajam feito;
8) o ruído proveniente da música ao vivo tocada na esplanada do D… tenha impedido o descanso do arguido e da respectiva família, bem como de toda a vizinhança.

Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, fez-se constar o seguinte:
A factualidade provada e não provada resultou de uma análise crítica da prova.
O arguido reconheceu que, na data em apreço, deslocou-se, em pijama, ao estabelecimento denominado D… e dirigiu-se às colunas de som e ao projector de luzes que se encontravam na esplanada exterior daquele, a serem utilizados num espectáculo de música ao vivo. No entanto, o mesmo sujeito processual negou, por um lado, que haja derrubado os ditos aparelhos, atirando-os para o chão – referindo antes que apenas os deslocou um pouco –, e, por outro lado, que tenha actuado com a intenção de os danificar.
Naquele concernente, começar-se-á por referir que escapa às regras da normalidade e da experiência comum que uma pessoa que pretende fazer parar um espectáculo musical que a incomoda do ponto de vista auditivo, se limite a fazer deslocar um pouco (sublinhado nosso) as colunas de som, sabendo-se que tal não resolve o alegado problema, atenta, desde logo, a distância a que os ditos aparelhos de som estavam da casa do arguido, ou seja, e nas palavras deste, a cerca de quarenta a cinquenta metros.
Por outro lado, todas as testemunhas de acusação referiram, de forma unânime, que o arguido derrubou os ditos equipamentos.
A propósito, cumpre referir que os depoimentos das testemunhas de defesa K…, filho do arguido, e L…, amigo da primeira, não convenceram minimamente o tribunal na parte em que referiram que, na data em apreço, encontravam-se também na esplanada do D…, não se tendo apercebido de nada de anormal, ou seja, não se tendo apercebido da actuação do arguido no que se refere ao derrubar e atirar ao chão das colunas de som e do projector de luzes. De facto, o próprio arguido reconheceu que esteve, na data em apreço, naquele local. Por outro lado, não é verosímil que o arguido, conforme reconheceu, se tenha deslocado à esplanada do café em apreço de pijama e que isso não tenha sido notado pelas apontadas testemunhas (como foi pelas de acusação), tanto mais que a testemunha K… mencionou que, na altura, se encontrava sentada na dita esplanada a cerca de seis metros do “palco” onde se encontravam aqueles equipamentos de som e de luz (contraditoriamente, a testemunha L..., tendo evidenciado que se encontrava, à data, sentada na mesma mesa que a testemunha K…, referiu que estava a cerca de quinze metros do dito “palco”). Por outro lado, igualmente muito se estranha que quando os músicos, mercê da actuação do arguido, pararam de tocar – como aquele reconheceu ter acontecido –, tal facto não tenha chamado a atenção das testemunhas K… e L…. Finalmente, escapa por inteiro às regras do normal acontecer que o derrubar e o cair ao chão das colunas de som e do projector de luzes, com consequente quebra de vidros, tenha escapado, por muito lotada que estivesse a esplanada, à atenção das identificadas testemunhas de defesa, tanto mais que, conforme referiu convictamente a testemunha M…, aqueles aparelhos, estando colocados em coluna uns por cima dos outros, têm uma altura de cerca de 1,40m a 1,50m.
O arguido igualmente reconheceu como verdadeira a factualidade vertida nas precedentes alíneas b) e c).
Quanto à alínea d), atendeu-se ao recibo e à factura de fls. 70 e 71 dos autos, emitidas por J…, Ld.ª a favor de C…, Ld.ª. De resto, o arguido admitiu que os equipamentos em causa não pertenciam àquela segunda sociedade comercial, mas antes à primeira.
No que se refere aos prejuízos causados nas colunas e no projector a que se vem de fazer referência, consideraram-se os depoimentos coincidentes das testemunhas M…, N…, O… e P…. Relativamente à quantificação de tais prejuízos, o tribunal atentou no depoimento da testemunha M…, devidamente conjugado com o teor dos documentos juntos aos autos a fls. 79 e 80, confirmado por aquela testemunha.
Em relação ao feito constar da alínea f) dos factos assentes, começar-se-á por referir que o arguido negou que, alguma vez, tenha tido a intenção de danificar as colunas de som e o projector de luzes em apreço, mas antes de parar a difusão da música que o incomodava. Não duvidamos destas palavras do arguido. De facto, conforme se infere do documento junto aos autos a fls. 128, aquele sujeito processual, em 3 de Outubro de 2011, já havia manifestado junto da Câmara Municipal … a sua discordância quanto ao barulho proveniente dos espectáculos de música ao vivo dados no D…. Também o arguido, nas palavras das testemunhas M… e N…, sócios-gerentes da sociedade comercial que explora o aludido café, em acto prévio, já havia manifestado a sua opinião quanto à necessidade de se fazer cessar aquele barulho. O arguido igualmente manifestou o seu incómodo às testemunhas G… e H…, seus vizinhos.
Cumpre a propósito dizer que não foi efectuada qualquer prova que tenha permitido ao tribunal concluir que o barulho provocado pelo espectáculo de música ao vivo a que nos vimos de referir fosse, por um lado, objectivamente perturbador do sossego das pessoas residentes nas imediações, e, por outro lado, fosse de molde a ultrapassar aquilo que é legalmente permitido, ou, dito de outra forma, fosse de molde a “justificar” a conduta do arguido. Realmente, nunca foi efectuada, como o arguido reconheceu, qualquer medição de ruído. Por outro lado, se é certo que a testemunha G… afirmou que o ruído, por vezes, é ensurdecedor, chegando a fazer estremecer os vidros da sua casa, não menos verdade é que a testemunha de defesa H… referiu que o estremecer dos vidros em consequência da música tocada é um exagero. A que acresce que, no entender da testemunha I... – que declarou que, numa outra data e na qualidade de agente da P.S.P., esteve no interior da casa do arguido quando estava a ser difundida música ao vivo proveniente da esplanada do D… –, aquele barulho não era insuportável. Finalmente, cumpre realçar que a assistente possuía, para a data em questão, uma licença especial de ruído emitida pela Câmara Municipal …, válida entre as 21h e as 2h (cfr. documento de fls. 18).
Não obstante, o certo é que o tribunal considerou que o arguido, ao derrubar e atirar ao chão as colunas de som e o projector de luzes, previu como possível que os mesmos se danificassem, conformando-se com tal possibilidade. É que, por um lado, não podemos olvidar que estão em causa equipamentos consabidamente sensíveis, especialmente o projector de luzes, atenta a circunstância de o mesmo, na sua estrutura, conter peças em vidro. Por outro lado, a testemunha M… mencionou que o arguido derrubou tais equipamentos com força. Ainda por outro lado, a testemunha N… referiu que, aquando do sucedido, o arguido estava nervoso.
O arguido, atenta a sua experiência de vida resultante da idade e da sua qualidade de empresário, tinha necessariamente de saber que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Daí que o tribunal tenha dado como assente a matéria de facto vertida na alínea g).
As condições pessoais, económicas e financeiras do arguido foram dadas como assentes face às suas declarações. Quanto à sociedade de que o arguido é sócio juntamente com outra pessoa, considerou-se o teor da certidão junta aos autos a fls. 303 e 304. Foi com base no documento de fls. 305 a 313 que o tribunal deu como provado que aquela sociedade possui inscritas em seu nome sete fracções autónomas.
A existência de licença especial de ruído derivou da análise do documento junto aos autos a fls. 18.
A licença possuída pela assistente e emitida pela Direcção-geral das Actividades Culturais consta de fls. 345.
A testemunha Q… referiu, sem hesitar, que logo após o sucedido, foi exibida, incluindo ao arguido, pelos legais representantes de C…, Ld.ª, a licença especial de ruído de fls. 18.
O documento de fls. 69 permitiu ao tribunal dar como assente o montante despendido pela lesada com a obtenção da referenciada licença especial de ruído.
A contratação da banda e o montante pago pela mesma resultou da análise do documento de fls. 67, devidamente conjugado com o depoimento da testemunha P….
As testemunhas M…, N…, Q… e O… referiram, unanimemente, que a esplanada do D…, à data, estava cheia. Foi igualmente com base naqueles depoimentos que o tribunal deu como assente a facticidade feita constar da alínea u).
As testemunhas M…, E… e T… aludiram ao facto de terem ouvido, após a descrita actuação do arguido, comentários de algumas pessoas sobre o sucedido.
A matéria de facto tida por não provada resultou, desde logo, da total ausência de prova que a tenha permitido sustentar.
No que diz respeito à quebra de facturação e à redução do número de clientes da lesada resultantes da actuação do lesante, dir-se-á que se é verdade que tal quebra, no que à facturação concerne, parece resultar da análise dos documentos juntos aos autos a fls. 72 a 78, não menos verdade é que estamos face a meros documentos particulares cujo teor não foi especificamente confirmado por nenhuma outra prova produzida. Na verdade, a testemunha U…, T.O.C. da lesada, limitou o seu depoimento à análise dos apontados documentos, desconhecendo se, de facto, tais quebras ocorreram. A acrescer, ainda que se considere que ocorreu uma quebra de clientes e de facturação, não foi produzida qualquer prova que tenha permitido, com o mínimo de certeza que se exige, concluir que tal quebra derivou, de forma directa e necessária, da actuação do arguido que aqui se discute. De facto, a testemunha João V… afirmou que, durante um tempo após o sucedido, denotou apenas um bocadinho (sic.) menos de pessoas no D…. A que se soma a circunstância de a testemunha U… ter aludido ao facto de, no segundo fim-de-semana subsequente ao ocorrido, ter notado um decréscimo do número de clientes, sendo certo, no entanto e ainda nas palavras daquela, que nessa data o tempo estava mais frio.
