Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0847824
Nº Convencional: JTRP00042477
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: FURTO
COISA MÓVEL
COISAS CORPÓREAS
Nº do Documento: RP200904290847824
Data do Acordão: 04/29/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 366 - FLS 343.
Área Temática: .
Sumário: A conduta de quem, tendo o fornecimento de energia eléctrica à sua habitação suspenso, por falta de pagamento de anteriores consumos, consegue, pelos seus próprios meios e contra a vontade do fornecedor, continuar a retirar energia da rede preenche o tipo objectivo do crime de furto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 7824/08-4
.ª Vara Criminal do Porto, Proc. nº …./07.5TDPRT

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Na 1ª Vara Criminal do Porto, processo supra referenciado, foi julgada B………., acusada da prática, em autoria material e em concurso efectivo, sob a forma continuada, de um crime de furto qualificado, de falsificação de notação técnica e de quebra de selos, p. e p., respectivamente, nos arts. 26º, 30º, 203º, nº1 e 204º, nº 1, al. a), por referência ao art. 202º, al. a), 258º e 356º, todos do CP.
A C………., SA deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de €7.140,83, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
Após Audiência de Julgamento, foi proferido Acórdão com o seguinte dispositivo:
- julgar improcedente, por não provada, a acusação e, em conformidade, absolver a arguida B………. da prática, como autora material e em concurso efectivo, sob a forma continuada, de um crime de furto qualificado, de falsificação de notação técnica e de quebra de selos, p. e p., respectivamente, nos arts. 26º, 30º, 203º, nº1 e 204º, nº 1, al. a), por referência ao art. 202º, al. a), 258º e 356º, todos do CP;
- não conhecer do pedido de indemnização civil formulado por C………., SA contra a demandada B………. .
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Deste Acórdão recorreu o MºPº, formulando as seguintes conclusões:
O douto Acórdão recorrido deu como provado que a arguida, após a C………., SA ter suspendido o fornecimento de energia eléctrica à sua residência, face ao não pagamento das facturas, nas duas circunstâncias de tempo aí mencionadas, contra a vontade e sem o conhecimento daquela entidade, fez uma ligação directa na coluna da rede pública de fornecimento de energia, apoderando-se de energia eléctrica no montante global de €5.861,09 (IVA incluído), tendo, no entanto, considerado que tal apropriação era legítima, face ao registo no contador existente na residência da arguida de energia eléctrica consumida pela mesma, pelo que a absolveu da prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1 e 204º, nº 1, al. a) do CP, por que estava acusada;
No entanto, a apropriação de energia eléctrica levada a cabo pela arguida é ilegítima porque é efectuada contra a vontade de quem de direito, da sua legítima proprietária, a C………., SA, que suspendera o fornecimento de energia eléctrica à residência da arguida no exercício de um direito que lhe assiste, face ao disposto no art. 7º, nº 2 do DL nº 184/95, de 27/07.
E pelo facto de a C………., SA, na sequência das duas vistorias que levou a cabo, ter descoberto a ligação directa efectuada pela arguida e ter podido contabilizar a energia eléctrica que a mesma consumira e que ficara registada no contador, não significa que a arguida não tenha tido acréscimo patrimonial, correspondente ao valor da energia eléctrica consumida, com o correlativo prejuízo económico daquela entidade;
Por outro lado, o Acórdão deu como provado o elemento intencional exigido pelo tipo do crime de furto, a ilegítima intenção de apropriação, ao dar como provado que a arguida agiu com o propósito concretizado de consumir energia eléctrica, no mencionado valor global, contra a vontade e sem o consentimento da denunciante C………., SA, usufruindo dela, com perfeito conhecimento de que não lhe pertencia;
E, ao dar como não provado, contra as regras da experiência comum, que a arguida sabia que tal conduta era proibida e punida por Lei, quando dera como provado que a mesma tinha perfeito conhecimento que não podia efectuar as ligações directas e que sabia que a energia eléctrica lhe não pertencia e que actuava contra a vontade e sem o consentimento da C………., SA, enferma o douto Acórdão recorrido de erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410º, nº 2, al. c) do CPP;
No entanto, a restante matéria de facto apurada permite a modificação da decisão da matéria de facto, nesta parte, não havendo necessidade de reenvio do processo para novo Julgamento, nos termos do disposto no art. 426º, nº 1 do CPP, devendo, em consequência, der dado como provado que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por Lei;
O Acórdão recorrido deu, pois, como provados todos os elementos constitutivos do crime de furto, integrando-se os factos dados como provados na previsão do crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, e 204º, nº1, al. a) do CP, por que a arguida estava acusada, atento o montante global de energia eléctrica subtraída, €5.582,00 (€3.509,13 + €2.072,87);
Ao não entender assim, absolvendo a arguida da prática de tal crime, violou o Acórdão recorrido os referidos preceitos legais.
Termina pedindo que seja revogado o Acórdão recorrido, nesta parte, condenando-se a arguida pela prática, em autoria material, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, e 204º, nº1, al. a) do CP.
