Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
617/13.3TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AMARAL FERREIRA
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA AUTÓNOMA
ACÇÃO PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RP20140327617/13.3TVPRT.P1
Data do Acordão: 03/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Ainda que esteja em causa a mesma garantia bancária, a acção fundada nas relações entre o garantido (dador de ordem) e o beneficiário não é prejudicial relativamente à acção baseada nas relações entre o garante (banco) e o beneficiário da garantia, por se tratar de relações independentes, não havendo lugar à suspensão da instância com esse fundamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: TRPorto.
Apelação nº 617/13.3TVPRT.P1 - 2014.
Relator: Amaral Ferreira (850).
Adj.: Des. Ana Paula Lobo.
Adj.: Des. Deolinda Varão.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

1. “B…, S.A.” instaurou, nas Varas Cíveis do Porto, acção declarativa de condenação, ao abrigo do regime processual civil experimental (DL nº 108/2006, de 6/6), contra “Banco C…, S.A.”, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 183.316,12.
Como fundamento da sua pretensão, alega, em resumo, que, no âmbito de um celebrado com a sociedade “D…, S.A.”, denominado «Contrato de Colaboração”, esta lhe entregou uma garantia bancária emitida pelo R., então designado “E…”, no montante de 150.000.000 de pesetas, posteriormente ampliada até ao montante de 300.000.000 de pesetas, destinada a garantir o pagamento das facturas emitidas pelos clientes angariados, e que, em virtude do incumprimento das obrigações assumidas pela “D…” e que serviram à sua emissão, accionou a referida garantia junto do R. em 31/1/2012, que, por carta de 16/2/2012, recusou o pagamento, alegando que o ordenador lhe transmitiu ser injustificado o accionamento da garantia, solicitando o não pagamento, e que mesmo não preenchia os requisitos constantes do texto da garantia; tendo respondido por carta de 28/2/2012 e rectificando, nos termos que lhe foram solicitados, o pedido de accionamento da garantia, refutou o alegado pelo ordenador e reiterou o pagamento, o R., por carta datada de 8/3/2012, voltou a recusar o pagamento, agora invocando a existência de procedimento cautelar visando obter a suspensão da eficácia do accionamento, procedimento cautelar que desconhecia, pelo que, por carta de 13/3/2012, mais uma vez refutou os argumentos invocados pelo R. para não efectuar o pagamento e reiterou o pedido de pagamento; o R. manteve a recusa com base no procedimento cautelar intentado pela “D…” contra A. e R., como lhe comunicou por carta de 20/3/2012; tendo tido conhecimento da providência cautelar em 20/4/2012, e tendo a mesma foi indeferida por decisão proferida em 23/10/2012, confirmada por acórdão proferido em 21/2/2013 no recurso dela interposto, o R. procedeu ao pagamento do valor da garantia bancária no dia 15/5/2013, sem que tenha liquidado os juros de mora, calculados às sucessivas taxas comerciais em vigor e devidos desde o accionamento da garantia, os quais ascendem ao montante cujo pagamento peticiona do R.

2. Contestou o R. que, impugnando parcialmente os factos articulados pela A., sustenta que a sua actuação no retardamento do pagamento da garantia foi legítima e afasta as responsabilidades que a A. lhe assaca, designadamente porque tinha o dever de informar a ordenadora do accionamento da garantia, que lhe comunicou, justificando-o, que o seu accionamento era abusivo e que ia propor providência cautelar com esse objectivo, e que, posteriormente, em 1/3/2012, lhe enviou cópia do requerimento da providência cautelar, acompanhado de comprovativo da entrada em juízo, e em que era requerido que se «abstivesse de liquidar à B… as garantias bancárias ... bem como à B… que se abstivesse de as tentar cobrar e receber», para o qual foi citada em 7/3/2012, do que informou a A. na carta que lhe enviou datada de 8/3/2012, providência e em que se limitou a juntar procuração forense por forma a poder ser informado dos seus termos, sem nunca ter intervindo nas discussões das questões de fundo, tendo procedido ao pagamento da garantia após o trânsito em julgado da decisão nela proferida, apesar da instauração da acção declarativa de condenação que a requerente da providência instaurou contra a A. e em que sustenta que o accionamento da garantia violou os limites impostos pela boa fé e o foi em abuso do direito, concluindo pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido, porquanto, apesar da natureza automática da garantia à primeira solicitação, não é ilimitada a possibilidade da sua exigência pelo beneficiário.