Também não vislumbramos em que medida é que a conduta do arguido tenha motivado uma quebra de facturação no próprio dia dos factos. É que as testemunhas M…, N… e E… afirmaram que, em regra, o consumo no D… é pago no acto de entrega, só excepcionalmente assim não sucedendo. Ora, ainda que, em resultado da conduta do arguido, muitos clientes do D… tenham-se ausentado, não se vê em que medida é que o tenham feito sem pagar o consumo pretensamente efectuado. Cumpre também realçar que, aquando da intervenção do arguido, o espectáculo de música ao vivo já estava perto do final, porquanto, repete-se, a lesada tinha licença especial de ruído até às 2h.
Finalmente, a ausência de antecedentes criminais do arguido resultou da análise do C.R.C. junto aos autos a fls. 348.

Na fundamentação de direito, escreveu-se:
Preceitua o art.º 212.º n.º 1 do C. Penal:
1. Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. (...)
3. (...)
4. (...)
Neste tipo de ilícito procura-se proteger o bem jurídico, seja, a propriedade alheia, contra agressões que atinjam directamente a existência ou a integridade das coisas.
Este tipo legal de crime deverá ser considerado como um ilícito material ou de resultado, porquanto se exige para o seu preenchimento a efectiva destruição, danificação, desfiguração ou inutilização da coisa, sendo irrelevante, no entanto, o processo que leva à ocorrência do dano, bem como se este foi praticado por acção ou por omissão.
Constituem elementos objectivos os seguintes: a destruição, danificação, desfiguração e tornar não utilizável; a existência de uma coisa; que a coisa seja alheia.
Partindo para a análise de cada um dos elementos objectivos do tipo, diremos que a destruição, no todo ou em parte, implica uma perda total da utilidade da coisa, ou antes um sacrifício da substância desta. Por seu turno, a danificação abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não cheguem a implicar a destruição total da mesma, ou seja, temos aqui uma destruição parcial. Quanto ao acto de desfigurar, este acarreta todo e qualquer atentado à integridade física da coisa que altere a imagem exterior desta, imagem que é querida pelo proprietário. Por último, relativamente a tornar não utilizável, esta actuação significa a existência de uma acção que reduz a utilidade da coisa segundo a sua função, sem que a mesma perca a respectiva individualidade.
Da análise do caso concreto, temos que o arguido, ao estragar as colunas e o projector, fazendo com que parte dos respectivos componentes ficassem partidos, danificou-os.
Noutro prisma, e ainda em sede de elementos objectivos do tipo, cumpre debruçarmo-nos sobre o conceito de coisa. Com vista a alcançar este desiderato, começaremos por dizer que tal definição não coincide com a noção veiculada pelo Direito Civil (art.º 202.º do C. Civil), uma vez que só as coisas corpóreas podem ser objecto do crime de dano, tendo este necessariamente de se compatibilizar, em consequência, com a existência de uma coisa materialmente apreensível pelo homem, ou, pelo menos, que possa ser exposta à acção deste.
Tais conceitos aproximam-se da noção de coisa relevante para efeitos de preenchimento do tipo objectivo de furto, com a diferença de que este ilícito tem por objecto coisa móvel, ao passo que o crime de dano pode ter por objecto coisas imóveis ou coisas móveis.
Por outro lado, essencial é que a coisa tenha algum valor e que a conduta lesiva se revista de algum relevo, pressupostos estes que, não obstante não derivarem directamente da letra do preceito normativo ora em análise, resultam dos princípios da proporcionalidade, da dignidade e da subsidiariedade penais. Face a estes considerandos, dúvidas não restam que as colunas de som e o projector de luzes constituem, para efeitos de preenchimento do tipo ora em análise, coisas. A acrescer, atentos os prejuízos causados nos ditos equipamentos, designadamente a sua quantificação monetária, impossível se torna considerar as lesões ocorridas como insignificantes para o Direito.
Finalmente, impõe a lei o carácter alheio da coisa, circunstância esta que é determinada, aqui sim, segundo os princípios e normas de Direito Civil. Sequentemente, e em regra, não se afigura como possível a danificação de coisa própria. Tendo restado assente que os apontados equipamentos eram pertença de J…, Ld.ª, tais coisas não podem deixar de ser consideradas alheias.
O arguido pretende que lhe seja reconhecido o facto de ter agido em legítima defesa. Preceitua, com pertinência, o art.º 32.º do C. Penal que aquela causa de exclusão da ilicitude implica a prova de que o agente tenha praticado um facto como forma necessária de repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. Constituem, assim, pressupostos para a verificação da legítima defesa, os seguintes: existência de uma agressão a interesses pessoais ou patrimoniais do agente ou de terceiro; que a agressão seja actual e ilícita; que a defesa se circunscreva aos meios necessários para fazer cessar a agressão; que o agente actue com o intuito de defesa.
Cumpre, pois, apurar se aqueles requisitos cumulativos se encontram, ou não, verificados. Começando a análise pelo primeiro, temos que se provou que o arguido sentiu-se incomodado com o barulho proveniente do concerto a que acima se aludiu. Ou seja, do ponto de vista subjectivo, o arguido considerou afectado um seu direito de personalidade, qual seja, o direito ao sossego. No entanto, não se apurou que o dito barulho, objectivamente, fosse susceptível de contender com os direitos pessoais ao sossego, à tranquilidade, ao descanso.
Ainda que se desse de barato que tenha ocorrido uma agressão do direito do arguido ao seu sossego, não se apurou que tal agressão tenha sido ilícita. Na verdade, e por um lado, repete-se que não ocorreu qualquer quantificação do barulho provocado. Por outro lado, a assistente difundia música ao vivo da forma como o fazia, estando munida de uma licença especial de ruído, emitida pela Câmara Municipal …, válida entre as 21h do dia 22 de Outubro de 2011 e as 2h do dia 23 de Outubro de 2011 – note-se que os factos ocorreram em 23 de Outubro de 2011, cerca da 1h20min, no período coberto pela apontada licença –, e de uma licença emitida pela Inspecção-geral das Actividades Culturais e válida até 27 de Julho de 2014, a qual lhe permite, entre o mais, levar a cabo espectáculos de música ao vivo. Tudo para dizer que não vê em que medida é que a difusão da música levada a cabo pela assistente constitua uma agressão ilícita que justifique, por afastamento da ilicitude, a conduta do arguido.
O arguido veio, desde logo em sede de contestação, suscitar a pretensa invalidade formal e substancial da licença especial de ruído acima aludida. Tal impugnação, face ao preceituado no art.º 162.º b) do Código de Procedimento Administrativo, é manifestamente extemporânea, pois a dita licença foi exibida ao arguido no dia dos factos e o mesmo só veio suscitar a sua invalidade muito após o decurso do prazo que lhe assistia para o efeito e fixado por aquele normativo legal.
À laia de conclusão, dir-se-á que o arguido actuou de forma ilícita.
Do lado subjectivo o crime imputável ao arguido exige uma actuação dolosa, ainda que a título de dolo eventual (art.º 13.º do C. Penal), ou, dito de outra forma, o agente, com vista à condenação, tem de representar que a sua conduta sacrifica coisa alheia. Neste concernente, provou-se que o arguido agiu livre e conscientemente, tendo representado como possível que com a sua conduta provocaria estragos nas colunas de som e no projector de luzes pertencentes a terceiro, tendo-se conformado com tal possibilidade, pelo que aquele elemento, na modalidade de dolo eventual, se tem por verificado.

A fundamentação da medida da pena é do seguinte teor:
Realizado o enquadramento jurídico-penal, cumpre agora determinar a natureza e medida da pena a aplicar.
O crime de dano aqui em causa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Tendo em conta o disposto no art.º 70.º do C. Penal, a primeira operação que deverá ser efectuada prende-se com a escolha entre a pena detentiva e a pena não privativa da liberdade. Naquele preceito, o legislador entendeu que o aplicador da lei deverá conceder prevalência à segunda, posto que esta satisfaça, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição plasmadas no art.º 40.º n.º 1 do citado diploma legal, sejam: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Tal solução legal deriva directamente dos princípios da subsidiariedade e da necessidade da intervenção penal.
Posto isto, entendemos que a pena de multa satisfará as exigências a que acima se aludiu. Na verdade, no caso presente, afigura-se-nos que a necessidade do restabelecimento da confiança e expectativas comunitárias na validade da norma infringida se satisfaz com a dita pena não detentiva. Por outro lado, a ressocialização será alcançada, de forma mais eficaz, com uma pena de multa, atenta, entre o mais, a circunstância de o arguido não possuir um passado de inimizade para com o Direito e conhecendo-se, à partida, o carácter profundamente estigmatizante da pena de prisão.