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A este recurso respondeu a arguida, B………., defendendo a improcedência do recurso e invocando a extinção do direito de queixa, dizendo, em síntese:
«Da matéria de facto provada decorre que a C………., SA, em Outubro de 2004, apercebeu-se do consumo de energia eléctrica – facto 5 da matéria de facto provada.
De modo que em Fevereiro de 2005 notificou a arguida para efectuar o pagamento do consumo no período de Novembro de 2001 a Dezembro de 2004, no valor total de €3.684,58 – facto 7.
O crime de furto qualificado, à data do conhecimento destes factos (Outubro de 2004) preenchia-se com a apropriação de €4.450,00 – valor elevado para efeitos do art. 204º, nº 1, al. a) e 202º, al. a) do CP.
O valor consumido, à data, era inferior ao valor considerado para efeitos da qualificativa.
Estamos então perante um crime de furto simples, dependente de queixa, a exercer no prazo de 6 meses. Portanto, até Abril de 2005.
A queixa da C………., SA foi apresentada em Abril de 2007.
Excepciona-se, relativamente a estes factos (factos 5 e 7) e montantes, a caducidade do direito de queixa.
Que, no reconhecimento, deverá determinar a reformulação da decisão.
São manifestamente improcedentes todas as conclusões do recurso do MºPº, que deve ser rejeitado.
Deve ser integralmente confirmada a modelar Sentença da 1ª Instância que não enferma de qualquer dos vícios apontados.»
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Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto defende a procedência do recurso, escrevendo, nomeadamente:
“É de todo incompreensível e contrário a todas as regras da experiência comum e da lógica que sejam dados como provados, como aconteceu, todos os factos referidos sob os nºs 1 a 14 do Acórdão recorrido, e seja dado como não provado o facto “a arguida sabia que tais condutas eram proibidas e punidas por Lei”.
Mais ainda, é incompreensível dar-se como não provado tal facto, sem dar como provado, ao mesmo tempo, que a arguida padece de anomalia mental que a impede de valorar e avaliar correcta e devidamente a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com tal avaliação, ou que ela habita noutro país ou noutra cidade, pois é do conhecimento generalizado de todas as pessoas adultas – não padecentes de anomalia mental que afecta o conhecimento básico – no nosso país, de Norte a Sul, na maior cidade e na mais pequena aldeia servida por electricidade, que a energia - electricidade, fornecida pela e através da rede pública, é coisa alheia, tem que ser paga e que só pode haver ligação à rede com autorização da entidade ou empresa que explora essa rede de fornecimento, no caso, a C………., SA, e que as ligações directas à rede sem autorização e sem pagamento da electricidade retirada da rede desse modo são crime. Esse conhecimento generalizado nem precisa de ser demonstrado, pois ele resultou da sua difusão e sedimentação ao longo dos tempos à medida que eram instaladas por todo o país, cobrindo-o quase todo, as linhas de condução e de fornecimento de electricidade.
Portanto, tal facto não provado é resultado de um evidente erro na apreciação da prova, erro que ressalta ao simples observador médio depois de ler os factos provados de 1 a 14. Esses factos provados, com pleno apoio na prova produzida e examinada em Audiência, nem sequer contrariados pelas respostas da arguida, e as regras da experiência comum, a observar na análise e valoração da prova e a não violar, impõem que se dê por provado aquele facto dado como não provado.
Por sua vez, também é manifesto o erro na qualificação dos factos provados descritos de 1 a 14, no texto da decisão recorrida, pois esses factos consubstanciam os elementos, objectivo e subjectivo, do crime de furto qualificado, como demonstra o MºPº na motivação, crime pelo qual a arguida deve ser condenada, uma vez que não foram dados por provados factos que consubstanciem uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
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Ao Parecer respondeu a arguida, dizendo que «deve ser mantida a decisão de absolvição da arguida».
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Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor do Acórdão recorrido.
