Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1759/11.5TAMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: INQUÉRITO
ARQUIVAMENTO
RECLAMAÇÃO HIERÁRQUICA
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RP201302061759/11.5TAMAI.P1
Data do Acordão: 02/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Perante a decisão de arquivamento determinado pelo Ministério Público titular do inquérito, em casos de investigação de crimes públicos ou semi-públicos, o assistente pode provocar a intervenção hierárquica (art. 278º do CPP) ou pode requerer a abertura da instrução (art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP).
II - Decorre do art. 278º do CPP que a opção do legislador foi a de a intervenção hierárquica (ocorra oficiosamente ou de forma provocada, neste último caso a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, portanto, pela via da reclamação) ter lugar quando já não seja possível a fase de instrução.
III - Face ao estabelecido no art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP, o despacho de arquivamento é apenas o do titular do inquérito, o qual não carece de ser “integrado pela decisão do superior hierárquico”, nem necessita de qualquer “estabilização” para se tornar definitivo. Para efeitos da contagem do prazo aludido no referido art. 287º, nº 1, al. b), apenas interessa a notificação do arquivamento proferido pelo órgão competente para o efeito, ou seja, pelo Ministério Público que, na altura em que for encerrado o inquérito, for o seu (do inquérito) titular.
IV - As opções facultativas da apresentação de requerimento de abertura de instrução (apreciado pelo Juiz de Instrução) ou da apresentação de requerimento a suscitar a intervenção hierárquica (apreciado pelo superior hierárquico do titular do inquérito) são modos de reacção alternativos (e não cumulativos, nem sucessivos) ao despacho de arquivamento do titular do inquérito, que protegem os direitos do assistente e asseguram o direito a um processo justo e equitativo.
V - Tendo o assistente optado por, no prazo aludido no art. 287º, nº 1, al. b), do CPP, em vez de requerer a abertura de instrução, requerer a intervenção do superior hierárquico ao abrigo do art. 278º do CPP, isso significa que renunciou a uma apreciação judicial daquele despacho de arquivamento do titular do inquérito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: (proc. n º 1759/11.5TAMAI.P1)
*
Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
*
I- RELATÓRIO
1. No 2º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial da Maia, em 6.9.2012, o Sr. Juiz de Instrução proferiu no processo nº 1759/11.5TAMAI, em 2.1.2012, a seguinte decisão (fls. 184 a 187) que rejeitou, por extemporaneidade, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente B…:
Requerimento de abertura de instrução de fls. 164 e ss:
Findo o Inquérito, o MP proferiu despacho de arquivamento (cfr. fls. 106 e ss)
Inconformados com o despacho de arquivamento, o ofendido B… veio nos termos do disposto no art° 278°, n° 1, do CPP apresentar reclamação hierárquica.
Por despacho de fls. 130 e ss, foi a reclamação hierárquica indeferida, com a consequente manutenção do despacho de arquivamento.
Notificado do despacho que indeferiu a reclamação hierárquica, o ofendido requereu a abertura de instrução (cfr. fls. 138 e ss, e fls. 164 e ss).
Apreciemos, agora, se o assistente tem, agora, legitimidade para requer abertura de instrução, após ter requerido a referida reclamação hierárquica.
O MP, conforme se alcança de fls. 179 propugna pela inadmissibilidade de abertura de instrução com fundamento no disposto no art° 278° n° 1 e 2, do CPP.
Vejamos.
No caso dos autos verifica-se que foi em tempos interposta Reclamação Hierárquica do Despacho de Arquivamento, estabelecendo o art.° 278.°, n.° 1, do CPP que a reclamação hierárquica é requerida no prazo de 20 dias após o termo do prazo (igualmente de 20 dias) para requerer a abertura de instrução - refere tal preceito, expressamente, que tal requerimento pode ser requerido no prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não poder ser requerida.
De acordo com o n.° 2 do mesmo artigo, “o assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica ao abrigo do número anterior no prazo previsto para aquele requerimento”.
Caso o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente não opte por requerer a abertura de instrução, pode suscitar a intervenção hierárquica no prazo previsto para o pedido de abertura de instrução.
Ora, tendo o assistente, optado pela reclamação hierárquica prescindiu do pedido de abertura de instrução, sob pena de se fazer tábua rasa do citado preceito legal.
“Notificado o denunciante de que o inquérito foi arquivado, ou requer a sua constituição como assistente, se ainda não a requereu e a abertura de instrução, ou no mesmo prazo, “recorre” para o superior hierárquico do MP. Ao assistente, porém está, vedada, a possibilidade de usar cumulativamente aqueles dois procedimentos “cfr. Ac Relação de Coimbra de 90-07-21, CJ XV, 3, 82).
Acresce que a data da notificação do despacho de arquivamento proferido no termo do inquérito pelo Magistrado do M°P° determina o início do prazo de vinte dias para ser requerida a abertura de instrução.
O despacho decorrente da intervenção hierárquica, por parte do M°P°, não é nem formal nem materialmente um despacho de arquivamento.
De facto, compulsados os autos, e atendendo às datas a relevar para os efeitos do disposto no referido art. 287°, parece-nos que teremos que partilhar da posição do M°P°.
Senão vejamos.
Nos termos do disposto no n° 1 daquele preceito legal: “a abertura de instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento”.
Compulsados os autos, constata-se que o respectivo inquérito ficou encerrado com a prolação do despacho proferido pelo seu titular a fls. 106 e ss., nos termos do art. 277°, do C.P.P..
O assistente foi notificado do despacho de arquivamento, em 28.2.2012. Atendendo ao modo como se processou a respectiva notificação, o prazo contido no referido art. 287°, já se mostra expirado.
O prazo para requerer a abertura de instrução conta-se a partir da notificação do despacho (acusação ou arquivamento) proferido pelo titular do inquérito.
A Intervenção hierárquica, pode ser suscitada, no prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida.
No caso concreto, o Assistente notificado em 28.2.2012, do despacho de arquivamento proferido a fls. 106 e ss., entendeu não requerer a abertura de instrução, dentro do prazo que a lei lhe concedida para o efeito, optando, a seu tempo, por reclamar hierarquicamente.
Assim, atendendo à data da prolação do despacho de arquivamento e consequente notificação ao Assistente e a data de entrada do requerimento em apreço, 30.4.2012, há muito ficou expirado o prazo de 20 dias, prescrito no n° 1 do referido art. 287°, e, daí a ter que considerar-se a sua extemporaneidade.
*
O despacho proferido no termo do inquérito pelo respectivo magistrado titular é o único despacho de arquivamento existente nos autos e foi notificado ao assistente em 28.2.2012.
É esta data, pois, que deve considerar-se quando se tem em vista a contagem do prazo previsto no n°1 do art°287° do CPP, para requerer-se a abertura da instrução.
De facto, o despacho decorrente da intervenção hierárquica suscitada nestes autos pelo ora assistente não é, nem formal, nem materialmente, um despacho de arquivamento. Ele foi proferido no âmbito dos poderes de coordenação e de direcção dos superiores hierárquicos relativamente aos seus subordinados e que resulta da estrutura hierarquizada do Ministério Público, nos termos do seu Estatuto. Tais poderes, traduzindo-se na produção de directivas ou mesmo orientações concretas, não alcançam, todavia, a possibilidade, salvo o caso de avocação, de pronúncia directa sobre o objecto do processo, cabendo sempre ao magistrado titular do inquérito proferir a respectiva decisão final, ainda que seguindo, eventualmente, orientações superiores. Por isso se diz, aliás, no art°278°, n°1, do CPP, que “o imediato superior hierárquico do magistrado do M” P° pode... determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam...”.
Por outro lado, interpretando conjugadamente estas normas, sobressai, clara, a opção do legislador de dar prevalência à via judicial do controlo das decisões finais do M° P° no Inquérito, ao fazer ressaltar que a intervenção hierárquica só aqui ocorrerá quando a instrução já não puder ser requerida, seja pelo decurso do prazo, seja porque as partes de tal prescindiram (art° 278 n°s 1 e 2). E isto, se nos permite concluir, também por este caminho, que o despacho de arquivamento do titular é o único que pode considerar-se para efeitos de contagem de prazo para requerer a instrução, permite fundar ainda a convicção de que não estão postas em causa as garantias de tutela jurisdicional efectiva.