3. Conclusos os autos, foi proferido o seguinte despacho:
“Alega a Ré encontrar-se, ainda, pendente a ação principal (na decorrência do procedimento cautelar, instaurado também contra si, que vem referido e documentado nos autos), na 1ª Vara Cível de Lisboa, Processo nº 863/12.7 (cfr art. 23º, da contestação e doc de fls 39 a 124, junto pela própria Autora, referente ao apenso A - procedimento cautelar apenso àquele processo) ação essa proposta pela ordenadora D…, SA contra a aqui Autora em que sustenta, que esta, ao acionar a garantia, não se confinou aos limites impostos pela boa fé, incorrendo em atuação ilegítima por abuso de direito e que pagou, pese embora a automaticidade da garantia bancária não seja absoluta, como a própria Autora reconhece, podendo recusar o pagamento em caso de suspeita séria de conduta fraudulenta ou abusiva do credor pelo que não houve mora.
Assim, e por considerar que a decisão desta ação, em que apenas se pedem juros de mora desde a data do acionamento da garantia (31/01/2012) até à data de pagamento da mesma (13/5/2013), está dependente da decisão da referida ação, pendente na 1ª Vara Cível de Lisboa, pois a considerar-se haver violação dos limites impostos pela boa fé e abuso de direito da aqui Autora, aí Ré, e a ação procedente, não tinha a mesma direito a acionar a garantia bancária, não tendo, por isso, direito aos juros de mora aqui peticionados.
Nos termos expostos, e ao abrigo do disposto no nº1, do art 272º, do CPC, por estar pendente ação de que a presente é dependência, suspendo a instância até à decisão da referida ação principal”.

4. Dele discordando, apelou a A. que, nas respectivas alegações, formula as seguintes conclusões:
1ª: A Recorrente vem, nesta sede, apelar da decisão constante do douto despacho proferido pelo Mmº. Juiz a quo de fls. .., que, ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1 do C.P.C., determinou a suspensão da presente acção declarativa por considerar que a mesma é dependência da acção cível que se encontra a correr termos na 1.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa sob o n.º 863/12.7TVLSB.
2ª: Uma causa é prejudicial relativamente a outra quando o julgamento de uma pode vir a afectar o julgamento a proferir na outra, quando a decisão da primeira seja susceptível de fazer desaparecer o fundamento da segunda que será então improcedente.
3ª: Não se verificam os pressupostos de que a lei faz depender a verificação da prejudicialidade.
4ª: A decisão a proferir nestes autos em nada depende do resultado da acção declarativa que se encontra a correr termos na 1.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa sob o nº 863/12.7TVLSB, porquanto estamos perante relações contratuais absolutamente distintas e as questões abordadas em ambas as acções são, entre si, também absolutamente distintas.
5ª: Fazer depender o prosseguimento da presente acção do desfecho do processo que se encontra a correr termos na 1.ª Vara Cível de Lisboa é ir para além do espírito do legislador que esteve na génese da consagração do artigo 272.º, n.º1 do C.P.C.
6ª: O fundamento da presente acção é o incumprimento, por parte do Banco, ora Recorrido, das obrigações que sobre si impendiam, designadamente a obrigação de pagamento da garantia bancária on first demand por si prestada a favor da ora Recorrente.
7ª: São questões que se colocam no âmbito da relação contratual Beneficiária/Garante (um contrato de garantia).
8ª: No tocante a garantias bancárias à primeira solicitação, o Banco garante apenas poderá recusar o pagamento de uma garantia bancária em caso de fraude manifesta ou abuso evidente por parte do beneficiário da mesma,
9ª: A recusa de pagamento com esta motivação só poderá ter lugar desde que o garante esteja na posse de prova documental líquida e inequívoca de um comportamento abusivo ou fraudulento do beneficiário, ou sejam estes factos notórios.
10. O que importa apurar nessa acção é se os motivos e argumentos invocados pelo Banco, ora Recorrido, para a recusa do pagamento da garantia bancária em crise, foram ou não lícitos.
11ª: É essa prova (fundamento) que está em crise nos presentes autos e que impenderá, necessariamente, sobre o Recorrido.
12ª: E é essa prova que determinará a procedência ou a improcedência da presente acção.
13ª: No tocante à acção que se encontra a correr termos na 1.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa sob o n.º de processo 863/12.7TVLSB - da qual o ora Recorrido não é sequer parte -, o que está em causa, não é o contrato de garantia existente entre a aqui Recorrente e o aqui Recorrido, mas sim o próprio contrato que serviu de base à prestação da garantia bancária em questão.
14ª: São as vicissitudes, ou não, desse mesmo contrato que são discutidas nesta outra acção.
15ª: O que está em questão nesta outra acção não é o saber se o Banco tinha ou não legitimidade para recusar o pagamento da referida Garantia Bancária, mas sim, o saber se no âmbito das relações comerciais existentes entre a aqui Recorrente e a D… (Autora nesta outra acção) a Recorrente violou, ou não, os limites impostos pela boa-fé (emergentes do contrato base) ao accionar a referida garantia, atenta a alegada (e ainda não provada) existência de um suposto contra-crédito (por parte da D…) ou uma suposta (e também ainda não provada) novação de dívida.
16ª: O que não resultou sequer indiciariamente provado do procedimento cautelar invocado.
17ª: A existência do crédito que legitimou o accionamento da referida garantia bancária, não é sequer posto em questão pela Autora (D…) nesta outra acção, que o reconhece como sendo devido.
18ª: A causa de pedir e o pedido desta outra acção (1.ª Vara Cível de Lisboa) é completamente distinto do pedido e causa de pedir da presente acção.
19ª: Os fundamentos desta outra acção (a da 1.ª Vara Cível de Lisboa) não são, nem poderiam ser, considerados como prejudicais desta acção, desde logo, porque, ao contrário do sufragado pelo Mmº Juiz as quo, ambas as acções poderão ter desfechos diametralmente opostos atentos os fundamentos distintos das mesmas.
20ª: É que, os fundamentos que legitimariam o Banco a recusar validamente o pagamento de uma garantia bancária on first demand são, de acordo com a jurisprudência e doutrina maioritárias, absolutamente distintos e mais reduzidos daqueles que legitimam o ordenante da garantia a reclamar o seu accionamento abusivo.
21ª: As obrigações e responsabilidades que impendem sobre o ora Recorrido no âmbito da sua relação com a ora Recorrente são e têm natureza distinta das obrigações e responsabilidades que emergem para a Recorrente e para a D… no âmbito das relação comercial que as liga e tem consequências jurídicas também elas distintas e independentes.
22ª: A suspensão da presente acção com fundamento na prejudicialidade traduz-se, na prática, numa diminuição das garantias da Recorrente porquanto esta não poderá exercer o seu direito relativamente a um dos co-devedores, cujo património fica assim retirado do seu alcance.
23ª: O despacho recorrido violou, por deficiente aplicação, o disposto no artigo 272° nº1 do C.P.C. e o artigo 9° do Código Civil, pelo que deverá ser substituído por outro que determine a prossecução dos presentes autos até final.
Termos em que, e nos demais que V. Exa. se dignará suprir, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogado o despacho recorrido ordenando-se a sua substituição por outro que ordene o prosseguimento dos autos até final, assim se fazendo a costumada Justiça.