Factos provados:
“1- No dia 07/05/1998, a arguida celebrou com a C………., SA, um contrato de fornecimento de energia eléctrica, para abastecimento à sua residência, sita no ………., ………., Entrada … – Casa .., nesta cidade;
2- Na sequência de tal contrato, a C………., SA, através dos seus funcionários procedeu à ligação das instalações eléctricas na residência da arguida à rede pública, mediante aplicação intermédia de aparelho de medida, designado contador, destinado a registar os consumos de energia eléctrica;
3- A montante dos referidos aparelhos de controlo existia uma caixa de coluna onde se ligava o cabo eléctrico que transportava energia eléctrica para a referida casa;
4- Sucede que a C………., SA, no dia 15/10/2001, procedeu à suspensão do fornecimento de energia eléctrica na residência da arguida, por se ter verificado a falta de pagamento de facturas de fornecimento;
5- Porém, a arguida, em data não concretamente apurada, mas posterior a 15/10/2001, contra a vontade e sem o conhecimento da C………., SA, voluntariamente, após abrir a dita caixa de coluna fechada com parafusos, situada no patamar do piso em que se situava a sua habitação e comum a outra habitação no mesmo andar, efectuou uma ligação directa nesta, apoderando-se da energia eléctrica que consumiu na sua residência, situação que veio a ser constatada em 06/10/2004, aquando de uma vistoria efectuada por técnicos da C………., SA;
6- Após tal vistoria e elaborado o respectivo auto, a C………., SA procedeu ao corte da ligação à rede pública;
7- No dia 18/02/2005, foi a arguida contactada pela C………., SA, via CTT, para efectuar o pagamento da energia eléctrica que havia consumido, no período compreendido entre 01/11/2001 e 31/12/2004, dos encargos mensais de potência e das despesas de deslocação e mão de obra nas intervenções levadas a cabo para desligar o fornecimento de energia eléctrica, no montante global de €3.509,13, ao qual acresce IVA a 5%, num total de €3.684,58;
8- A arguida não procedeu ao pagamento do montante acima referido, pelo que a C………., SA não restabeleceu o fornecimento de energia eléctrica à sua residência;
9- Ainda no dia 23/01/2007, após vistoria efectuada por técnicos da C………., SA à residência da arguida, estes constataram que a arguida, contra a vontade e sem conhecimento da C………., SA, voluntariamente, havia efectuado, novamente, uma ligação directa na sobredita coluna intermédia da rede pública de fornecimento de energia, apoderando-se da energia eléctrica que consumiu na sua residência;
10- A C………., SA suspendeu novamente o fornecimento de energia eléctrica à residência da arguida, através de corte rente na caixa da coluna, mas não procedeu à selagem da mesma porque esta se encontrava danificada;
11- Em 12/03/2007, foi a arguida contactada, via CTT, para efectuar o pagamento da energia que havia consumido no período compreendido entre 01/01/2005 e 23/01/2007, no montante global de €2.418,24, correspondendo o consumo de energia registado no contador a €2.072,87, ao qual acresce IVA a 5%, num total de €2.176,51;
12- A arguida não procedeu ao pagamento do montante acima referido, pelo que a C………., SA não restabeleceu o fornecimento de energia eléctrica à residência daquela, tendo-se a arguida apoderado de energia eléctrica no montante global de €5.861,09 (IVA incluído);
13- A arguida agiu com o propósito concretizado de consumir energia eléctrica, no mencionado valor global, contra a vontade e sem o consentimento da denunciante C………., SA, usufruindo dela, com perfeito conhecimento de que não lhe pertencia;
14- A arguida, ao efectuar as aludidas ligações directas, tinha perfeito conhecimento de que não estava autorizada a fazê-lo, agindo com o propósito de consumir energia eléctrica que a C………., SA não queria, naqueles momentos, fornecer-lhe;
15- A arguida, casada, encontra-se separada de facto há cerca de 20 anos;
16- Terminou o ensino escolar completando o 4º ano de escolaridade aos 10 anos de idade. Cerca de uma semana depois iniciou o seu percurso laboral como empregada doméstica interna. Mais tarde ingressou numa fábrica metalúrgica, tendo ali permanecido até aos 30 anos de idade. Face à necessidade de ter que acompanhar uma filha com problemas de saúde deixou de trabalhar;
17- A arguida deixou o seu núcleo familiar aos 18 anos de idade, época em que realizou o seu casamento, tornando-se independente;
18- O marido foi funcionário na câmara municipal e a arguida deixou a profissão para cuidar dos seis filhos do casal;
19- A arguida não só cuidou dos filhos, como também dos netos que foram nascendo, já que a sua filha, cujo paradeiro é desconhecido, abandonou os quatro filhos ao cuidado da arguida;
20- À data dos factos, a arguida vivia juntamente com os quatro netos de menoridade (17, 16, 13 e 12 anos de idade), estudantes;
21- A arguida sempre enfrentou grandes dificuldades económicas, fazendo face às despesas do agregado familiar com um subsídio da Segurança Social no valor de €583,00 e com o rendimento mínimo garantido no montante de €160,00;
22- Vive em casa camarária arrendada, pagando de renda de casa a quantia mensal de €10 (até há cerca de 1 ano era de €30);
23- Foi aquela carência económica e a necessidade que tinha de dispor de electricidade na sua residência, visando, nomeadamente, a satisfação das necessidades higiénicas e alimentares dos seus netos, que motivaram a prática dos factos ajuizados;
24- A arguida não tem antecedentes criminais.”
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Factos não provados:
“1- Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionados nos nºs 4 e 8 dos factos provados, quebrou os selos existentes na coluna;
2- A demandante civil rescindiu unilateralmente o contrato de fornecimento;
3- A arguida agiu com o propósito concretizado de influenciar os resultados da notação e de romper e inutilizar os selos que haviam sido apostos pelos funcionários da C………., SA, desta forma obtendo para si benefícios e vantagens económicas a que sabia não ter direito, prejudicando a denunciante;
4- A arguida sabia que tais condutas eram proibidas e punidas por Lei.”
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Motivação da convicção do Tribunal:
“O Tribunal estribou a sua convicção, quanto aos factos dados por provados, no teor da confissão parcial realizada em Audiência de Julgamento pela arguida, a qual apenas não admitiu ter procedido à quebra dos selos e ter impedido a contagem ou, por qualquer forma, alterado os valores da medição do consumo de energia que ia fazendo.
A arguida não se recordava de alguma vez ter recebido uma carta da C………., SA a rescindir o contrato de fornecimento de energia.