O despacho decorrente da intervenção hierárquica não é, nem formal, nem materialmente, um despacho de arquivamento. Isto porque, como inequivocamente resulta da economia dos aludidos normativos, concretamente do disposto no n°2 do art°278° do Cód. Proc. Penal, «o assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento», ou seja, «no prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida…», seja pelo decurso do prazo, seja porque os interessados deste prescindiram, designadamente, requerendo a intervenção hierárquica.
Na verdade, através desta, o assistente só pode almejar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam por ordem hierárquica superior. Ao passo que com o seu requerimento de instrução, busca a sindicância judicial do despacho de arquivamento pelo Ministério Público. Ou seja, ainda, nos termos do art°287° n°1 do Cód. Proc. Penal, decorrido o prazo de 20 dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento, que não do despacho que decidiu o pedido de intervenção hierárquica, como pretende o assistente. Ou seja, finalmente, no prazo máximo de 40 dias contados desde a notificação do despacho de arquivamento ao assistente, não sendo requerida a abertura da instrução, cujo prazo fora de 20 dias sobre a notificação do despacho do referido arquivamento. Neste sentido, veja-se Ac. Relação do Porto, Processo n° 3459/04.3TDLSB.P1 da base de dados do Tribunal da Relação do Porto.
Como consequência da conjugada aplicação dos citados normativos, o assistente não pode requerer cumulativamente a abertura da instrução e a intervenção hierárquica, cuja decisão seria absolutamente Ineficaz quanto ao objecto daquela - vide Ac. do TC n°501/2005, citado na anotação 6, pág.755, ao art°287° do CPP, in Comentário do Código de Processo Penal Paulo Pinto de Albuquerque.
*
Por tudo o exposto, não obstante o requerente ter legitimidade, por se apresentar extemporâneo, rejeitamos o requerimento de abertura de instrução de fls. 164 e ss (cfr. n° 3 do art. 287°, do C.P.P.).
*
Notifique.
Após trânsito, arquive.
(…)
*
2. Não se conformando com essa decisão, recorreu o assistente B… (fax de fls. 193 a 205, estando o original a fls. 206 a 212) apresentando as seguintes conclusões:
I. O despacho recorrido viola o disposto nos arts. 262.°, 263.°, 278.°, 286°, 287.° do C.P.P. e ainda, os arts. 18.°, 20°, n°s 1 e 4, e 268°, n° 4, da Constituição da Republica Portuguesa.
II. O Assistente não concorda com a motivação do despacho de que ora se recorre porquanto entende que tal despacho faz uma interpretação da Lei que viola os seus direitos e garantias, uma vez que rejeita um requerimento de Abertura de Instrução que não é intempestivo e no âmbito de um processo em que, nem o juiz é incompetente, nem se trata de um caso de inadmissibilidade legal de instrução.
III. Entende o Assistente que cumpriu todos os requisitos legais que lhe eram lhe eram impostos, nomeadamente nos arts. n.°s 287.°, n.° 2, e n.° 283.°, n.° 2, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, estando apenas em causa a interpretação da Lei relativamente à contagem do prazo para ser requerida a abertura de instrução de modo a aferir se o requerimento do assistente é ou não extemporâneo.
IV. O despacho recorrido é nulo por omissão de pronúncia sobre um elemento essencial da matéria de facto, a saber, a data em que o Assistente deduziu reclamação hierárquica e sua correlação com o termo do direito de impugnar jurisdicionalmente o acto administrativo definitivo que ela corporiza, porquanto, tendo sido proferido o despacho de arquivamento notificado ao Assistente em 28/02/2012, não poderá de todo ser irrelevante saber se o Assistente deixou ou não passar o prazo que lhe é concedido por Lei para apresentar o requerimento de Abertura de Instrução.
V. A existência de acto administrativo definitivo peticionado na vigência do direito de requerer abertura de instrução, e a sua notificação ao reclamante, é que fixam o início do prazo para o exercício daquele e, nesse sentido, quando o Assistente em 16 de março de 2012 deu entrada nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial da Maia do requerimento de Intervenção Hierárquica, não estava precludido o prazo de 20 dias concedido por Lei para vir requerer a Abertura de Instrução.
VI. Todo o acto administrativo proferido por inferior hierárquico admite reclamação para o seu superior, e, tendo sido feita reclamação só se poderá considerar como definitivo quando integrado pelo deste - cfr. art. 268.° n.° 4 C.R.P.
VII. Assim, qualquer limitação deste direito constitucionalmente consagrado, ou seja, o direito à impugnação de atos administrativos, apenas seria admissível nos termos do art.18.° da C.R.P., ou seja “nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
VIII. Todo o acto administrativo é impugnável jurisdicionalmente, por força do disposto no art.° 268°, n° 4, da Constituição, desde que respeitado o prazo estabelecido na lei com respeito pelos princípios consignados no art° 18°, nº 2, da mesma Lei.
IX. Não pode por isso negar-se ao Assistente o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, negando-lhe o recurso à Instrução, apenas em retaliação ao exercício legítimo de um direito que lhe é constitucionalmente garantido sendo nulo o despacho impugnado.
X. Até porque, a natureza monocrática do Ministério Público, impõe a impugnabilidade graciosa dos actos dos seus agentes, e a impugnabilidade contenciosa do acto definitivo.
XI. Assim, o prazo para requerer abertura de instrução, quando a reclamação hierárquica tenha sido deduzida na vigência de tal direito, só poderá começar a correr após notificação do despacho definitivo, já que só nesse momento, com a estabilização da decisão do Ministério Público, o Assistente se encontra em condições de analisar a necessidade e a pertinência do requerimento de Abertura de Instrução.
XII. Aliás, a Abertura de Instrução e a Intervenção Hierárquica são duas modalidades de impugnação do arquivamento do Inquérito com pressupostos legais e, essencialmente, com fundamentos completamente distintos, não se excluindo mutuamente, destinando-se esta última para o caso de “omissão ou insuficiência de prova no inquérito” e a instrução para o caso de “erro na valoração da prova já existente no inquérito”, realidades completamente distintas.
XIII. O Requerimento de Intervenção Hierárquica, não aspira a uma qualquer comprovação judicial do arquivamento, apenas alerta o M. P., para o facto de haver factos e actos de investigação que não foram considerados nem levados a cabo e que deveriam ter sido considerados ou ponderados, bem como, havia novos factos relevantes a ter em conta, e posto isto, novas e mais diligencias deveriam ser feitas e ponderadas, sendo por isso, o despacho proferido pelo Superior Hierárquico formal e materialmente igual ao primeiro despacho de arquivamento proferido.
XIV. A decisão do Ministério Público de encerramento do inquérito que o assistente tem a faculdade de confrontar judicialmente, requerendo a instrução, deve ser a decisão sobre a “a questão essencial” a decidir na fase de inquérito, de acusação ou não acusação, tomada no último limite processualmente admissível, até porque o art. 286.° do C.P.P. prescreve que a instrução visa a comprovação judicial da “decisão” do Ministério Público de arquivar o inquérito, sem excluir a (última) decisão que o processo permite, ou seja aquela tomada ainda pelo Ministério Público, no uso de competências processuais próprias e no exercício de direitos ou faculdades processuais próprias dos interessados.
Termina pedindo que o despacho sob recurso seja substituído por outro que receba a Instrução e se pronuncie sobre as diligencias probatórias requeridas, seguindo depois o processo os seus trâmites normais.
*
3. Respondeu o Ministério Público na 1ª instância (fls. 215 a 218) concluindo pelo não provimento do recurso.
*
Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (fls. 225 a 227), pugnando igualmente no sentido do não provimento do recurso.
*
4. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP.
Respondeu o recorrente nos termos que contam de fls. 232 a 235, que aqui se dão por reproduzidos, concluindo pela procedência do recurso.
*
5. Colhidos os vistos legais realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
*
II- FUNDAMENTAÇÃO:
O objecto do recurso é demarcado pelo teor das suas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP).
Incumbe a este Tribunal da Relação verificar se o Sr. JI (Juiz de Instrução), em vez de rejeitar o RAI (requerimento de abertura de instrução) apresentado pelo assistente, antes o deveria ter recebido, declarando aberta a instrução, realizando as diligências probatórias requeridas e, assim, prosseguindo os autos os seus ulteriores termos.