5. Não tendo sido apresentadas contra-alegações, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

1. A factualidade a considerar na decisão do recurso é a que se deixou relatada.

2. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o Tribunal apreciar e conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, que nos recursos se apreciam questões e não razões e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, a questão suscitada na apelação é a de saber se se justifica a suspensão da instância na presente acção até que seja decidida a acção proposta contra a recorrente pela ordenadora da garantia.

Nos termos do artº 272º, nº 1, 1ª parte, do Código de Processo Civil vigente (aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/6), ao abrigo do qual foi proferida a decisão recorrida, “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ...”.
Escreveu, a propósito, José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 3º Vol., pág. 368, que “uma causa é prejudicial a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda”.
Para José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, Anotado, Vol. 1º, 2ª edição, 2008, pág. 544, “Entende-se por causa prejudicial aquela que tenha pretensão que constitui pressuposto da formulada”.
Em termos mais abrangentes, Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. II, pág. 43, refere que a decisão de uma causa depende do julgamento de outra “quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar a situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito”.
Também Miguel Teixeira de Sousa, Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIV, pág. 306, considera que “a prejudicialidade, refere-se a hipóteses de objectos processuais que são antecedentes da apreciação de um outro objecto que os inclui como premissas de uma decisão mais extensa” e que “A prejudicialidade (...) pode definir-se como a situação proveniente da impossibilidade de apreciar um objecto processual, o objecto processual dependente, sem interferir na análise de um outro, o objecto processual prejudicial”.
Este conceito é reforçado pela redacção do nº 2 do artº 276º do Código de Processo Civil, segundo o qual “Se a decisão da causa prejudicial fizer desaparecer o fundamento ou a razão de ser da causa que estivera suspensa, é esta julgada improcedente”.
Podemos, assim, concluir, como no Acórdão do STJ de 06/07/2005, Proc. 05B1522, www.dgsi.pt., que, “para efeito de consideração da prejudicialidade justificativa da suspensão da instância, a decisão de uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão do outro pleito”.
Deste modo, “verdadeira prejudicialidade e dependência só existirá quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental, como teria de o ser, desde que a segunda causa não é a reprodução, pura e simples, da primeira …” - Manuel de Andrade, Lições Elementares de Processo Civil”, págs. 491 e 492.
Nestes parâmetros tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça, em diversos arestos (cfr., além do citado acórdão de 06/07/2005, os acórdãos de 18/03/1993, BMJ nº 424, pág. 587, e de 26/05/1994, CJ/STJ, Tomo II, pág. 116.