A arguida explicou ainda, de modo credível, o modo pelo qual abria a caixa da coluna (desaparafusando os parafusos que a fechavam), localização desta no prédio onde habitava e forma pela qual fazia a ligação directa (ligando novamente os fios desligados aos bornes).
Fundou-se ainda o Tribunal nos depoimentos prestados pelas testemunhas D………. e E………., funcionários da C………., SA, que procederam, respectivamente, às vistorias a que se reportam os autos de inspecção de fls. 9 e 10, 18 e 19.
Ambas as testemunhas confirmaram o teor dos respectivos autos, nomeadamente, que os fios se encontravam ligados aos bornes, desse modo fornecendo energia eléctrica à habitação da arguida, sem que a caixa da coluna apresentasse selos devidamente colocados. Mais referiram que aquela actuação da arguida não impedia a medição dos respectivos consumos no contador situado no interior da sua habitação.
No caso da primeira vistoria, datada de 06/10/2004, a testemunha D………. confirmou a colocação de selo na caixa de coluna, sendo que a testemunha E………. adiantou que, quando se deslocou ao local em 23/01/2007 o selo da caixa de coluna ou estava rebentado ou nem lá estava, e que pelo estado vandalizado daquela caixa já não era viável a colocação de novo selo.
Não foi feita prova directa de a arguida ter procedido à quebra de selos, acrescendo que pela sua postura em Julgamento, e declarações confessórias relevantes prestadas quanto a outra factualidade, associada ao facto credível por aquela revelado de que naquele ………. é frequente haver vandalismo das caixas de coluna – o que foi confirmado pela testemunha E………. –, mantém-se a dúvida sobre a autoria da quebra de selos. Logo, importa chamar aqui à colação o princípio processual penal in dubio pro reo e, por conseguinte, não dar como provado que foi a arguida quem levou a cabo a dita quebra.
Estribou-se também o Tribunal no teor dos documentos de fls. 8, 11 a 17 e 20 a 22.
Não se deu por provado que a actuação da arguida visasse a obtenção de ilegítimos benefícios económicos, com o correlativo prejuízo da C………., SA, porquanto aquela pretendeu somente aceder a energia eléctrica para consumir na sua habitação, consumo esse que podia ser controlado, medido e tributado pela empresa fornecedora, sem efectivo prejuízo para esta, visto não ter sido desapossada sem contrapartida de qualquer bem.
Ademais, nenhuma das testemunhas, por falta de conhecimento directo, pôde confirmar a alegada rescisão do contrato por banda da C………., SA, nem tal cessação resulta documentada nos autos. Pelo contrário, do teor das cartas enviadas pela empresa à arguida, datadas de 18/02/2005 e 12/03/2007 (fls. 11 e 20, respectivamente), apesar de constar do “assunto” a referência a “consumo de energia eléctrica sem contrato”, o certo é que no seu conteúdo se fala expressamente em regularização da situação contratual mediante a liquidação dos débitos ali referidos. Ora, é óbvio que não se regulariza uma situação contratual se esta já estiver finda.
No que concerne aos factos atinentes às condições sociais e pessoais da arguida, fundou-se a convicção do Tribunal no teor do relatório social junto a fls. 111 a 113, e nas declarações prestadas em Audiência de Julgamento pela arguida.
No CRC de fls. 86, no que tange à ausência de antecedentes criminais da arguida.”
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Enquadramento Jurídico-Penal:
“Vem a arguida acusada da prática, como autora material e sob a forma continuada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1 e 204º, nº 1, al. a), por referência ao art. 202º, al. a), de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo art. 258º e de um crime de quebra de selos, p. e p. pelo art. 356º, todos do CP.
Do alegado crime de furto qualificado:
(…)
No caso vertente, apurou-se que a arguida, que tinha celebrado com a C………., SA um contrato de fornecimento de energia eléctrica e que se mantinha ainda em vigor, em dois momentos distintos e em que aquele fornecimento se encontrava suspenso pela entidade fornecedora por falta de pagamento de facturas, procedeu à ligação directa na coluna onde se ligava o cabo eléctrico que transportava energia eléctrica para a referida casa – factos provados sob os nºs 1 a 12.
Destarte passou a consumir novamente a energia eléctrica na sua habitação, mantendo-se em pleno funcionamento o contador nesta existente, o qual continuou a registar os consumos realizados.
A arguida actuou da predita forma com o propósito concretizado de consumir energia eléctrica, no mencionado valor global, contra a vontade de não lhe fornecer da C………., SA e sem o consentimento desta denunciante, usufruindo da mesma, com perfeito conhecimento de que lhe não pertencia – factualidade vertida nos nºs 13 e 14.
Posto isto, face à factualidade provada, entendemos que não estão verificados os sobreditos elementos típicos objectivo e subjectivo do ilícito criminal em apreço.
Na verdade, o conceito legal de subtracção, com apropriação ilegítima, implica que haja uma transferência do domínio da coisa móvel alheia do seu proprietário – no caso, a C………., SA, empresa fornecedora da energia eléctrica – para o agente infractor, com o respectivo acréscimo patrimonial para este e o correlativo prejuízo económico para aquele.