No caso destes autos, perante a notificação, ocorrida em 28.2.2012 (tal como é aceite pelo recorrente), de ter sido arquivado o inquérito (por despacho do Magistrado do Ministério Público seu titular, proferido em 20.2.2012, que consta de fls. 106 a 109), o assistente suscitou a intervenção hierárquica, ao abrigo do art. 278º do CPP (fls. 113 a 117) em 16.3.2012, e, sendo indeferida a reclamação apresentada (por despacho do Sr. Procurador da República proferido em 21.3.2012[1], que consta de fls. 130 a 133), da qual disse ter sido notificado em 21.3.2012, veio apresentar RAI em 30.4.2012 (por fax de fls. 138 a 160, estando o original a fls. 164 a 178), o qual foi rejeitado, por extemporaneidade, pelos motivos indicados na decisão sob recurso, proferida em 6.9.2012.
Coloca-se, por isso, previamente a questão de saber se o recorrente/assistente, perante o arquivamento determinado pelo Ministério Público titular do inquérito (que teve origem na queixa apresentada pelo referido B… contra C…, por crime de denúncia caluniosa p. e p. no art. 365º, nº 1, do CP, tal como resulta de fls. 2 a 5), tendo suscitado a intervenção hierárquica ao abrigo do art. 278º do CPP, notificado do indeferimento dessa reclamação por si apresentada, pode ainda apresentar RAI.
Passemos então a apreciar a questão colocada.
Em traços gerais, começaremos por dizer que, a instrução destina-se, consoante os casos, ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou a proceder ao controlo judicial da decisão do MºPº de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (art. 286º, nº 1, CPP[2]).
Essas decisões de acusação ou de arquivamento são as proferidas pelo MºPº titular do inquérito.
Por isso, estabelece o art. 287º (Requerimento para abertura da instrução) do CPP:
1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente[3] o disposto no artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c)[4]. Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
4 - No despacho de abertura de instrução o juiz nomeia defensor ao arguido que não tenha advogado constituído nem defensor nomeado.
5 - O despacho de abertura de instrução é notificado ao Ministério Público, ao assistente, ao arguido e ao seu defensor.
6 - É aplicável o disposto no nº 12 do artigo 113º.
A instrução, como diz Mouraz Lopes[5], «surge, assim, essencialmente como função garantística. Garantística fundamentalmente perante uma autoridade autónoma que detém o poder de acusar ou arquivar, obedecendo naturalmente a critérios de legalidade, mas que não deixa de estar, diríamos de uma maneira provocatória, no lado acusatório, em conflito com o cidadão».
Enquanto fase jurisdicional[6] (ainda que facultativa), a instrução compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.
Daí que se compreenda que o objecto da instrução tenha “de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa”[7] e essa definição “abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.”[8]
No entanto, a instrução não é um pré-julgamento, nem tão pouco se traduz numa forma de completar a investigação feita no inquérito.
No que interessa à presente decisão, é de salientar que, perante a decisão de arquivamento determinado pelo Ministério Público titular do inquérito (concretamente em casos de investigação de crimes públicos ou semi-públicos), o assistente podia provocar a intervenção hierárquica (art. 278º do CPP) ou podia requerer a abertura da instrução (art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP).
Dispõe o artigo 278º (Intervenção hierárquica) do CPP:
1 - No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento.
2 - O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento.
Decorre dessa disposição legal que a opção do legislador (concorde-se ou discorde-se dela, uma vez que não incumbe aos magistrados concordar ou discordar das opções de política criminal, tal como foram delineadas pelo legislador e, igualmente não podem substituir o legislador sob pena de violação do princípio da separação de poderes) foi a de a intervenção hierárquica (ocorra oficiosamente ou de forma provocada, neste último caso a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, portanto, pela via da reclamação) ter lugar quando já não seja possível a fase de instrução.
Isso mesmo resulta quer do nº 1 do art. 278º do CPP, quando estabelece o prazo (20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida) para a intervenção oficiosa ou provocada do superior hierárquico do titular do inquérito que proferiu o despacho de arquivamento, quer do nº 2 da mesma disposição legal, quando estabelece o momento temporal para suscitarem a intervenção hierárquica (se optarem por não requerer a abertura da instrução, podem suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento).
Ou seja, só quando já não puder ser requerida a abertura de instrução (devendo para tanto ter-se em conta o art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP) ou quando o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente optarem por não requerer a instrução (o que significa que não querem apresentar requerimento de abertura de instrução, no prazo estabelecido no art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP) e reclamarem tempestivamente para o superior hierárquico, é que este (no caso de não ter actuado oficiosamente) pode “controlar” (apreciar) internamente a decisão do titular do inquérito, seu inferior hierárquico.
Da referida norma decorre que só quando não haja lugar à fase facultativa da instrução (que perante o arquivamento de crime público ou semi-público só pode ser requerida pelo assistente no prazo estabelecido no art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP, sem prejuízo do mesmo nesse prazo praticar acto que signifique renúncia à instrução) é que o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente pode reclamar para o superior hierárquico do titular do inquérito que proferiu o despacho de arquivamento, o que obviamente pressupõe e exige o cumprimento do prazo peremptório estabelecido no art. 278º do CPP.
Por isso, as opções facultativas da apresentação de requerimento de abertura de instrução ou da apresentação de requerimento a suscitar a intervenção hierárquica são modos de reacção alternativos (e não cumulativos, nem sucessivos) ao despacho de arquivamento do titular do inquérito.
O assistente (sendo uma das condições para ser admitido como tal) que é representado por Advogado, tem de fazer a sua opção perante as alternativas que lhe são conferidas pela lei, as quais tutelam e salvaguardam suficientemente os seus direitos, aliás, em conformidade com o estabelecido na CRP, nomeadamente do seu art. 18º; por isso, não pode o assistente subverter a vontade do legislador, requerendo, primeiro, a intervenção hierárquica e, depois, requerendo a abertura de instrução, esquecendo inclusivamente o prazo estabelecido no art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP, de 20 dias contado do despacho de arquivamento do titular do inquérito.
Se queria submeter o despacho de arquivamento do titular do inquérito a “comprovação judicial”, então tinha que ter optado pela apresentação atempada do requerimento de abertura de instrução.
Tendo antes optado pela intervenção hierárquica então isso significa que renunciou a uma apreciação judicial daquele despacho de arquivamento do titular do inquérito (por isso, só ao próprio assistente pode ser imputada a renúncia a uma apreciação judicial daquele despacho de arquivamento).
A dedução da renúncia à fase facultativa da instrução torna-se uma evidência quando o assistente, ainda no prazo aludido no art. 287º, nº 1, al. b), do CPP, em vez de requerer a abertura de instrução, opta por requerer a intervenção do superior hierárquico ao abrigo do art. 278º do CPP.
As duas alternativas de reacção ao despacho de arquivamento pelo titular do inquérito asseguram o direito a um processo justo e equitativo, mostrando-se essa opção do legislador (escolha essa que se insere no âmbito da sua liberdade de conformação) em consonância com as normas constitucionais aplicáveis, v.g. arts. 20º, nº 1 e nº 4, 32º e 18º da CRP.
Por isso, forçoso é concluir que foi assegurada a tutela dos direitos do assistente, o qual os exerceu como entendeu.
O disposto no art. 268º, nº 4, da CRP não é aplicável no processo penal, razão pela qual foi também indevidamente convocado pelo recorrente o disposto no art. 18º do mesmo diploma fundamental.
É que no âmbito do processo penal não está em causa “o estatuto jurídico do particular na sua posição perante a «administração», sendo certo que igualmente não pode ser confundido com “procedimento/processo administrativo”[9].
De resto, não se pode confundir a competência do Juiz de Instrução (definida no art. 17º do CPP), com a do juiz do tribunal administrativo, que conhece da impugnação de acto administrativo.
Note-se que parte da argumentação do aqui recorrente, encontra-se nas conclusões do recurso apreciado pelo Ac. do STJ de 17.1.2007, proferido no processo nº 06P4597, publicado no site do ITIJ, que todavia não se vê (quiçá por esquecimento) que o aqui recorrente tenha citado.
Para contrariar essa argumentação remetemos aqui também para o que foi decidido nesse ac. do STJ de 17.1.2007[10].