Na determinação da medida concreta da pena deverá atender-se ao que preceitua o art.º 71.º do C. Penal, a saber: à culpa do agente, configurando esta o limite inultrapassável da pena; às exigências de prevenção geral, por forma a que a aplicação da pena permita a integração e o reforço da consciência jurídica comunitária na vigência e na validade da norma jurídica violada; às exigências de prevenção especial que no caso se façam sentir.
Face à facticidade assente, consideramos que a ilicitude fixa-se em grau médio, assumindo, assim, alguma gravidade o desvalor de acção.
Considerando as exigências de prevenção geral a que acima se aludiu, e tendo em conta, ainda, os diminutos fins de prevenção especial que neste caso se fazem sentir (o arguido não possui antecedentes criminais e está inserido na família – pois é casado – e na sociedade – na medida em que trabalha), cumpre fixar os dias de multa. Tendo em conta a ideia de ressocialização, bem como a circunstância de o arguido ter actuado com dolo eventual, de se ter sentido incomodado com o barulho proveniente do concerto em apreço e de ter provocado danos quantificados em € 891,75, consideramos justo e adequado fixar os dias de multa em cento e cinquenta.
Sendo certo que o arguido é casado, que aufere mensalmente a título de pensão de reforma cerca de € 303, que explora, juntamente com a esposa, uma mercearia, retirando por mês no exercício de tal actividade cerca de € 500 a € 600, fixa-se o quantitativo diário dos dias de multa em € 7 (art.º 47.º n.º 2 do C. Penal). A propósito, cumpre mencionar que, não obstante ter sido dado como provado que o arguido é, juntamente com uma outra pessoa, sócio de uma sociedade por quotas que se dedica à construção e à compra e venda de edifícios, sociedade que possui inscritas em seu nome na Conservatória do Registo Predial competente sete fracções autónomas, não menos verdade é que não resultou assente que o mesmo retire, para si, lucros de tal actividade, tão-pouco que a referenciada sociedade extraia algum provento das fracções que possui.

Quanto ao pedido cível de indemnização escreveu-se:
Importa agora apreciar o pedido de indemnização civil formulado pela lesada.
Com efeito, pretende aquela ser ressarcida dos danos por si sofridos derivados da conduta do lesante, peticionando, em consequência, o pagamento de uma indemnização no montante global de € 5.795,75.
Nos termos do disposto no art.º 129.º do C. Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
Por sua vez, textua o art.º 483.º n.º 1 do C. Civil: aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Da análise deste último preceito legal retira-se que constituem pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual – na qual se enquadra a situação ora em análise, uma vez que nesta está em causa a violação de um direito absoluto, que não já o inadimplemento de obrigações derivadas de contratos, de negócios jurídicos unilaterais ou da própria lei – os seguintes: o facto voluntário; a ilicitude; a culpa; o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O facto voluntário é todo aquele controlável ou dominável pela vontade humana. No caso concreto, a conduta do lesante, consubstanciada numa acção, era, como foi, objectivamente dominável pela sua vontade, não se interpondo, pois, qualquer causa de força maior ou circunstância fortuita.
A ilicitude, por seu turno, não deriva do resultado danoso da actuação, mas antes da própria conduta lesiva em si mesma considerada, pelo que se considera ilícito todo o comportamento não abrangido por uma causa de justificação. Nesta base, o art.º 483.º n.º 1 do C. Civil indica-nos duas modalidades de ilicitude: a violação de um direito de outrem e a violação de lei que protege interesses alheios. «In casu» encontramo-nos, indubitavelmente, face à primeira modalidade. Realmente, o lesante, ao haver danificado as colunas de som e o projector de luzes, violou o direito de gozo temporário existente na esfera jurídica da lesada, não se encontrando – conforme já acima deixamos explanado a propósito da alegada legítima defesa –, a coberto de nenhuma causa de exclusão da ilicitude.
Quanto à culpa, podemos afirmar que esta implica uma conduta reprovável ou censurável pelo Direito. Tal censurabilidade é de concluir quando o lesante, em face da sua capacidade e dos contornos do caso concreto, podia e devia ter agido de outro modo. A culpa poderá configurar duas modalidades: o dolo (em que o agente actua com intenção de realizar o facto ilícito) e a negligência (a omissão da diligência exigível do agente). Ficou provado, como se impunha (art.º 342.º n.º 1 do C. Civil), que o lesante agiu com dolo eventual.
No que tange aos danos, é essencial, para a obrigação de indemnizar, que o facto ilícito e culposo tenha causado um prejuízo. Este último pode ser patrimonial ou moral, se é, ou não, passível de quantificação ou avaliação pecuniária e indemnizável ou apenas compensável. Analisando os factos dados como provados, temos que: o lesante provou estragos, partiu parte dos componentes das colunas de som e do projector de luzes, no que causou um prejuízo, suportado pela lesada, de € 891,75; momentos antes da actuação do lesante, o café em causa encontrava-se com a sua lotação esgotada, sendo que, mercê daquela conduta, muitos dos clientes do D… ausentaram-se; a actuação do lesante foi motivo de comentário por alguns dos habitantes da cidade de Espinho. Em consequência, dúvidas não podem existir quanto à verificação concreta de danos.
Por último, há que referir o nexo de causalidade entre o facto e os danos. Relativamente a este ponto, o art.º 563.º do C. Civil consagra a teoria da causalidade adequada, dispondo: a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. Nestes termos, podemos afirmar que uma dada conduta é causa adequada de um dano sempre que este, em geral e abstracto, surja como uma consequência normal e previsível daquela. Partindo desta noção, conclui-se que a atitude ilícita do lesante é adequada, como realmente foi, a causar os danos tidos como provados.
Face ao exposto, assiste à lesada o direito a receber das mãos do lesante, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 891,75.
Impõe-se, a respeito, deixar consignado que não pode ser assacada ao lesante a responsabilidade de suportar os valores despendidos pela lesada com a obtenção da licença especial de ruído e com a contratação da banda. É que, a intervenção do arguido ocorreu cerca da 1h20min do dia 23 de Outubro de 2011, sendo certo que, conforme resultou provado, a lesada apenas tinha licença para a realização do espectáculo de música ao vivo até às 2h daquele mesmo dia. Ora, se a validade de tal licença teve início no dia 22 de Outubro de 2011, às 21h, aquando da actuação do arguido já o final do concerto estava para breve. Ou, dito de outra forma, se até à conduta do arguido tal concerto decorreu dentro da normalidade, impossível se torna impor àquele que suporte a totalidade dos custos que a lesada suportou com a realização de tal actividade lúdica, tanto mais, repete-se, que esta estava já perto do seu fim. O mesmo se diga, mutatis mutandis, quanto ao montante despendido pela lesada com o aluguer do apontado equipamento.
O art.º 496.º do C. Civil refere que, quanto aos danos morais que mereçam a tutela do direito – o que «in casu» se verifica –, a indemnização deverá ser fixada objectivamente, tendo em conta os critérios plasmados no art.º 494.º, ou seja, o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso. Da matéria de facto provada ressalta, entre o mais, que: o lesante agiu com dolo eventual; momentos antes da actuação do lesante, o café em causa encontrava-se com a sua lotação esgotada, sendo que, mercê daquela conduta, muitos dos clientes ausentaram-se; o lesante sentiu-se incomodado com o barulho proveniente do concerto; a actuação do lesante foi motivo de comentário por alguns dos habitantes da cidade de Espinho; o lesante actuou num café com a lotação esgotada, de pijama; o lesante é casado, aufere mensalmente a título de pensão de reforma cerca de € 303, explora, juntamente com a esposa, uma mercearia, retirando por mês no exercício de tal actividade cerca de € 500 a € 600.
Por tudo quanto se deixou ínsito, reputamos justo e adequado fixar o montante indemnizatório global, a título de danos não patrimoniais, em € 1000.

9. Por seu turno, o recurso intercalar incidiu sobre as seguintes decisões de 25.06.2012:
QUESTÃO PRÉVIA
- Da Legitimidade da Ofendida para a apresentação da queixa
A queixa referente ao crime de dano cometido sobre as referidas colunas de som e projector de luzes foi apresentada nos autos pelo representante legal da Sociedade "C…, Lda." (cfr. auto de denuncia de fls. 2 e procuração de fls. 17), sendo que resulta dos autos e tal foi expressamente aceite e alegado por aquela Sociedade, que a mesma não é proprietária dos equipamentos em questão, tendo alugado os mesmos à Sociedade "J…, Lda." (factura de fls. 71), pese embora tenha sido a denunciante quem suportou os custos da reparação do referido equipamento (factura de fls. 19).
