Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0846284
Nº Convencional: JTRP00042256
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: DESCAMINHO DE OBJECTOS COLOCADOS SOB O PODER PÚBLICO
Nº do Documento: RP200903040846284
Data do Acordão: 03/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 358 - FLS 25.
Área Temática: .
Sumário: O agente que, tendo sido nomeado fiel depositário de bens penhorados, remove estes para local desconhecido, inviabilizando a sua entrega ao exequente, a quem foram adjudicados, preenche a previsão do art. 355º do Código Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 6284/08-4
.º Juízo do T.J. de Vila do Conde, Proc. nº …/07.8TAVCD

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No .º Juízo do T.J. de Vila do Conde, processo supra referenciado, foi julgado B………., tendo sido proferida Sentença com o seguinte dispositivo:
- condenar o arguido B………. pela prática, em autoria material, de um crime de descaminho, p. e p. pelo art. 355º do CP, na pena de 6 meses de prisão que se substitui por igual tempo de multa, ou seja, 180 dias de multa, à taxa diária de €7,00;
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Desta Sentença recorreu o condenado B………., formulando as seguintes conclusões:
Com o presente recurso o arguido, aqui recorrente, pretende ver revogada a decisão recorrida, porquanto a Sentença condenatória configura uma situação injusta, por se entender que não se provaram em Audiência de discussão e Julgamento os factos que permitem concluir que o arguido/recorrente cometeu o crime constante da acusação;
O arguido/recorrente negou veementemente a prática do crime descrito na acusação, uma vez que os bens em causa se encontravam no armazém sito na Rua ., ……., ………., concelho de Vila do Conde;
Com o depoimento das testemunhas arroladas pela acusação, apenas se conclui a incerteza e a dúvida em relação à presença dos bens no armazém e não o seu desaparecimento, destruição ou descaminho. Isto porque o Sr. C………, oficial de Justiça que procedeu a diligência de entrega de 30/05/2008, quando inquirido sobre se o armazém foi totalmente verificado, respondeu que não até porque havia um cão a meio e não se aproximaram. Quando inquirido sobre se haveria a possibilidade de não ter visto os bens, respondeu positivamente;
Por sua vez, o Sr. D………., legal representante da exequente, acabou por confirmar que até viu o saco de desperdícios. Seguidamente, disse que passaram do local onde se encontrava o cão, contrapondo-se desde modo ao depoimento do Sr. C………. que disse não se terem aproximado do local onde o cão se encontrava. Depoimento este que resultou claramente descredibilizado, uma vez que este tem interesse directo na causa por ser representante legal da empresa exequente;
O depoimento da testemunha E………., corroborou as declarações do arguido/recorrente, confirmando a existência dos bens e a sua localização;
A matéria dada como não provada na douta Sentença não reflecte a prova produzida em sede de Audiência de discussão e Julgamento (art. 412º, nº 3, al. a);
A Sentença ora recorrida, na sua fundamentação, não faz menção à situação actual dos bens, nomeadamente se tais bens ainda existiam, nem sobre a natureza da actuação ou conduta do arguido/recorrente relativa à frustração definitiva de finalidade da custódia;
A simples não entrega dos bens ao encarregado da venda não integra o crime de descaminho p. e p. pelo art. 355º do CP, pois que tal crime exige uma acção directa sobre a coisa, isto é, uma actuação que a destrua, inutilize, ou impeça a sua entrega em definitivo;
Os bens já foram entregues à sociedade exequente. Deste facto conclui-se indubitavelmente que os bens existiam, cumprindo assim o arguido a finalidade da custódia – a entrega dos bens;
Deste modo, e com o devido respeito, não andou bem a MMa. Juiz ao condenar o arguido/recorrente, tendo feito uma apreciação incorrecta da prova produzida, pois esta não gerou qualquer certeza sobre a destruição dos bens, apenas dela se podendo concluir não terem sido os mesmos encontrados, mas em resultado de diligências incompletas da sua busca;
Termina pedindo a absolvição do arguido/recorrente.
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Em 1ª Instância, o MºPº defendeu a improcedência do recurso, dizendo, nomeadamente:
“Preceitua o art. 127º do CPP que, regra geral (excepcionalmente, há prova que se presume subtraída à livre apreciação, como é o caso da prova pericial – art. 163º, nº 1 do CPP), a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente, no caso dos autos, o Juiz que profere a decisão – princípio da livre apreciação da prova.
