Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
383/09.7EAPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DONAS BOTTO
Descritores: LEI DO JOGO
PERDA DE OBJECTOS A FAVOR DO ESTADO
DESTINO DOS OBJECTOS PERDIDOS
COMPETÊNCIA DO JIC
Nº do Documento: RP20140319383/09.7eaprt-A.P1
Data do Acordão: 03/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – É ao juiz de instrução que compete, na fase do inquérito, assegurar a defesa dos direitos fundamentais, direitos esses que, em determinadas situações, só serão devidamente acautelados com a destruição ou colocação fora do comércio dos objectos do crime.
II - Determinando o art. 116º do Dec. Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, que o material e os utensílios de jogo apreendidos e utilizados para a prática dos crimes previstos neste diploma legal sejam destruídos, e competindo ao juiz de instrução, nos termos do art. 268º n.º 1. al. e), do CPP, declarar a perda dos objectos a favor do Estado, no caso de o inquérito ser arquivado, compete-lhe igualmente dar a ordem de destruição prevista naquele preceito legal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 383/09.7eaprt-A.P1

Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto

Relatório

Por despacho de fls. 93, decorrido que estava o prazo de suspensão provisória do processo e cumprida que se mostrava a injunção aplicada, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 282.º, n.º3, do CPP, no âmbito dos quais foi constituído como arguido B…, pela prática, em autoria material de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 1º, 3º e 108º do Dec-Lei n.º 422 /89, de 2 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro.

Em acto seguido ao arquivamento, os autos foram continuados com termo de conclusão ao Mm.º Juiz de Instrução, tendo o Ministério Público perante este promovido, para além do mais, de harmonia, ainda, com o disposto no art.º 109.º, n.º1 e 3, do Código Penal, que as três máquinas de jogo relacionadas a fls. 12-13 dos autos – associadas à prática de facto ilícito típico e oferecendo sério risco de serem utilizadas para o cometimento, de novos factos ilícitos típicos, atenta a sua natureza, fossem declaradas perdidas a favor do Estado e mandadas destruir, nos termos do disposto no artigo 116.º, da lei do Jogo.
Sobre a referida promoção, proferiu o Tribunal a quo o seguinte despacho: “Nos termos promovidos a fls. 97 – que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais e em relação aos quais, de resto, nenhuma oposição foi deduzida, declaro perdidos a favor do Estado os objectos aí mencionados na 1.ª parte (…).
Quanto ao promovido destino a dar aos mesmos, declaro-me materialmente incompetente para o efeito, porquanto competente é a autoridade judiciária titular do inquérito: o Ministério Público – cfr. os artigos 17.º, 267.º, 268° e 269°, do Código do Processo Penal, estes dois últimos a contrario (...)”.

Deste despacho e apenas na parte relativa à declaração de incompetência quanto à destruição de objectos, veio o Ministério Público interpor recurso.
Defende o Ministério Público que, no domínio da lei do Jogo, a entidade competente para ordenar a destruição do material e utensílios de jogo apreendidos é o Tribunal, por força do disposto no art. 116º do Dec-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, pelo que, tendo o inquérito sido arquivado, tal competência cabe ao juiz de instrução, nos termos do referido preceito legal e dos arts. 17° e 269°. n.º 1. al. f), ambos do CPP.

No despacho que sustentou esta decisão, o Mmo. Juiz a quo fundou-se nos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 09-06-2010 e 14-09-2011, ambos in www.dgsi.pt, e ainda no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 07-11-2012, Proc. n.º 22/08.3FBPVZ.
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Assim, a questão que se coloca neste recurso, consiste em saber qual a entidade competente para ordenar a destruição do material e utensílios de jogo apreendidos, se é o Tribunal (neste caso o juiz de instrução), ou se é o MP.
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Nesta Relação, a Sr.ª PGA, emite douto parecer, onde entende que o recurso do MP deve proceder.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Em primeiro lugar, queremos desde já referir que concordamos com os argumentos apresentados pelo MP, em particular com os expostos pela Sr.ª PGA no seu douto parecer, que acompanhamos.

