Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7/09.2PCMTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP00042610
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INQUÉRITO
PODERES DO JUIZ
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Nº do Documento: RP200905277/09.2PCMTS-A.P1
Data do Acordão: 05/27/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO - LIVRO 582 - FLS 34.
Área Temática: .
Sumário: O juiz de instrução pode recusar a sua concordância à suspensão provisória do processo com o fundamento de que as injunções e regras de conduta propostas pelo Ministério Público são insuficientes para satisfazer as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 7/09.2PCMTS-A.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunta: Paula Guerreiro.

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto


I.- RELATÓRIO

1. No PC n.º 7/09.2PCMTS-A.P1 do Tribunal de Matosinhos, em que são:

Recorrente: Ministério Público.

Recorrido: B………. .

foi proferido despacho em 2009/Jan./05, a fls. 18, que não homologou a suspensão provisória do processo promovida pelo Ministério Público.
2. O Ministério Público interpôs recurso em 2009/Jan./12, a fls. 21-32, pugnando pela revogação deste despacho e a substituição por outro que concorde com a suspensão provisória do processo, tendo concluindo nos seguintes termos:
1ª) O consentimento judicial à suspensão provisória do processo justifica-se pela necessidade de evitar a aplicação de injunções ou regras de conduta arbitrárias ou desproporcionadas;
2.ª) Num processo de estrutura acusatória, o poder judicial está, sob pena de perder à sua imparcialidade e de «agir em causa própria», vinculado pelo pedido do Ministério Público/assistente;
3.ª) Assim, ao discordar da suspensão provisória do processo por entender que, em concreto, a culpa do arguido é elevada e as injunções e regras de conduta insuficientes, a Mª juíza excedeu os seus poderes, substituiu-se ao Ministério Público e violou o princípio do acusatório, consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da CRP;
4.ª) A referida decisão violou, ainda, os artigos 11.º e 12.º da Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto (que definiu os objectivos, prioridades e orientações de política-criminal para o biénio de 2007-2009) que preconizam a aplicação da suspensão provisória do processo ao crime de condução de veículo em estado de embriaguês ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas;
5.ª) Ainda que, porventura, assim não seja, sempre se dirá que, no caso concreto nem a culpa do arguido é elevada, nem as injunções e regras de conduta propostas insuficientes para satisfazer as necessidades preventivas;
6.ª) Por isso mesmo, a discordância judicial com a suspensão provisória do processo viola o disposto nos artigos 384.º e 281.º do Código de Processo Penal.
3. O arguido respondeu mediante fax expedido em 2009/Fev./09, a fls. 34/40, sustentando que deve ser dado provimento ao recurso.
4. Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer em 2009/Fev./26, a fls. 58-62, que muito embora não tenha aderido ao fundamento invocado da violação dos art. 11.º e 12.º, da Lei de Política Criminal, posiciona-se igualmente no sentido de que se dê provimento ao recurso.
5. Procedeu-se a exame preliminar, colhendo-se de seguida os vistos legais, nada obstando ao conhecimento de mérito.
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A questão a decidir é se o juiz de instrução, aquando da homologação da proposta de suspensão provisória, pode sindicar a insuficiência das injunções propostas [a)] e, caso assim se entenda, existem razões para se concluir por essa insuficiência [b)].
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II.- FUNDAMENTAÇÃO.
a) A suspensão provisória do processo e a concordância do juiz.
Tal instituto encontra-se essencialmente regulado nos art. 281.º e 282.º do Código Processo Penal[1], estabelecendo-se no n.º 1 daquele primeiro normativo que “Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:”
Muito embora esta redacção resulte da Revisão de 2007, efectuada pela Lei n.º 59/98, que veio permitir que o arguido requeresse essa suspensão, o certo é que o requisito da “concordância do juiz de instrução” não resultava do texto original que aprovou o actual Código Processo Penal, mais concretamente do Decreto n.º 754/86, de 04/Dez.
