Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
201/08.3TASJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA MANUELA PAUPÉRIO
Descritores: ACTO MÉDICO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RP20140326201/08.3TASJM.P1
Data do Acordão: 03/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Comete um crime de ofensa à integridade física por negligência, do art. 148.º, n.º 1 e 3, com referência ao art. 144.º, al. a), do Cód. Penal, o cirurgião que, no âmbito de uma cirurgia de varizes bilaterais, de forma não concretamente apurada, ao abordar a veia safena, junto à crossa, por desatenção, imperícia ou cansaço agiu sem o cuidado devido e atingiu a veia femoral comum, colocando em risco a vida do paciente face à intensidade e local da hemorragia causada, expondo-o a grandes perdas hemáticas, a embolias e outras complicações do seu estado clínico adequadas a provocar-lhe a morte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 201/08.3 TASJM.P1

Acordam em conferência na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I) Relatório:

Nestes autos de processo comum com o número acima identificado que correu termos pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial de S. João da Madeira, veio o assistente B… interpor recurso da decisão que absolveu o arguido C… dos crimes de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148º números 1 e 3 este com referência ao artigo 144º alíneas b) e d) e um crime de intervenção e tratamento médico cirúrgicos mediante violação das legis artis, previsto e punido pelo artigo 150º números 1 e 2, todos do Código Penal.
Reiterou ainda o interesse na apreciação do recurso apresentado em 22/01/2013, concluindo pela forma seguinte: (transcrição)
“O objectivo legal da acareação é o do esclarecimento de contradições entre declarações de diferentes participantes processuais, sendo que tal diligência só se realiza se se afigurar "útil à descoberta da verdade.
In casu, a acareação foi requerida no final da produção de toda a prova em sede de audiência e julgamento, tendo o assistente requerido que D…, E… e F… fossem novamente confrontados com os depoimentos e as declarações das testemunhas G…, H… e I….
Tal sucedeu já em em sede de julgamento tendo aquelas testemunhas sido confrontadas com tais depoimentos, mantendo o que já haviam afirmado anteriormente.
Por outro lado, o depoimento prestado pelas testemunhas G…, H… e I… resulta, não de factos de que possuam conhecimento directo e que constituam objecto da prova, mas da sua percepção da realidade, isto é, daquilo que apreenderam do que D…, E… e F… lhes disseram.

Assim, e porque tal diligência não se mostra útil à descoberta da verdade, outra não deveria ter sido a decisão da Mma. Juiz que não o seu indeferimento, decisão essa com a qual concordamos.
Os actos médicos são passíveis de responsabilização criminal a diferentes níveis: desde logo, a prática de acto médico contrário às leges artis poderá preencher o tipo de crime de ofensa à integridade física simples ou agravada, desde que se verifiquem as respectivas circunstâncias qualificativas previstas, nomeadamente, nos artigos 143º, 144.º, 145.º do Código Penal. Se a intervenção e/ou o tratamento, causando ofensa no corpo ou na saúde de outra pessoa, forem praticados com negligência, poderá ainda preencher o tipo de ofensa à integridade física por negligência (artigo 148.º do Código Penal).
Por seu turno, as intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física (artigo 150.º, n.º 1); mas as mesmas pessoas que, em vista das finalidades apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até duzentos e quarenta dias, se pena mais grave não lhes couber por força de outra disposição legal (artigo 150.º, n.º 2).
Assim, o simples cumprimento das leges artis afasta automaticamente qualquer análise do comportamento por parte do médico por se entender, por força do art. 150.°, n.° 1, do Código Penal, que se trata de um comportamento irrelevante para o direito penal.
Verifica-se o vício de contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão [artigo 410.º, n.º 2, alínea b)] quando fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.
Ora, a Mma. Juiz apenas refere ter o assistente, aqui recorrente, sofrido “risco de embolias” (ponto xxi da matéria provada), aludindo na fundamentação ao “risco de tromboses distais” que poderiam conduzir a “embolia pulmonar”, podendo ter sofrido ainda “risco de amputação da perna”, nunca referindo ter o assistente sofrido risco de vida.
Não se pode concluir como conclui o recorrente que se o assistente correu risco de embolia, correu também risco de vida, dado que aquela é causa adequada a tal risco, pois isso não decorreu do julgamento efectuado, pelo que não foi dado como provado pela Mma. Juiz, assim, nada havendo a apontar ao assim decidido.
Concluindo-se pela não violação das legis artis – ponto esse que não vem atacado pelo recorrente – falece a verificação do disposto no artigo 150º, n.º 2 do Código Penal, não sendo, assim, já necessário analisar se se verificou ou não perigo para vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde. Caímos assim já na previsão do n.º 1 daquele preceito legal, o qual afasta a punição do médico pelo crime de ofensa à integridade física.
Invoca ainda o recorrente existir vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do previsto no artigo 410º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal.
Como refere o recorrente, não analisou o Tribunal a quo todos os elementos de facto relevantes constantes dos autos e apurados em julgamento, pois, pese embora, o procedimento e técnica cirúrgica utilizada pelo arguido ser usual no âmbito em causa, não apurou o Tribunal as concretas circunstâncias em que o arguido o utilizou e efectivou neste caso concreto.
O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para a formulação de uma solução correcta de direito, dado não conter todos os elementos necessários à mesma, não permitindo por esse motivo, um juízo seguro de absolvição ou de condenação; ou seja, a decisão contém uma evidente lacuna, por não se ter apurado, algo que era evidente que se podia e devia, ter apurado.
16.Ora, não apurou – como não podia - o Tribunal o modo como a lesão na veia em apreço se veio a verificar.
Com efeito, face às várias causas apontadas pelos peritos médicos ouvidos em julgamento – desde tracção da veia femoral, por manipulação, por fragilidade das veias, por variações anatómicas da região inguinal – sempre teria o tribunal recorrido que dar como provado apenas ter-se verificado lesão na veia femoral por desgarre ou laceração e já não por corte – por parte do arguido, com instrumento cortante, tal como vinha na acusação/pronúncia – uma vez que tal não resultou apurado do depoimento quer do arguido quer das demais testemunhas presentes em julgamento.
Resultou apenas apurado que o arguido, ao puxar a veia safena para a isolar e assim a seccionar provocou uma lesão na crossa da veia femoral com a veia safena, vulgo desgarre.
Não foi possível apurar como a mesma sucedeu, sendo certo que a situação que veio a suceder nestes autos, embora rara, pode acontecer, estando mesmo retratada na literatura médica como sendo algo que pode acontecer numa cirurgia de operação às varizes.
Invoca o recorrente que, aquando da prestação do seu consentimento, e por não ter sido informado dos verdadeiros riscos inerentes à cirurgia que ia realizar, designadamente consequência das (eventualmente) referidas lesões e das (não referidas) hemorragias, como sejam o risco de embolia pulmonar, de amputação e mesmo, de vida, as quais não lhe foram comunicadas, estava em erro.
A realização de uma intervenção médico-cirúrgica sem consentimento do paciente não constitui um crime contra a integridade física, mas contra a liberdade e auto-determinação. Mais precisamente: uma intervenção ou tratamento médico-cirúrgico arbitrário (art. 156.º, do Código Penal). In casu, não foi o arguido acusado/pronunciado pela prática de tal ilícito criminal.
Nos presentes autos não se logrou apurar, com certeza, se o médico que apresentou o respectivo termo para o recorrente assinar, indicou a este o especifico risco de lesão de vasos na cirurgia às varizes, pois o mesmo referiu não se recordar. Assim, sempre não se verificaria o crime enunciado supra.

É do seguinte teor a decisão de que se recorre:

I - O arguido é médico de profissão, com o nº de ordem ….. e tem domicilio profissional no ora designado Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga – Unidade de São João da Madeira, à data da prática dos factos que a seguir se descreverão não exercia funções em regime de exclusividade em tal unidade hospitalar (anteriormente designada por Hospital Distrital de S. João da Madeira), sendo que, só ao serviço de tal unidade, prestava 35 horas de serviço semanal, divididas entre a consulta externa, o bloco operatório (cirurgia geral), o serviço de urgência e a enfermaria – Cf. Fls. 421 a 424.I
Para além deste horário, o arguido, à data da prática dos factos que a seguir se descreverão, integrava equipa de cirurgia geral no âmbito do programa S.I.G.I.C., do Ministério da Saúde, para recuperação de listas de espera.
O assistente B…, identificado nos autos, sofre, pelo menos desde o ano de 2006, de varizes bilaterais dos membros inferiores e por esse motivo, recorreu, pela primeira vez, em 18 de Setembro de 2006, à consulta externa de cirurgia geral no então designado Hospital Distrital de S. João da Madeira, onde foi assistido pelo Dr. J…, à data, a exercer funções nesse hospital, que registou no respectivo diário o seguinte:
“Doente de vinte e sete anos enviado a esta consulta por insuficiência venosa bilateral. Sem antecedentes pessoais relevantes. Medicado regularmente com Zoloft 1 x dia. Inicia estudo pré-operatório” (fls. 434).
iii no dia 7 de Novembro de 2006, submeteu-se a análises hematológicas, efectuando estudo de bioquímica e hematológico (fls. 432), após o que, em 20 de Novembro de 2006, o assistente foi avaliado em consulta de anestesia, onde se concluiu que o mesmo não apresentava contra-indicações anestésicas (fls. 108 e 109)
iv em 23 de Julho de 2007, foi de novo assistido em consulta externa de cirurgia geral no referido hospital, pelo Dr. J…, médico com cédula profissional nº ….., que lhe propôs a cura cirúrgica de tais varizes bilaterais, aos dois membros inferiores, de uma só vez, na qual o mesmo consentiu, mediante assinatura do documento constante de fls. 93 e 94, declarando, por escrito o seguinte:
“Declaro que tomei conhecimento do conteúdo da presente proposta cirúrgica, assim como os direitos que me assistem e dos deveres em que incorro no âmbito do SGIC e autorizo a sua inclusão na lista de inscritos para Cirurgia deste hospital e na base do Ministério da Saúde”, proposta que veio a ser autorizada em 30 de Julho de 2007, pelo Director do Serviço de Cirurgia Geral, Dr. K….
Assim, como meios complementares de diagnóstico e actos preparatórios à cirurgia proposta, o assistente submeteu-se à realização de análises clínicas em 7 de Novembro de 2006, cuja prescrição médica consta de fls. 434, e, de novo, a análises clínicas em 27 de Fevereiro de 2008, cuja prescrição clínica consta de fls. 432, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e respectivos resultados constam de fls. 214 e 215, cujo teor se dá igualmente por reproduzido, a consulta de anestesia que teve lugar em 6.11.2006, com o comentário final “sem contra-indicação anestésica” (fls. 108 e 109), e não a qualquer outro acto médico ou meio de diagnóstico, designadamente, à realização de ecoddopler.
O Dr. J…, na sequência de todo o processo pré-operatório que iniciara, em consulta externa, transmitiu ao assistente que a cirurgia a que se iria submeter era simples, que poderia fazê-la aos dois membros inferiores de uma só vez, e que o tempo de convalescença seria de apenas uma semana, pelo que, uma semana após tal cirurgia, estaria apto a correr.
Até que, no dia 29 de Fevereiro de 2008, pelas 10.48h, o assistente foi internado na valência de Cirurgia Geral do Hospital Distrital de S. João da Madeira e subscreveu, no mesmo dia, consentimento para acto cirúrgico, declarando por escrito, além do mais, o seguinte:
“… Autorizo por este meio ser submetido a cura cirúrgica de varizes bilaterais, cuja natureza, finalidade e risco e foram explicados pelo Dr. L… …
b. Também autorizo a realização de quaisquer outros actos de diagnóstico ou terapêutica que venham a ser necessários, bem como a administração de anestesia local, geral ou outras. Não me foi dada qualquer garantia de o acto médico referido ser realizado por um determinado médico em especial”.
Tal autorização encontra-se subscrita, mediante aposição das respectivas assinaturas pelo assistente e pelo médico Dr. L… (fls. 103).
Do registo de internamento, constante de fls. 95, preenchido e assinado pelo arguido e cujo teor se dá por inteiramente reproduzido, este fez constar apenas o seguinte:
- No campo destinado ao diagnóstico varizes bilaterais”;
- No campo destinado a código: códigos 4549 e 4549;
- No campo destinado a procedimentos: “cura cirúrgica”.
E nada mais foi assinalado, designadamente nos campos destinados a “complicações”; “intercorrências” e “observações sobre complicações/intercorrências”.
E da ficha de “Anamnese” constante de fls. 97, o arguido fez constar o seguinte: “Paciente portador de varizes bilaterais; Estudo pré-operatório realizado, bem como observação por anestesologia. Procede-se ao seu internamento a fim de ser submetido a cura cirúrgica”.
Assim, pelas 17.00h do dia 29 de Fevereiro de 2008, o assistente deu entrada no bloco operatório para ser submetido a intervenção cirúrgica – procedimentos de “laqueação e stripping de veias varicosas dos membros inferiores” (lado direito) e laqueação de safena e comunicantes” (lado esquerdo) cuja equipa foi constituída pelo arguido, na qualidade de primeiro cirurgião, pelo Dr. M…, na qualidade de segundo cirurgião, pelo Dr. N…, na qualidade de médico anestesista, pela enfermeira O…, na qualidade de enfermeira instrumentista, pela enfermeira P…, na qualidade de enfermeira anestesista e pela enfermeira Q…, na qualidade de enfermeira circulante.
O arguido conheceu o assistente nesse dia e efectuou-lhe exame de apalpação aos membros inferiores, após o que deu início à intervenção cirúrgica em questão, enquanto primeiro cirurgião, com a colaboração do Dr. M…, como segundo cirurgião, do Dr. N…, enquanto médico anestesista e com as enfermeiras da respectiva equipa, identificadas em
x).i. O arguido iniciou a cirurgia ao membro inferior direito, com intervenção na zona da coxa, auxiliado pelo Dr. M…, na qualidade de 2º cirurgião, que teve intervenção junto do tornozelo.
O procedimento cirúrgico do arguido e do Dr. M… ao membro inferior direito do assistente foi o seguinte:
“Crossectomia e laqueação de veias colaterais da veia safena interna, safenectomia por stripping da veia safena interna, seguida de laqueação de veias comunicantes insuficientes múltiplas e exérese de trajectos varicosos com fleboextracções” – cfr. fls. 302.
A dada altura, o arguido posicionou-se junto à virilha contra-lateral esquerda do assistente, a fim de iniciar o procedimento cirúrgico ao membro inferior esquerdo.
Para o efeito, o arguido, na concretização da intervenção cirúrgica, mediante utilização de instrumento(s) adequado(s) ao corte, desferiu um pequeno golpe na virilha do membro inferior esquerdo (incisão cutânea) e iniciou o procedimento cirúrgico a que se propusera, com intervenção junto da veia safena.

Munido de instrumento cortante, adequado à intervenção cirúrgica, mediante utilização de instrumento(s) adequado(s) ao corte, desferiu um pequeno golpe na virilha do membro inferior esquerdo (incisão cutânea) e iniciou o procedimento cirúrgico a que se propusera, com intervenção junto da veia safena.
Quando o arguido operava a dissecção e isolamento de vasos, designadamente manuseando a veia safena, sem estar munido de nenhum instrumento cirúrgico metálico e cortante, deu-se uma lesão na veia femoral do assistente, por laceração/desgarre, que ocasionou hemorragia.
Perante a intensidade da hemorragia, o arguido e o Dr. M… solicitaram às enfermeiras O… e Q… “clampes” vasculares no sentido de parar a hemorragia.
Não tendo tido sucesso, solicitaram a presença do Dr. L…, que ali se encontrava ao serviço, no bloco operatório, e só decorrido período de tempo que não foi possível apurar, e mediante compressão digital junto da veia safena lograram obter campo operatório exangue.
A partir de então, ou seja, desde cerca das 18.15h desse dia, e até à entrada do assistente no Hospital de Vila Nova de Gaia, às 21.54h, do mesmo dia, conforme registo de episódio de fls. 17 e 20, e depois, até à sua entrada no bloco operatório, o assistente manteve-se sempre anestesiado e sujeito a compressão digital no local da hemorragia, como forma de a controlar.
xxi. O assistente sofreu perda súbita de sangue e sofreu risco de embolias, designadamente, embolia pulmonar, complicação que poderia provocar-lhe a morte.
Logo que deu entrada no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, o assistente foi submetido a cirurgia para “colocação de enxerto de interposição femoro-ilíaco com PTFE 8 mm. Inflow: confluência da veia femoral superficial e veia femoral profunda; Outflow: veia ilíaca externa” e permaneceu internado no serviço de cirurgia vascular até 6 de Março de 2008.
O diagnóstico efectuado no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia foi o de “laceração da veia femoral comum esquerda aquando da realização de correcção cirúrgica de varizes dos membros inferiores.”
No preenchimento do “Relatório operatório pormenorizado” a que o arguido procedeu, logo após a transferência do assistente para o Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, o arguido fez constar o seguinte: (fls. 104 e 105, reproduzidas a fls. 296/299):
“Sistema venoso superficial do membro inferior esquerdo com hiperfusão muito intensa, fazendo lembrar anomalia vascular do foro arterio-venoso, síndrome post trombótico, ou circulação troncolar vicariante e dilatações aumentadas junto à crossa com circunvoluações venosas de parede muito final e frágil”
Opta-se pela não execução de stripping mas durante a dissecção junto à crossa registou-se hemorragia muito volumosa que motivou a suspeita de desgarre ou pequena laceração da veia femoral profunda.
Após controle com clampes vasculares e compressão digital logra-se obter campo operatório exangue.
Contacta-se telefonicamente o serviço vascular o C.H.Gaia/Espinho.
Banco de sangue para transfusão de uma unidade de Papa Glóbulos Rubros para transporte e duas outras para continuidade.
Compressão local digital até à recepção do paciente na sala de operações de Cirurgia Vascular da Urgência do Hospital de Gaia. g. Transporte em ambulância medicalizada.
Doente anestesiado e acompanhado de Anestesista, Cirurgiões Gerais e Enfermagem.”
Ao abordar a veia safena o arguido apercebeu-se da presença de um gânglio linfático com alterações macroscópicas, tendo procedido à sua excisão.
Tal gânglio foi remetido para análise ao “S…, Ldª” cujo resultado é o seguinte:
“Retalho de tecido adiposo com 4g onde se identifica gânglio linfático com 1,5 cm. O exame histológico mostra gânglio linfático com alterações reactivas.”
Após análise pelo Serviço de Anatomia Patológica Forense do IML, veio a concluir-se que tal gânglio tinha discretas alterações compatíveis com aspecto reactivo, discretas e sem características de linfadenite.
O resultado de tal estudo anátomo-patológico corresponde a tecidos envolventes à veia e não a estudo de qualquer colheita da veia femoral.
xxix. O assistente sofreu “laceração da veia femoral comum esquerda no decurso de acto cirúrgico que obrigou a que o mesmo fosse transferido para o Centro Hospitalar de Vila de Gaia e Espinho, nas condições descritas em 17º, onde houve necessidade de se submeter a intervenção cirúrgica, por médico especialista em cirurgia vascular, para colocação de enxerto de interposição femora-ilíaco com PTFE 8 mm. Inflow: confluência da veia femoral superficial e veia femoral profunda; Outflow: veia ilíaca externa” e onde o mesmo permaneceu internado no serviço de cirurgia vascular desde 29 de Fevereiro até 6 de Março de 2008, dois desses dias, em unidade de cuidados pós-anestésicos.
O assistente sofreu durante a cirurgia a que foi submetido no Centro Hospital de Vila Nova de Gaia transfusão de duas UGR (Unidades Glóbulos Rúbros) por perdas hemáticas de valor não concretamente apurado.
Após esta cirurgia, iniciou hipo coagulação oral a longo prazo, uso de meia elástica cronicamente e elevação postural, apresenta cicatrizes cirúrgicas no membro inferior esquerdo de 18 cm na zona inguinal esquerda e uma de dois centímetros na zona maleolar esquerda, apresentando, ainda, ligeiro edema residual e varizes da safena interna (cuja cura crónica não veio a ser efectuada no dia 29 de Fevereiro de 2008, nem pelo arguido, nem no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia), à interdição de se manter sentado mais de três horas e á recomendação de dormir com os membros inferiores em posição mais elevada do que a cabeça – Cfr. exames de perícia médico-legal de fls. 328 a 331; 389 a 393 e relatório médico de fls. 462.
Submetido a ecodoppler venoso no Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular do Hospital de S. João, no Porto, em 26.05.2009, veio a revelar “visualização do PTFE desde a veia ilíaca com anastomose distal na veia femoral comum, permeável, no entanto, com refluxo acentuado aquando de manobra de valsalva” – Cfr. fls. 360.
Submetido a exame objectivo e Ecodoppler efectuado no Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular do Hospital de S. João, no Porto, em 13 de Outubro de 2009, concluiu-se o seguinte:
“Não existe fístula arterio-venosa como consequência do acto cirúrgico efectuado no Hospital de S. João da Madeira; Existe uma interposição de prótese na veia femoral comum esquerda e veia ilíaca, que se encontra permeável e sem refluxo perceptível em situação de ortostatismo” – cfr. fls.394.
As lesões sofridas pelo assistente apresentam como data de consolidação médico- legal fixável em 22.10.2009.
As cicatrizes provocadas ao nível da sua pele terão resultado de traumatismo de natureza cortante.
xxxvi. Tais lesões terão determinado 601 dias para a consolidação médico-legal: com afectação da capacidade de trabalho geral durante sete dias e com afectação da capacidade de trabalho profissional de noventa dias.
O assistente é beneficiário da Segurança Social com o nº ………...
No dia 28 de Fevereiro de 2008, o arguido exerceu funções no Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga – Serviço de Urgência – desde as 8.00h às 20.00h, e no dia 29 de Fevereiro de 2008 entrou ao serviço, para exercer funções no serviço de enfermaria, desde as 8.00h até às 13.00h.
Após as 13.00h, no período da tarde, o arguido efectuou outras duas cirurgias, antes daquela que efectuou ao assistente.
A lesão descrita em xvii), de que o assistente foi vítima está descrita na literatura médica como uma lesão iatrogénica da intervenção cirúrgica às varizes conhecida, mas rara.
O procedimento cirúrgico adoptado pelo arguido era tecnicamente correcto.
xlii. Era adequado extrair o gânglio em questão, e tal em nada contendeu com o decurso da cirurgia.
O ecodoppler não era um exame necessário àquela cirurgia, pois que não permite detectar alterações do tecido conjuntivo (fragilidades das veias/estruturas), apenas permitindo detectar alterações morfológicas ou funcionais.
Mais se provou que:
O assistente era portador de patologia dos vasos sanguíneos.
O arguido é profissional respeitado e considerado, como clínico e como pessoa, nunca tendo sido alvo de procedimento disciplinar.
Não tem antecedentes criminais.
Vive com a esposa, também ela médica de profissão, e uma filha de 16 anos de idade, em casa própria.
O arguido aufere mensalmente, pelo menos € 6.000, e a sua esposa pelo menos 2.000 acrescidos de pensão de reforma.
A título de propinas do colégio da filha despende cerca de € 1.000 mensais.
É licenciado em Medicina e exerce a profissão de médico desde Janeiro de 1980.
Tem dois veículos automóveis, um Volvo, …, matriculado no ano de 2010 e um Toyota … do ano de 2011.