A livre apreciação da prova pressupõe um entendimento objectivo da mesma, afastando-se a compreensão do livre convencimento do Juiz como sinónimo de uma liberdade sem freio na sua apreciação.
Destarte, a Sentença recorrida, além de aplicar o Direito ao caso concreto, cumprindo com as regras processuais penais legalmente admissíveis, fez também Justiça, ao condenar o arguido pela prática daquele crime e
Por todo o exposto, ao contrário do defendido pelo recorrente, esteve bem a MMa Juiz de Direito ao condenar o arguido pelo aludido crime, na sequência de uma correcta e fundamentada apreciação da prova produzida em Audiência de Julgamento, pelo que, tal decisão não merece reparo, devendo ser mantida.”
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Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pugna pela procedência do recurso, escrevendo, nomeadamente:
“Nos factos provados não se encontra matéria susceptível de preencher o conceito de subtracção ao poder público. Com efeito, a não entrega do bem penhorado, nem a justificação dessa omissão, na sequência da notificação que lhe foi efectuada e das interpelações posteriores apenas revela a recusa de acatar a notificação e as interpelações posteriores mas não é suficiente para se afirmar o preenchimento da modalidade de acção típica subtracção.
O que implica que os factos provados não preencheram o tipo objectivo do art. 355º do CP, a impor a absolvição do recorrente. Sendo indiferente, neste aspecto, que, na concretização do tipo subjectivo, o Tribunal tenha considerado provada uma intenção (o propósito concretizado de subtrair tal objecto ao poder público do Estado) que não decorre dos factos objectivos provados.”
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Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor da Sentença recorrida.
Factos provados:
“1- No dia 04/02/2004, no âmbito dos autos de Carta Precatória extraída do processo de execução apenso à Acção Sumária nº …/2001, do .º Juízo Cível da Comarca de Matosinhos, em que, assumiu a posição de exequente a sociedade F………., Lda e executada a sociedade G………., Lda, entre os demais elencados no auto de penhora reproduzido a fls. 10 a 12, foram penhorados os seguintes bens, que se encontravam na Rua ., ………., em ………., nesta Comarca:
- uma estante de armazém com cerca de 4,5 metros de altura por 7 metros de comprimento, em razoável estado de conservação, avaliada em €400,00;
- uma moto-serra eléctrica, modelo ………., em razoável estado de conservação, avaliada em €25,00;
- um saco de desperdícios incompleto, faltando 1/3 da sua capacidade, com o valor de €10,00;
2- No acto da penhora, tais objectos foram entregues ao arguido B………., legal representante da sociedade executada, na qualidade de fiel depositário, que foi informado de que os bens ficavam à sua guarda e de que deveria entregá-los quando lhe fosse exigido, como lhe foi declarado pelo oficial de Justiça que realizou aquela diligência;
3- Foi cumprida a notificação a que alude o art. 926º do CPC, não tendo sido apresentada qualquer oposição à penhora;
4- Em 13/06/2005, a sociedade exequente requereu, e viu ser-lhe deferida, a adjudicação dos bens penhorados, tendo-lhe sido passado título de transmissão, pelo que, no dia 03/04/2006, realizou-se, nas instalações da executada, diligência com vista à entrega dos mencionados bens ao seu novo proprietário;
5- No entanto, essa entrega não foi possível, relativamente aos bens móveis acima mencionados, uma vez que em data não concretamente apurada mas compreendida entre 04/02/2004 e 13/06/2005, o arguido os removeu para local desconhecido;
6- Com efeito, e peses embora na altura o arguido tenha declarado ao oficial de Justiça e demais presentes que tais bens se encontravam na Rua ………., nº …, ………., Vila Nova de Gaia, também não foram ali encontrados;
7- O arguido quis retirar os bens das instalações da sociedade e levá-los para local desconhecido, como efectivamente retirou, de nada informando o processo, ciente de que aqueles bens se encontravam sob tutela do poder judicial do Estado e que, com tal comportamento, inviabilizaria, como efectivamente aconteceu, as diligências futuras tendentes ao ressarcimento do credor;
8- O arguido actuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por Lei;
9- O arguido tem 48 anos de idade;
10- É casado;
11- É empresário, não exercendo qualquer actividade há cerca de um ano;
12- Vive com a sua mulher, a qual é funcionária pública, auferindo a mesma cerca de €1000 mensalmente e com dois filhos de ambos, com idades compreendidas entre 10 e 18 anos, ambos estudantes;
13- Possui como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade;
15- O arguido não tem antecedentes criminais.”