Regressando ao caso em apreço, em face do enunciado critério, não cremos que exista uma relação de prejudicialidade entre a acção proposta contra a ora Recorrente pela sociedade “D…, S.A.” e a presente acção movida pela recorrente contra a recorrida.
Em ambas as acções está em causa a mesma garantia bancária, que podemos denominar à primeira solicitação ou on first demand (cfr. Jorge Duarte Pinheiro, Garantia Bancária Autónoma, ROA 1992, T. II, p. 427), que, tendo surgido como uma criação da prática comercial Galvão Telles, Garantia Bancária Autónoma, O Direito, Ano 120º, T. III-IV, p.280,), em especial no domínio bancário, não tem regulamentação própria no ordenamento jurídico português, sendo, portanto, um negócio jurídico atípico, baseado na autonomia privada (Ferrer Correia, Notas para o Estudo do Contrato de Garantia Bancária, Revista de Direito e Economia, p. 248).
Apesar de se tratar de um negócio formal, a interpretação literal do documento reveste-se de particular importância quando se pretende fixar o sentido com que um contrato de garantia autónoma deve ser interpretado, maxime de uma garantia autónoma à primeira solicitação (Ac. do STJ de 21/4/10, Proc. 458/09.2YFLSB, www.dgsi.pt).
O seu regime jurídico é determinado pelas cláusulas acordadas e pelos princípios gerais dos negócios jurídicos (artºs 217º e ss do Código Civil) e dos contratos (artºs 405º e ss do mesmo diploma legal) - Pedro Romano Martinez, Garantias de Cumprimento, p. 52 e 57 –, podendo definir-se tal negócio jurídico como a garantia pela qual o banco, que a presta, se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato.
Garantia atípica ou inominada, tal como a fiança, é uma garantia especial e pessoal (geralmente prestada por um banco) - Jorge Duarte Pinheiro, ob. cit., pág. 423, e Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, pág. 605.
Do ponto de vista estrutural, é uma figura triangular, que supõe três ordens de relações: uma entre o garantido (dador de ordem) e o beneficiário; outra entre o garantido e o garante (banco); e uma terceira entre o garante e o beneficiário. Correlativamente, estão nela em jogo três actos jurídicos distintos: em primeiro lugar, o chamado contrato base, no qual são partes o dador de ordem e o benefi­ciário; em segundo lugar, o contrato ao abrigo do qual o banco (garante) se obriga para com o dador de ordem, mediante certa retribuição, a prestar-lhe o serviço que se traduz no fornecimento da garantia visada; em terceiro lugar, o contrato de garantia (entre o garante e o beneficiário).
Em geral, o dador de ordem é o devedor e o beneficiário o credor no contrato base (o contrato no qual surgiu a obrigação a garantir).
Não há qualquer possibilidade de confusão entre a fiança e a garantia autónoma.
Na verdade, enquanto que a obrigação do fiador é acessória em relação à obrigação garantida (a do devedor principal), na garantia autónoma isso não acontece. O garante não se vincula a pagar uma dívida do dador de ordem; mais do que isso, assegura ao beneficiário o pagamento, imediato e sem discussão, de uma quantia idêntica à garantida, logo que aquele lho solicite.
Como observa o Prof. Galvão Telles, Garantia Bancária Autónoma, 1991, pág. 55 “na garantia à primeira solicitação existem igualmente duas obrigações: a do dador de ordem e a do banco. Mas as duas são principais, porque o banco não se obriga a pagar a dívida do dador de ordem, assume um compromisso autónomo ou independente, na medida em que assegura que o dador de ordem pagará e promete que, frustrando-se esse resultado segundo o dizer do beneficiário, entregará ele, banco, como indemnização, uma importância igual. Donde se segue que o banco não se pode prevalecer de excepções ou objecções relacionadas com o contrato base; não lhe é legítimo servir-se dos meios de defesa facultados ao dador de ordem”.