Ora, salvo melhor opinião, para que tal sucedesse necessário seria que o modo como a arguida logrou aceder ao consumo de energia eléctrica, numa altura em que a C………., SA tinha suspendido o fornecimento, implicasse para esta a perda do controle efectivo e real da contabilização dos gastos, o que, frisa-se, não ocorreu in casu – cfr. em situação distinta da ajuizada, o Ac. da RP de 23/05/1990, disponível em www.dgsi.pt.
(…)
Também não foi provada a rescisão daquele contrato por parte da C………., SA, por forma a que, depois, não pudesse já facturar o consumo feito pela aqui arguida, por não ocorrer já relação contratual que justificasse tal cobrança.
Tal motivação surge bem retratada no texto legal, constatando-se que o art. 1º, nº 1 do DL nº 328/90, de 22/10, antes de enumerar taxativamente as condutas que constituem violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica, exige que o procedimento fraudulento seja susceptível de falsear a medição da energia eléctrica consumida ou da potência tomada.
Assim, o que temos no caso sub judice é o acumular da dívida da cliente B………. à C………., SA, a cobrar por esta com recurso aos meios processuais ou extrajudiciais.
Do imputado crime de falsificação de notação técnica:
(…)
Como a arguida não levou a cabo qualquer das condutas típicas, também será de improceder o douto libelo acusatório no que concerne à prática deste ilícito criminal.
Do alegado crime de quebra de selos:
(…)
No caso vertente, não se apurou que a arguida tivesse, por qualquer forma, quebrado ou rompido selos apostos na caixa da coluna onde se encontrava o cabo eléctrico que transportava energia eléctrica para a sua casa.
Destarte, improcede também nesta parte a douta acusação.”
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Pedido de indemnização civil:
“A demandante C……….., SA, deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de €7.140,83, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
A Sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil, sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no art. 82º, nº 3 – art. 377º, nº 1 do CPP.
Contudo, urge chamar à colação a Jurisprudência fixada pelo Assento 7/99, de 17/06/1999, publicado no DR, Série I-A, de 03/08/1999, no sentido de que “Se em Processo Penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um acto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art. 377º, nº 1 do CPP, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual”.
No caso em apreço, verifica-se que não ficou provada a prática pela demandada de facto ilícito criminal, tudo se reconduzindo, a final, a um incumprimento contratual da arguida do contrato de fornecimento de energia eléctrica celebrado com a demandante civil.
Estamos, destarte, no âmbito da responsabilidade civil contratual, razão pela qual não se apreciará o pedido de indemnização civil apresentado nos autos.”
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o MºPº pretende suscitar as seguintes questões:
- vício da decisão sobre a matéria de facto de erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410º, nº 2, al. c) do CPP, pedindo a modificação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do art. 426º, nº 1 do CPP, sem necessidade de reenvio;
- verificação dos elementos constitutivos do crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, e 204º, nº1, al. a) do CP;
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Invocado vício de erro notório na apreciação da prova.
Existe erro notório na apreciação da prova quando, na decisão sobre a matéria de facto, se retira uma conclusão contrária às regras do raciocínio lógico-dedutivo e da experiência comum.
Em síntese, encontra-se provado o seguinte:
Suspenso o fornecimento de energia eléctrica pela C………., SA, a arguida abriu a caixa da coluna onde se ligava o cabo eléctrico que transportava a energia para sua casa, fez uma ligação directa e restabeleceu o fornecimento até 06/10/2004, data em que a C………., SA procedeu a novo corte da ligação à rede.
Após essa data, voltou a fazer uma ligação directa e restabeleceu o fornecimento até 23/01/2007.
Com esta actuação apoderou-se e consumiu energia eléctrica no montante global de €5,861,09, quantia que nunca pagou.
Actuou “com o propósito concretizado de consumir energia eléctrica no referido valor, contra a vontade e sem o consentimento da C………., SA”, e “ao efectuar as aludidas ligações directas, tinha perfeito conhecimento de que não estava autorizada a fazê-lo”.
Foi considerado não provado que “a arguida sabia que tais condutas eram proibidas e punidas por Lei”.
É, pois, apenas a consciência da ilicitude que é considerada não provada.
A consciência da ilicitude (assim como o dolo ou a negligência) integra-se na matéria de facto.
Consiste numa consciência (numa percepção) ainda que genérica e difusa, de que a conduta é ilícita, por contrária à Ordem Jurídica, não sendo exigível – isso é unânime na Jurisprudência e na Doutrina – que o agente tenha um conhecimento exacto e preciso das normas incriminadoras.
Trata-se, assim, de um facto não susceptível de prova directa (é um facto imaterial, respeitante à mente ou ao intelecto).
Daí que seja necessário o recurso à prova por presunção, ou seja, àquela que, partindo de determinado facto, chega por mera dedução lógica à demonstração da realidade de um outro facto.
Assim, se tal dedução não tiver sido efectuada, estaremos, efectivamente, perante erro notório na apreciação da prova (à semelhança do que acontecerá se, tendo-o sido, se mostrar ilógica).
No caso, e do acima sintetizado, resulta evidente que a consciência da ilicitude tem, também, de ser considerada provada.