Por isso, também o raciocínio do recorrente, quando pretende contar o prazo para requerer a abertura de instrução a partir da data em que foi notificado da decisão do superior hierárquico do titular de inquérito, mostra-se viciado e contraria o estabelecido no art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP, o qual reporta a contagem do prazo ao despacho de arquivamento do titular do inquérito (e não ao despacho proferido pelo superior hierárquico, que indeferiu a reclamação apresentada pelo assistente/recorrente).
Entendimento diferente implicaria que o Juiz de Instrução fosse “comprovar judicialmente” a decisão do superior hierárquico do titular do inquérito, o que não é permitido legalmente, como se extrai claramente do disposto nos arts. 286º e 287º, nº 1, alínea b), do CPP (para além de se traduzir - face à legislação actual - numa insuportável ingerência na autonomia do MºPº, o que significava uma interpretação inconstitucional, desde logo por violação do disposto nos arts. 32º, nº 5 e 219º, nº 2, da CRP).
Para além disso, como bem diz o Ministério Público na resposta ao recurso «O despacho proferido pelo superior hierárquico a indeferir o pedido de intervenção hierárquica não constitui um despacho novo de arquivamento, pelo que o prazo para ser requerida a abertura de instrução não pode ser contado da data deste despacho, mas sim do único despacho de arquivamento proferido nos autos”, que é precisamente o do titular do inquérito.»
Por isso, também é lógica a conclusão de que o “despacho decorrente da intervenção hierárquica não é, nem formal, nem materialmente, um despacho de arquivamento.[11]
E isso, para além de não estar previsto na lei (o que se compreende, por os mecanismos previstos, por um lado no art. 278º do CPP e por outro no art. 287º, nº 1, al. b), do CPP, serem alternativos e não cumulativos) que o requerimento a suscitar a intervenção hierárquica é causa de suspensão ou de interrupção do prazo para requerer a abertura de instrução[12].
Aliás, se fosse essa a intenção do legislador, assim o estabelecia expressamente numa das disposições (v.g. art. 278º ou art. 287º) do CPP, o que, porém, não sucedeu.
Como decorre igualmente do ac. de fixação nº 2/96, de 6.12.1995 (publicado no DR I A de 10.1.1996), cuja jurisprudência” se “conserva na actualidade”[13], apesar das alterações legislativas que aumentaram o prazo de 5 dias para 20 dias, não há dúvidas que «A disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos prescinde da figura da dilação», sendo o prazo para requerer a abertura da instrução (previsto no nº 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal) peremptório.
Essa jurisprudência reforça o entendimento já avançado de que o prazo para requerer a abertura de instrução (de 20 dias, que pode ser prorrogado nos termos e condições previstas no art. 107º, nº 6, do CPP, não sendo este último caso o destes autos) conta-se (no caso do requerente ser o assistente) da notificação do arquivamento determinado pelo titular do inquérito.
Tudo isso mostra bem que, face ao estabelecido no art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP, o despacho de arquivamento é apenas o do titular do inquérito, o qual não carece de ser “integrado pela decisão do superior hierárquico”, nem necessita de qualquer “estabilização” (através v.g. de decisão de superior hierárquico ou do simples decurso do prazo para requerer a intervenção hierárquica) para se tornar definitivo, ao contrário do alegado pelo recorrente na resposta ao parecer do Sr. PGA.
Para efeitos da contagem do prazo aludido no art. 287º, nº 1, al. b), do CPP apenas interessa a notificação do arquivamento proferido pelo órgão competente para o efeito, ou seja, pelo Ministério Público que, na altura em que for encerrado o inquérito, for o seu (do inquérito) titular.
Daí, também, resulta que, quando no prazo aludido no art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP, ou seja, no prazo de 20 dias a contar da notificação do arquivamento pelo titular do inquérito, o assistente reclamou para o superior hierárquico daquele, ao abrigo do art. 278º do CPP, esse seu (do assistente) requerimento apenas pode ser interpretado como traduzindo a sua opção de não requerer e, portanto, renunciar à abertura de instrução (já que o não haver lugar à fase facultativa da instrução, a par dos demais requisitos legais, é pressuposto para poder accionar o mecanismo da intervenção hierárquica).
No mesmo sentido acabou por decidir o Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 501/2005 (in DR II Série de 23.11.2005), quando concluiu que “a norma do n.º 1 do artigo 287.º do CPP, quando interpretada no sentido de que o prazo de 20 dias para o assistente requerer a abertura da instrução se conta da notificação do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e não da notificação do despacho que, em intervenção hierárquica, o confirme, também não viola o n.º 7 do artigo 32.º nem o n.º 4 do artigo 32.º da Constituição.”
Em conclusão: o despacho de arquivamento do titular do inquérito só pode ser reapreciado ou pelo seu superior hierárquico (art. 278º do CPP) ou pelo Juiz de Instrução (arts. 286º e 287º, nº 1, alínea b), do CPP), não podendo o assistente usar dos dois mecanismos previstos na lei, sendo certo que (ainda que assim não fosse) o RAI apresentado pelo assistente em 30.4.2012 é extemporâneo uma vez que já tinha decorrido o prazo aludido no art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP, visto que foi notificado do despacho de arquivamento proferido pelo titular do inquérito em 28.2.2012.
O que tudo melhor se compreende quando se tem noções claras sobre, por um lado, a natureza pública do processo penal, que, no caso português, tem uma “estrutura acusatória” mitigada (não vigorando o sistema acusatório puro), por outro lado, que cada sujeito processual tem uma posição própria no processo penal e, finalmente, que cada uma das Magistraturas (Ministério Público e sua hierarquia por um lado e Juízes por outro lado) tem a sua esfera própria de actuação, incumbindo-lhes observar as respectivas funções e incumbências que lhe são atribuídas por lei.
Obviamente que ao juiz, designadamente, o de instrução não incumbe “controlar o exercício da acção penal”[14] (quer por não ser superior hierárquico do Ministério Público, quer por a sua actuação não ser a de juiz/investigador).
Sendo independente e autónoma a actuação de cada uma das Magistraturas nas sucessivas fases do processo, não pode o juiz arrogar-se poderes que não tem, como se ainda vigorasse o sistema inquisitório (ou seja, não pode haver confusão de papéis, nem o juiz pode “usurpar” os poderes do Ministério Público), que era o que sucedia caso vingasse o pretendido pelo assistente à revelia da lei e da própria Constituição (vg. seu art. 32º, nº 5 e nº 7).
Por isso, podemos afirmar que bem decidiu o Sr. Juiz de Instrução quando concluiu pela rejeição do RAI.
Acrescente-se que, como diz Paulo Dá Mesquita[15], a “intervenção hierárquica integra um forma processual de comprovação do despacho do Ministério Público supletiva da judicial que se concretiza na fase de instrução, função que compreende um poder revogatório oficioso e um direito de reapreciação através do impulso endoprocessual de reexame por uma (e apenas uma) segunda instância do Ministério Público. Este regime tem dois corolários:
- O primeiro é a proibição de qualquer intervenção intra-orgânica revogatória das restantes decisões de mérito sobre a acção penal (e em particular do despacho acusatório que vincula externamente o Ministério Público em virtude da consagração do princípio da irretractabilidade da acção penal), isto é, o poder de revogação do acto processual de encerramento do inquérito cinge-se a determinadas decisões de arquivamento.
- O Segundo é que ultrapassado o prazo de revogação hierárquica os despachos de arquivamento que podem ser objecto de revogação intra-orgânica passam a estar dotados de efeitos de caso decidido rebus sic stantibus (ou quase caso julgado).
O regime de revogação intra-orgânico de decisões de arquivamento exprime desta forma o resultado da ponderação, pelo legislador, das exigências do controlo necessário à efectivação do ius puniendi estadual e do princípio da segurança jurídica, por seu turno subprincípio do Estado de Direito.
Com efeito, decorrido o prazo peremptório de reparação intra-orgânica do despacho de arquivamento o inquérito apenas pode vir a ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos do despacho de arquivamento.”