Assim,

Dispõe o art.° 116° do Dec-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro:
“O material e utensílios de jogo serão apreendidos quando sejam cometidos crimes previstos nesta secção e destruídos, a mandado do tribunal, pela autoridade apreensora, que lavrará o competente auto de destruição”.
Conde Fernandes, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. II, universidade Católica Editora, pág, 386, em anotação à citada norma legal, refere que "O material e utensílios de jogo quando sejam cometidos os crimes dos arts. 108.º a 115º, serão destruídos pela autoridade apreensora. O prévio "mandado do tribunal" trata-se de uma competência judicial, logo reservada ao juiz (artigo 268°. n.º 1. al. e) e 374º n.º 3. al. c), ambos do Código de Processo Penal).
A competência atribuída ao Tribunal (Juiz ou Juiz de instrução), nos termos dos Artigos 202.º e seguintes, da Constituição da República Portuguesa, é independente da fase processual em que o processo se encontra, designadamente, fase de inquérito, instrução ou julgamento.
Refere, por seu lado, a al. e) do n.º 1 do art.º 268º do CPP, que durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução, declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277º, 280º e 282º.
O art. 109° n.º 1 do Cód. Penal, diz que são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a pratica de um facto ilícito típico ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstancias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas a moral ou ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Se a lei fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio - n.º 3 da citada norma.
Em lugar da perda para o Estado, pode ser decretada a destruição, total ou parcial, ou a colocação fora do comércio, conforme as disposições do n.º 3. O juiz ponderará, em face de cada caso concreto, qual o regime mais indicado (Maia Gonçalves, Código Penal Português, 18ª edição, Almedina, pág. 417).
Ora, sendo a perda dos objectos do crime para o Estado uma medida essencialmente preventiva, face ao perigo que oferecem de ser utilizados na prática de novos crimes, visando assim proteger a comunidade, por vezes, tal finalidade, atento o perigo típico associado aos mesmos, só se logra alcançar com a sua destruição ou colocação fora do comércio.
A possibilidade de ser o juiz a decretar a destruição ou a colocação fora do comércio dos objectos do crime já constava do §1º do art. 102 do Projecto da parte Geral do Código Penal de 1963 da autoria do Prof. Eduardo Correia, onde se previa que "O juiz pode ordenar que tais objectos sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio'', tendo sido discutida no seio da Comissão Revisora do Código Penal.
Nas "Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal", Parte Geral, I Vol., Associação Académica de Lisboa, pág. 201, refere-se que "O Prof Gomes da Silva pôs em dúvida a oportunidade de se prever a própria destruição dos objectos, porquanto tal providência pode vir a revelar-se exagerada e perigosa. Melhor seria por isso, afirmou, prever apenas a perda a favor do Estado; depois este, por via administrativa, dará a tais objectos o destino que reputar conveniente.". Este preceito foi contudo defendido por Maia Gonçalves, "acentuando que muitas vezes será caso de destruição dos objectos, v, g. nos casos de pornografia - destruição que aliás representa mera possibilidade para o juiz - e outras vezes não".
Esta possibilidade veio a ser consagrada no n.º 3 do art. 107º do Cód. Penal de 1982, a que corresponde, após a revisão operada em 1995, o n.º 3 do art. 109º.
Assim, embora a decisão de ordenar a destruição dos objectos do crime ou a sua colocação fora do comércio seja uma mera faculdade do juiz, tal ordem deve ser dada se, após ponderar o grau de perigo típico dos mesmos, o juiz concluir que a simples declaração de perda a favor do Estado não acautela suficientemente a protecção da comunidade visada pelo n.º 1 do art. 109º do Cód. Penal.
No entanto, se o juiz se limitar a declarar a perda a favor do Estado, por considerar esta medida suficiente para alcançar a finalidade visada pela norma legal cm causa, já compete, então, ao Ministério Público, em representação do Estado, para cuja esfera patrimonial passaram os objectos declarados perdidos, dar-lhes o subsequente destino, podendo estes ser vendidos, destruídos ou ser-lhes dado outro destino, conforme o caso concreto.
Portanto, há que distinguir a ordem de destruição dada pelo Ministério Público, em representação do Estado, para cuja titularidade passaram os objectos declarados perdidos, por considerar que os mesmos não têm valor venal, e a ordem de destruição dada pelo juiz, atento o perigo típico desses mesmos objectos.
Porém, atento o disposto no citado art. 116º do Dec-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, o material e utensílios de jogo que serviram para a prática dos crimes previstos neste diploma legal são sempre destruídos, a mandado do tribunal, como se prevê expressamente neste preceito legal.