E considerou não provados os factos seguintes:
a) As varizes bilaterais dos membros inferiores de que o assistente padecia antes da intervenção cirúrgica objecto destes autos impediam-no de praticar atletismo.
b) O arguido não conversou com o assistente antes da cirurgia.
c) Munido de instrumento cortante, adequado à intervenção cirúrgica em curso, e enquanto manipulava o campo cirúrgico, o arguido desferiu um corte na veia femoral profunda, partindo-a, o que provocou hemorragia intensa no local.
d) O assistente sofreu perda súbita de, pelo menos, 1000 ml de sangue, no decurso da cirurgia no Hospital de S João da Madeira.
e) Só a colheita de tecido de tal veia femoral permite apurar a causa de avulsão da veia femoral do membro inferior esquerdo que não pelo seu corte, designadamente, anomalia vascular do foro arterio-venoso, síndrome post trombótico, ou circulação troncolar vicariante e dilatações aumentadas junto à crossa com circunvoluções venosas de parede muito fina e frágil.
f) O arguido, ao ter aceite realizar a cirurgia da laqueação de safena e comunicantes no membro inferior esquerdo, prescindindo da realização de estudo hemodinâmico ao assistente, para apuramento do índice de pressão doppler e edocoppler venoso dos respectivos membros inferiores, este último, por forma a permitir visualizar toda a anatomia venosa e arterial do doente, violou as legis artis, na medida em que tal meio complementar seria essencial à decisão quanto á realização de cura cirúrgica de varizes ao assistente.
g) O arguido estava desatento ao que fazia, não se apercebeu da presença da veia safena do assistente e desferiu um corte na mesma, rompendo-a.
h) Ao actuar da forma acima descrita, o arguido colocou em risco a vida do assistente B…, que face à intensidade e local da hemorragia causada pelo corte da veia femoral do membro inferior esquerdo, ficou exposto, designadamente, a grande perdas hemáticas, a embolias, e a outra complicações no seu estado clínico, provocados pela actuação descrita em 12, adequadas a provocar-lhe a morte.
i) O assistente sofreu perdas hemáticas de aproximadamente 1000 ml..
j) Mercê da intervenção a que foi sujeito o assistente está desaconselhado de praticar desporto (futebol, atletismo, natação).
l) O arguido, aquando do acto cirúrgico que efectuou ao membro inferior esquerdo do assistente, conforme acima descrito, não actuou com a diligência devida e exigível, acautelando-se de que não atingiria a veia safena profunda com instrumento cortante, antes actuou sem observar as regras de cuidado que lhe eram impostas e que o dever geral de prudência aconselha, adoptando um estado de concentração considerado imprudente, sem evidenciar atenção às concretas condições em que desenvolvia o acto cirúrgico em questão, pois podia e devia ter criado as condições necessárias à sua concentração na exacta localização da veia safena (com diâmetro médico aproximado ao diâmetro de um dedo anelar), isolando-a, caso se mostrasse necessário, sendo certo que, fazendo-o evitaria a avulsão da veia femoral do membro inferior esquerdo do assistente e a consequente e inevitável hemorragia acima descrita, assim como a subsequente e necessária intervenção cirúrgica a que se submeteu o assistente no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia.
m) Ao actuar conforme acima descrito, o arguido previu a possibilidade de não deixar de atingir e veia femoral, e desse modo, de não evitar o mencionado corte da mesma, porém, convenceu-se de que tal não iria suceder.
n) O arguido sabia que a realização de ecodoppler ao assistente antes da realização da cirurgia que decidiu efectuar aos membros inferiores do mesmo é um exame complementar de diagnóstico necessário segundo as leges artis em vigor para o caso concreto do assistente.
o) Por outro lado, o arguido ao não se assegurar de que não atingiria a veia femoral profunda do membro inferior esquerdo do assistente, que de acordo com as leges artis reconhecidas, no caso concreto, se deveria isolar, veio a atingir a mesma com um corte, provocando no assistente todas as lesões e complicações acima descritas, assim agindo livre e conscientemente e bem sabendo que toda a sua conduta é punível como crime.
p) O específico risco de, no âmbito de cirurgias às varizes, ocorrer lesão de vasos, foi comunicado ao assistente, antes deste assinar o documento mencionado em viii) da factualidade assente.
Quaisquer outros que se encontrem em contradição com os factos dados como provados e não provados.”

E fundamentou a decisão pela forma seguinte:

A convicção do Tribunal resultou do conjunto de prova produzida em audiência de julgamento, analisada de um forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum.
Nomeadamente, o Tribunal teve em conta as declarações do próprio arguido que descreveu a forma como conheceu o assistente e o examinou, bem como a forma como decorreu todo o procedimento cirúrgico no Hospital de S João da Madeira até o doente ser transferido para o Centro Hospital VN Gaia/Espinho, assim confirmando toda a matéria de facto dada como provada.
As suas declarações foram confirmadas pela testemunha O…, enfermeira instrumentista que descreveu de forma clara, coerente e segura todo o procedimento seguido pelo arguido, de que se apercebeu por estar atenta aos gestos e actos do arguido, competindo-lhe entregar e receber das mãos deste os instrumentos e materiais necessários à intervenção, afirmando que quando o arguido virou o coto da safena aconteceu qualquer coisa que desencadeou a hemorragia, sendo que, nessa ocasião, o arguido não tinha qualquer instrumento cortante na mão, nem existia qualquer instrumento no campo cirúrgico.
M…, segundo cirurgião na intervenção cirúrgica em causa, relatou a forma como decorreu a cirurgia até ao momento do acidente. Nessa altura, estava esta testemunha a executar a intervenção já na perna esquerda do doente, junto ao tornozelo – estando assim ao lado do arguido (que se posicionava junto à virilha do assistente) – que afirmou peremptoriamente que o arguido fez a dissecção com a mão (só tendo usado a tesoura para seccionar a safena). Referiu ainda a forma como se apercebeu da ocorrência da hemorragia (por o arguido o ter chamado), não tendo visto o que a despoletou, embora tenha admitido como muito provável que tenha ocorrido pela tracção exercida pelo arguido ao manipular a safena. Descreveu ainda a forma como o doente foi transferido para o Centro Hospital VN Gaia/Espinho e como esta própria testemunha depois se deslocou a este hospital no seu veiculo para se inteirar do estado de saúde do assistente, de quem foi sabendo notícias através do arguido (que se ia mantendo ao corrente da evolução do assistente contactando o Centro Hospitalar VN Gaia/Espinho).
Também as testemunhas P… (enfermeira auxiliar de anestesia, que acompanhou o assistente até ao Centro Hospitalar VN Gaia/Espinho), Q… (enfermeira circulante), N… (médico anestesista que participou na cirurgia e acompanhou o assistente na transferência para o Centro Hospitalar VN Gaia/Espinho) e L… (cirurgião que colheu o consentimento do assistente para a intervenção cirúrgica e participou nos cuidados prestados ao doente a partir da altura em que foi necessário que a testemunha M… se ausentasse do bloco operatório para proceder aos contactos necessários à transferência do assistente para o Centro Hospitalar VN Gaia/Espinho, acompanhando o doente no transporte até esse Centro), relataram os procedimentos médicos e cirúrgicos de que se aperceberam, as manobras realizadas após a verificação da hemorragia e as providências adoptadas, bem como as circunstancias em que foi efectuado o transporte do doente.
D…, F… e E…, cirurgiões vasculares no Centro Hospitalar VN Gaia/Espinho que receberam o assistente e o operaram, relataram ao Tribunal a forma como esse Centro Hospitalar foi contactado pelos colegas de S. João da Madeira, as providências que adoptaram, a forma como o assistente vinha transportado e como o receberam, os actos médicos que praticaram, sendo que E… acompanhou a evolução do assistente no internamento que se seguiu à cirurgia naquele Centro Hospitalar e é o seu médico assistente até ao dia de hoje, relatando assim a evolução clínica do assistente até à data.
Estes cirurgiões vasculares foram unânimes e peremptórios ao afirmar que, quando o assistente deu entrada no Centro Hospitalar VN Gaia/Espinho era impossível perceber de forma directa e sem dúvidas como sido causada a lesão da veia femoral (afirmando ainda que à data a sua prioridade era assistir o doente da melhor forma possível, e não apurar a causa da lesão, o que é compatível com regras de experiência comum).
Da mesma forma declararam que, à data, faltava um segmento da veia femoral do assistente, não sabendo agora precisar se havia total ausência de um segmento ou um dano num dado segmento da femoral (sendo que aquando da tentativa de contenção da hemorragia poderia ter ocorrido um agravamento da lesão da veia femoral, pois que as veias quando manipuladas tendem a retrair-se e qualquer tentativa de laqueação – após o sinistro – poderia agravar o dano já existente) que determinou a necessidade de colocarem um enxerto (sendo essa a solução adequada, ainda que houvesse apenas lesão da feia femoral – e não corte – para evitar complicações futuras para o doente - trombose).
D… – subscritor dos documentos de fls. 462 e 742 - admitiu ter falado com os familiares do doente logo após a cirurgia, E… – subscritor dos documentos de fls. 741, 762 e 827 - nem sequer se recordava de ter falado com os familiares do assistente, ao passo que F… se recordava apenas de ter falado com a, então, namorada do assistente (hoje sua esposa, a testemunha G…), contudo todos negaram veementemente terem afirmado perante os familiares ou a namorada do assistente que no Hospital de S João da Madeira tinha sido praticado um acto médico negligente, ou que este último Hospital não tivesse meios para realizar tal tipo de cirurgia, o que mantiveram ainda quando confrontados com as concretas expressões utilizadas pelas testemunhas G…, H… (mãe do assistente) e I… (pai do assistente), sendo que estes últimos haviam afirmado precisamente o oposto.
Neste particular consigna-se que a percepção dos familiares do assistente poderá ter sido condicionada por razões emotivas (considerando o estado de saúde do assistente à data) e até dificuldades de interpretação da linguagem médica – que sabemos ser muito técnica – podendo ter-se dado o caso, por exemplo, dos cirurgiões vasculares terem afirmado que ocorreu uma lesão da veia femoral na cirurgia realizada em S João da Madeira, e os familiares do assistente terem percebido que tal ocorreu por erro médico. Para além do mais, é de salientar que o pai do assistente tem audição bastante diminuída (o que foi notório durante a sua inquirição), pelo que poderá ter tentado perceber o que lhe foi dito pelos médicos até através de outros familiares do assistente presentes à data.
Por último, diremos que contraria as regras da experiência comum que cirurgiões vasculares de outro Centro Hospitalar dissessem, sem mais, a familiares de um doente que este tinha sido vítima de erro médico, logo à saída da cirurgia que tinham acabado de realizar. Por tudo isto, não nos mereceram credibilidade, nesse particular as declarações das apontadas testemunhas G…, H… e I….
Aliás, a percepção da testemunha G… terá igualmente sido condicionada pelas declarações da testemunha K… – Director de Serviço de Cirurgia Geral, à data, que falou com o assistente e a testemunha G… – e que admitiu ter referido àqueles que terá ocorrido um erro técnico. Esclareceu ao Tribunal que com isso não quis dizer que houve negligência médica, mas antes uma lesão decorrente da intervenção cirúrgica e descrita na literatura médica como podendo ser uma lesão iatrogénica naquele tipo de cirurgia.
J…, confirmou ter consultado o assistente em consulta externa e ter feito a proposta de cirurgia.
T…, cirurgião vascular colega de curso do arguido que conhece desde o ano de 1973, para além de o descrever ao Tribunal, também descreveu o procedimento usual na cirurgia de varizes, as lesões descritas na literatura médica, assim confirmando o parecer escrito que elaborou, constante de fls. 581 e ss.
O Prof. Doutor U… confirmou o parecer e esclarecimentos que prestou por escrito nos autos a fls. 358 e ss, 394 e ss, 408 e ss, 603 e ss, 650 e ss, confirmando que a lesão de que o assistente foi vítima poderá ter-se ficado a dever a variantes anatómicas congénitas, sendo uma lesão que pode ocorrer em qualquer cirurgia às varizes, estando descrita na literatura médica, sendo o método descrito pelo arguido, segundo cirurgião e enfermeira instrumentista, como aquele que o arguido estava a seguir na cirurgia às varizes em apreciação, um método correcto e dos mais comuns. Precisou igualmente que, infelizmente, em alguns dos casos em que se verifica esta lesão os doentes podem ficar com membros inferiores amputados ou até falecer.
No mesmo sentido, veja-se o Parecer do Conselho Médico-Legal do IML de fls. 653 e ss, relator Dr Z…, que esclarece que se encontra descrita na literatura médica a lesão de estruturas venosas no decurso de cirurgias de varizes, como lesão iatrogénica, embora a frequência dessa lesão seja residual. Salienta, igualmente, que a laceração da veia femoral pode ocorrer pela sua manipulação, no decurso da dissecção da junção safeno-femoral e colaterias, ou das laqueações desta e da crossa da safena interna. Por fim, conclui que no caso não se afigurava existir anomalia arterio-venosa do membro operado, nem alteração congénita do tecido conjuntivo.
Do relatório médico-legal do IML de fls 328 e ss e 390 e ss resulta que as lesões nele referidas terão resultado de traumatismo de natureza cortante o que é compatível com a informação, assim, numa primeira análise, poder-se-ia pensar que o senhor perito médico-legal teria concluído que a lesão da veia femoral teria sido provocada por instrumento cortante.
Contudo, todos os médicos inquiridos foram peremptórios ao afirmar que, após a realização do “bypass” da veia femoral, não era possível determinar o instrumento que provocou tal lesão, desde logo na medida em que deixou de existir a secção da veia femoral lesionada, pelo que não mais a mesma poderia ser observada. O que o Senhor Perito Médico-legal subscritor do mencionado parecer confirmou, explicitando que, quando se referia a lesões causadas por traumatismo de natureza cortante, pretendia referir-se unicamente às lesões provocadas na pele pelo bisturi usado pelo arguido aquando da realização da cirurgia e apenas a estas, não sabendo como terá sido produzida a lesão da veia femoral. Desse relatório resultam, igualmente as consequências que para o assistente advieram do sinistro em análise.
Ainda quanto ao estado e evolução clínica do assistente, teve-se em conta os elementos clínicos juntos aos autos, designadamente:
-Nota de Alta do CHVNG/Espinho, de fls. 5;
- Processo clínico do assistente junto desse CHVNG/Espinho, de fls. 16 a 73;
- Processo clínico do assistente junto do Hospital de S João da Madeira, de fls. 91 a 115 e 206 a 241, 281 e 282, 332, 421 e ss, 431 e ss, 464 e ss, 580 e ss, 615 e ss, 632 e ss, 642 e ss, 673 e ss;
- Processo clínico do assistente junto do Centro de Saúde de Cucujães, de fls. 450 e ss;
- Reclamação escrita subscrita pela testemunha G…, oferecida perante o Hospital de
- Guia do serviço de transporte do assistente pelos bombeiros desta cidade de fls. 248;
- Elementos clínicos acerca das cirurgias a varizes realizadas no Hospital de S João da Madeira, de fls. 367 e ss;
- Relatório da Inspecção-Geral de Saúde, relativamente à situação em apreciação nestes autos, de fls773 e ss e 804 e ss;
- Conclusões dos exames clínicos elaborados ao gânglio extirpado, de fls. 626 e ss, 704 e ss, 728 e ss e 747 e ss (sendo este último um exame de ADN realizado ao material em apreço pelo IML);
Sublinhe-se que todos os médicos cirurgiões e cirurgiões vasculares referiram espontaneamente e de forma categórica que a lesão de que o assistente foi vítima está descrita na literatura médica, é uma lesão iatrogénica da intervenção cirúrgica às varizes conhecida, mas rara. Esclareceram igualmente que compete aos cirurgiões vasculares a reparação subsequente a esta lesão.
Todos admitiram, em abstracto, que a mesma poderia ter sido causada por actuação médica negligente ou poderia ter ocorrido ainda que fossem tomadas todas as cautelas, e independentemente de ser realizada por cirurgião geral ou vascular, o que se poderá ficar a dever a variações anatómicas na região inguinal (não necessariamente síndromes raros) e à fragilidade dos próprios vasos dos pacientes – que poderá acarretar especiais fragilidades dos vasos junto à crossa da safena com a veia femoral -, sendo certo que à partida todas as veias são estruturas muito delicadas e uma variz é uma vaso com uma dilatação (vaso que perdeu a sua competência valvular), e o ponto crítico de todas as cirurgias às varizes é a crossa da safena.
Esclareceram ainda todos os médicos inquiridos que o facto de a veia safena do assistente se manter ainda hoje preservada não significa que o arguido tenha seccionado a veia femoral por confusão com a veia safena: apenas se pode concluir que a veia safena do assistente não foi extirpada (finalidade última da cirurgia às varizes inicial a que se submeteu) e continua no seu corpo, independentemente de estar ou não funcional (por ter sido ou não seccionada e laqueada durante a operação – como sustenta o arguido, a enfermeira instrumentista que o assistiu e o segundo cirurgião que teve intervenção no procedimento -, sendo que, tendo ocorrido a hemorragia da femoral que não era possível controlar no Hospital de S João da Madeira, seria incorrecto prosseguir o procedimento com a extirpação da veia safena).
Por outro lado, todos os médicos inquiridos referiram que o procedimento cirúrgico descrito pelo arguido, enfermeira instrumentista e segundo cirurgião, era tecnicamente correcto (embora existam várias estilos que poderão ser adoptados pelos cirurgiões, importando pequenas nuances nos procedimentos a adoptar).
Houve igualmente unanimidade dos médicos interrogados quanto à adequação do procedimento de extracção do gânglio pelo arguido, todos afirmando que tal extracção em nada contendeu com o decurso da cirurgia.
Todos os médicos explicaram ainda que o ecodoppler não era um exame necessário àquela cirurgia, pois que não permite detectar alterações do tecido conjuntivo (fragilidades das veias/estruturas), apenas permitindo detectar alterações morfológicas ou funcionais, e embora seja sempre levado a cabo por todos os médicos cirurgiões-vasculares que prestaram esclarecimentos nos autos antes de levarem a cabo cirurgias a varizes, o certo é que os mesmos esclareceram que apenas o fazem por uma questão de eficácia cirúrgica, o que resulta igualmente de todas os relatórios periciais juntos aos autos e a que já fizemos alusão. Sublinhe-se que no Parecer do Conselho Médico-Legal do IML de fls. 653 e ss, se esclarece que não é necessário fazer, por rotina, este tipo de exame, em caso de cirurgias às varizes.
Note-se que todos os médicos cirurgiões que, à data da cirurgia em discussão nestes autos exerciam funções no Hospital de S João da Madeira, foram unânimes ao afirmar que, naquela data, não se faziam ecodoppleres sistematicamente a todos os doentes com indicação para cirurgia às varizes.
Os médicos interrogados foram igualmente unânimes ao afirmar que após a cirurgia o assistente correu risco de tromboses distais e de assim sofrer embolia pulmunar, sendo que se a correcção não tivesse corrido bem poderia ter sofrido igualmente risco de amputação da perna (risco de amputação que não correu em concreto).
Referiram, do mesmo modo, as consequências do evento para o assistente e as limitações terá na sua vida, sendo certo que nenhum dos médicos inquiridos admitiu a hipótese de o assistente vir a sofrer limitação na prática de desporto, pelo menos superior aquela que já tinha anteriormente, sendo portador de varizes.
Ora, tudo isto foi secundado pelas referidas perícias médicas juntas aos autos, como já se deixou expresso.
V… (cirurgião-geral que trabalha com o arguido há cerca de 2 anos e o conhece há cerca de 10 ano) e W… (Director do Serviço de Cirurgia-Geral onde o arguido trabalha), descreveram igualmente a imagem que têm do arguido, do ponto de vista profissional e pessoal.
As testemunhas X… e Y… (hoje sogros do assistente e que acompanharam a filha, a testemunha G… ao Centro Hospitalar de VN Gaia), apenas referiram as sequelas decorrentes da cirurgia para o assistente, confirmando as declarações do próprio assistente, da mãe e do pai deste e da testemunha G….
Já o assistente de pouco se recordava à data da cirurgia, por ter sido anestesiado, apenas tendo afirmado nunca ter falado com o arguido – o que foi contrariado por este último. Note-se que não foi possível atribuir maior credibilidade às declarações do assistente do que às do arguido, neste particular, pelo que se teve tal matéria por não provada.
Quanto às condições económicas e de vida do arguido, teve-se em conta as suas próprias declarações, atenta a sinceridade e credibilidade demonstradas.
Por último, teve-se em conta o C.R.C. junto aos autos, relativamente aos antecedentes criminais do arguido.
Matéria de Facto Não Provada
Relativamente aos factos dados como não provados a convicção do Tribunal resultou da total ausência de prova minimamente credível e susceptível de nos convencer acerca dessa realidade e da credibilidade atribuída à prova produzida nos termos sobreditos.
Designadamente, quanto ao consentimento para realização de procedimento cirúrgico, prestado pelo assistente e esclarecimentos que lhe foram dados, teve-se em conta as declarações do próprio assistente e de L…, médico cirurgião que lhe deu o documento de consentimento a assinar e que afirmou não se recordar de lhe ter dado conta do especifico risco de lesão de vasos na cirurgia às varizes, especificando recordar-se do assistente como pessoa que lhe colocou várias questões, razão pela qual não poderia afirmar com segurança não o ter esclarecido desse especifico risco (muito embora, por sistema, não faça alusão a esse risco aquando da explicação que dá aos pacientes antes de cirurgias a varizes – procedimento comum a todos os demais médicos inquiridos acerca desse aspecto).
Por assim ser, teve-se por não provado o vertido em p).