A redacção primitiva era a seguinte: “Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 3 anos ou com sanção diferente da prisão, pode o Ministério Público, decidir-se pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:”
Tal modificação surgiu em virtude do Tribunal Constitucional se ter pronunciado, em sede de fiscalização preventiva e mediante o seu Ac. n.º 7/87, de 1987/Jan./09[2] pela inconstitucionalidade do “281.º, n.os 1 e 2, na medida em que neles se não prevê qualquer intervenção de um juiz - por violação dos artigos 32.º, n.º 4, e 206.º da Constituição, …”.
Na motivação desta decisão escreveu-se precisamente o seguinte: “A admissibilidade da suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo constitucional. Já não se aceita, porém, a atribuição ao M. P. da competência para a suspensão do processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei, sem a intervenção de um juiz, naturalmente o juiz de instrução e daí a inconstitucionalidade, nessa medida, dos n.º 1 e 2 do art. 281.º, por violação dos art. 206.º e 32.º, n.º 4 da CRP”.
Na altura, o preceituado no art. 206.º, reportava-se ao exercício da função jurisdicional, apenas cabendo a estes administrar a justiça em nome do povo, enquanto através do disposto no art. 32.º, n.º 4, impunha-se que toda a instrução seria sempre da competência de um juiz.
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Tentando perceber qual o âmbito das funções jurisdicionais desempenhadas pelo juiz de instrução, convém ter presente o actual panorama ao nível do direito comparado relativamente a institutos semelhantes.
Convém no entanto fazer desde logo uma destrinça entre os sistemas processuais penais “anglo-saxónicos” e os sistemas continentais, muito embora ultimamente tenha havido uma certa continentalização daqueles e uma ínsularização destes últimos.
Naqueles a intervenção dos juiz visa essencialmente assegurar a boa regularidade das práticas judiciárias, mormente ao nível da investigação, que é da exclusiva competência das policias, muito embora em Inglaterra e País de Gales, com a institucionalização em 1986 do “Crow Prosecution Service” (CPS), com o “Prosecution of Offenses Act 1985), se tenha vindo a assistir a uma maior intervenção destes últimos, a quem cabe a maior parte das decisões de acusar ou não, mormente a partir do “Criminal Justice Act 2003”.[3]
Este sistema é essencial caracterizado pelo princípio da oportunidade e por uma “justiça negociada”, podendo até as polícias, as quais estão na dependência do “Home Office”, obter acordos com os criminalmente perseguidos, sem qualquer intervenção do CPS ou de um juiz.
O sistema processual penal continental não é unívoco, pelo que ao nível da investigação, tanto temos o domínio daquele mesmo princípio da oportunidade, como é o caso de França, em que a investigação é dirigida por um juiz, ou da legalidade, como sucede com o nosso país, a Alemanha e a Itália, a quem a direcção da investigação cabe ao Ministério Público, surgindo crescentemente nestes algumas manifestações de consenso processual.[4]
Passando assim ao largo do processo penal francês e sendo certo que têm surgido ultimamente algumas vozes a considerar a necessidade de regular a aplicação das regras de oportunidade, designadamente mediante o estabelecimento de garantias contra o seu abuso[5], vamo-nos concentrar nos sistemas dominados pelo princípio da legalidade e relativamente aos quais temos mais afinidades.
O instituto da suspensão provisória do processo, cujos pressupostos estão estabelecidos no art. 281.º, veio transpor para o nosso ordenamento jurídico o correspondente instituto alemão desenvolvido no âmbito do “Beendigungsverfaheren mit Selbstunterwerfung”[6].
Segundo o preceituado no § 153.a. (1) do StPO [Código Processo Penal alemão], o Ministério Público, antes de proferir acusação, com o consentimento do arguido e do tribunal competente para a abertura do plenário (audiência de julgamento), pode prescindir provisoriamente da interposição da acção pública (acusação) e ao mesmo tempo impor ao arguido, singular ou cumulativamente, as injunções aí assinaladas.