Existe, pois, o invocado erro notório na apreciação da prova.
Tal como defende o recorrente, dos autos constam os elementos necessários para corrigir o erro e alterar a decisão da 1ª Instância, sem necessidade de se recorrer ao reenvio (art. 431º, al. a) do CPP).
Assim, decide-se modificar a decisão sobre a matéria de facto, acrescentando-se o seguinte facto – integrante do elemento subjectivo do tipo –, aos provados:
- “a arguida sabia que tais condutas eram proibidas e punidas por Lei”.
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Invocada verificação dos elementos constitutivos do crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, e 204º, nº1, al. a) do CP.
Fixada a matéria de facto provada em consequência do reexame da causa por este Tribunal, há que subsumir os factos à previsão do crime de furto (o recurso tem, apenas, por objecto a prática deste crime, não defendendo o recorrente a verificação dos elementos constitutivos da prática do crime de falsificação de notação técnica e de quebra de selos, nem invocando erro de Julgamento da matéria de facto a esse respeito).
No Código Penal Português não existe um tipo autónomo e específico que preveja e puna a apropriação ilícita, ou a fraude na utilização de energia eléctrica.
Pela Doutrina e por alguma Jurisprudência tem sido considerado que essas condutas (ou, pelo menos, parte delas) seriam susceptíveis de se integrar no tipo do crime de furto.
Assim é que, já em 1906, Caeiro da Matta, (Do furto – esboço histórico e jurídico, Coimbra, Imprensa da Univ., 1906), sintetizava as posições doutrinais a esse respeito, concluindo que na previsão do crime de furto se deveriam incluir “todas as cousas móveis que, tendo existência material ou jurídica, estão sujeitas à contrectatio (apropriação, roubo), e reclamam, consequentemente, a tutela do respectivo direito de propriedade”.
Mais recentemente, em 1988, Carlos Alegre, Crimes contra o património, Rev. MP, 3, p. 23, refere que: “Na categoria de coisas móveis estão incluídas as forças ou energias naturais, como a electricidade, o gás, o vapor ou ainda a energia nuclear. Eduardo Correia acrescenta a este rol exemplificativo de coisas móveis também as ondas hertzianas.”
Também Saragoça da Mata, Rev. O Direito, “Subtracção de Coisa Móvel Alheia”, p. 635, considera que a electricidade ou o gás são, inequivocamente, coisas corpóreas, além de serem autónomas e subtraíveis, “coisas dotadas de valor”, “susceptíveis de apropriação individual”, “que mal se compreenderia se se dissesse que caem fora da intencionalidade normativa dos tipos penais do furto”.
Faria Costa, CCCP, Coimbra Editora, 1999, p. 39/40, esclarece, porém, que noutras Legislações se sentiu necessidade de incluir norma expressa a esse respeito: “o novo Código Penal francês, para punir o furto de electricidade ainda sentiu a necessidade de contemplar legalmente uma norma de equivalência (art. 311-2; “la soustraction frauduleuse d’energie au préjudice d’autrui est assimilée au vol”). Da mesma forma é preciso não esquecer, ainda a este propósito, que o próprio art. 624º do CP italiano consagra que para “efeitos da Lei Penal considera-se também coisa móvel a energia eléctrica e qualquer outra energia que tenha valor económico”.
A nível Jurisprudencial, no Acórdão do TRC, de 24/02/1988 (relator Pinto Bastos), considera-se apenas que “a energia eléctrica é uma coisa susceptível de apropriação e valiosa, cuja subtracção integra a autoria de crime de furto”.
Verificamos, assim que toda esta análise se centra na inclusão, ou não, da energia eléctrica (à semelhança de outro tipo de energias), no conceito de “coisa móvel”, não se debruçando sobre as formas de execução ou cometimento do crime.
Acrescente-se que, mesmo a este nível, não existe unanimidade:
Taipa de Carvalho (Direito Penal, Parte Geral, Publicações Univ. Católica, 2003, pág. 212), considerando-o exemplo de “analogia desfavorável ou contra reum e, portanto, proibida”, afasta a incriminação, “tendo em conta que o conceito de coisa móvel (e o contexto literário do tipo legal de furto) implica uma corporalidade ou materialidade, isto é, algo que pode ser objecto de uma apreensão manual”.
E, segundo Paulo Albuquerque, Comentários ao CP, pág. 551, também Figueiredo Dias terá posição similar, entendendo que “o desvio de energia eléctrica alheia só pode ser punido por via da falsificação, danificação ou subtracção de notação técnica e também da burla, mas não pelo crime de furto”.
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Indo ao Direito Comparado, a solução Espanhola não dá azo a esta discussão, contendo o respectivo Código Penal um tipo autónomo, em que surge prevista e punida a fraude na utilização de energia eléctrica, gás, água, telecomunicações, ou outro elemento, energia ou fluído alheio – desde que o prejuízo seja superior a 400 Euros –, por algum dos seguintes meios:
- instalando mecanismos, ou socorrendo-se dos mesmos para a utilização de energia eléctrica, etc.; alterando maliciosamente os contadores; ou empregando quaisquer outros meios clandestinos.