Vem então agora o arguido, em sede de contestação, pugnar pela ilegitimidade daquela Sociedade para apresentar a referida queixa (uma vez que o crime é de natureza semi-pública - art. 212° n° 3 do C. Penal) e a referida Sociedade não sendo proprietária mas sim locatária do bem, não é ofendida nos termos e para os efeitos do disposto no art. 68° n° 1 alínea b) do CPP, não sendo titular do interesse que a norma penal quis proteger, sendo este, somente o direito de propriedade. Assim peticiona a extinção da responsabilidade criminal do arguido por inexistência de um pressuposto de procedibilidade, devendo também, em consequência, o pedido de indemnização civil formulado pela dita Sociedade "C…, Lda." extinguir-se por impossibilidade da lide.
Vejamos.
Coloca-se-nos então o problema inerente à legitimidade da dita Sociedade para apresentar queixa criminal pelo crime de dano, nomeadamente o facto de saber se o titular do direito de queixa pertence apenas ao proprietário ou também às pessoas que detêm um título que legitime o uso, gozo e fruição da coisa, como seja o caso do arrendatário.
Sobre este tema existe grande controvérsia na doutrina e na jurisprudência onde podemos encontrar teses nos dois sentidos.
Existe uma tese mais restritiva encabeçada pelo Prof. COSTA ANDRADE, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Artigos 202° a 307°, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, 1999, pág. 237, segundo a qual só o proprietário pode ser titular do direito de queixa. O Ilustre Prof. assume que, efectivamente, muitas vezes o inquilino é atingido de forma mais drástica que o proprietário pela acção de destruição ou danificação da coisa. Todavia, entende que apenas de jure condendo se pode configurar o inquilino como titular do direito de queixa pois de jure constituto só o portador concreto do bem jurídico tutelado (a propriedade) e portanto o proprietário, poderá consubstanciar o ofendido típico. Sustenta pois o Autor que: «1° o inquilino não é, qua tale, tipicamente protegido pela incriminação do dano; 2° não comete a infracção o proprietário, que, com prejuízo para o inquilino, destrói ou danifica a coisa; 3° comete a infracção o inquilino que destrói ou danifica a coisa de que é legítimo detentor e beneficiário». Entende pois aquele Professor que a orientação que restringe o direito de queixa ao proprietário é aquela que se lhe afigura como "a mais consonante com o regime do dano relativo às constelações de conflito entre proprietário e inquilino". Esta tese é igualmente defendida por J. ANTÓNIO BARREIROS, Crimes contra o Património 1996 141 e sufragada por jurisprudência diversa, aliás citada pelo arguido na sua contestação (entre outros Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/03/2003, Proc. N° 616/03, cujo sumário se encontra disponível na base de dados do ITIJ em www.dgsi.pt).
Por outro lado, existe uma outra tese mais permissiva que perfilhamos, encabeçada por FIGUEIREDO DIAS, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 669., segundo a qual no crime de dano, tanto o proprietário como o possuidor são titulares do direito de queixa.
No mesmo sentido, também PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE no Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Portuguesa, pág. 585, segundo o qual o bem jurídico tutelado é a propriedade, sendo que tal conceito inclui o poder de facto sobre a coisa, com fruição das utilidades da mesma, pelo que, o ofendido, no crime de dano, será a pessoa proprietária, possuidora ou detentora legítima da coisa.
Efectivamente perfilhamos esta última orientação, por nos parecer a mais consentânea com a letra e o espírito da lei, sendo esta em nosso entender plenamente defensável de acordo com o direito positivo vigente. Parece-nos que o legislador ao utilizar as expressões" destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tomar não utilizável" também no dano como no furto, quis abranger não só o proprietário como também o arrendatário, possuidor ou detentor legitimo do bem, por ser este, nas mais das vezes, aquele que é em primeira linha afectado pela prática do ilícito. Por outro lado, concordamos inteiramente com o explanado no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/11/2009, Proc. N° 235/06.2GCFVN.Cl, disponível na base de dados do lTIJ em www.dgsi.pt, segundo o qual «... também não faria sentido, com todo o respeito que nos merece a opinião contrária, deixar apenas na disponibilidade do proprietário pleno, o direito exclusivo de queixa relativamente a um facto que afecta em primeira linha aquele que goza e frui o bem. Com efeito, é este que estando no gozo da coisa, é directamente atingido no seu gozo, fruição e uso, pelo que deve poder defender esse seu direito, sem estar na dependência de uma eventual queixa do proprietário pleno».
Pelo que, pelos motivos supra expostos e aderindo à posição acabada de explanar, entendemos que a Sociedade "C…, Lda.", na qualidade de locatária dos equipamentos em causa, detém legitimidade para apresentar a queixa criminal contra o arguido, de acordo com o disposto nos artigos 113° n° 1 do C. Penal, 49° n° 1 e 68° n° 1 alínea b) do C. Processo Penal.
Indefiro pois o requerido pelo arguido, prosseguindo o procedimento criminal contra o mesmo, os seus ulteriores trâmites.
(…)
Por estar em prazo (art. 68° n° 3 alínea a) do CPP), ter legitimidade (art. 68° n° 1 alínea b) do CPP), estar devidamente representada por mandatário que constituiu (art. 70° n° 1 do CPP) e ter pago a correspondente de taxa de justiça, admito a intervenção da Ofendida "C…, Lda", nos presentes autos na qualidade de assistente.
Notifique.
*
II- FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que apresentou (art. 412º, nº 1, do CPP).
No recurso interposto das decisões de 25.6.2012 o recorrente alega faltar um pressuposto de procedibilidade por a denunciante C…, Lda ser mera locatária e não proprietária da coisa alegadamente danificada, não tendo esta (a proprietária) apresentado queixa pelo crime de dano, o que retira legitimidade ao Ministério Público, determinando a extinção do procedimento criminal e, consequentemente, também do pedido cível, por impossibilidade da lide, não podendo a C…, Lda, intervir nos autos como assistente, por não ter a qualidade de ofendida.
Por sua vez, as questões colocadas no recurso da sentença são as seguintes:
1ª- Verificar se ocorre nulidade insanável (na perspectiva do recorrente existe tal vício por falta de representação válida da ofendida/assistente, o que implicaria inadmissibilidade do procedimento criminal, invalidade da queixa, carência de legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal e extinção da instância civel, sendo inadmissível a constituição de assistente da denunciante);
2ª- Quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, averiguar se há erro de julgamento nos aspectos que assinala e se existe erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, c), do CPP), para além de ter sido violado o princípio basilar da livre apreciação da prova;
3ª- Apurar se existe erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito (na perspectiva do recorrente havia colisão de direitos e agiu em legítima defesa, estando justificada a sua conduta);
4ª- Caso seja admissível recurso da condenação cível, ponderar se foi excessivo o valor atribuído a titulo de indemnização por danos não patrimoniais.
Passemos, então, a apreciar as questões suscitadas nos recursos, começando pelo das decisões proferidas em 25.6.2012 e, passando depois para o interposto da sentença.
A- Recurso da decisão proferida em 25.6.2012
Para impugnar as decisões de 25.6.2012 (onde por um lado se concluiu pela legitimidade da denunciante C…, Lda para apresentar queixa pelo crime de dano imputado ao arguido e, por outro lado, foi admitida a sua intervenção nos autos como assistente), o recorrente alega, em síntese, que só a proprietária das colunas de som e projector de luzes danificadas (J…, Lda) tinha legitimidade para apresentar queixa pelo crime de dano p. e p. no art. 212º, nº 1, do CP, do qual teve conhecimento em tempo útil, por ser a única titular do bem jurídico protegido e já não a denunciante (C…, Lda), que era mera locatária e simples possuidora daqueles bens danificados (o que apenas sucedeu durante escassas horas – não tendo ficado privada do seu uso e fruição por os factos terem ocorrido no final da noite do evento - tendo a sociedade proprietária recebido e reparado os bens danificados, apenas exigindo os custos da reparação), o que não lhe conferia a qualidade de ofendida, razão pela qual para além de faltar um pressuposto de procedibilidade (não podendo o Ministério Público promover o processo penal) o que determinava a extinção do procedimento criminal, também não podia deduzir pedido cível de indemnização, por impossibilidade da lide, não tendo igualmente legitimidade para se constituir assistente.
Pois bem.
Analisando os autos, verifica-se que, o inquérito teve origem em denúncia apresentada em 10.11.2011, por M…, o qual, na qualidade de sócio-gerente do “D…”, id. a fls. 2 e 3, imputou ao arguido B… a prática de factos integradores de um crime de dano (destruição de colunas de som e de projector de luz que então estavam a ser utilizados por um grupo que no local realizava um espectáculo musical, devidamente licenciado) cometido naquele estabelecimento em 23.10.2011, pela 1h20m (cf. auto de denúncia de fls. 2 e 3).