Assim, a ordem de destruição deixou de ser uma mera faculdade do tribunal, a ponderar face ao grau de perigo ínsito aos objectos apreendidos, mas uma imposição legal, face ao grau de perigo presumido, atenta a natureza do material e utensílios destinados ao jogo ilícito.
A perda desses objectos, pressupondo a sua relação com o respectivo facto ilícito típico, dispensa a verificação dos demais requisitos previstos no artigo 109.º do Código Penal, designadamente relativos à aptidão e perigosidade dos objectos para a prática futura de ilícitos, a qual é presumida pelo legislador. A presunção é legítima, considerada a natureza funcional, estritamente instrumental, do material e utensílios de jogo utilizados para a prática desses ilícitos (Conde Fernandes, ob. cit., pág, 386).
Porque o legislador presume a aptidão e perigosidade destes objectos para a prática de novos crimes, atenta a sua natureza intrínseca, tal determina que os mesmos sejam destruídos, pois só desta forma será devidamente acautelado o perigo inerente aos mesmos e protegida a comunidade.
A competência definida no referido art. 268º, n.º 1, al. e), do CPP, abrange assim tanto a declaração de perda a favor do Estado, nos termos do n.º 1 do art. 109° do Cód. Penal, como a ordem de destruição ou colocação fora do comércio, nos termos do n.º 3 deste preceito legal, dada pelo juiz em complemento da primeira, quando estas medidas se imponham para atingir a finalidade visada, ou seja, a protecção da comunidade, atento o grau de perigo típico dos objectos.
Ora, atentos os princípios constitucionais, é ao juiz de instrução que compete, na fase do inquérito, assegurar a defesa dos direitos fundamentais, direitos esses que, em determinadas situações, só serão devidamente acautelados com a destruição ou colocação fora do comércio dos objectos do crime.
Assim, determinando o art. 116° do Dec-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, que o material e os utensílios de jogo apreendidos e utilizados para a prática dos crimes previstos neste diploma legal sejam destruídos e competindo ao juiz de instrução, nos termos do art. 268º. n.º 1, al. e), do CPP, declarar a perda dos objectos a favor do Estado, no caso de o inquérito ser arquivado, compete-lhe igualmente dar a ordem de destruição prevista naquele preceito, conforme, aliás, aí se prevê, expressamente, a qual visa prevenir o perigo presumido de que aqueles objectos venham a ser utilizados na prática de novos crimes, o qual só desta forma é devidamente acautelado.
Ora, se o Ministério Público não pode dar outro destino a tais objectos, nomeadamente proceder à sua venda, não faz sentido que, arquivado o inquérito, o juiz de instrução se limite a declará-los perdidos a favor do Estado, para, de seguida, o Ministério Público proferir outro despacho, este sim a ordenar a sua destruição.
Assim, dada a especialidade do artigo 116.º, da Lei do Jogo (que prevalece sobre a lei geral, segundo o critério da especialidade), e em face do regime geral estabelecido nos artigos 109.º e seguintes do Código Penal e no artigo 268.º, n.º 1, al. e), do C.P.P., leva-nos a atribuir ao Tribunal a competência para a destruição dos objectos apreendidos.
Não estando, assim, o destino destes objectos na disponibilidade do Ministério Público, antes se impondo a sua destruição, ope legis, esta deve ser decretada pelo juiz de instrução no despacho que declara os mesmos perdidos a favor do Estado, nos termos dos arts. 268º. n.º 1, al. e) do CPP e 116° do Dec-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, como, aliás, se determina expressamente nesta última norma, assim se alcançando a finalidade visada pela mesma, ou seja, a defesa da comunidade, sem que, com tal entendimento, se ponha em causa a unidade do sistema, uma vez que tal possibilidade está prevista no n.º 3 do art. 109º do Cód. Penal.
Assim, ao deferir ao Tribunal a competência para ordenar a destruição do material de jogo quando esteja em causa o crime de exploração ilícita de jogo, deve presumir-se que o legislador consagrou a solução mais acertada e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Concluindo, dada a especialidade do artigo 116.º, da Lei do Jogo (que prevalece sobre a lei geral, segundo o critério da especialidade), e em face do regime geral estabelecido nos artigos 109.º e seguintes do Código Penal e no artigo 268.º, n.º 1, al. e), do C.P.P., atribui-se ao Tribunal (juiz de instrução), a competência para a destruição dos objectos apreendidos.

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto, revogando-se o despacho recorrido, na parte em que julga o tribunal materialmente incompetente para dar destino às máquinas de jogo, que deve ser substituído por outro que ordene a destruição das mesmas.

Sem custas

Porto, 19-3-2014
Donas Botto
José Carreto