(Art. 255º do C. Penal Espanhol: “Será castigado en Ia pena de multa de tres a 12 meses el que cometiere defraudación por valor superior a 400 euros, utilizando energía electríca, gas, agua, telecomunicaciones u otro elemento, energía o fluido ajenos por alguno de los medios siguientes:
1. Valiéndose de mecanismos instalados para realizar la defraudación;
2. Alterando maliciosamente las indicaciones o aparatos contadores;
3. Empleando cualesquiera otros medios clandestinos”).
Refira-se que, se dispuséssemos, no nosso Direito constituído, de um tipo semelhante, nenhuma dificuldade ofereceria, no caso, a subsunção dos factos ao Direito: a conduta da arguida preencheria o tipo, enquadrando-se na circunstância nº 1, ou na previsão residual do nº 3.
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Regressando ao caso, e à nossa Ordem Jurídica, debruçando-se, mais concretizadamente, sobre as formas do cometimento do crime, encontramos o Acórdão deste Tribunal de 23/05/1990 (relator Hernâni Esteves), publicado no sítio www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
“O arguido que a seu mando, ou por si próprio, procede à abertura de um furo na carcaça instalada pela Electricidade de Portugal na sua residência, por contrato de fornecimento de energia eléctrica, de forma que lhe era possível fazer introduzir, através do mesmo, corpo estranho ao funcionamento do aparelho, e com ele fazer parar o disco metálico do referido contador, que se destina, pelas revoluções que efectua, a marcar a contagem das quantidades de energia eléctrica consumida, desse modo, em seu proveito, foge efectivamente ao controlo efectivo e real da empresa fornecedora de energia eléctrica e prejudicando-a na medida em que os gastos contados são, por aquele modo, inferiores aos realmente realizados.
Tal conduta constitui um crime de furto, de subtracção de coisa alheia, energia eléctrica, e é prevista e punida pelos arts. 296º e 299º do CP”.
Na decisão sob recurso, ao subsumir-se os factos que se consideraram provados ao Direito – não se indo, assinale-se, pela solução mais fácil de se ficar na falta de consciência da ilicitude, como o sugeria o decidido sobre a matéria de facto – procede-se a uma interpretação (como que a contrario) da Jurisprudência veiculada neste Acórdão, e que se sintetiza no seguinte: para que houvesse uma apropriação ilegítima, seria necessário que a arguida, tendo “acedido ao consumo de energia eléctrica, numa altura em que a C………., SA tinha suspendido o fornecimento”, o tivesse feito de modo a que a entidade fornecedora perdesse “o controle efectivo e real da contabilização dos gastos”, o que não aconteceu no caso, pois o “contador da sua casa continuou a registar os consumos realizados”, nunca o contrato de fornecimento de energia tendo sido rescindido.
Conclui-se pela existência, apenas, de uma dívida a cobrar pelos meios processuais ou extra-judiciais.
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Vejamos:
É indubitável existir uma utilização ilícita de energia eléctrica, cujo fornecimento se encontrava interrompido por falta de pagamento. Esta interrupção está prevista no nº 2 do art. 7º, do DL nº 184/95, de 27/07: “o titular de licença vinculada de distribuição de energia eléctrica pode ainda interromper o fornecimento de energia eléctrica por não pagamento das facturas nos prazos estabelecidos, após interpelação ao devedor, nos termos do Regulamento de Relações Comerciais.”
Essa utilização ilícita surge concretizada através da subtracção da energia, com uma ligação directa à rede pública.
O facto de a C………., SA ter podido contabilizar a quantidade e valor de energia subtraída, através do contador, não impede que a sua subtracção tenha sido ilegítima, por efectuada contra a vontade da entidade fornecedora que a detinha.
Por outro lado, não se pode circunscrever esta conduta a uma responsabilidade meramente contratual, pelo facto de o contrato de fornecimento não ter sido rescindido; se não tinha sido rescindido, as obrigações decorrentes do mesmo encontravam-se suspensas (se o consumidor que contratou a prestação do serviço de fornecimento, não pagou, pontualmente pelo modo regulamentado, o fornecedor deixa de ter a obrigação de prestar o serviço, até por força do princípio do Direito Civil da exceptio non adimpleti contractus).
No art. 1º, nº 1, do DL nº 328/90, de 22/10 (norma de natureza extra-Penal), as práticas violadoras do contrato de fornecimento de energia, vêm definidas da seguinte forma: “constitui violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica qualquer procedimento fraudulento susceptível de falsear a medição da energia eléctrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo de potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra de selos ou por violação dos fechos ou fechaduras”; essas práticas podem, elas sim – à semelhança da falta de pagamento –, levar à interrupção do fornecimento (art. 3º, nº 1, al. a) do referido Decreto-Lei).
Em conclusão, não se está, no caso, perante uma violação do contrato de fornecimento de energia, mas, sim, perante uma subtracção ilícita da mesma, após a interrupção do seu fornecimento, tipificada como crime de furto pelo art. 203º do CP (tomando como acertado o entendimento predominante, na nossa Ordem Jurídica, de que se trata de coisa móvel, susceptível de subtracção).