No que interessa à decisão das questões colocadas verifica-se dos autos que:
a)- o referido M… e N… são sócios-gerentes da sociedade “C…, Lda”, que explora o dito estabelecimento denominado “D…” (declarações de ambos os sócios e certidão relativa ao registo da sociedade de fls. 49 e 50);
b)- o dito M…, na qualidade de sócio-gerente da sociedade “C…, Lda” passou procuração a advogado, nos termos que constam de fls. 17;
c)- os referidos sócios-gerentes da sociedade “C…, Lda” foram ouvidos em sede de inquérito em 22.12.2011 e em 17.1.2012, nos termos que constam de fls. 23 e 24;
d)- a sociedade “C…, Lda” tinha licença especial de ruído, emitida em 11.10.2011, pela Câmara Municipal …, para a realização de espectáculo ao vivo no referido estabelecimento no dia 22.10.2011 entre as 21.00 e as 02.00 horas (fls. 18), bem como tinha licença emitida pela Inspecção Geral das Actividades culturais válida até 27.7.2014, para o mesmo efeito (fls. 345);
e)- na altura dos factos denunciados decorria no “D…” um concerto de musica ao vivo, tocado pela banda que a “C…, Lda” contratara para o efeito (fls. 67), a qual estava a utilizar o equipamento (colunas de som e projector de luzes) danificado;
f)- o equipamento danificado estava a ser utilizado no referido estabelecimento, na sequência de aluguer feito pela proprietária “J…, Lda” à “C…, Lda”, nos termos que constam de fls. 22;
g)- o custo da reparação do equipamento danificado foi de € 891,75, conforme o teor da factura de fls. 20;
h)- Encerrado o inquérito, em 20.4.2012 o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe um crime de dano p. e p. no art. 212º, nº 1, do CP, nos termos que constam de fls. 46 a 48;
i)- Em 3.5.2012 a sociedade “C…, Lda”, através do seu sócio-gerente M…, requereu a constituição de assistente e deduziu pedido cível de indemnização contra o arguido, tendo igualmente pago a respectiva taxa de justiça (v.g. fls. 58 a 66 e 81 a 83).
Ora, tendo o crime de dano p. e p. no art. 212º, nº 1, do CP natureza semi-pública (por o respectivo procedimento criminal depender de queixa, tal como estabelece o nº 3 do mesmo art. 212º), nos termos dos arts. 48º e 49º do CPP, a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal depende de queixa do ofendido.
A questão que o recorrente coloca, no sentido de apenas o proprietário da coisa danificada ser o titular do direito de queixa no crime de dano, encontra-se ultrapassada desde que o STJ, através do seu Acórdão nº 7/2011 (DR I de 31.5.2011) decidiu fixar a seguinte jurisprudência:
«No crime de dano, previsto e punido no artigo 212º, nº 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa, nos termos do artigo 113º, nº 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição».
Ao contrário do que alega o recorrente, essa jurisprudência (fixada no ac. nº 7/2011), com a qual se concorda, é aplicável no caso destes autos, dando-se aqui por reproduzidos os argumentos ali expostos, aqui se destacando os seguintes trechos (apesar de se remeter para a sua leitura integral):
«Em aproximação final à solução da questão controvertida, poderá concluir-se que o crime de dano previsto no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal visou proteger não apenas o titular do direito de propriedade, mas também todos aqueles que legitimamente gozam, usam e fruem o bem, e que, deste modo, são titulares de interesses directos e imediatos na preservação da coisa (conservação do estado), como na fruição e disponibilidade das utilidades funcionais que proporciona (preservação da função).
O artigo 212.º do Código Penal reconhece que o valor de uso da coisa é merecedor de tutela penal, já que pode ser prejudicado pela prática das condutas típicas de destruição, danificação, desfiguração ou inutilização da coisa.
Deste modo, para efeitos do artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal, o conceito de «ofendido» como titular dos interesses que a incriminação quis proteger, pode, assim, abranger tanto o proprietário, como aquele que tem a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa, com um mínimo de representação jurídica que justifica a tutela penal, assistindo legitimidade aos titulares desses direitos e interesses legítimos, enquanto representantes de interesses especialmente tutelados pela incriminação, para apresentar queixa-crime, quando a coisa tenha sido alvo de qualquer uma das acções compreendidas no tipo do artigo 212.º do Código Penal.
Este critério significa que tem legitimidade para apresentar queixa por crime de dano, o proprietário - em qualquer situação este não poderia ser excluído, porque tal implicaria uma alteração do bem jurídico protegido pela incriminação -, o usufrutuário, o possuidor, o titular de qualquer direito real de gozo sobre a coisa e, ainda, todo aquele que tenha um interesse juridicamente reconhecido na fruição das utilidades da coisa.»
Ao contrário do que o recorrente alega, a sociedade C…, Lda, enquanto locatária e, nessa qualidade, possuidora daquele equipamento que foi danificado, tinha um interesse juridicamente reconhecido na fruição das utilidades funcionais que o mesmo equipamento proporcionava.
É indiferente para o caso que a locação desse equipamento danificado tivesse sido feito por um dia (fls. 22) ou que a proprietária J…, Lda, tendo conhecimento dos danos causados, tivesse recebido o material danificado, providenciado pela sua reparação, apenas se preocupando em reaver o custo da reparação.
Também é irrelevante que o crime de dano se tivesse consumado no “final da noite do evento”, quando faltava pouco tempo quer para terminar o espectáculo musical, quer para findar o período de aluguer do equipamento.
Essa argumentação do recorrente não tem a virtualidade de contrariar a jurisprudência fixada no ac. nº 7/2011, não sendo possível sustentar que se está perante situações distintas.
O certo é que não há quaisquer dúvidas que quando o crime em questão se consumou, o equipamento danificado, pertencente a J…, Lda, estava legitimamente na posse da C…, Lda, por virtude do dito contrato de locação, sendo certo que era ela (locatária) que tinha interesse directo e imediato na conservação do estado daquele equipamento, bem como fruía das suas utilidades funcionais e que, com os danos causados, se viu privada do seu uso e fruição (valores estes que merecem tutela penal, neste caso concreto, no crime de dano previsto e punido no art. 212º, nº 1, do CP).
Portanto, o Sr. Juiz podia concluir, como concluiu, que a C…, Lda tinha legitimidade para apresentar queixa pelo crime de dano que foi denunciado pelo seu sócio-gerente M….
E, porque essa queixa foi apresentada por quem tinha a qualidade de ofendido já que a D…, Lda era titular dos referidos interesses também tutelados no crime de dano, e, como tal, era igualmente titular do bem jurídico protegido no crime de dano denunciado, tinha o Ministério Público legitimidade para promover o processo penal, v.g. deduzir acusação pública, como o fez.
Não há, por isso, motivo para extinguir o procedimento criminal (uma vez que, ao contrário do que alega o recorrente, não falta qualquer pressuposto de procedibilidade).
De igual forma não existe motivo para julgar extinto o pedido de indemnização civil formulado pela denunciante.
O pedido cível foi formulado por quem era lesado (pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime – art. 74º, nº 1 do CPP), verificando-se os respectivos pressupostos (cf., entre outros, arts. 129º do CP e 71º, 76º e 77º do CPP).
Não há, assim, qualquer razão para sustentar (como o faz o recorrente) que há impossibilidade da lide a nível da instância cível deduzida neste processo penal.
Também não merece reparo a decisão de admitir a sociedade C…, Lda a intervir nos autos como assistente.
Tal pedido foi por ela, enquanto ofendida do crime de dano denunciado, nos termos acima indicados, deduzido atempadamente, sendo certo que se fez representar por advogado e pagou a taxa de justiça devida (art. 68º, nº 1, als. a) e b) e nº 3, do CPP).
Ao contrário do que defende o recorrente, tal como foi decidido no ac. de fixação nº 7/2011, não é correcto sustentar-se que no crime de dano apenas é ofendido o titular do direito de propriedade sobre a coisa danificada.
O raciocínio do recorrente, para além de enfermar de erro (por partir do pressuposto errado que ofendida no crime de dano era apenas a proprietária do equipamento danificado) peca por não querer aceitar os fundamentos e o decidido no ac. nº 7/2011 (de onde resulta claramente que o ofendido no crime de dano não é apenas - como sustenta o recorrente - o sujeito titular do direito de propriedade da coisa danificada).
No entanto, essa sua discordância (sendo certo que nem adianta argumentos novos que contrariem ou que não tivessem sido apreciados naquele ac. nº 7/2011) não é bastante para invalidar a referida jurisprudência fixada pelo STJ, com a qual se concorda (cf. também art. 445º, nº 3, do CPP).
Daí que, improceda toda a sua argumentação do recorrente, podendo concluir-se que as decisões impugnadas não merecem censura; neste caso concreto, a sociedade C…, Lda tem legitimidade para apresentar queixa pelo crime de dano que denunciou (o que confere igualmente legitimidade ao Ministério Público para promover o processo penal, como o fez), para deduzir pedido cível e para se constituir assistente, tal como sucedeu.
Em conclusão: improcede o recurso ora em apreço, sendo certo que não foram violados os princípios e preceitos legais invocados pelo recorrente.
B- Recurso da sentença
1ª Questão
Importa, agora, verificar se ocorre nulidade insanável, uma vez que o recorrente sustenta existir tal vício por falta de representação válida da ofendida/assistente, o que implicaria inadmissibilidade do procedimento criminal, invalidade da queixa, carência de legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal e extinção da instância civel, sendo inadmissível a constituição de assistente da denunciante.