Nesta perspectiva ter-se-á igualmente de concluir que o assistente, quando provocou a intervenção hierárquica do titular do inquérito, prescindiu que o “controlo” do despacho de arquivamento (ou a sua reapreciação) fosse feita pelo juiz de instrução (renunciando, assim, o assistente à fase facultativa da instrução, que seria o meio de obter o “controlo” judicial daquela decisão que pretendia impugnar), razão pela qual o despacho do superior hierárquico que indeferiu a sua (do assistente) reclamação, conferiu ao despacho de arquivamento o efeito “de caso decidido rebus sic stantibus”, só podendo “vir a ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos do despacho de arquivamento.” (ver art. 279º do CPP).
Ou seja, também por aqui se conclui que, apresentada reclamação hierárquica, já não era admissível depois (por a mesma ter sido indeferida) requerer a abertura de instrução.
É que quer a intervenção do superior hierárquico, quer o requerimento de abertura de instrução, neste aspecto, tem a mesma finalidade (sendo disso exemplo, aliás, os termos em que o assistente configurou por um lado a intervenção hierárquica e, por outro lado, o requerimento de abertura de instrução, tendo em ambos o mesmo objectivo de obter a acusação da arguida): reapreciar se foi bem ou mal proferido o despacho de arquivamento pelo titular do inquérito, sendo que, no primeiro caso, quem decide é o superior hierárquico, enquanto no segundo caso, é o juiz de instrução e, portanto, neste último caso a reapreciação é judicial.
Por último, refira-se que o despacho sob recurso não padece de qualquer nulidade e muito menos de omissão de pronúncia (ao contrário do alegado pelo recorrente não é elemento essencial a data em que o recorrente deduziu reclamação hierárquica, desde logo, porque ao fazê-lo isso significa que renunciou à apreciação jurisdicional do despacho de arquivamento do titular do inquérito).
Assim, sem necessidade de mais dilatadas considerações, conclui-se pela improcedência do recurso aqui em apreço, mantendo-se a decisão recorrida, sendo certo que não foram violados os preceitos legais invocados pelo recorrente.
*
III- DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente B….
Pela improcedência, vai o recorrente condenado em 4 UCs de taxa de justiça.
*
(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária. O verso das folhas encontra-se em branco – art. 94º, nº 2, do CPP)
*
Porto, 06.02.2013
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
___________________
[1] Pelo Exmo. Magistrado titular do inquérito foi proferido despacho final de arquivamento dos autos por falta de provas nos termos do artigo 277.° n° 2 do Código de Processo Penal, proferido em 20/02/2012, do seguinte teor, em suma:
Os presentes autos tiveram origem na queixa efectuada por B…, contra C…, porquanto, esta apresentou uma queixa contra o condutor do veículo de matrícula ..-BG-.., por no dia 29 de Setembro de 2010, na Estação de serviço da …, na Maia, através do uso de um espelho retrovisor de veículo automóvel, a ter espiado na casa de banho feminina, tendo-o reconhecido como o condutor do dito veículo, sendo tal imputação falsa.
Nestes autos e para prova da falsidade da imputação apenas temos as declarações do assistente, as quais não encontram suporte em qualquer outro meio de prova.
Pelo contrário, a prova produzida no p.° n.° 1344/10.9GAMAI (processo no qual a aqui arguida é queixosa/assistente e o aqui assistente é ali arguido) é no sentido de serem verdadeiros os factos que lhe são imputados, como se reforça pelo facto de o arguido ali ter sido acusado e pronunciado pelos mesmos.
Mesmo a admitir-se a possibilidade de o arguido puder vir a ser absolvido em julgamento, certo é que a prova até agora conhecida permite concluir pela ausência de indícios de que a aqui denunciada tenha imputado ao assistente factos falsos, aliás, a queixa não foi apresentada contra ele directamente, mas contra o condutor de um determinado veículo e só no decurso do inquérito se veio a identificar o mesmo e depois reconhecido pela aqui denunciada.
Assim, a manter-se a prova em julgamento, sempre estaríamos perante dúvida razoável sobre se os factos teriam sido ou não praticados pelo assistente, sendo certo que a prova recolhida nos autos supra referidos é no sentido de conferir credibilidade à queixa apresentada por C….
Concluímos assim pelo não apuramento em inquérito de indícios de que C… tenha denunciado em relação ao assistente factos falsos, elemento essencial ao preenchimento do tipo de crime de denúncia caluniosa.
É deste despacho que vem reclamar o assistente B…, sem qualquer razão podemos desde já adiantar.
O crime de denúncia caluniosa está previsto no artigo 365.° do Código Penal
Artigo 365.°
Denúncia caluniosa
1 - Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - Se a conduta consistir na falsa imputação de contra-ordenação ou falta disciplinar, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
3 - Se o meio utilizado pelo agente se traduzir em apresentar, alterar ou desvirtuar meio de prova, o agente é punido:
a) No caso do n.° 1, com pena de prisão até 5 anos;
b) No caso do n.° 2, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
4 - Se do facto resultar privação da liberdade do ofendido, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
5 - A requerimento do ofendido o tribunal ordena o conhecimento público da sentença condenatória, nos termos do artigo 1 89.°.
Este crime é de natureza dolosa, é preciso que o agente tenha consciência, quando faz queixa contra alguém da falsidade dessa imputação, é necessário que o seja a título de dolo directo, como resulta das actas da comissão revisora onde tal matéria foi expressamente abordada, vide anotação 3. ao dito artigo pelo ilustre e saudoso C.° Maia Gonçalves ao seu código Penal anotado 18ª edição de 2007, Almedina a fls. 1080, estando afastada decisivamente a imputação ao agente a título de dolo eventual.
Ora, no caso dos autos não se vislumbra (ou melhor até se vislumbra que a queixa dos presentes autos contra a C… feita pelo assistente B… está muito mais perto de se poder integrar o tipo do artigo 365.° do Código Penal do que a primitiva queixa feita por aquela e aqui em análise) que a actuação da C… ao denunciar na GNR da Maia uma situação ocorrida na casa de banho da área de serviço da … na Maia em 29 de Setembro de 2010, data da prática dos factos, contra o condutor do veículo de matrícula ..- BG-.., possa integrar a prática do crime referido.
Inquirida por magistrado do Ministério Público, nestes serviços, em 28 de Outubro de 2010, e sem haver notícia de que os referidos C… e B… se conhecessem antes dos factos denunciados por aquela, ou que se tivessem visto entretanto referiu a mesma, espontaneamente, sem que lhe fosse exibida qualquer fotografia ou dados pessoais ou de identificação do suspeito, vide fls.53 “Descreve o indivíduo como sendo uma pessoa com cerca de 1,64 cm de altura, sem barba, sem óculos, para o forte, mas não gordo, cara redonda, pele mais para o moreno - moreno de trabalho - com cerca de sessenta anos”.
Características que reafirmou quando do auto de reconhecimento de pessoas a fls. 69 em que veio a reconhecer, como autor dos factos por si participados a fls. 69.
E a testemunha D…, funcionária da dita área de serviço, que também não consta ser conhecida do assistente, mas que contactou com o suspeito dos factos do dia 29 de Setembro de 2010, também inquirida nestes serviços por Magistrado do Ministério público disse “É capaz de reconhecer o senhor em causa que o descreve como tendo cerca de sessenta nãos, sem óculos, sem barba, olhos claros cabelo branco gordinho de corpo e de cara.”
Ora, não é que o aqui assistente tinha na altura 58 anos de idade e mede 1,66 cm correspondendo a fotografia (cópia) da sua cara a fls. 65/67 às descrições da aqui denunciada e da sua testemunha acima referidas, não é ele o dono do veículo?
Tais elementos de prova conjugados e ainda com o facto de ter sido encontrado, na casa de banho dos homens da dita estação de serviço, usado pelo autor dos factos para observar as partes intimas da C… são suficientes para o acusar dos factos de que se queixou a aqui denunciada e a repetir-se tal prova em julgamento serão, seguramente, suficientes para que o mesmo venha a ser condenado pela prática do crime p. e p. pelo artigo 192º n.° 1 al. c) do Código Penal.
Ou seja, não são necessárias, nem relevantes as diligências de prova requeridas pelo assistente.
A acareação, pois o aqui assistente, nos ditos autos nem sequer quis prestar declarações e nenhum efeito útil, tem, tal diligência, face ao que acima dissemos quanto ao tipo legal, para a decisão dos presentes autos.
A notificação da Peugeot Portugal é manifestamente irrelevante pois em nenhum local da queixa ou da acusação se diz que o espelho usado é o do Peugeot ..-GB-...