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Motivação da convicção do Tribunal:
“O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade apurada e não apurada na apreciação do conjunto da prova produzida, avaliada à luz das regras da lógica e da experiência comum, nos termos do art. 127º do CPP.
Assim, e quanto aos factos provados:
- sob os nºs 1 a 8 atendeu-se às declarações do arguido que confirmou na íntegra os factos constantes em 1 a 6 e ainda que não informou o processo quando retirou os bens do local onde foram penhorados, conjugadas e corroboradas com o teor dos documentos juntos aos autos, designadamente, certidão extraída do processo de execução sumária nº …-A/2001 do .º Juízo Cível do TJ de Matosinhos (fls. 148 e segs.), das seguintes peças processuais: requerimento executivo (fls. 149 a 151); auto de penhora (realizada no dia 04/02/2004) e nomeação do arguido como fiel depositário (fls. 152 a 157); requerimento de oferecimento do preço pelo exequente pelos bens penhorados, depósito desse valor e despacho de adjudicação ao exequente dos bens (fls. 159 a 165); auto de entrega dos bens à exequente, em 03/04/2006, do qual consta os bens em falta (estante, moto-serra e saco de desperdícios) e declaração do arguido a indicar que tais bens se encontram na Rua ………., nº …, ….-…, ………., Gaia); auto de entrega de bens nesta última morada em 07/07/2006, frustrado por ser desconhecido o executado na mesma (fls. 174); auto de entrega de 16/01/2008, na Rua ………., ………., Maia, do qual consta que o arguido indicou que os bens se encontravam num armazém na ………., Rua ., ………, …. ………. (fls. 99/175 e 176); auto de diligência para entrega no dia 30/05/2008, nesta última morada (armazém na ………., Rua ., ………, …. ……….), no qual se dá conta que os bens em falta não se encontravam no local (fls. 102);
E ainda, os depoimentos das testemunhas ouvidas:
- H………., oficial de Justiça do Tribunal de Vila do Conde, o qual confirmou o que consta do auto de penhora e auto de entrega de 03/04/2006;
- C………., oficial de Justiça que procedeu à diligência de entrega de 30/05/2008 e que mais uma vez confirmou que os bens não se encontravam no local, como aliás, consta do respectivo auto de fls. 102, pese embora o ter feito com alguma insegurança;
- D………., legal representante da exequente adjudicante, o qual esteve presente em todas as diligências de penhora e tentativas de entrega de bens documentadas e que as confirmou integralmente, mormente a que respeita a 30/05/2008, sendo que foi confrontada com as fotografias de fls. 124 a 133 pelo arguido, como sendo as relativas à existência dos bens em falta no armazém ………., Rua ., ………., …. ………., tendo este último assegurado, de forma a merecer credibilidade do Tribunal, tanto mais que demonstrou conhecer bem os referidos bens e ser capaz de os localizar e identificar com facilidade.
Dessa forma, pese embora o arguido tenha negado que tivesse retirado os bens do local onde foram penhorados para local desconhecido, uma vez que inicialmente os mudou para o armazém de ………. e depois novamente para o armazém de ………., local onde os mesmos se encontram desde data não apurada de 2006 até ao presente, e que o fez apenas por necessidade de espaço para guardar tais bens, tal versão não mereceu a credibilidade do Tribunal pelas razões que passamos a indicar.
Desde logo, o arguido não explicou a razão de apenas retirar alguns bens penhorados para outro local (Gaia) e não todos, e de não ter informado desde logo o processo não só dessa mudança como a posterior (regresso dos bens ao armazém do ……….). Depois, a sua versão não foi integralmente corroborada por qualquer prova, desde logo porque o depoimento da testemunha ouvida E………., amigo do arguido, apresentou várias contradições com a própria versão do arguido. Finalmente, e de forma decisiva, ponderou-se o auto de fls. 102 (de 30/05/2008), corroborado pelos depoimentos das testemunhas C………. e, em especial, D………., no sentido dos bens em falta não se encontrarem no referido armazém de ………., não correspondendo as fotografias juntas a fls. 124 e segs. à localização real de tais bens no referido armazém no dia 30/05/2008 (data do auto), sendo que o próprio arguido diz, como já referido, que estes bens aí se encontram desde 2006 até ao presente sem qualquer alteração ou mudança.