No caso de já ter sido proferida a acusação e de acordo com o § 153.a. (2), cabe então ao tribunal, com o consentimento do Ministério Público e do arguido, suspender provisoriamente o processo, mediante algumas das imposições assinaladas em (1).
Consagra-se aqui uma vertente tipicamente negociadora no âmbito de um processo penal dominado pelo princípio da legalidade, possibilitando-se a composição heteroprocessual de um conflito penal, mas apenas de incidência tripartida (Ministério Público, arguido e juiz), uma vez que o consentimento da vítima está totalmente afastado.
Convém no entanto relembrar que os casos em que se pode prescindir provisoriamente da acusação encontram-se restritos aos “Vergehen” [§ 12.2 do StGB], ou seja, aos delitos punidos com pena privativa de liberdade que não seja superior a um ano, excluindo-se os Verbrechen (crimes) [§ 12.1 do StGB], os quais são punidos com pena de prisão superior a um ano.
Apenas se exclui a necessidade do consentimento do juiz nos casos dos delitos [“Vergehen”] que tenham ocasionado consequências mínimas ou insignificantes.
Por sua vez, em Itália os institutos típicos da consensualidade correspondem essencialmente àqueles regulados no Código Processo Penal Italiano mediante a designação de “Applicazione della pena su richiesta delle parti” [444.º] e de “Casi di procedimento per decreto” [459.º]
Segundo o primeiro, o arguido e o Ministério Público podem requerer ao juiz a aplicação de uma reacção penal substitutiva da prisão ou de uma pena pecuniária, que está sempre sujeita a homologação judicial, o que não sucedia na versão original, razão pela qual a “Corte Constituzionale”, por sentença de 1990/Jun./26, veio declarar a inconstitucionalidade da redacção primitiva, por infringir o disposto no art. 27.º da Constituição Italiana[7].
Tal inconstitucionalidade versaria essencialmente a inexistência de uma previsão legal que possibilitasse a rejeição pelo juiz da proposta de condenação, em virtude da mesma poder revelar um tratamento contrário à dignidade da pessoa humana.
De acordo com o preceituado no citado art. 459.º, n.º 1, nos casos aí previstos, o Ministério Público, quando entenda que deve ser aplicada pecuniária, pode apresentar ao juiz um requerimento motivado para a emissão “del decreto penale di condanna”, indicando a medida da pena, que está sempre sujeita a homologação judicial.
E isto porque de acordo com o seu n.º 3, se o juiz, não acolher tal proposta e não chegar a pronunciar uma decisão de “non punibilitá” [129.º], remete novamente os autos ao Ministério Público.
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No que concerne ao nosso ordenamento jurídico, podemos constatar que os actos a praticar pelo juiz de instrução não se confinam exclusivamente ao papel do “juiz das liberdades” [268.º, 269.º], mas também de plena função jurisdicional, como sucede com o controlo judicial da actividade do Ministério Público, mormente quando aquele comprova a decisão deste acusar ou de se abster de o fazer [286.º].
E essa função jurisdicional tanto é mais relevante, quando o que está em causa é a aplicação de condições ou injunções impostas aos arguidos que correspondem a autênticas medidas sancionadoras, surgindo aqui, com todo o seu esplendor, aquilo que a nossa Constituição designa por “administrar a justiça em nome do povo” [202.º], onde cabe “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”.
E isto porque se tem entendido que tais medidas sancionadoras assinaladas no art. 281.º, n.º 2, tanto podem ter carácter retributivo, mormente quando são reparadoras do dano, como preventivo, sejam consideradas como medidas “quase penais” (strafänliche Maβnahmen) como “substitutos encobertos de pena” (verbekappte Ersatzstrafen) ou então como “equivalentes funcionais de uma sanção penal”[8].