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O furto surge qualificado na acusação como praticado na forma continuada. Não se nos afigura que assim seja, pois não se verifica uma situação externa que, persistindo ao longo de toda a actuação, lhe tenha facilitado a execução e, por essa via, diminuído consideravelmente a culpa da arguida.
Pelo contrário, o que decorre da matéria de facto provada é que a subtracção da energia através da ligação directa foi constatada pela C………., SA, aquando de uma vistoria, tendo procedido ao corte da ligação à rede pública. E, após isso, a arguida voltou a efectuar nova ligação directa.
Esta situação implica uma renovação da vontade de praticar os actos, ou seja, a formulação de um novo dolo, o que conduz à existência de duas infracções, em concurso real.
Deste modo, a matéria de facto provada, integra a prática pela arguida, em concurso real, de dois crimes de furto simples, p. e p. pelo art. 203º, nº 1 do CP, com prisão até 3 anos ou com pena de multa (o primeiro, cuja execução cessou em 06/10/2004, e de valor inferior a 3.684,58 Euros; o segundo, cuja execução cessou em 23/01/2007, no valor de 2.176,51 Euros – o que perfazia o total constante da acusação de 5.861,09 Euros).
A esta alteração da qualificação jurídica não se opõe a proibição da reformatio in pejus, uma vez que o recurso foi interposto pelo MºPº, não o tendo sido feito no interesse da arguida – cfr. art. nº 1 do art. 409º do CPP, a contrario.
A queixa da C………., SA foi apresentada em 17/04/2007, muito para além do prazo de seis meses, em relação ao primeiro dos crimes de furto praticados, previsto no art. 115º, nº 1, em conjugação com o art. 203º, nº 2, do CP, pelo que o procedimento criminal em relação ao mesmo se encontra extinto (o que, refira-se, é defendido pela arguida na sua resposta ao recurso).
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A arguida deverá ser punida pela prática de um crime de furto de energia eléctrica, p. e p. pelo art. 203º do CP, com prisão até 3 anos ou com pena de multa, relativamente aos factos ocorridos após 06/10/ 2004 e cessados em 23/01/2007.
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Determinação da espécie e medida da pena.
Quanto à espécie, existindo essa alternativa, é de optar pela pena de multa, por tal dar satisfação às finalidades preventivas e retributivas da punição.
Quanto à sua medida, há que atender às seguintes circunstâncias:
- o grau de ilicitude dos factos é referenciado pelo modo como a arguida os executou e valor do prejuízo causado (2.176,51 Euros);
- o dolo é o directo e mostra-se particularmente persistente;
- as exigências preventivas gerais são, ainda assim, de relevo;
Porém, com forte valor atenuante, ao nível da sua culpa (o que nada tem a ver com a inexistência da prática do crime, com a afastada execução do crime na forma continuada), temos a condição de vida da arguida, que levou a cabo a sua actuação num quadro de “grandes dificuldades económicas”, “tendo a seu cargo quatro netos de menor idade”, sendo que o objecto do crime é um bem essencial.
Com valor atenuante também, a sua idade e a ausência de antecedentes criminais, diminuidoras das exigências preventivas especiais.
Ponderadas as assinaladas circunstâncias, mostra-se adequada a fixação da pena de multa em 50 dias, à taxa diária de €1, face ao provado quanto à sua situação económica, por aplicação do art. 47º do CP, na versão anterior à entrada em vigor da Lei 59/2007, de 04/09 (versão que se aplica em bloco, pois as anteriores disposições legais aplicadas são idênticas em ambos os regimes, e ela se mostra, desta forma, a mais favorável).
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Pedido de indemnização civil.
O recurso foi interposto pelo MºPº, circunscrito à matéria penal. Porém, este Tribunal tem o dever de retirar da procedência do recurso todas as consequências legalmente impostas, relativamente a toda a decisão recorrida – art. 402º, nº 2, al. a) e nº 3 do CPP.
Assim, encontra-se provado um dano no valor de 5.861,09 Euros, em consequência da prática dos factos ilícitos, tipificados como crime (independentemente do procedimento criminal ter sido declarado extinto quanto a parte deles).
Consequentemente, julga-se parcialmente provido o pedido de indemnização civil, e condena-se a arguida a pagar à C………., SA, a quantia de 5.861,09 Euros, acrescida dos juros legais, desde a data da notificação do pedido até integral pagamento.
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Nos termos relatados decide-se julgar o recurso parcialmente procedente, alterando-se o Acórdão nos termos relatados e, em consequência:
- condena-se a arguida pela prática de um crime de furto simples, p. e p. pelo art. 203º do CP (na versão anterior à entrada em vigor da Lei 59/2007, de 04/09), na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €1;
- condena-se a arguida no pagamento à C………., SA, a quantia de 5.861,09 Euros, acrescida dos juros legais, desde a data da notificação do pedido até integral pagamento.
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Sem custas, quanto ao parcial decaimento no recurso, interposto pelo MºPº, que delas se encontra isento.
Custas devidas pela condenação em 1ª instância pela arguida, fixando a taxa de justiça em 2 Ucs.
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Porto, 29/04/2009
José Joaquim Aniceto Piedade
Airisa Maurício Antunes Caldinho