Segundo Meneses Cordeiro, obra citada, págs. 609/610, na garantia autónoma o garante obriga-se a pagar a importância estabelecida à primeira solicitação, isto é, logo que o beneficiário lha peça, e sem fazer qualquer juízo acerca do cumprimento ou incumprimento da relação principal. “Exigida a garantia - sublinha - o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal”. E mais adiante acrescenta: “A função da garantia autónoma não é, pois, a de assegurar o cumprimento dum determinado contrato. Ela visa, antes, assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da própria garantia, uma determinada quantia em dinheiro. Por isso, perante uma garantia autónoma à primeira solicitação, de nada servirá vir esgrimir com argumentos retirados do contrato principal: a garantia tem fins próprios, auto suficientes, servindo, nas palavras de Galvão Telles, como um simples sucedâneo dum depósito em dinheiro”.
Como se afirma no Ac. do STJ de 18/11/2010, Proc. 2271/07.2TBMTS-A.P1, www.dgsi.pt., “nesta espécie de garantia, o garante assume uma obrigação de pagar uma determinada quantia com base numa simples solicitação do beneficiário, que não tem de ser justificada ou fundamentada. Trata-se de uma simples exigência ou ordem de pagamento, sem mais especificações sobre o porquê da execução da garantia. O que determina a sua designação de garantias automáticas.
Antunes Varela refere-se às garantias autónomas como «negócios de alto risco».
As garantias bancárias à primeira solicitação integram-se ... no grupo das garantias pessoais e tendem a criar um negócio autónomo de garantia em relação á obrigação garantida, dependendo o seu conteúdo em definitivo da vontade das partes. Sendo uma figura complexa que leva CANARIS a considerar que a sua natureza não se pode determinar de forma uniforme, mas apenas pelo exame particular de cada uma das relações jurídicas que surgem neste negócio.
Na jurisprudência cabe referir, entre outros, os acórdãos deste Tribunal de 23.3.95 (CJ 1995, I, 137), de 26.9.00 (BMJ 499º, 344) e de 28.9.06 (Revª 2412/06-6ª, em www.dgsi.pt) no qual estão claramente sintetizados os elementos salientes desta figura contratual e se chama a atenção para um ponto essencial (de acordo, aliás, com a melhor doutrina): é preciso analisar caso a caso o texto da garantia, interpretando-o e fixando o seu alcance juridicamente relevante”.
Face ao que se deixa exposto sobre a garantia bancária à primeira solicitação, reafirma-se inexistir uma relação de prejudicialidade entre a acção proposta contra a ora Recorrente pela sociedade “D…, S.A.” e a presente acção movida pela recorrente contra a recorrida.
Na verdade, enquanto na acção considerada prejudicial está em causa a relação entre a garantida e a beneficiária da garantia, ou seja, o denominado contrato base, na presente acção está a relação entre a beneficiária da garantia e o garante, ou seja, o contrato de garantia (entre o garante e o beneficiário).
E, na garantia à primeira solicitação existem igualmente duas obrigações: a do dador de ordem e a do banco. Mas as duas são principais, porque o banco não se obriga a pagar a dívida do dador de ordem, assume um compromisso autónomo ou independente, na medida em que assegura que o dador de ordem pagará e promete que, frustrando-se esse resultado segundo o dizer do beneficiário, entregará ele, banco, como indemnização, uma importância igual. Donde se segue que o banco não se pode prevalecer de excepções ou objecções relacionadas com o contrato base; não lhe é legítimo servir-se dos meios de defesa facultados ao dador de ordem.
Na garantia autónoma o garante obriga-se a pagar a importância estabelecida à primeira solici­tação, isto é, logo que o beneficiário lha peça, e sem fazer qualquer juízo acerca do cumprimento ou incumprimento da relação principal. “Exigida a garantia ... o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal”.
Daí que a decisão da acção proposta contra a ora Recorrente pela sociedade “D…, S.A.”, em que estão em causa as relações entre a garantida e a sua beneficiária, não seja prejudicial, relativamente à acção em causa nos autos, m que estão em causa as relações entre o garante e o beneficiário da garantia, porquanto tais relações são independentes.
Procede, deste modo, a apelação.

III. DECISÃO.

Face ao exposto, acordam os juizes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente a apelação e, revogando a decisão recorrida, declarar inexistir relação de prejudicialidade, devendo os autos prosseguir termos.
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Sem custas.
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Porto, 27/03/2014
Amaral Ferreira
Ana Paula Lobo.
Deolinda Varão.