Argumenta, para tanto, que segundo a certidão comercial de fls. 49 a C…, Lda é uma sociedade comercial por quotas que se obriga pela assinatura conjunta dos dois gerentes (M… e N…), pelo que a queixa apresentada, feita apenas por um deles, não é válida nem eficaz (o que retira legitimidade ao Ministério Público para exercer a acção penal, v.g. deduzir acusação e conduz à extinção da instância penal), sendo igualmente nulos os actos praticados pelo mandatário constituído pela procuração de fls. 17 (procuração assinada apenas pelo gerente M…, sendo um acto ineficaz perante a sociedade por não estar assinada pelos dois gerentes) por não ter poderes para o efeito e nunca os seus actos (quando requereu a constituição de assistente e quando deduziu pedido cível de indemnização) terem sido ratificados pela mandante (razão pela qual ficaram sem efeito os actos praticados pelo mandatário, devendo ser julgada extinta a instância cível, por impossibilidade superveniente da lide, bem como declarada a nulidade de todo o processado).
Vejamos então.
Como acima já se referiu a C…, Lda é ofendida no crime de dano semi-público denunciado.
A apresentação de queixa traduz-se no exercício de um direito que cabe ao respectivo ofendido, neste caso, à sociedade C…, Lda.
Segundo a referida certidão de fls. 49, a mesma sociedade tem 2 sócios gerentes, a saber, M… e N….
O facto da sociedade por quotas C…, Lda apenas se obrigar com a intervenção de 2 gerentes (tal como resulta da certidão de fls. 49) não significa que para apresentar queixa-crime aquela ofendida tivesse de estar representada pelos dois gerentes.
Como bem diz o Ministério Público na resposta ao recurso, traduzindo-se a apresentação de queixa criminal no exercício de um direito, não se pode confundir com a assunção de uma obrigação para a sociedade ofendida.
Ou seja, a queixa apresentada nestes autos pela sociedade C…, Lda, através de um dos seus gerentes (o dito M…), mostra-se efectuada de forma regular, sendo válida e eficaz, estando assegurada igualmente a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal.
Obviamente que o gerente que representou a sociedade ofendida no exercício do direito de queixa tinha igualmente poderes para, em representação daquela, constituir mandatário, como sucedeu quando foi outorgada a procuração de fls. 17.
Por isso, não se vê que haja qualquer irregularidade na representação da sociedade ofendida, quer quando em nome e no interesse desta foi apresentada queixa-crime, quer quando foi constituído mandatário.
E, tanto basta, para sempre se ter de considerar que a sociedade ofendida estava devidamente representada neste processo penal, quer quando em nome dela foi apresentada a queixa crime, quer quando foi constituído mandatário, quer quando este, com os poderes que lhe foram conferidos através da procuração de fls. 17 interveio nos autos, nomeadamente, requerendo a constituição de assistente da ofendida e deduzindo pedido cível de indemnização em nome dela.
Não se concorda, assim, com a argumentação do recorrente quando alega que a queixa e a procuração deviam ter sido apresentadas ou subscritas pelos dois gerentes da sociedade ofendida, sob pena dos actos praticados por um só dos gerentes serem ineficazes por não terem sido ratificados pela C…, Lda.
Ainda que assim não fosse, sempre se teria de considerar que a eventual irregularidade (que não nulidade insanável uma vez que não está prevista como tal em qualquer disposição legal, nem se enquadra em qualquer das situações previstas no art. 119º do CPP) de representação da sociedade ofendida estava sanada, desde logo por não ter sido arguida tempestivamente.
Com efeito, se pretendia arguir a irregularidade da representação da ofendida, o arguido deveria ter suscitado essa questão no prazo aludido no art. 123º, nº 1, do CPP, o que não fez, razão pela qual é extemporânea a invocação dessa questão em recurso da sentença.
Para além disso, mesmo que assim não fosse, a verdade é que das declarações que o gerente N… prestou em inquérito, quando foi ouvido como testemunha (ainda enquanto decorria o prazo de 6 meses de apresentação da queixa e quando já se encontrava junta aos autos a procuração de fls. 17), pode deduzir-se que os actos que foram praticados em nome da ofendida, mereceram também a sua anuência ou concordância, mesmo que tácita (caso contrário teria manifestado a sua oposição aos actos praticados pelo gerente M…, o que não sucedeu em qualquer momento do processo).
De qualquer modo, não se verificando a nulidade insanável invocada pelo recorrente, apenas se pode concluir, tendo em atenção o que já acima foi exposto, que são válidos, regulares e eficazes os actos praticados pelo gerente M… em nome da sociedade C…, Lda, bem como os praticados pelo mandatário constituído através da procuração de fls. 17 (daí que não haja qualquer motivo para declarar extinto o procedimento criminal ou a instância cível, nem para declarar nulo qualquer acto do processo).
De resto, sem conceder, a existir vício de forma quanto à procuração de fls. 17, apenas se estava perante uma irregularidade formal que só podia ser invocada pela própria sociedade C…, Lda e/ou pelo Advogado constituído, o que não sucedeu (para além de resultar dos autos, designadamente, dos actos praticados pelos gerentes, nomeadamente, quando foram ouvidos em julgamento, que sempre existia – como argumenta a C…, Lda na resposta ao recurso – uma deliberação tácita dos referidos sócios gerentes, validando todos os actos, o que sempre vinculava a mesma ofendida – cf. arts. 261º, nº 1 e 2, e 260º, nº 1, nº 2 e nº 4 do Código das Sociedades Comerciais).
Improcede, pois, a argumentação do recorrente, sendo certo que não foram violadas as disposições legais por ele citadas.
2ª Questão
Quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, invoca o arguido que há erro de julgamento nos aspectos que assinala e que existe erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, c), do CPP), para além de ter sido violado o princípio basilar da livre apreciação da prova.
Para sustentar o seu ponto de vista (alega por um lado que se provou ou devia ser dado como provado que “o ruído proveniente da musica ao vivo tocada na esplanada do café da ofendida/assistente impediu o descanso pelo menos do arguido e respectiva família”, que “o arguido se sentiu profundamente perturbado com a situação”, que “o barulho era objectivamente perturbador do sossego das pessoas” e que “era de molde a ultrapassar aquilo que é legalmente permitido” e, por outro lado, que não se encontra provada matéria de facto que justifique a fixação de qualquer indemnização por danos não patrimoniais) invoca reclamações escritas que apresentou junto da Câmara Municipal …, o facto da mesma Câmara ser proprietária do espaço onde se encontra instalado o “D…”, o teor de licenças de ruído emitidas, alguns despachos da mesma Câmara, o estado de exaltação em que (o arguido) se encontrava, citando ainda pontuais frases verbalizadas pelas testemunhas I…, E…, F…, G…, H… e W….
Vejamos então.
Como se verifica dos autos, procedeu-se à documentação (por meio de gravação) das declarações e depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento, encontrando-se junto aos autos o respectivo suporte técnico.
Embora de forma pouco modelar, consideramos que o recorrente cumpriu minimamente os ónus de impugnação da decisão da matéria de facto, indicados no art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP.
Atentos os poderes de cognição das Relações (art. 428º, nº 1, do CPP), uma vez que a prova oral produzida em audiência de 1ª instância foi gravada, constando dos autos o respectivo suporte técnico (art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP), pode este tribunal conhecer da decisão proferida sobre a matéria de facto.
No entanto, convém aqui lembrar que “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.”[2]
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações limite de erros de julgamento sobre a matéria de facto[3].
Os elementos de que esta Relação dispõe, no caso em apreço, são a gravação da prova produzida oralmente em audiência na 1ª instância e a prova documental junta aos autos.
Assim, não obstante os seus poderes de sindicância quanto à matéria de facto, a verdade é que não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas.
O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é «colhido directamente e ao vivo», como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª instância.
Posto isto, tendo presente que o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP) também se aplica ao tribunal da 2ª instância, importa “saber se existe ou não sustentabilidade na prova produzida para a factualidade dada como assente, e que é impugnada, sendo que tal sustentabilidade há-de ser aferida através da verificação da existência de prova vinculada, da verificação da existência de erros sobre a identificação da prova relevante e da constatação da inconsistência mínima de certo facto perante uma revelada fonte que o suporta”[4].
E, claro, como sabido com as provas “pretende-se comprovar a realidade dos factos”, ou seja, pretende-se “comprovar a verdade ou a falsidade de uma proposição concreta ou fáctica”[5], criar no juiz um determinado convencimento.
Produzidas as provas em audiência de julgamento, o julgador (seja o tribunal singular, seja o tribunal colectivo) terá de as apreciar, com vista à sua valoração.
Quando procede à apreciação das provas, o julgador está sujeito a determinados limites que tem de respeitar, nomeadamente, decorrentes da vinculação temática e do funcionamento do princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), bem como das respectivas “excepções” ou limitações.
A ideia da livre apreciação da prova, «uma liberdade de acordo com um dever»[6], assenta nas regras da experiência[7] e na livre convicção do julgador.
A decisão sobre a matéria de facto é “o resultado de todas as operações intelectuais, integradoras de todas as provas oferecidas e que tenham merecido a confiança do Juiz”[8].
De lembrar que, a impugnação da matéria de facto em sentido amplo, não se pode confundir com a invocação dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP.