Cumpre apreciar:
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sintetizadas as que este tribunal tem de apreciar, sem prejuízo de outras, de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º número 2 do Código de Processo Penal.

Começando pelo conhecimento do recurso intercalar, em cujo o recorrente continua a manter interesse, vem o mesmo interposto da decisão proferida pelo tribunal que indeferiu a acareação requerida pelo assistente, o qual pretendia que esta se realizasse entre as testemunhas G…, H… e I…, familiares do assistente (respetivemnte, mulher e pais) e as testemunhas D…, E… e F…, estes médicos, pois os primeiros referem que os segundos, médicos, lhes teriam reconhecido a existência de um erro médico o que posteriormente terão negado.
A este propósito preceitua o artigo 146º do Código de Processo Penal que: “É admissível acareação entre co-arguidos, entre o arguido e o assistente, entre testemunhas, ou entre estas, o arguido e o assistente sempre que houver contradição entre as suas declarações e a diligência se afigurar útil à descoberta da verdade”.
Como decorre do teor deste artigo, são essencialmente dois os requisitos de que depende a realização desta diligência de prova; verificar-se contradição entre depoimentos e afigurar-se (essa diligência) útil à descoberta da verdade. Como bem se percebe não serão quaisquer contradições que fundamentarão a necessidade de acareação; importa que as discrepâncias detetadas sejam relativas as questões essenciais cuja elucidação se revele pertinente ao que se está a decidir. No caso em apreço do que se trata é que umas testemunhas afirmam que outras (ainda que médicos) lhes afirmaram que o “sucedido” se ficou a dever a erro médico e aquelas outras (os médicos nomeados) negam tê-lo afirmado.
Mesmo que da acareação pudesse firmar-se a convicção de que as testemunhas (médicos) o tinham dito, isso, por si só, não conduz à conclusão de que tal erro tivesse ocorrido; se se formasse a convicção de que as testemunhas não o tinham dito, dali não se poderia concluir que tal erro não tivesse ocorrido. Ou seja, para a questão que se discute esse ponto concreto não se revela essencial para a descoberta da verdade; foi assim que o considerou o tribunal e entendemos que, quanto a este aspeto, o decidido não merece qualquer censura.
*****
Assim sendo importa agora entrar no conhecimento das diversas questões suscitadas no recurso da decisão final.
Começa o recorrente por dizer que a decisão proferida padece de uma contradição insanável entre os factos provados e não provados e uma manifesta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Vejamos então:
No caso em apreço, vem o arguido pronunciado como autor de um crime de ofensas à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148º números 1 e 3 por referência ao artigo 144º alínea b) e d), e um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos mediante violação da leges artis, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 150º números 1 e 2, todos do Código Penal.
O arguido, médico de profissão, com a especialidade de cirurgião geral, efetuou, uma intervenção cirúrgica às varizes, na pessoa do assistente, durante a qual ocorreu a laceração da veia femoral, com consequências gravosas a que, mais adiante, faremos expressa referência.
O que se cuida de apurar aqui é se houve “um erro médico” ou um erro do médico, para que tal sucedesse ou, se não, se o corrido foi apenas um risco próprio daquele tipo de cirurgia e se a matéria dada como provada – ou parte dela – não está em contradição com a dada como não provada e se é ainda congruente com a fundamentação que sustenta a decisão tomada pelo tribunal recorrido de absolver o arguido dos crimes pelos quais vinha acusado.
No que respeita à formação da convicção sobre a matéria assente, como se sabe, assume capital importância a regra geral contida no artigo 127º do Código de Processo Penal, de acordo com a qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Este princípio, chamado da livre apreciação da prova, consagrado no aludido normativo, é válido para todas as fases processuais, mas e na fase de julgamento que assume especial relevância, encontrando afloramento, nomeadamente, no artigo 355º do citado diploma legal, porquanto é aí que a prova se produz forma imediata e oral e é captada diretamente, permitindo ao julgador habilitar-se com “razões” de convicção que, às vezes não se enxergam de modo evidente, da mera perceção linear do que é dito[1]. Daqui decorre que, em regra e ressalvados os casos excecionais que a lei prevê, a prova não tem um valor legal, pré-determinado; ao invés, “o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo (pelas alegações, respostas e meios de prova utilizados, etc.)”[2].
Sendo assim, importa no entanto afirmar de modo claro que “livre convicção” não significa apreciação meramente subjetiva, arbitrária, da prova, mas apenas que essa apreciação não é feita de forma pré estabelecida ou condicionada. No entanto, porque o julgador visa alcançar a “verdade material”, deve conduzir-se, na apreciação que fará da prova que perante si se produzir, de forma racional e lógica, estribado sempre nos ensinamentos resultantes da experiência comum, que terá de demonstrar de modo claro, plasmando, na fundamentação da matéria de facto, o percurso inteletual percorrido desde a produção da prova até à decisão.
Isto porque a livre apreciação da prova “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”[3]. Sendo “a liberdade de apreciação da prova (…), no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir chamada «verdade material»”[4] que tem de ser compatibilizado com as garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Daí a lei impor, ao julgador, um especial dever de fundamentação (cfr. nº 2 do art. 374º do C.P.P.), exigindo-lhe, como acima se disse, que evidencie (demonstre) o percurso trilhado na formação da sua convicção, concretamente indicando os meios de prova em que se estribou, mas, também, explicando as razões pelas quais credibilizou uns em detrimento de outros que desconsiderou. Só assim justificada, a decisão se impõe, desde logo, aos diferentes intervenientes processuais, com especial destaque para o próprio arguido, permitindo-lhes que a compreendam e que compreendendo-a melhor a aceitem, mas igualmente à comunidade no seu todo que, querendo, poderá inteirar-se das razões pelas quais a decisão proferida foi a que foi e não qualquer outra. É também pela fundamentação da decisão que se possibilita ao tribunal de recurso controlar a correção do que foi decidido.
No caso concreto esta parte da decisão espelha à saciedade a “confusão” que grassou ao longo de todo o julgamento e que na audição que fizemos da gravação da prova se revelou à saciedade – ainda que a referida audição se tenha feito com bastante esforço porquanto, parte dos depoimentos, de algumas testemunhas, encontravam-se deficientemente registados - subjacente a tudo estava a ideia de que apenas teria havido um comportamento negligente na atuação do arguido ao efetuar a intervenção cirúrgica se tivesse seccionado – cortado -, com tesoura, bisturi ou qualquer outro instrumento cortante - a veia femoral. Não se provando o emprego de nenhum desses instrumentos tudo não teria sido mais que um “acidente” a que o arguido seria completamente alheio.
Seja-nos igualmente permitido um pequeno aparte: o juiz é o perito dos peritos; logo não deve escudar-se na dificuldade de entendimento de termos técnicos ou na compreensão do que se encontra vertido em documentos que se encontrem no processo, por versarem sobre uma temática específica – no caso médica –. Impõe-se-lhe, ao invés, pedir todos os esclarecimentos, se necessário assessorar-se de peritos ou especialistas, a fim de se habilitar a inquirir com propriedade sobre o tema em discussão, para obviar que se diga uma coisa e o seu contrário sem daí retirar as atinentes conclusões.
Atenhamo-nos, assim, ao que consta da fundamentação, logo no terceiro parágrafo:
As suas declarações (do arguido) foram confirmadas pela testemunha O…, enfermeira instrumentista que descreveu de forma clara, coerente e segura todo o procedimento seguido pelo arguido, de que se apercebeu por estar atenta aos gestos e actos do arguido, competindo-lhe entregar e receber das mãos deste os instrumentos e materiais necessários à intervenção, afirmando que quando o arguido virou o coto da safena aconteceu qualquer coisa que desencadeou a hemorragia, sendo que, nessa ocasião, o arguido não tinha qualquer instrumento cortante na mão, nem existia qualquer instrumento no campo cirúrgico.
Aconteceu qualquer coisa.
Não estando em causa a necessidade da cirurgia para a cura da patologia de que o assistente era portador, ou seja, não sendo questionada a bondade do procedimento adotado pelo arguido, recai sobre ele, a partir do momento em que o empreende, a obrigação de o executar com prudência, - fazendo o que tem de ser feito, do modo como deve ser feito-, com perícia, - de modo capaz, bem feito, bem executado - e sem negligência, - de forma cuidada, atenta, prevendo as consequências das ações que pratica e omitindo ações cujas consequências possam ser nefastas.
Mas terá sido isso que sucedeu? Aconteceu qualquer coisa diz a fundamentação da decisão, mas o quê? Desprezou o tribunal a quo de encontrar resposta para este “quê” preocupando-se apenas em apurar “com quê”; com que instrumento foi feita a laceração da veia femoral – facto assente –. Ora, para o que aqui, se aprecia esta questão (a resposta ao “com quê”) é despicienda.
Ainda, na fundamentação, aludindo ao depoimento prestado pela testemunha M…, consta o seguinte: “(…) afirmou peremptoriamente que o arguido fez a dissecção com a mão (só tendo usado a tesoura para seccionar a safena). Referiu ainda a forma como se apercebeu da ocorrência da hemorragia (por o arguido o ter chamado), não tendo visto o que a despoletou, embora tenha admitido como muito provável que tenha ocorrido pela tracção exercida pelo arguido ao manipular a safena”
Atentemos ainda nas seguintes passagens da fundamentação:
“(…) O Prof. Doutor U… confirmou o parecer e esclarecimentos que prestou por escrito nos autos a fls. 358 e ss, 394 e ss, 408 e ss, 603 e ss, 650 e ss, confirmando que a lesão de que o assistente foi vítima poderá ter-se ficado a dever a variantes anatómicas congénitas, sendo uma lesão que pode ocorrer em qualquer cirurgia às varizes, estando descrita na literatura médica, sendo o método descrito pelo arguido, segundo cirurgião e enfermeira instrumentista, como aquele que o arguido estava a seguir na cirurgia às varizes em apreciação, um método correcto e dos mais comuns. Precisou igualmente que, infelizmente, em alguns dos casos em que se verifica esta lesão os doentes podem ficar com membros inferiores amputados ou até falecer.
No mesmo sentido, veja-se o Parecer do Conselho Médico-Legal do IML de fls. 653 e ss, relator Dr Z…, que esclarece que se encontra descrita na literatura médica a lesão de estruturas venosas no decurso de cirurgias de varizes, como lesão iatrogénica, embora a frequência dessa lesão seja residual. Salienta, igualmente, que a laceração da veia femoral pode ocorrer pela sua manipulação, no decurso da dissecção da junção safeno-femoral e colaterias, ou das laqueações desta e da crossa da safena interna. Por fim, conclui que no caso não se afigurava existir anomalia arterio-venosa do membro operado, nem alteração congénita do tecido conjuntivo.
Atentemos na circunstância de, nestes dois parágrafos seguidos, se afirmarem coisas diametralmente opostas; ou a lesão se deu por razões congénitas (congénito: característico do individuo desde o ou antes do nascimento; inato) ou foi uma lesão iatrogénica (iatrogenia: geração de atos ou pensamentos a partir da prática médica)[5]. Importava então perante pareceres diversos – se de facto se viesse a constatar que eram díspares, o que não foi o caso como de seguida explicaremos – que o tribunal formasse a sua convicção no sentido de concluir, fundada e fundamentadamente, o que, no caso concreto, teria provocado aquela lesão.
E dizemos que não houve disparidade nos depoimentos pois, ouvido atentamente o depoimento do Dr. U… o que este afirmou é que razões congénitas podem provocar lesões do mesmo tipo; não afirmou que naquele caso aquela lesão adviesse de razões anatómicas congénitas.
Não tendo resultado provado – não constando dos factos provados – que a lesão ocorreu por possuir o assistente qualquer alteração anatómica congénita; resultando, ao invés provado, que: “Quando o arguido operava a dissecção e isolamento de vasos, designadamente manuseando a veia safena, sem estar munido de nenhum instrumento cirúrgico metálico e cortante, deu-se uma lesão na veia femoral do assistente, por laceração/desgarre, que ocasionou hemorragia, sendo impossível a laceração espontânea da veio femoral durante uma cirurgia (como consta de folhas 408; resposta dada pelo Drº U…) que outra conclusão se pode retirar senão que aquela a lesão ocorreu por ação do arguido?
Aliás é o que consta dos documentos hospitalares que foram elaborados no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, (vide fls 54 dos autos) local para onde o assistente foi transferido para ser intervencionado, agora em cirurgia vascular, em virtude de «lesão iatrogenica de veia femoral comum no processo operatório de cirurgia às varizes.