Nesta conformidade, não vemos razões legais, seja de índole literal, histórica ou sistemática, ou então consequências a retirar do direito comparado, para, como entende o Ministério Público, perseguir-se uma interpretação minimalista do disposto no citado art. 281.º, confinando a intervenção do juiz de instrução apenas à fiscalização das injunções ou regras de conduta que, de acordo com o seu n.º 3, “possam ofender a dignidade do arguido”.[9] Esta intervenção mínima do juiz de instrução iria permitir, ao fim e ao cabo, que o Ministério Público fosse um autêntico “juiz em causa própria” ou se preferir “Ein Richter vor dem Richter”[10], definindo, naturalmente com a concordância do arguido, as reacções sancionadoras sem que nalguns casos houvesse a participação das vítimas potenciais, como sucede nos crimes em que para a sua tipificação não é necessário a violação imediata do bem jurídico protegido.
Podiam assim estabelecer-se sanções sem quaisquer repercussões com os fins de prevenção, seja especial, seja geral, decorrentes de uma “justiça negociada”, que é mais típica do sistema anglo-saxónico ou dos sistemas onde prepondera o princípio da oportunidade, do que aqueles dominados pelo princípio da legalidade, como é nosso.
Invoca-se nos fundamentos de recurso que a posição maximalista iria contundir com o princípio do acusatório.
Não cremos que tal suceda, porquanto a caracterização da estrutura processual penal acusatória, a qual tem consagração constitucional [32.º, n.º 5, C. Rep.], tanto assenta numa matriz processual, como numa outra de cariz orgânico, que aqui não minimamente beliscadas.[11]
Segundo a primeira não há julgamento sem acusação, correspondendo ambas a fases distintas, enquanto a segunda significa essencialmente que o órgão acusatório é distinto do órgão de julgamento, mediante a consagração de estruturas funcionais diferenciadas ou mesmo independentes uma da outra.
Ora a concordância judicial “imposta” pelo Tribunal Constitucional, numa vertente distinta da “Corte Constituzionale” italiana, através do disposto no art. 281.º, n.º 1, não afecta a fase processual em que o Ministério Público tem plena competência para o exercício da acção penal nem aponta para a existência de uma unicidade entre as funções de acusar e julgar, antes pelo contrário, já que as mesmas se mantêm substancialmente distintas.
Aliás e seguindo até à exaustão o mesmo alinhamento minimalista reivindicado pelo Ministério Público, neste seu recurso, para as assinaladas funções do juiz de instrução no âmbito do art. 281.º, as finalidades da fase de instrução legalmente delineadas [286.º, 307.º], mormente quando se estaria a comprovar judicialmente a decisão de acusar ou de arquivar, ou quando aquele propõe a suspensão provisória do processo [307.º, n.º 2], não deixariam de ser igualmente violadoras do princípio acusatório[12].
Nem mesmo tem qualquer suporte trazer à colação, como faz o recorrente Ministério Público, os artigos 11.º e 12.º da Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, ao definir os objectivos, prioridades e orientações de política-criminal para o biénio de 2007-2009.
Desde logo, porque tal diploma apenas tem como destinatários as polícias e o Ministério Público, mas já não os tribunais, enquanto órgãos de soberania, que administram a justiça em nome do povo, pois se assim fosse seria ostensiva a sua inconstitucionalidade.
Mais acresce, que este diploma surge em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23/Mai., que aprova a Lei Quadro da Política Criminal, impondo ao Ministério Público, através do seu artigo 11.º, o cumprimento dos objectivos de execução da política criminal, que venham a ser definidos pelo poder político, tendo apenas relevância imediata e directa, nos termos aí definidos, para aquela magistratura, os órgãos de policia criminal e nada mais.
Assim, não cabe na concordância judicial da proposta de suspensão provisória do processo formulada pelo Ministério Público, saber, face ao preceituado no art. 12.º, n.º 1, da citada Lei n.º 51/2007 e como aí se diz, se “Os magistrados do Ministério Público privilegiam, no âmbito das suas competências e de acordo com as directivas e instruções genéricas aprovadas pelo Procurador-Geral da República”, a aplicação aos crimes previstos no artigo anterior de tal medida.