Desta forma, e face a esta prova, avaliada à luz das regras da experiência, conclui o Tribunal que o arguido mudou os bens do local onde foram penhorados para local desconhecido, sem informar o respectivo processo, e tem vindo a indicar localizações para tais bens fora de tempo e que se vem a verificar não corresponderem à sua verdadeira localização, daqui se inferindo claramente que com tal conduta pretende e consegue frustrar as diligências no sentido de o credor ver ressarcido o seu crédito.
Relativamente às condições pessoais e económicas do arguido, atendeu-se às declarações do mesmo prestadas nessa matéria, não sendo as mesmas contrariadas por qualquer outra prova.
Quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido, atendeu-se ao CRC de fls. 78.
Relativamente à factualidade não apurada:
Na ausência de prova segura e concreta sobre tal matéria, sendo contrariada pela prova produzida (vide auto de fls. 102, conjugado com o depoimento das testemunhas C………. e D……….), conforme resulta da motivação supra dos factos provados aqui dada por reproduzida.”
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Enquadramento Jurídico-Penal:
“Encontra-se o arguido acusado da prática de um crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo art. 355º do CP.
Estabelece este preceito legal que “quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer outra forma subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objecto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objecto de providência cautelar, é punido com pena de prisão até 5 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
Assim, preenche os elementos objectivos desse tipo de crime quem destruir, danificar ou inutilizar ou subtrair ao poder público, entendido enquanto jus imperii, documentos ou outros objectos móveis apreendidos ou objecto de providência cautelar. Documentos ou objectos esses que, independentemente da sua propriedade ou valor económico, se encontram adstritos a um fim específico e definido por acto de autoridade. Por seu turno, preenche o elemento subjectivo deste tipo de crime quem, conhecendo os elementos subjectivos referidos, actue com intenção de os praticar, donde decorre que este tipo de crime pressupõe, necessariamente, a sua comissão sob a forma dolosa, num dos três tipos de dolo – directo, necessário ou eventual.
(…)
Da matéria de facto assente decorre que o arguido fiel depositário dos bens penhorados, efectivamente, subtraiu os mesmos, ou seja, levou-os consigo para lugar desconhecido, pelo que preencheu os elementos objectivos do tipo (vide factos apurados sob os nºs 1 a 6).
Por sua vez, resulta da matéria factual descrita em 7 e 8 que “o arguido quis retirar os bens das instalações da sociedade e levá-los para local desconhecido, como efectivamente retirou, de nada informando o processo, ciente de que aqueles bens se encontravam sob tutela do poder judicial do Estado e que, com tal comportamento, inviabilizaria, como efectivamente aconteceu, as diligências futuras tendentes ao ressarcimento do credor” e ainda que “O arguido actuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por Lei”. Estão, pois, também preenchidos os elementos subjectivos do tipo de crime em causa.
Preenchidos que estão os elementos constitutivos do crime em causa, dúvidas não restam da prática do mesmo pelo arguido, em autoria material (cfr. art. 26º do CP).
Apesar das alterações introduzidas ao CP pela Lei nº 59/2007, de 04/09, não se verificou qualquer alteração no tipo de crime de descaminho, mantendo-se inalterados os seus elementos constitutivos, bem como a pena para o mesmo, bem como são idênticas as agravantes e atenuantes gerais da mesma, apenas se verificando alterações no que respeita à parte geral do CP, penas de substituição e quantitativo diário da pena de multa. Estamos, assim, perante uma verdadeira sucessão de Leis Penais, pelo que se terá que determinar, em concreto e “em bloco”, qual a mais favorável ao arguido (cfr. art. 2º, nº 4 do CP).”
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir:
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o arguido/condenado B………. suscita as seguintes questões:
- pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto;
- impugna a decisão em matéria de Direito, defendendo não ter incorrido na prática do crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo art. 355º do CP.
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Recurso em matéria de facto.
Pretendendo-se impugnar a decisão sobre a matéria de facto, na peça de recurso não se indica, em concreto, qualquer ponto de facto que se tenha por incorrectamente julgado; não se indica nas conclusões, e tão pouco na motivação.