Provado assim que esta lesão ocorreu no decurso do processo operatório, sabendo-se que este comporta sempre riscos, importa então aquilatar agora se esta lesão pode ou não ser considerada um risco próprio deste tipo de intervenção.
A lesão sofrida pelo assistente não é uma consequência “normal” (no sentido de frequente, habitual, previsível, expectável) neste tipo de cirurgias, as quais, como referiu uma das testemunhas ouvidas, médico cirurgião, nos dias de hoje, são realizadas em regime ambulatório; por regra, o doente é operado e regressa a casa pelos seus próprios meios no mesmo dia, sendo igualmente, como referiram outras testemunhas, igualmente cirurgiões, um procedimento cirúrgico de técnica muito simples.
Aliás as testemunhas que referiram terem já tido conhecimento ou estado em contacto com situações idênticas falam de uma ou duas ocorrências similares, não mais, das quais tiveram conhecimento ao longo de vários anos de prática cirúrgica.
E bem se entende que assim seja, já que, por regra, os médicos, todos eles, mas os cirurgiões em especial, cientes da especificidade da função que desempenham e da responsabilidade que comporta terem nas suas próprias mãos (em sentido literal) a vida e a saúde de uma outra pessoa, atuam, com cuidado, perícia, atenção, para que nada lhes falhe, tudo fazendo para evitar colocar em perigo a vida do doente.
Ao longo da audiência de julgamento – como se constatou - muitas das testemunhas falaram ao sucedido como “acidente” outros enfatizaram a consabida existência de riscos numa qualquer cirurgia, por muito simples que ela à partida se configure.
Mas mais importante que nomear o que sucedeu importa saber porque aconteceu.
Como resultou provado foi efetuado ao assistente, já no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia para onde foi transportado, um enxerto na veia femoral com o cumprimento de cerca de 4 cm (folhas 22 do processo) logo, esta veia estava afetada (faltava ou estava lesada) nessa parte; quer tenha sido por corte, por arrancamento ou laceração, seja qual for o verbo que se queira empregar para traduzir o facto - que importa - é que a veia femoral foi atingida por ação do médico que estava a operar. E foi-o num local de “respeito” – assim se referiu o Drº U… à crossa da safena, ou seja como o disseram as testemunhas, médicos cirurgiões e cirurgiões vasculares, naquele preciso lugar em que a veia safena entra na veia femoral, em que se passa de um nível de circulação venosa superficial para um nível de circulação profunda.
E se ocorreu o atingimento da veia femoral quando não o devia ter sido, sabendo-se que, em situações similares, por regra, ele não ocorre, é porque esta resultou da ação negligente do arguido, já que era suposto que outra tivesse sido a sua atuação.
Uma intervenção cirúrgica como aquela que aqui estamos a tratar é um procedimento sempre intrusivo no corpo da pessoa do intervencionado: existe sempre, na sua execução, uma lesão física. Que não será ilícita, di-lo o nº 1 do artigo 150º do Código Penal «1. As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.», desde que levada a cabo por médico ou pessoa legalmente habilitada, com vista a atingir os resultados elencados - ainda que os não alcance de facto – e desde que executados de acordo com a leges artis.
No entanto, o número 2 deste mesmo preceito, estatui:
«2. As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal.»
Importa que a intervenção tenha sido realizada de acordo com a leges artis, pois tendo havido a sua preterição há desde logo um indício de violação do dever objetivo de cuidado.
A decisão recorrida considerou não provados os factos seguintes:
O arguido, ao ter aceite realizar a cirurgia da laqueação de safena e comunicantes no membro inferior esquerdo, prescindindo da realização de estudo hemodinâmico ao assistente, para apuramento do índice de pressão doppler e edocoppler venoso dos respectivos membros inferiores, este último, por forma a permitir visualizar toda a anatomia venosa e arterial do doente, violou as legis artis, na medida em que tal meio complementar seria essencial à decisão quanto á realização de cura cirúrgica de varizes ao assistente.
Contudo, na fundamentação que aduz à matéria provada e não provada refere especificamente que:
Todos os médicos explicaram ainda que o ecodoppler não era um exame necessário àquela cirurgia, pois que não permite detectar alterações do tecido conjuntivo (fragilidades das veias/estruturas), apenas permitindo detectar alterações morfológicas ou funcionais, e embora seja sempre levado a cabo por todos os médicos cirurgiões-vasculares que prestaram esclarecimentos nos autos antes de levarem a cabo cirurgias a varizes, o certo é que os mesmos esclareceram que apenas o fazem por uma questão de eficácia cirúrgica, o que resulta igualmente de todas os relatórios periciais juntos aos autos e a que já fizemos alusão. Sublinhe-se que no Parecer do Conselho Médico-Legal do IML de fls. 653 e ss, se esclarece que não é necessário fazer, por rotina, este tipo de exame, em caso de cirurgias às varizes.
Portanto todos os médicos ouvidos disseram que fazem sempre aquele concreto exame por uma questão de eficácia cirúrgica. Ora é precisamente disso que se trata (va) – eficácia cirúrgica-.
Ademais quando na fundamentação se alude ao Parecer que se encontra junto a folhas 653 e se diz que nele se refere a desnecessidade de efetuar exames complementares apenas por rotina – sendo realmente isso que dali consta -, não vislumbrando que essa asserção se refira expressamente ao ecodöppler, mas a qualquer exame ao qual não se atribuísse um relevo especial para a cirurgia. Só assim se entende que no parágrafo seguinte se faça constar:
«Seguir-se-iam exames visando avaliar o estado geral do indivíduo e da sua capacidade de se submeter ao acto cirúrgico e anestésico – hemograma completo, estudo de coagulação, bioquímica sanguínea, ECG, avaliação da função respiratória. Estes exames terão de ter em conta o tipo de anestesia a utilizar, podendo variar de acordo com a opção tomada.
A realização do exame Ecodöppler venoso permitiria detectar alterações morfológicas ou funcionais mas não alterações do tecido conjuntivo potencialmente favorecedoras de fragilidade parietal»
Daqui se retira, parece-nos, salvo o devido respeito por opinião contrária, que o que é dito anteriormente – da desnecessidade de realização de exames por mera rotina – não excluiu os exames que se seguem…
Ora tudo respigado, a conclusão a retirar-se é a de que, atualmente, esse exame fornece ao cirurgião um muito melhor conhecimento da situação concreta sobre a qual vai ter de atuar possibilitando-lhe uma intervenção mais segura e mais isenta de riscos. Por isso é que todas as testemunhas, médicos cirurgiões, disseram que, embora não fosse essencial, no sentido de imprescindível para a realização da intervenção cirúrgica, todos o faziam, por aportar a referida maior eficácia cirúrgica.
«No exercício da medicina o médico tem de atender a um conjunto de regras recomendadas pela ciência, pela técnica e pelos cuidados gerais aplicáveis à classe profisional repetiva resultantes da experiência – regulamentada ou não – e indicadores do modo tecnicamente mais adequado e diligente para a prestação dos cuidados devidos no desenvolvimento da assistência médica»[6]
Sendo assim, será sempre temerário o médico avançar para a execução de uma cirurgia sem estar na posse de toda a informação que possa obter e que lhe seja útil para aumentar a eficácia cirúrgica.
Tanto mais quanto, como no caso vertente, sequer foi o arguido o medico que examinou e acompanhou previamente o assistente nas consultas previas à cirurgia. Como resultou provado o arguido “conheceu” o arguido no dia da cirurgia.
Tudo o que estamos dizendo não conduz nem induz a conclusão de que a falta do ecodöppler foi causadora da lesão ocorrida na veia femoral, até porque dos factos dados como assentes na decisão recorrida resulta que não o foi de facto; assim sendo será que se pode concluir, como o faz o tribunal recorrido, que o arguido atuou sem violação das leges artis?
Cremos que não, uma vez que resulta claro que a laceração da veia femoral só ocorreu porque o arguido atuou nela (ainda que de forma não concretamente apurada) e que o sucedido não é um ocorrência normal (mesmo no sentido de comum, expectável, previsível) neste tipo de cirurgias.
Uma vez que o assistente não tinha nenhuma alteração congénita que explique o sucedido, só podemos concluir que, por desatenção, por imperícia, ou por cansaço (importa não esquecer que está provado que o arguido estava a trabalhar desde as 8:00 horas da manhã e já tinha efetuado duas outras cirurgias estando inserido em equipa para recuperação de listas de espera), o arguido, ao abordar cirurgicamente a veia safena da perna esquerda do assistente, junto à crossa, agiu sem o cuidado devido vindo atingindo a veia femoral comum. Isto porque: «(…)No âmbito da prática médica, a avaliação do dever de cuidado devido e esperado deve ter em conta não só as regras deontológicas, mas também as guidelines e orientações do colégio de especialidade. Acresce um outro elemento delimitador do dever de cuidado – o princípio da precaução, enquanto meio complementar de averiguação da conformidade da conduta com o cuidado devido (…)»[7].
«Os médicos estão obrigados para com os seus doentes, quer pelos específicos deveres que resultam do contrato entre eles celebrado quer de um genérico dever de cuidado e tratamento que a própria deontologia profissional lhes impõem. Espera-se dos médicos, enquanto profissionais que dêem provas de um razoável e meridiano grau de perícia e competência.
Perícia que ao fim e ao cabo é aquela especial competência que não faz parte do arsenal do homem razoável (“ o bom pai de família”) mas antes é o resultado de uma aptidão desenvolvida por um específico treino e experiência. Ou seja: aqueles que empreendem uma certa actividade que exige especiais qualificações não deverão contentar-se em procede de modo diligente e empenhado, antes deverão referenciar a sua conduta ao padrão de proficiência que é legítimo esperar das pessoas que exercem uma tal profissão e que na verdade se lhes exige (…)
O médico deve actuar de acordo com o cuidado, a perícia e os conhecimentos compatíveis com os padrões que regem os médicos sensatos, razoáveis e competentes do seu tempo)»[8]
É certo que nos termos que se encontram descritos os factos constantes da pronúncia existe uma ligação entre a alegação da atuação do arguido em violação da leges artis com a falta de realização daquele exame; no entanto não estava o tribunal impedido de, fazendo a exegese do conceito, concluir que ele não se preenche com a falta desse exame mas com outra qualquer atuação do arguido no desenrolar da cirurgia.
Assim face ao que consta da matéria assente, concretamente no ponto xvii e congruentemente com ela deve alterar-se a matéria de facto não provada passando a constar como provado o seguinte:
l) O arguido, aquando do acto cirúrgico que efectuou ao membro inferior esquerdo do assistente, (conforme acima descrito), não actuou com a diligência devida e exigível, acautelando-se de que não atingiria a veia femoral profunda antes actuou sem observar as regras de cuidado que lhe eram impostas e que o dever geral de prudência aconselha, adoptando um estado de concentração considerado imprudente, sem evidenciar atenção às concretas condições em que desenvolvia o acto cirúrgico em questão,”
Da fundamentação da decisão recorrida consta que:
Sublinhe-se que todos os médicos cirurgiões e cirurgiões vasculares referiram espontaneamente e de forma categórica que a lesão de que o assistente foi vítima está descrita na literatura médica, é uma lesão iatrogénica da intervenção cirúrgica às varizes conhecida, mas rara. Esclareceram igualmente que compete aos cirurgiões vasculares a reparação subsequente a esta lesão.
Todos admitiram, em abstracto, que a mesma poderia ter sido causada por actuação médica negligente ou poderia ter ocorrido ainda que fossem tomadas todas as cautelas, e independentemente de ser realizada por cirurgião geral ou vascular, o que se poderá ficar a dever a variações anatómicas na região inguinal (não necessariamente síndromes raros) e à fragilidade dos próprios vasos dos pacientes – que poderá acarretar especiais fragilidades dos vasos junto à crossa da safena com a veia femoral -, sendo certo que à partida todas as veias são estruturas muito delicadas e uma variz é uma vaso com uma dilatação (vaso que perdeu a sua competência valvular), e o ponto crítico de todas as cirurgias às varizes é a crossa da safena.
Deste trecho resulta evidenciada a dificuldade sentida pelo tribunal recorrido, perante os depoimentos das várias testemunhas, médicas cirurgiãs, em arredar indecisões (imprecisões e contradições) que consabidamente estão presentes em depoimentos prestados por testemunhas, colegas de uma mesma profissão, quando depõem sobre o desempenho profissional de um dos seus pares, já que melhor que ninguém sabem os riscos que comporta o trabalho que levam a cabo, o stress que muitas das vezes lhe anda associado e não querem, por regra “prejudicar” com o seu depoimento um colega de profissão, cientes que todos estão sujeitos aos mesmos riscos.