Assim e em suma, na concordância judicial com a proposta de suspensão provisória do processo, cabe ao juiz de instrução não só a comprovação dos pressupostos formais descritos no art. 281.º, bem a formulação de um juízo materialmente jurisdicional relativamente às consequências jurídicas decorrentes das medidas sancionatórias propostas pelo Ministério Público, designadamente da necessidade de preservação da dignidade do arguido, bem de adequação de tais medidas com os fins preventivos, especiais ou gerais, perseguidos pelas, de modo a obter-se a paz social.
Nesta conformidade, improcede o primeiro fundamento de recurso, sendo de resto neste sentido que tem se alinhado a jurisprudência desta Relação, como sucede com os Ac. de 2009/Mar./18 e 2009/Abr./29, ambos divulgados em www.dgsi.pt.[13]
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b) A insuficiência das medidas propostas.
No caso em apreço estaria em causa a indiciação de cometimento pelo arguido de um crime de condução de veículo automóvel em estado de embriaguez da previsão do art. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, em virtude de o mesmo na data e hora já assinaladas ter conduzido um veículo automóvel na via pública, apresentando uma taxa de 2,07 g/l de álcool no sangue.
Tal ilícito é punível com prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias, a que acresce um pena acessória de proibição de veículos com motor de 3 meses a 3 anos.
Mediante este crime pretende-se tutelar a segurança do tráfico rodoviário e, por via disso, a vida e integridade física das pessoas, assim como do seu património, face aos riscos acrescidos decorrente do trânsito de veículos em estado de embriaguez.[14]
Relembrando os pressupostos em que deve assentar a suspensão provisória do processo, de acordo com o citado art. 281.º, n.º 1, tem toda a pertinência assinalar aqui os que dizem respeito à “Ausência de um grau de culpa elevado” [e)] e aquele em que é “de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir” [f)].
Ora a divergência entre a proposta do Ministério Público e o Sr. Juiz de Instrução assentou essencialmente na obrigação, aceite pelo arguido, de que este não conduziria veículos (automóvel e motorizada como aí se diz) por um período de 30 dias seguidos.
Segundo o despacho recorrido, tal injunção não acautelaria as necessidades de prevenção geral, para além de que violaria o princípio constitucional da igualdade, ao permitir o tratamento desigual de situações idênticas por parte dos tribunais.
Será de constatar que o nosso ordenamento jurídico na conformação típico-legal das condutas em que está em causa a condução de veículos em estado de embriaguez, parte da taxa de álcool revelada no sangue para estratificar as mesmas como contra-ordenações ou como crimes.
Também as consequências das condutas tipificadoras vão sendo agravadas de acordo com a taxa de alcoolémia revelada no sangue, estabelecendo-se no art. 147.º, do Código da Estrada que “A sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável às contra-ordenações graves ou muito graves, respectivamente, …”
No caso de se tratar de crimes a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor estabelecida no art. 69.º, n.º 1 do Código Penal é fixada “entre três meses três anos”.
Por sua vez e como se refere no citado Ac. desta Relação de 2009/Abr./29, a que plenamente aderimos, “a uma maior taxa de álcool no sangue corresponde sem dúvida um maior grau de ilicitude, de tal modo que as diferentes infracções concretizadas pela condução sob a influência do álcool se encontram escalonadas por ordem de gravidade em função daquela taxa: a condução com a taxa de álcool no sangue de 0,5 g/l constitui contra-ordenação grave (artºs 81º e 145º, alínea l) do CE), com a taxa de álcool no sangue de 0,8 g/l constitui contra-ordenação muito grave (artºs 146º, alínea j), do CE) e com a taxa de álcool no sangue de 1,2 g/l constitui crime (artº 292º, nº 1, do CP).”