Dela se alcança, apenas, um reportar genérico a todos os factos dados como provados, indicando-se como provas que impõem decisão diversa, os depoimentos do C………., D………., E………. e as suas próprias declarações, bem como as fotografias juntas aos autos.
Não se encontra, assim, suficientemente delimitado o objecto da impugnação, sendo que, no caso presente, uma significativa parte dos factos considerados provados são-o com base em prova documental de especial valor probatório, constituída pelas certidões do auto de penhora e nomeação do arguido como fiel depositário, e autos de entrega dos bens, em especial os de fls. 99, 174 a 176, e 102 dos autos.
Assim, não se encontrando cumprido o disposto no art. 412º, nº 3, al. a) do CPP, a impugnação da matéria de facto não se mostra válida, encontrando-se este Tribunal impossibilitado de proceder a uma revista alargada da decisão, por não dispor da necessária delimitação do seu objecto.
Por outro lado, na decisão recorrida encontra-se convenientemente indicada toda a prova analisada e conjugada pelo Julgador, na produção da sua decisão, e explicitada a convicção que acerca dela formou, sendo, quanto à documental, indicada a respectiva localização nos autos e sobre que factos a mesma versa, e quanto à oral, indicada a respectiva razão de ciência e motivos pelos quais lhe é atribuída, ou não, credibilidade.
Dessa apreciação da prova, não se extrai a existência de qualquer erro evidente e notório.
Em conclusão, a matéria de facto provada deve ser tida como assente.
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Recurso em matéria de Direito.
Defende o recorrente que «A simples não entrega dos bens ao encarregado da venda não integra o crime de descaminho p. e p. pelo art. 355º do CP, pois que tal crime exige uma acção directa sobre a coisa, isto é, uma actuação que a destrua, inutilize, ou impeça a sua entrega em definitivo».
Em síntese, o que se encontra provado é que o recorrente, nomeado fiel depositário, entre outros, dos penhorados “estante de armazém”, “moto-serra eléctrica” e “saco de desperdícios”, não os apresentou ao Tribunal (na pessoa do funcionário que o representava), para que este procedesse à sua entrega à entidade exequente, tendo-os “removido para local desconhecido”.
Com a sua actuação – e ao contrário do que argumenta – impediu, frustrou, a finalidade da submissão dos bens ao poder público do Tribunal, que os tinha apreendido e entregue à sua guarda, para que os apresentasse logo que determinado.
Daí que, também se não nos afigure aceitável a interpretação defendida pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto, no sentido de que “a não entrega do bem penhorado”, “apenas revela a recusa de acatar a notificação e as interpelações posteriores”.
Com a sua provada actuação, o recorrente faz escapar, retira, subtrai ao poder público a que estavam sujeitos, os bens apreendidos, em virtude da penhora judicial efectuada; bens esses que estava obrigado a apresentar ao Tribunal ou a quem o representasse, tal como era do seu conhecimento.
Defende ainda o recorrente que os bens acabaram por ser entregues.
A fls. 201 consta que esses bens foram entregues em 04/09/2008, muito após o proferimento da Sentença recorrida que data de 09/07/2008.
Este Tribunal de Recurso reexamina a decisão, com base nos elementos de que o Tribunal de 1ª Instância dispôs, ao proferir a decisão sob recurso, pelo que tais documentos não poderiam ser levados em conta.
Afigura-se-nos, no entanto, ainda que tal facto pudesse ser levado em conta, tal não afastaria a consumação do crime, pois o crime consuma-se quando o agente faz escapar, retira, subtrai ao poder público a que estava sujeito o bem apreendido, não o apresentando ou entregando quando determinado; não relevando para o caso se a subtracção, ou descaminho, é temporária ou definitiva (tal relevará, sim, em termos de determinação do grau de ilicitude dos factos).
Em conclusão, a matéria de facto provada integra a prática, pelo recorrente, do crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo art. 355º do CP, pelo que o recurso se mostra improcedente.
(Assinale-se que o recorrente não impugna, ainda que a título subsidiário, a medida da pena, segmento em que alguma razão poderia ter, face ao diminuto valor dos bens subtraídos.)
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Nos termos relatados, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo-se a Sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em 3UC’s.
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Porto, 04/03/2009
José Joaquim Aniceto Piedade
Airisa Maurício Antunes Caldinho