Os vícios do art. 410º, nº 2, do CPP terão de resultar do texto da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[9].
Particularmente, o erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, alínea c), do CPP) “constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.”[10]
Feitas estas considerações teóricas vejamos agora, em concreto, a argumentação do recorrente para impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Alega o recorrente, a partir da análise subjectiva e parcial que faz das provas que indica na motivação de recurso, que devia ter sido dado como provado “que o ruído proveniente da musica ao vivo tocada na esplanada do café da ofendida/assistente impediu o descanso pelo menos do arguido e respectiva família”, que “o arguido se sentiu profundamente perturbado com a situação”, que “o barulho era objectivamente perturbador do sossego das pessoas” e “era de molde a ultrapassar aquilo que é legalmente permitido”.
No entanto, analisando toda a prova documental existente nos autos e articulando-a com a prova oral produzida em julgamento, tendo igualmente presente o disposto no art. 127º do CPP, podemos concluir que não merece censura a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Ouvindo integralmente o depoimento da testemunha I… (agente da PSP que se deslocou à residência do arguido) verifica-se que apesar do mesmo ter ouvido, na residência do arguido, ruído proveniente do espectáculo de música ao vivo que se realizava no D… (que distava cerca de 50 metros), o certo é que não foi feita qualquer medição ao ruído.
Não tendo sido feitas medições com aparelhos próprios para o efeito é evidente que o tribunal não podia concluir que o ruído proveniente da música ao vivo tocada na esplanada no café ultrapassava os limites legais ou que integrava o conceito de ruído nocivo ou mesmo incomodativo (e isso não obstante a testemunha G…, arquitecto com conhecimentos na área e vizinho do arguido, ter verbalizado a dado passo que considerava o ruído excessivo, apesar de igualmente reconhecer que não fez medições).
O facto da testemunha I… (tal como outras testemunhas) ter referido que o arguido se encontrava em pijama e se queixava do barulho, que o impedia de descansar, estando incomodado, não permite concluir que o ruído ultrapassava os limites legais.
A mesma testemunha, agente da PSP, referiu também que na altura foi ao estabelecimento em questão e verificou que tinha as licenças respectivas em ordem.
Aliás, para a testemunha I… o barulho ou ruído do espectáculo que decorria na esplanada do café em questão não era alto, o que mostra bem que, sem a devida medição através de aparelhagem adequada era perfeitamente arbitrário concluir que estavam a ser ultrapassados os limites legais.
O facto de se ouvir ruído na residência do arguido não significava que a sociedade que explorava o dito café e promovia aquele espectáculo de musica ao vivo tivesse actuado ilicitamente ou que a conduta que o arguido adoptou (derrubando as colunas e projector de luzes, atirando-os ao solo e causando-lhes estragos no valor total de € 891,75), fosse lícita ou justificada.
As reclamações que o arguido apresentou junto da Câmara Municipal … (v.g. fls. 128, datada de 3.10.2011), por causa do barulho proveniente do D… (sendo certo que o abaixo assinado já é posterior aos factos aqui em questão, sendo por isso irrelevante para a decisão da causa) também não significam que o volume da música ou o nível de ruído fosse superior ao permitido legalmente.
A circunstância da Câmara Municipal … ser proprietária do espaço onde se encontra instalado aquele café e receber uma renda mensal não significa que o espectáculo que decorria na noite de 22 para 23 de Outubro de 2011 (de sábado para domingo) fosse ilícito ou que tivesse impedido o descanso do arguido, família e vizinhança.
A testemunha W… (Vice-Presidente da Câmara Municipal …) esclareceu, de forma isenta, as circunstâncias e critérios para a passagem de licenças de ruído.
Foi também esclarecedor quanto ao teor do seu despacho constante de fls. 232 (deferindo os dias 14/10 e 22/10 nos termos requeridos e indeferindo os dias 11/10 e 18/10 por serem à terça feira, perturbando o descanso dos residentes, quando no dia seguinte têm de trabalhar ou ir para a escola) e quanto ao significado das informações dadas pelos serviços (designadamente quando mencionavam “Para este estabelecimento têm vindo a ser passadas sucessivas licenças de ruído”).
Os critérios que apontou para o deferimento ou indeferimento das licenças de ruído são lógicos, assim como as explicações que deu para as informações de serviço (o facto de terem sido passadas várias licenças de ruído, não significa que a actividade desenvolvida no dito café, quando promovia espectáculos ao vivo, fosse permanente ou que as licenças concedidas pela Câmara fossem ilegais).
Se o arguido pretendia questionar aquelas licenças ou as circunstâncias em que eram emitidas deveria ter accionado os mecanismos legais previstos para o efeito e não agir, como agiu, danificando do modo apurado as referidas colunas e projector de luzes.
O facto do arguido ter 67 anos de idade, estar de pijama e até poder estar nervoso e incomodado não justifica a sua conduta, nem permite concluir que estava profundamente perturbado com aquela situação.
A circunstância do arguido comentar com os vizinhos, nomeadamente, com as testemunhas G… e H…, que o barulho proveniente do dito café, v.g. quando havia espectáculos de música, o impediam de descansar não significa que isso correspondesse à realidade.
Perante a prova produzida em julgamento, mesmo tendo em atenção as regras de experiência comum em casos semelhantes, não se vê que o tribunal tivesse errado na avaliação que fez, quando deu como não provado o que consta do ponto 8).
Acrescente-se que, a própria testemunha G… (devendo ser ouvido na integra o seu depoimento), acabou por reconhecer que não sabia se os limites do ruído foram ou não ultrapassados, tendo referido que na altura não foram feitas medições.
A análise que a mesma testemunha fez das cartas de ruído juntas aos autos e referências que fez a haver diferença superior a 3 dB não são bastantes para se concluir (sem efectuar as competentes medições com aparelhagem adequada) que o ruído que se ouvia era superior ao permitido no local.
O facto das testemunhas E… e F… (que na altura dos factos em questão se encontravam no dito café) terem referido o que se aperceberam do estado em que se encontrava o arguido, designadamente que estava exaltado, também não impunha decisão diversa, nem significa que tivesse havido errada avaliação da prova ou que a conduta daquele (arguido) fosse justificada.
Da prova produzida em julgamento não resulta que as licenças de ruído emitidas pela Câmara fossem ilegais por padecerem de vícios substanciais (mesmo tendo em atenção o nº de licenças emitidas, sendo certo que não foram feitas medições do ruído naquela altura para se saber se o ruído produzido era incomodativo) e a circunstância de poder não ter sido observado o prazo aludido no art. 15º do DL nº 9/2007, de 17.1, não permite deduzir que o espectáculo que decorria no café naquela noite de 22 para 23.10.2011 era ilícito.
De qualquer modo, ainda que assim não fosse, não podia o arguido agir como agiu, praticando os factos que lhe dizem respeito e que foram dados como provados.
Não há, assim, qualquer erro de julgamento, como sustenta o recorrente, sendo certo que as provas que indicou também não impõem decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal da 1ª instância.
As provas indicadas na motivação de recurso, foram analisadas e apreciadas criticamente pelo julgador, sendo confrontadas com as demais produzidas em julgamento, como resulta da fundamentação da sentença sob recurso, para a qual aqui se remete.
Até considerando as regras de experiência comum em casos semelhantes, nada impedia o tribunal da 1ª instância de formar a sua convicção no sentido dos factos que deu como provados, articulando a prova documental, com a apreciação crítica das provas produzidas oralmente.
Perante a fundamentação constante da sentença impugnada não se pode concluir que o tribunal da 1ª instância tivesse violado o disposto no artigo 127º do CPP.
Também não se evidencia do texto da decisão sob recurso, que exista qualquer raciocínio ilógico ou qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta (razão pela qual não assiste razão ao recorrente quanto invoca ter o julgador incorrido em erro notório na apreciação da prova).
Portanto, a argumentação do recorrente é inconsequente, quando pretende que devia ter sido dado como provado matéria, que não convenceu o Tribunal pelas razões indicadas na fundamentação da sentença.
Assim, para além dos factos apurados permitirem ao tribunal proferir uma decisão (o que mostra a sua suficiência), não se detecta qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão (nem sequer foi exposto qualquer raciocínio ilógico ou contraditório na fundamentação que apontasse para decisão contrária à da condenação do arguido), sendo certo que a apreciação feita pelo Tribunal da 1ª instância não contraria as regras da experiência comum e tão pouco evidencia qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.
Por isso, todas as provas produzidas e apreciadas em conjunto, eram suficientes e permitiam ao Tribunal a quo formar a sua convicção no sentido da decisão que proferiu sobre a matéria de facto.
Acrescente-se, ainda, que a não referência expressa (que nem é necessária) a aspectos particulares, não significa que a prova não tenha sido valorada e apreciada criticamente pelo tribunal.
Lendo a motivação da sentença sob recurso percebe-se que o julgador se baseou, de forma expressa, nos meios de prova que indicou e particularizou, os quais apreciou no seu conjunto e de forma articulada, chegando em alguns casos a explicitar o confronto que fez entre os meios de prova para melhor explicar a razão pela qual, v.g. parte da versão do arguido e de algumas testemunhas o não convenceram e, portanto, não mereceram crédito ao tribunal.