As declarações da arguida em sede de inquérito estão juntas e até já nos referimos às mesmas e em instrução que ora se vão juntar, mantém, basicamente, as ditas declarações.
Quanto às declarações do funcionário do arguido a testemunha E… conclui-se com a devida vénia como o Sr. Juiz de Instrução “não obstante a testemunha arrolada pelo arguido e cujo depoimento consta de fls. 215 e 216, entendemos que tal depoimento, por si só, não tem a virtualidade de afastar, nesta fase meramente indiciária os indícios até então recolhidos, até porque, por um lado, o arguido sempre poderia ter estado no local dos factos sem conhecimento da testemunha, por outro lado, o facto da testemunha ser funcionário do arguido retira alguma credibilidade ao seu depoimento “.
Termos em que, sem mais considerandos, se indefere a presente reclamação e se mantém e reafirma o arquivamento dos autos decidido pelo despacho do Exmo. Magistrado titular.
*
Registe. Notifique.
Extraia certidão e arquive.
[2] Artigo 286º (Finalidade e âmbito da instrução) do CPP
1 - A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
2 - A instrução tem carácter facultativo.
3 - Não há lugar a instrução nas formas de processo especiais.
[3] Por isso se diz no Ac. do TC nº 358/2004 que, o requerimento de abertura de instrução “consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento, por factos geradores de responsabilidade criminal. A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução. (…) [Existe] uma semelhança substancial entre tal requerimento [de abertura de instrução] e a acusação. Daí que o art. 287º, nº 2, remeta para o art. 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do CPP, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento de abertura de instrução. Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento de abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do art. 283º do CPP”. Acrescenta a Relatora que essa exigência quanto ao requerimento para abertura de instrução “decorre (…) de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legítima”. Também, no Ac. do TC nº 674/99, DR II de 25/2/2000, se realça que “a necessidade de uma narração de factos penalmente censuráveis [pode ser vista] como uma decorrência lógica do princípio da vinculação temática, já que, só deste modo a acusação pode conter os limites fácticos a que fica adstrito o tribunal no decurso do processo (cfr. António Barreiros, Manual de Processo Penal, Universidade Lusíada, 1989, pág. 424). Ou seja, a narração dos factos, que constituem elementos do crime, deve ser suficientemente clara e perceptível não apenas, por um lado, para que o arguido possa saber, com precisão, do que vem acusado, mas igualmente, por outro lado, para que o objecto do processo fique claramente definido e fixado. É, assim, imperativo que a acusação e a pronuncia contenham a descrição, de forma clara e inequívoca, de todos os factos de que o arguido é acusado, sem imprecisões ou referências vagas”.
[4] Estabelece o nº 3 do artigo 283º (acusação pelo Ministério Público) do CPP, no que aqui interessa, que a acusação contém, sob pena de nulidade:
(…)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)
[5] José Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Processo Penal, do Juiz e da Instrução, Coimbra Editora, 2000, p. 69.
[6] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, p. 128, citando Jorge Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 16, refere: “A actividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”. Por isso, é comum afirmar-se que a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito.
[7] Ac do TC nº 358/2004, DR II de 28/6/2004 (relatora Fernanda Palma).
[8] Assim, Ac do TC nº 358/2004.
[9] Ver, a este propósito, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, anotada, II volume, 4ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, pp.819 a 834. Assinalam os mesmos Autores que “O âmbito normativo de procedimento/processo tanto abarca o procedimento administrativo clássico destinado a canalizar juridicamente a formação, manifestação ou execução da vontade da administração, como os procedimentos cooperativos e contratuais como é o caso, entre outros, dos contratos públicos (…).”
[10] Consta do referido Ac. do STJ de 17.1.2007 a esse propósito:
“Sobre o tema, não temos mais do que repetir, no essencial, a fundamentação do acórdão deste Tribunal de 16.03.05, proferido no Recurso nº 147/05-3ª Secção de que foi Relator o mesmo que subscreve este, o qual, por sua vez, seguiu de perto anterior acórdão também desta Secção, de 15.12.04, Recurso nº 2027/04.
Escreveu-se então:
No referido Pº nº 2027, … a questão que constituía o objecto desse recurso era exactamente a mesma que aqui vem suscitada - se o prazo do artº 287º, nº 1 do CPP, no caso de requerimento do assistente, se conta do despacho de arquivamento do magistrado do Ministério Público que dirigiu o inquérito, ou, antes, como defende o Recorrente, do despacho de arquivamento definitivo proferido «ao nível do último escalão hierárquico». Ou, noutra perspectiva: se, no caso de arquivamento do inquérito, nos termos do artº 277º, o assistente ou a pessoa com a faculdade de se constituir como tal pode optar entre a reclamação hierárquica e o requerimento para a abertura da instrução e, no caso de aquela ser indeferida, se pode ainda requerer a instrução, contando-se então o prazo do artº 287º da notificação da decisão prevista no artº 278º.
Fez aí [no processo 2027] vencimento a tese de que aquele prazo se conta, no que agora releva, do despacho de arquivamento previsto no artº 277º do CPP, isto é, do despacho do magistrado titular do inquérito… Para se chegar a essa conclusão, considerou-se que a intervenção hierárquica prevista no artº 278º e o requerimento de abertura da instrução não constituem formas sucessivas de reacção contra o despacho de arquivamento. O controlo de tal despacho ou é feito por via jurisdicional, através do requerimento de instrução ou, não tendo esta sido requerida, pelo superior hierárquico, nos termos daquela disposição legal. Requerida ou verificada esta, o interessado já não poderá requerer aquela, até pela preclusão do respectivo prazo.
[O voto de vencido nele exarado] assenta, a nosso ver, em duas ideias nucleares: se o requerimento da abertura da instrução preclude a intervenção hierárquica, desde logo porque, com ele, iniciando-se uma nova fase processual, cessam as competências de intervenção do órgão titular da fase anterior (o Ministério Público), já o recurso a esta não impede o primeiro que poderá ser apresentado depois de o interessado «obter despacho que constitua a última intervenção possível no domínio do encerramento do inquérito». Nesta lógica, «a decisão relevante para poder ser judicialmente confrontada com a abertura da instrução só pode ser aquela que tiver, no processo, a função de encerrar o inquérito, tomada no âmbito das competências próprias (simultaneamente internas e processuais) do órgão, e não de um seu concreto titular, ao qual compete a direcção do inquérito e a decisão sobre o seu encerramento».
… Que dizer?
… Vejamos, em breve apontamento, a evolução legislativa:
No domínio do DL 35007, se o Ministério Público não formulasse acusação, disso deveria ser notificado o denunciante que, se fosse pessoa com a faculdade de se constituir assistente, poderia reclamar para o Procurador da República da falta de acusação - artº 27º.
Na falta de reclamação, os autos seriam conclusos ao juiz que, se entendesse estarem verificados os pressupostos da acusação, lavraria despacho com as suas razões, subindo os autos ao Procurador da República que decidiria - artº 28º:
Relativamente a processos por crime público a que correspondesse processo de querela, que não conduzissem à acusação, seria enviada trimestralmente ao Procurador da República a respectiva relação, o qual, no prazo de 30 dias, poderia mandar formular acusação, mandar prosseguir a investigação ou suscitar o deferimento da instrução à Polícia Judiciária.
O controlo da decisão de não acusar era, assim, feito sempre por via hierárquica, através de reclamação do interessado, por promoção do juiz ou oficiosamente, nos termos da última das disposições legais citadas.
De modo idêntico se processava esse controlo no domínio do DL 605/75, que instituiu o inquérito como forma de averiguação de infracções criminais, cujo artº 6º-A, introduzido pelo DL 377/77, de 6/9, era do seguinte teor: «quando o Ministério Público deixar de requerer o julgamento ou de deduzir acusação, após o encerramento do inquérito preliminar ou da instrução preparatória, será disso notificado o denunciante, o qual, se tiver a faculdade de se constituir assistente, poderá, no prazo de 5 dias, reclamar hierarquicamente».