Este facto evidenciou-se de forma gritante com o depoimento do Perito Médico subscritor “… Do relatório médico-legal do IML de fls 328 e ss e 390 e ss resulta que as lesões nele referidas terão resultado de traumatismo de natureza cortante o que é compatível com a informação, assim, numa primeira análise, poder-se-ia pensar que o senhor perito médico-legal teria concluído que a lesão da veia femoral teria sido provocada por instrumento cortante.
Contudo, todos os médicos inquiridos foram peremptórios ao afirmar que, após a realização do “bypass” da veia femoral, não era possível determinar o instrumento que provocou tal lesão, desde logo na medida em que deixou de existir a secção da veia femoral lesionada, pelo que não mais a mesma poderia ser observada. O que o Senhor Perito Médico-legal subscritor do mencionado parecer confirmou, explicitando que, quando se referia a lesões causadas por traumatismo de natureza cortante, pretendia referir-se unicamente às lesões provocadas na pele pelo bisturi usado pelo arguido aquando da realização da cirurgia e apenas a estas, não sabendo como terá sido produzida a lesão da veia femoral. Desse relatório resultam, igualmente as consequências que para o assistente advieram do sinistro em análise”
Ora a ser verdade o que afirma este perito então a redação dada ao relatório é deficiente já que nele se refere que tais lesões determinaram 601 dias para a consolidação médico legal; com afetação da capacidade para o trabalho geral de 7 dias e 90 dias de afetação para o trabalho profissional! Sabendo seguramente o senhor perito médico expressar-se, por escrito, com correção não poderia estar-se a referir apenas aos cortes na virilha feitos pelo bisturi, mas às lesões que tinham sido causa de incapacidade pelo período referido as quais em seu entendimento seriam compatíveis com a informação que lhe foi transmitida de que teriam sido provocadas por traumatismo de natureza cortante. Não estava a asseverar que tinham sido dessa forma provocadas mas apenas que não era de excluir que tivesse sido, mas nem isso manteve no depoimento prestado em julgamento!.
Mas insistimos, perdeu-se demasiado tempo na busca da resposta à pergunta “com quê” quando mais importante era a resposta às perguntas «como» e «porquê»
O tribunal não se deteve nestas contradições, tomando por boas explicações ou esclarecimentos que verteu na sua fundamentação sem explicar claramente a sua opção.
Por tudo o que se vem de dizer cremos que decorre, sem necessidade de maiores explanações, a conclusão de que a lesão sofrida pelo assistente decorreu de uma abordagem cirúrgica efetuada pelo arguido com violação leges artis.
Preceitua o artigo 150º do Código Penal que:
1. As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.
2. As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal.
A propósito deste preceito legal escreve Manuel da Costa Andrade: [9]
«O art. 150° deve ser lido numa relação de integração sistemática e de complementaridade normativa com os arts. 156° (Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários) e 157° (Dever de esclarecimento). Três preceitos que, no seu conjunto, dão corpo positivado ao regime jurídico-penal das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos. Trata-se, resumidamente, de um regime que se analisa em dois enunciados fundamentais: em primeiro lugar, a proclamação da atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na direcção dos crimes de Ofensas corporais e de Homicídio; em segundo lugar, a punição dos tratamentos arbitrários como um autónomo e específico crime contra a liberdade. Na síntese de MEZGER: "as intervenções e tratamentos que correspondem ao exercício consciente da actividade médica não constituem quaisquer ofensas corporais, mas podem ser punidos como tratamentos arbitrários".
§ 2 Neste contexto, ganha o art. 150° um duplo alcance normativo, a) Por um lado, cabe-lhe dar expressão normativa à decisão político-criminal de excluir as intervenções médico-cirúrgicas do alcance das incriminações das
Ofensas corporais, b) Por outro lado, cabe-lhe definir o sentido e alcance do conceito jurídico-penal de intervenção médico-cirúrgica, e, por vias disso, delimitar a área problemática coberta pelo regime jurídico-penal das intervenções e tratamentos médico-cirugicos, Para além de determinar o círculo dos autores potenciais das infracções pertinentes ("médico ou pessoa legalmente autorizada"), é ainda o art. 150° que demarca a fenomenologia das expressões fácticas a levar àquele regime.(…)»
Assim, e de acordo com o que se encontra plasmado (atendo-nos apenas ao que importa ao caso que agora se conhece) neste preceito legal, não constituirá ofensa à integridade física a intervenção (ou o tratamento) levado a cabo por médico, destinada a debelar ou minorar uma doença, intervenção que, segundo os dados de conhecimento, ao tempo, seja o indicado para o fim que se pretende alcançar.
Ora, no caso sub judice, não existe qualquer dúvida que a intervenção cirúrgica é o meio adequado para tratar o problema de saúde do assistente; ninguém questiona que essa intervenção foi efetuada por cirurgião que pode efetuar este tipo de cirurgia.
O assistente vem agora, em recurso, suscitar o problema do consentimento; dizendo que não prestou um consentimento informado, conforme se encontra legalmente estatuído. Mas fá-lo apenas agora não tendo colocado autonomamente essa questão à consideração do tribunal recorrido. Por isso essa questão não pode ser conhecida em recurso. Sempre se dirá contudo que consta dos factos provados que o arguido, no próprio dia em que foi internado para ser sujeito à intervenção cirúrgica subscrever “um consentimento para acto cirúrgicos” sem que o tribunal se tivesse detido na imprecisão do médico subscritor desse documento quanto ao modo, lugar e condições em que este foi transmitido ao assistente.
O que lei pretende é que o paciente seja, de facto, informado e não que se limite a assinar um documento onde se diz que foi devidamente informado da natureza, finalidade e riscos do procedimento cirúrgico. É o que resulta do preceituado nos artigos 38º e 157º ambos do Código Penal.
No entanto desprezando agora esta questão retornando ao estatuído no artigo 150º do Código Penal, agora no seu nº 2, este normativo previne e pune as situações levadas a cabo por médico, ainda que comprovadamente adequadas a debelar a doença, desde que se prove que as mesmas foram executadas com violação das leges artis e desta forma se tiver criado um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde.
Tendo-se anteriormente concluído que o arguido atuou com violação das leges artis, vejamos se a conduta se insere na previsão deste nº 2. Para que tal sucede, como emerge da formulação do preceito, é imperioso que daí resulte a criação de um perigo para a vida ou um perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde.
Na decisão recorrida consta como não provado a criação desse perigo, em contradição contudo com outros factos dados como provados. Vejamos então; elenca-se como provado no item xxi o seguinte: «o assistente sofreu perda súbita de sangue e sofreu risco de embolias, designadamente, embolia pulmonar, complicação que poderia provocar-lhe a morte», constando da factualidade não provada (em h) «Ao actuar da forma acima descrita, o arguido colocou em risco a vida do assistente B…, que face à intensidade e local da hemorragia causada pelo corte da veia femoral do membro inferior esquerdo, ficou exposto, designadamente, a grande perdas hemáticas, a embolias, e a outra complicações no seu estado clínico, provocados pela actuação descrita em 12, adequadas a provocar-lhe a morte. (sublinhado nosso)
Ora estas duas conclusões são contraditórias e inconciliáveis, sendo manifesto por tudo o que sucedeu – desde logo pela forte hemorragia que se produziu no corpo do assistente obrigando ao seu transporte para outro centro hospitalar – que este esteve em risco de morte a qual não se produziu em virtude de célere e pronto transporte para o centro hospitalar de Vila Nova de Gaia, pela atuação dos médicos que, após a ocorrência da hemorragia, comprimiram localmente a veia femoral lacerada (sustendo aquela hemorragia) e pelo sucesso da correção cirúrgica efetuada.
Assim também quanto a este aspeto importa alterar a matéria de facto não provada retirando dela a constante da alínea h) que terá de passar a constar como provada.
Como também, face ao que anteriormente se deixou dito importa alterar a matéria constante da alínea g) dos factos não provados, passando a constar como matéria provada (a qual contem um erro manifesto ao referir-se à veia safena quando queria referir-se á veia femoral).
O nº 2 do artigo 150º do Código Penal é um crime doloso (por força do estatuído no artigo 13º do Código Penal); só será punido pela prática deste ilícito quem atuar com dolo o qual que tem de abarcar não apenas a atuação com preterição da leges artis como também a criação de perigo para a vida. Ora, no caso autos, a prova desse atuação dolosa não se fez.
Assim sendo como refere Paula Ribeiro de Faria[10] « Se o agente não observa na execução das intervenções as referidas “leges artis” passa a estar-se tipicamente perante uma ofensa à integridade física (já que se afasta a aplicação do artigo 150º) que, salvo raras excepções, se deixa enquadrar neste tipo legal ( e isto uma vez que, por via de regra, a actuação do profissional de saúde não é dolosa).
A mesma opinião tem Figueiredo Dias quando refere que nem sempre a violação das leges artis constituirá uma ofensa corporal: Se, pois, do “error artis” não derivar uma ofensa no corpo ou na saúde do paciente a conduta do médico não será, por causa daquele erro, criminalmente punível (ressalvada, é claro, a hipóteses de punibilidade da tentativa). Se derivar uma tal ofensa, o médico será punível, havendo então a distinguir consoante o crime foi cometido com dolo ou com negligência»[11]
O dolo e a negligência são distintas formas de culpa, sendo a negligência a menos grave.
O dolo consiste no conhecimento e vontade de realização do tipo de ilícito tipico– cfr. artigo 14º do Código Penal.
A negligência é a forma menos grave de culpa e tem como consequência apenas ser punida a atuação negligente nos casos que a lei expressamente prevê – cfr artigo 13º do mesmo diploma legal, importando ainda distinguir a consciente – quando não procede com o cuidado que segundo as circunstâncias, está obrigado e é capaz, represente o resultado contrário ao direito como efeito provável da sua atuação não se conforma com o risco da sua verificação – e inconsciente sempre que não representa sequer a possibilidade da produção do resultado.
No entanto em ambos os casos estamos perante a violação de um dever de cuidado que a ordem jurídica impõe genericamente aos membros de uma sociedade, no caso concreto, à comunidade médica e dentro desta concretamente aos cirurgiões.
Pode afirmar-se a sua verificação no caso concreto; o ocorrido com o assistente que não se deveu a circunstância próprias, que não é uma decorrência própria daquele tipo de cirurgia, ficou a dever-se, outrossim, a uma ação descuidada –, pouco cuidada, pouco cautelosa – do arguido quando abordou cirurgicamente aquela local, daí resultando as consequências nefastas no corpo e na saúde do assistente, as quais o arguido sequer previu poderem vir a ocorrer.
Cremos assim que perante a alteração da matéria de facto acima operada podemos concluir pelo cometimento pelo arguido de um crime de ofensas à integridade física negligente, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 148º nº 1 e 3, por referência ao artigo 144º alínea d), ambos do Código Penal, pelo qual tem de ser condenado
Pese embora termos já entendido de modo diferente, depois de sobre a questão termos refletido mais longamente, defendemos agora que, em caso de absolvição na 1ª instância em que a Relação conclua que há lugar à condenação, a pena deve ser aplicada pelo tribunal da 1ªinstância.
Desde logo, em obediência ao disposto no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece como uma das garantias de defesa do arguido o direito ao recurso. Assim sempre que não fosse admissível recurso para o STJ, caso fosse o tribunal da Relação a proceder à determinação da espécie e medida da pena concreta ficaria precludido o direito ao duplo grau de jurisdição, uma vez que se retirava ao arguido e ao Ministério Público a possibilidade de ver reapreciada, por uma instância superior, a decisão proferida em matéria de determinação da sanção, decidindo o tribunal da Relação de modo final e definitivo.
Por outro lado, é esta a solução que melhor se adequa ao nosso modelo – processual e substantivo – de determinação da sanção. A relativa autonomização do momento da determinação da sanção implica que só depois de decidida positivamente a questão da culpabilidade, o tribunal decida sobre a necessidade de prova suplementar com vista à determinação da sanção (cfr. artigo 369º número 2 e 470º, ambos do Código de Processo Penal) e eventual reabertura da audiência (cfr artigo 371º do mesmo diploma legal), na qual pode ser necessário, para além do mais, ouvir os arguidos.
Assim sendo, para além da necessidade de cumprir o princípio do duplo grau de jurisdição, torna-se necessário dar integral cumprimento das normas de direito processual e substantivo relativas à escolha e concretização da pena, daí a nossa decisão de que compete ao tribunal de 1ª instância proferi-la, depois de ponderar sobre a eventual necessidade de reabrir a audiência com produção de prova suplementar.