Aí também se acrescenta que “a ilicitude do facto é um dos parâmetros de medição da culpa. E não se indicia aqui qualquer diminuição da vontade do arguido decorrente da ingestão das bebidas alcoólicas que causaram a referida taxa de álcool no sangue. Assim, não é errado levar em conta o valor da alcoolemia em sede de culpa.”
Sendo de 2,07 g/l a taxa de alcoolémia no sangue revelada pelo arguido, que corresponde a uma culpa média e a uma ilicitude já razoável, a injunção imposta de obrigação de não conduzir veículos automóveis por um período de 30 dias fica muito aquém das exigências de prevenção geral relativamente ao cometimento deste tipo de crimes, não sendo certamente compreensível para a generalidade da comunidade a discrepância das reacções sancionatórias (impuras ou puras) propostas e as legalmente admissíveis, que no mínimo se cifrariam em 3 meses de proibição de conduzir tais veículos.
Daí que o despacho recorrido, também nesta vertente, não mereça qualquer censura.
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III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao presente recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirma-se o despacho recorrido.

Não é devida tributação.

Notifique.

Porto, 27 de Maio de 2009
Joaquim Arménio Correia Gomes
Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro

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[1] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem.
[2] DR I, n.º 33, suplemento de 1987/Fev./09 e acessível em www.dre.pt.
[3] ASHWORTH, Andrew, REDMAYNE, Mike, “The Criminal Process” (2005), p. 173 e ss.
[4] “Procédures Pénales d’Europe”, sob a direcção de DELMAS-MARTY, Mireille, onde se traça uma panorâmica dos sistemas alemães, inglês, belga, francês, italiano.
[5] STEFANI, Gaston, LEVASSEUR, Georges, BOULOC, Bernard, “Procédure Penale” (2004), p. 550/551
[6] PALERMO, Pablo Galain, em “Suspensão do processo e terceira via: avanços e retrocessos do sistema penal”, em “Que futuro para o direito processo penal? (2009), p. 613 e ss.
[7] TRAMONTANO, Luigi, “Il Codice di Procedura Penale (2006), p. 919 e ss.
[8] ANDRADE, Manuel Costa, “Consenso e Oportunidade (Reflexões a propósito da suspensão provisória do processo e do processo sumaríssimo”, em Jornadas de Direito Processual Penal (1988), p. 353.
[9] Essa interpretação minimalista é correntemente veiculada e devidamente sustentada pelo Ministério Público, como sucede com Correia, João Conde, por sinal o Magistrado que subscreve o recurso em apreço, num seu estudo divulgado na Revista do Ministério Público, n.º 117, p. 43 e ss. designado por “Concordância Judicial à Suspensão Provisória do Processo: equívocos que persistem”
[10] Na expressão assinalada por Kausch, referenciada por PALERMO, ob. cit., p. 618, nota 14.
[11] DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Processual Penal”, Volume I (1981), p. 136 e ss.; MOREIRA, Vital; CANOTILHO, Gomes, em “Constituição da República Portuguesa Anotada” (1993), p. 257; DEU, Teresa Armenta, “Lecciones de Derecho Procesal Penal” (2007), p. 42 e ss.
[12] Como já referiu AROCA, Juan Montero, em “Processo penal y libertad” (2008), p. 70, esta alusão persistente ao princípio do acusatório poderá redundar a que o mesmo se converta num princípio totalmente vazio, onde não se saiba efectivamente o que o mesmo significa.
[13] Relatados respectivamente pelos Des. Maria do Carmo Silva Dias e Manuel Braz.
[14] Veja-se a propósito o “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, tomo II (1999), 1093, em anotação a este artigo; “Comentários al Nuevo Código Penal” (2005), p. 1952 e ss., mediante direcção de Quintero Olivares e coordenação de Morales Prats, em anotação ao correspondente art. 379.º; Muñoz Conde, no seu “Derecho Penal – Parte Especial” (1999), p. 655/6.