No Código actual, na versão inicial, face às normas dos arts. 277º, 278º e 287º, a questão desse controlo foi solucionada em temos substancialmente diferentes. Encerrado o inquérito por despacho de arquivamento, nos termos do artº 277º,
- a) no prazo de 30 dias contado da data desse despacho, o imediato superior hierárquico do Ministério Público [entenda-se do magistrado que proferiu esses despacho], se não tiver sido requerida a instrução, podia determinar que fosse formulada acusação ou que as investigações prosseguissem – artº 278;
- b) no prazo de 5 dias (20 dias, a partir do DL 317/95, de 29/11) a contar da notificação do mesmo despacho, o assistente podia requerer a abertura da instrução.
A Lei 59/98, de 25 de Agosto, provinda da Proposta de Lei 157/VII, alterou, além de outros, o artº 278º. Enquanto na versão inicial o prazo da intervenção do imediato superior hierárquico era de 30 dias a contar da data do despacho de arquivamento, agora esse mesmo prazo passou a contar-se da data desse despacho ou da sua notificação ao assistente ou ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente, se a ela houver lugar.
Mas, como antes, a intervenção hierárquica só podia ocorrer se não tivesse sido requerida a abertura da instrução.
… A pretensão do Recorrente pressupõe que a lei tenha conferido ao assistente ou a quem tenha legitimidade para o ser o direito processual de reclamar hierarquicamente do despacho de arquivamento do titular do inquérito.
Mas, como se vê da evolução legislativa atrás esboçada, o CPP87 aboliu a reclamação hierárquica como instrumento processual de reacção contra essa decisão. Esse controlo passou a ser feito pela intervenção oficiosa do imediato superior hierárquico desse magistrado ou por recurso à via judicial, através do requerimento de abertura da instrução. O direito de reclamação hierárquica esse ficou confinado ao despacho que tiver deferido ou recusado a reabertura do inquérito, nos termos do artº 279º, aliás a única via de sindicar esta decisão [Com efeito, tendo a Associação Sindical dos Juízes Portugueses sugerido que este despacho pudesse ser controlado judicialmente, a respectiva proposta não foi acolhida em sede de votação na especialidade, com a justificação de que «permitir ou admitir a intervenção (pela 2ª vez) do juiz de instrução (mediante requerimento de instrução) seria anómalo – era como controlar a abertura [do inquérito]...»; relativamente aos inquéritos por crime em que lesado é o Estado, porque «quem representa o Estado é o Ministério Público e não o juiz» – Cfr. “Projecto de Revisão do Código de Processo Penal”, Ministério da Justiça, 36 e 200 e “Código de Processo Penal – Processo Legislativo”, Vol. II, Tomo II, 169].
Enfim, como referiu Cunha Rodrigues, antes da revisão de 98, mais precisamente em 12.05.95, o CPP clarificou o conceito de hierarquia e comprimiu o seu conteúdo «... ao excluir a reclamação hierárquica do despacho de arquivamento e substitui-lo por um procedimento de controlo, delimitado no tempo, e titulado pelo imediato superior hierárquico...Ao mesmo tempo, o despacho de arquivamento passou a ser objecto de oposição jurisdicionalizada e ficou esclarecido que a hierarquia comporta apenas um grau - cfr. “Sobre o modelo de hierarquia no organização do Ministério Público”, in Revista do Ministério Público, nº 62, 24.
Dir-se-á, no entanto, que, podendo o superior hierárquico intervir nos termos referidos, nada obstará a que essa intervenção seja sugerida pelo particular interessado na alteração do despacho de arquivamento. Isto é, o «ofendido» sempre gozaria da faculdade de provocar tal intervenção.
Todavia, essa eventual faculdade não podia, na versão inicial do Código, ser encarada como opção ao requerimento de abertura de instrução porque a lei não garantia o seu exercício eficaz com a finalidade de controlar o despacho de arquivamento. Basta ver que o prazo do artº 278º se podia esgotar antes mesmo de o interessado ter tido conhecimento desse despacho.
…. Os prazos para a intervenção hierárquica e para a abertura da instrução, corriam, de facto, de modo autónomo e não necessariamente em paralelo. Tal circunstância, além de arredar a existência de um direito de reclamação e de poder comprometer a eficácia da aludida faculdade, permite-nos tirar conclusões sobre a articulação entre os dois instrumentos processuais.
Claro que, se fosse requerida a instrução, a questão da intervenção hierárquica não se colocaria, porquanto se iniciava assim uma nova fase processual da titularidade de autoridade judiciária diferente.
Para além dessa eventualidade, a intervenção hierárquica, porque o respectivo prazo corria independentemente da notificação ao «ofendido» do despacho de arquivamento, só podia ter sido concebida, em primeira e fundamental linha, para controlo desse despacho, quando proferido em inquérito por crime que não admitisse a constituição de assistente. Por sua vez, o requerimento para abertura da instrução constituía o meio processual conferido ao «ofendido» para reagir contra o mesmo despacho. Nem sequer se podia falar, então, em alternativa. O particular, em termos da realização da sua pretensão de ver revogado o despacho de arquivamento, apenas dispunha de um único instrumento plenamente eficaz – o requerimento de abertura da instrução.
Mas, sendo assim, qual o sentido do segmento «se não tiver sido requerida a abertura da instrução», condicionante daquela intervenção?
Em nossa opinião, a sua razão de ser residia no seguinte: a normalidade suposta pela lei era a de que, dada a diferença dos prazos previstos nos arts. 278º e 287º, o deste se esgotaria antes do facultado ao imediato superior hierárquico para intervir. Assim, decorrido o prazo para requerimento da abertura da instrução, sem que o interessado a tivesse requerido, o superior hierárquico ainda poderia intervir, por iniciativa própria ou por sugestão daquele, não interessa, no âmbito de processos por crimes que admitissem a constituição de assistente. Esta intervenção, só possível se não tivesse havido instrução, constituía, assim, a válvula de segurança do sistema, no que toca a tais processos.
No entanto, sendo facultativa a instrução, parece que nada impedia o «ofendido» de, renunciando a ela, suscitar, desde logo, perante o superior hierárquico a revisão do despacho de arquivamento, se este ainda estivesse em prazo de intervir. Mas, depois, se essa intervenção não lhe fosse favorável, não poderia requerer a abertura da instrução: porque a ela tinha renunciado e porque certamente o respectivo prazo já estaria ultrapassado.
Com a Lei 59/98, de 25 de Agosto, a filosofia inicial do Código não foi alterada.
Como nos diz a exposição de motivos da Proposta de Lei que está na sua origem, a alteração que se quis introduzir no artº 278º - a de o termo inicial da intervenção hierárquica passar a contar-se da notificação do despacho de arquivamento, e não da sua data - visava harmonizar o prazo dessa intervenção com o prazo do requerimento de abertura da instrução.
A redacção final que veio a ser dada ao preceito e que hoje vigora não foi contudo essa. Resultou de uma proposta de substituição apresentada pelo Partido Socialista, aprovada por unanimidade pela AR, a qual, segundo a declaração de voto do respectivo grupo parlamentar, pretendeu «em harmonização com o regime de abertura da instrução, permitir, em momento posterior, no caso de esta não ter sido requerida, a intervenção do superior hierárquico do Ministério Público, permitindo, assim, uma dupla possibilidade de controlo da decisão» (sublinhado nosso). E acrescentou: «Estabelecem-se termos iniciais de contagem do prazo diferentes, de acordo com as circunstâncias do caso». (Sobre esta evolução, Cfr. “... Processo Legislativo...”, cit. 108, 118 e 155).
O que se pretendeu foi, afinal, esclarecer e harmonizar a articulação entre os dois mecanismo de controlo.
Esclarecer que a intervenção hierárquica, nos processos por crime que admitam a constituição de assistente, repete-se, ocorrerá (só deverá ocorrer) em momento ulterior, no caso de a instrução não ter sido requerida, isto é, depois de esgotado o respectivo prazo.
Harmonizar a intervenção hierárquica com o regime da instrução, porque de facto, na versão inicial do CPP, como vimos, apesar de serem substancialmente diferentes os prazos para a intervenção hierárquica e para requerer a instrução (30 dias para a primeira; 5 dias, depois 20, para a segunda), diferente era igualmente o termo inicial de cada um deles (a partir da data do despacho de arquivamento e a partir da notificação desse despacho, respectivamente) - o que poderia, no limite, conduzir a que já estivesse esgotado o primeiro antes mesmo de o segundo ter começado a correr. Agora, em relação a esses processos, os dois prazos correm a partir do mesmo facto - a notificação ao assistente ou quem tiver a possibilidade de o ser - e o primeiro prolonga-se necessariamente por mais 10 dias, depois de esgotado o segundo. Tudo de modo a permitir uma «dupla possibilidade de controlo» porque, não exercido o direito de requer a abertura da instrução - o instrumento normal do particular reagir contra o despacho de arquivamento -, o superior hierárquico ainda pode intervir, ainda que a pedido daquele.