III – Decisão:

Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, embora por fundamentos diversos, e em consequência:

- Alterar a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada nos termos supra expostos;

-Julgar o arguido autor de um crime de ofensas à integridade física negligente, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 148º número 1 e 3, com referência ao artigo 144º alínea d), todos do Código Penal:

-Ordenar que os autos baixem à 1.ª instância a fim do tribunal a quo proceder à determinação da espécie e da medida da pena a aplicar ao arguido – se necessário após reabertura da audiência e produção de prova suplementar –

Sem custas.
(texto elaborado pela relatora e revisto por ambos as subscritores)

Porto, 26 de Março de 2014
Maria Manuela Paupério
Francisco Marcolino
_____________
[1] Como se refere no Ac. STJ de 20/9/2005, proc. nº 05A2007, “a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos". Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe.
[2] cfr. Germano Marques da Silva, citando o Ilustre Professor Castanheira Neves, in Curso de Processo Penal, Volume I, pág. 85 [3] cfr. CPP de Maia Gonçalves, 12ª ed., pág. 339.
[4] cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º vol., pág. 202.
[5] Consultado Dicionário do Português Atual, Houaiss Circulo de Leitores
[6] Ver Gonçalo Castanheira in “Responsabilidade Profissional em Saúde” Almedina, 2013
[7] Ver Helena Moniz “Risco e Negligência na prática clínica” Revista do Ministério Público nº 130, pag 81 e ss.
[8] Ver João Antínio Álvaro Dias “ dano Corporal, Quadro Epsitemologócio e aspectos ressarcitórios” Colecção teses Almedina, pág, 434 e ss
[9] In Comentário Conimbricense do Código Penal
[10] In Comentário Conimbricense do Código Penal em anotação ao artigo 148
[11] In BMJ 331, 72, 2 Responsabilidade Médica em Portugal” Figueiredo Dias e Sinde Monteiro