O tribunal explicou o processo lógico e racional que seguiu na apreciação das provas que fez (é transparente e percebe-se o juízo decisório que fez e quais as provas em que se baseou e o convenceram) e, a forma como fundamentou a sua convicção, satisfaz a exigência que decorre do n.º 2 do artigo 374.º do CPP.
Lendo a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da decisão sob recurso não era possível justificar decisão contrária à do tribunal a quo quanto à matéria de facto provada e não provada.
O que sucede, portanto, é que o recorrente quer substituir-se ao tribunal, quando pretende impor a sua própria apreciação (subjectiva e parcial) de parte da prova produzida em julgamento.
No entanto, as divergências e especulações do recorrente, quando apresenta a sua própria análise de parte da prova produzida em julgamento, são irrelevantes porque é ao tribunal que incumbe valorar todas as provas produzidas em julgamento, sendo certo que não se pode confundir essas divergências com impugnação da matéria de facto ou com a invocação dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP.
Improcede, pois, a argumentação do recorrente, não havendo qualquer motivo para alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
A conclusão do recorrente de que não se encontra provada matéria de facto que justifique a fixação de qualquer indemnização por danos não patrimoniais não traduz a existência de qualquer erro de julgamento ou vício previsto no art. 410º, nº 2, do CPP (daí que essa conclusão só possa ser apreciada, caso seja admissível recurso da condenação cível, questão que adiante se abordará).
Em conclusão: não ocorrendo erro de julgamento, nem os vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, não havendo nulidades ou irregularidades de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto.
3ª Questão
Importa, agora, apurar se existe erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito.
Na perspectiva do recorrente havia colisão de direitos e agiu em legítima defesa, estando justificada a sua conduta, razão pela qual não podia ser condenado pelo crime de dano que lhe foi imputado.
No entanto, o julgador foi bem esclarecedor no enquadramento jurídico-penal que fez dos factos que deu como provados, o qual não merece censura ou reparo.
Dispõe o art. 32º do CP:
“Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.”
De forma sintética diremos que são requisitos da legítima defesa:
- a existência de uma agressão de interesses (pessoais ou patrimoniais) do agente ou de terceiro;
- que essa agressão seja actual, no sentido de estar iminente;
- que seja ilícita, no sentido de o seu autor não ter direito a fazê-Ia;
- que a defesa se circunscreva ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão, isto é, que haja racionalidade do meio empregue;
- o “animus deffendendi”.
Para além de não se ter provado que a ofendida tivesse adoptado qualquer conduta ilícita ou tivesse agredido interesses do arguido ou de terceiro, também dos factos apurados não resulta que o recorrente tivesse agido em legítima defesa.
Da decisão proferida sobre a matéria de facto não se pode concluir que houvesse qualquer colisão de direitos, nem que o recorrente tivesse agido no exercício de qualquer direito.
Mesmo que a licença de ruído nº 43/2011 fosse ilegal (o que ficou por demonstrar, não assistindo razão ao recorrente quando alega o contrário uma vez que não foi produzida prova bastante para se poder chegar à conclusão pretendida de que foi violado o estabelecido no DL nº 9/2007, de 17.1, designadamente artigos por si citados) daí não resultava que os interesses ou direitos de personalidade do recorrente ou família estivessem a ser agredidos.
A questão do recorrente não ter reclamado do acto administrativo que consistiu na emissão daquela licença de ruído nº 43/2011 é irrelevante para a decisão da causa.
E, como ficou por demonstrar, além do mais, qual era o valor do ruído produzido com o concerto musical na altura dos factos apurados ocorridos em 23.10.2011, cerca da 1h20, não se pode sustentar (como o faz o recorrente) que o tribunal tivesse de concluir pela ilegalidade da licença nº 43/2011.
Aliás, nem se provou (cf. ponto 8 dado como não provado) que o ruído proveniente da música ao vivo tocada na esplanada do dito café tivesse impedido o descanso do arguido ou da respectiva família ou da vizinhança (e isso independentemente daquela licença nº 43/2011 ser ou não válida).
O incómodo que sentiu (ver alínea m) dada como provada) com o barulho proveniente do concerto não lhe permitia actuar como actuou (o que é linear para qualquer cidadão comum), tanto mais que dos demais factos apurados não resulta que a ofendida tivesse actuado ilicitamente ou que tivesse agredido qualquer direito do recorrente ou de terceiro.
Ao contrário do que alega o recorrente, da decisão proferida sobre a matéria de facto não resulta que tivessem sido violados os seus (do arguido ou família ou terceiro) direitos, designadamente que tivessem sido ofendidos direitos de personalidade.
Por isso, podemos concluir com segurança que, perante os factos dados como provados, além de não se verificar qualquer causa de justificação da conduta do arguido, também não ocorre qualquer causa que exclua a ilicitude e/ou punibilidade da sua conduta.
Improcedem, pois, os argumentos do recorrente, não existindo qualquer erro de direito.
4ª Questão
Alega, ainda, o recorrente que é excessivo o valor atribuído a título de indemnização por danos não patrimoniais (isso para além de também concluir que não se encontra provada matéria de facto que justifique a fixação de qualquer indemnização por danos não patrimoniais).
Para apreciar essa matéria é necessário averiguar previamente se é admissível o recurso nesta parte.
Estabelece o art. 400º, nº 2, do CPP que «sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada».
No caso dos autos, o pedido cível formulado pela demandante (fls. 58 a 66) era no valor de € 5.795,75 e o arguido/recorrente foi condenado a pagar-lhe a quantia total de € 1.891,75 (sendo € 891,75 para reparar os danos patrimoniais e os restantes € 1.000,00 para compensar os danos não patrimoniais).
Ora, sendo a alçada dos tribunais de 1ª instância à data (3.5.2012) em que foi formulado o pedido cível de € 5.000,00 (art. 24º, nº 1, da Lei nº 3/99 de 13/1 na redacção do DL nº 303/2007, de 24.8) é manifesto que a quantia que o arguido foi condenado a pagar à demandante e que questiona é inferior a metade da alçada do tribunal recorrido.
Por isso, nos termos do art. 400º, nº 2, do CPP, é inadmissível o recurso dessa parte da decisão.
Tendo em vista o disposto nos arts. 420º, nº1, al. a) e 414º, nº 2, do CPP, a irrecorribilidade da decisão em matéria cível é motivo de rejeição dessa parte do recurso.
Assim, é de rejeitar o recurso na vertente cível.
Improcedem, pois, na sua totalidade os recursos interpostos pelo arguido.
*
III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
a)- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B… dos despachos de 25.6.2012;
b)- rejeitar o recurso interposto pelo mesmo arguido, relativo à sentença, na parte respeitante à decisão sobre o pedido de indemnização civil, por inadmissibilidade legal;
c)- negar, no mais, provimento ao mesmo recurso interposto da sentença.
*
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça pelo recurso intercalar em 3 Ucs e pelo recurso da sentença em 4 UCs.
*
(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária. O verso das folhas encontra-se em branco – art. 94º, nº 2, do CPP)
*
Porto, 11-09-2013
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
______________
[1]Além disso manifestou interesse no conhecimento do recurso intercalar abaixo indicado.
[2] Cf. Ac. do STJ de 15/12/2005, proferido no proc. nº 2951/05 e Ac. STJ de 9/3/2006, proferido no proc. nº 461/06, relatados por Simas Santos (consultado no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais). Aliás, como se diz no Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), a admissibilidade da alteração da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação “mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado;
c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.”
[3] Assim, cit. Ac. do STJ de 21/1/2003.
[4] Assim, Ac. do TRG proferido no recurso nº 1016/2005, relatado por Nazaré Saraiva.
[5] Carlos Climent Durán, La Prueba Penal, tomo I, 2ª ed., Valência: tirant lo blanch, 2005, p. 65. Mais à frente, o mesmo Autor, ob. cit., p. 78, nota 64, citando K. Engisch, diz que “o objectivo da actividade probatória é «criar no juiz o convencimento da existência de certos factos»”.
[6] Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Coimbra: Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-89, p. 139, refere que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo» (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos)».
[7] Regra de experiência que, como diz Paolo Tonini, A prova no processo penal italiano (trad. de Alexandra Martins e Daniela Mróz, de La prova penale, 4ª ed., publicado em Pádua, pela Cedam – Casa Editrice Dott. António Milani, em 2000 e posterior actualização de Setembro de 2001), São Paulo, Brasil: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 2002, pp. 55 e 56, “expressa aquilo que acontece na maioria dos casos”, sendo “extraída de casos similares”, gerando “um juízo de probabilidade”, de um “idêntico comportamento humano”, devendo o juiz formular “um raciocínio de tipo indutivo” e sucessivamente “um raciocínio dedutivo”.
[8] Assim, Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), chamando à atenção para o que se escreveu em Ac. de 8/2/99, em recurso de apelação do proc. nº 1/99 do Tribunal de Círculo de Chaves.
[9] Cf., entre outros, Ac. do STJ de 19/12/1990, BMJ nº 402/232ss.
[10] Ibidem.