Com tais esclarecimentos, fica agora mais claro que a articulação entre os dois mecanismos de controlo do despacho de arquivamento só pode ser a que já antes deixamos enunciada: nos processos por crimes que não admitam a constituição de assistente, em que não pode ser requerida a instrução para comprovação do despacho de arquivamento (cfr. artº 287º, nº 1-b), o único meio de controlo é a intervenção hierárquica, cujo prazo corre da data do referido despacho, independentemente da sua notificação, nos termos do nº 3 do artº 277º; nos processos por crimes que a admitam, a primeira só é possível depois de esgotado o prazo para o segundo – por isso que, coincidindo o termo inicial de ambos os prazos e sendo o do artº 278º mais longo do que o do artº 287º, a válvula de segurança pode funcionar no diferencial de 10 dias, novamente por iniciativa própria ou provocada. E continuamos a não ver obstáculos à renúncia ao direito de requerer a abertura da instrução, com as possibilidades e consequência que antes ficaram apontadas.
Esta solução, para além do que foi dito, tem claro apoio no elemento gramatical. Com efeito, sendo o referente da contagem dos prazos do artº 278º e do artº 287º gramaticalmente o mesmo - o despacho de arquivamento - e se, no caso do primeiro, o despacho de arquivamento não pode senão ser o previsto no antecedente artº 277º, não se vê como, no caso do segundo, o referente tanto possa ser esse despacho como o proferido no uso dos poderes de intervenção hierárquica, o qual, todavia, nem a lei nem a praxis designam de despacho de arquivamento. Se o visado fosse o despacho do superior hierárquico, a lei tê-lo-ia seguramente dito de forma expressa, como, para situação com alguma semelhança, acontece na hipótese do artº 686º do CPC.
Por outro lado, a ideia de controlo sucessivo, duplo, não só conflitua com aquela explicação em sede de votação parlamentar da Lei, de que se visava uma dupla possibilidade de controlo - o que é substancialmente diferente da consagração de um controlo duplo, sucessivo -, como com uma das ideias base do novo Código de Processo Penal - a da celeridade processual -, como finalmente destoa do princípio geral em matéria de controlo das decisões judiciais de um só grau de recurso (como previa inicialmente o Código e ainda hoje é tendencialmente válido).
… Em resumo:
Arquivado o inquérito nos termos do artº 277º do CPP, o respectivo despacho pode ser sindicado nos seguintes termos:
- no caso de processo por crime que não admita a constituição de assistente, exclusivamente por via hierárquica, nos termos do artº 278º, contando-se o prazo aí previsto da data daquele despacho;
- no caso de processo por crime que admita a constituição de assistente:
- por via judicial, através de requerimento de abertura da instrução;
- não tendo esta sido requerida, por intervenção hierárquica, a exercer apenas depois de decorrido o prazo para aquele requerimento.
- no caso de renúncia à abertura da instrução, por intervenção hierárquica eventualmente suscitada pelo interessado, sem possibilidade naturalmente de posteriormente se confrontar esta decisão com a abertura da instrução.
… No caso sub judice, o pedido de intervenção dirigido ao imediato superior hierárquico do titular do processo, no decurso do prazo para requerer a abertura da instrução, significa necessariamente renúncia a essa faculdade. Por isso que o Recorrente, não tendo ali obtido ganho de causa, não pode agora requerer a instrução a que renunciara. De qualquer modo, o prazo para o fazer há muito se havia esgotado. Como vem decidido, aliás…».
Não vemos razões para mudar de opinião.
No nosso caso, o Assistente foi notificado do despacho de arquivamento previsto no nº 1 do artº 277º (despacho proferido depois da reabertura do inquérito) por carta registada expedida em 29.06.06 (cfr. talão de fls. 205), presumindo-se, assim, nos termos do nº 2 do artº 213º, que a notificação foi efectivada no dia 4 de Julho seguinte.
A partir desta data começou a correr o prazo para requerer a instrução que terminaria no dia 24 de Julho seguinte.
A verdade é que provocou a intervenção hierárquica no decurso desse prazo, mais concretamente em 19 de Julho, o que, como vimos, significa ter renunciado ao direito de requerer a instrução, estando-lhe consequentemente vedado, depois de ter visto a sua pretensão recusada, o recurso àquela via de controlo do despacho de arquivamento.
Por outro lado, constituindo a data da notificação daquele despacho da Senhora Procurador-Geral Adjunta o momento a partir do qual se conta o prazo do artº 287º, a consideração da regra da continuidade dos prazos estabelecidos por lei (a nossa hipótese) estabelecida nos arts. 104º, nº 1, do CPP e 144º, nº 1, do CPC, sempre ditaria a extemporaneidade do requerimento de fls. 224 e segs, apresentado em 08.09.06, como bem decidiu a Senhora Desembargadora instrutora (não releva a disposição do artº 107º, nº 6, do CPP porque nada foi oportunamente requerido com vista à eventual prorrogação do prazo).
O Recorrente alega, no entanto que a norma aplicada no despacho recorrido - no sentido de que, no caso de recurso à fiscalização hierárquica, o prazo do artº 287º, não se conta da notificação da respectiva decisão - é inconstitucional por violar os arts. 20º, nºs 1 e 4, e 268º, nº 4, da CRP.
Volta, contudo, a não ter razão.
O direito à tutela jurisdicional efectiva está garantido, nos termos sobreditos: o controlo à via judicial é o instrumento adequado à sindicação do despacho de arquivamento. O Recorrente, todavia, não quis seguir esse caminho. Preferiu a reclamação hierárquica. Bem, é um direito que lhe assiste. O que não pode é exigir uma segunda via de controlo.
O assistente tem ao seu dispor a possibilidade de, de forma rápida e eficiente, impugnar judicialmente a decisão de arquivamento do inquérito. E se não tiver usado desse direito, pode ainda eventualmente ver consagrada a sua pretensão de acusação por via da intervenção do imediato superior hierárquico do autor do despacho. A sua tese é que iria provocar, ela sim, o protelamento da solução do problema por mais algum tempo, decorrente da adição dos prazos dos arts. 278º e 287º.
Por sua vez, o direito a um processo equitativo não se mostra minimamente beliscado. A lei ordinária – e o direito de o assistente intervir no processo tem a conformação constitucional prevista no nº 7 do artº 32º, isto é, é-lhe reconhecido o direito que a lei ordinária lhe conferir -, já o vimos, confere-lhe as possibilidades necessárias e adequadas para defender efectivamente os seus interesses, possibilidades que o Recorrente usou como soube e quis.”
[11] Ver, neste sentido, Ac. do TRP de 14.6.2010, proferido no processo nº 3459/04.3TDLSB.P1, também citado na resposta ao recurso apresentada na 1ª instância, e Ac. do TRP de 17.5.2006, proferido no processo nº 0412423, ambos publicados no site do ITIJ.
[12] Ver, neste sentido, entre outros, Ac. do TRL de 24.1.2002, proferido no processo nº 00122139, cujo sumário está publicado no site do ITIJ.
[13] Assim, Ac. do STJ de 20.1.2011, proferido no processo nº 19-09.6YGLSB.S2, publicado no site do ITIJ.
[14] Ver Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 177, esclarecendo que “À luz das categorias garantia e controlo o juiz de instrução na fase de inquérito tem uma natureza monofuncional, com efeito, esse órgão não controla o exercício da acção penal mas é um garante de liberdades, avalia judicialmente as iniciativas do Ministério Público que atingem as liberdades fundamentais do indivíduo visado pelo inquérito, quer dizer a liberdade pessoal e patrimonial (que podem ser limitadas por medidas de coacção e medidas de garantia real) e a liberdade moral (a reserva de comunicações, correspondência e domicílio) quando estas possam ser atingidas por procedimentos adoptados na função de recolha de fontes de prova”.
[15] Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, pp. 290 e 291.