Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0433578
Nº Convencional: JTRP00037074
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: EXECUÇÃO
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RP200407080433578
Data do Acordão: 07/08/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - Não obstante a prescrição da obrigação cambiária constante de cheque, este configura um título executivo integrado por um documento particular que integra uma confissão de dívida, a qual faz presumir a existência de uma causa para a obrigação de pagamento da quantia nele inscrita.
II - Assim, transparecendo do documento executivo o reconhecimento de uma dívida que a lei substantiva presuma, nos termos do artigo 458 do Código Civil não se impõe que o credor/exequente indique a causa debendi, subjacente à emissão do título.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:
No ... Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de ....., B..... instaurou contra C.....
Acção executiva para pagamento de quantia certa, dando à execução o cheque com cópia a fls. 52 destes autos, sacado sobre a conta nº ......., da agência do Banco A...... de ....., no valor de € 5.000.000, datado de 15.12.2002, o qual, apresentado a pagamento, foi devolvido com a indicação de falta de provisão.

Citado, veio o executado opor-se à execução, por meio de embargos, alegando que o referido cheque como título executivo está prescrito, pelo que perdeu o exequente portador do cheque o direito de acção cambiária, não valendo como título executivo, até porque não vem nele invocada a relação subjacente. Pede a procedência dos embargos com as legais consequências.

O exequente/embargado contesta os embargos, tentando mostrar a falta de razão do embargante, alegando, “POR MERA CAUTELA”, a relação subjacente à emissão do cheque, para o que diz que o cheque foi emitido para pagamento de uma viatura que o executado adquiriu ao exequente e 4 jantes e pneus que o executado solicitou, para aplicação no veículo.
Conclui pela improcedência dos embargos.

Com data de 26.11.2003, foi proferido o seguinte
Despacho ( fls. 24 ss):
“[............................]
Em conclusão, entendemos que não obstante a prescrição da obrigação cambiária constante do cheque exequendo, este configura um título executivo integrado por um documento particular que integra uma confissão de dívida, a qual faz presumir a existência de uma causa para a obrigação de pagamento da quantia nele inscrita, pelo que, consequentemente, está o credor desonerado da alegação da causa subjacente à emissão do título.

Com o que improcedentes na íntegra os embargos, posto que o único fundamento daqueles era integrado pela prescrição da obrigação cambiária.

Tudo visto, julgo improcedentes os presentes embargos e determino o prosseguimento da acção executiva.”

Inconformado com esta decisão, interpôs recurso o executado/embargante, apresentando as pertinentes alegações que remata com as seguintes

“CONCLUSÕES
A) A douta sentença, ora em crise, e salvo melhor opinião, reflecte a violação de vários dispositivos legais e não corresponde a uma correcta e adequada apreciação e interpretação dos elementos fácticos constantes dos autos.
B) A questão em apreça nos presentes autos consiste em saber se, não
obstante a prescrição da acção cambiaria, o cheque em causa encerra ainda virtualidade executiva, como simples documento particular ou quirógrafo, nos termos do Art. 46º, al. c) do C.P. C..
C) Trata-se pois de averiguar se, encontrando-se prescrita a acção cambiada subjacente ao cheque ora dado à execução, conforme doutamente se decidiu na sentença ora em crise, poderá este, desamparado da legislação especial que lhe conferia tal estatuto ( LUCH), valer como documento particular, maxime confissão de divida, e reconduzir-se à previsão do Art- 46º al- c)- do C-P.C-.
D) O cheque é, no dizer de Ferrer Correia e Agostinho Caeiro (in Revista de Direito e Economia nº 4, pág- 47), "um titulo cambiário à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada de pagar a soma nele inscrita, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis”-
E) E entendeu já o S.T. J., em AC. de 1 6-10-01 (C. J., IX, T III, p. 90), que, "assumindo o cheque a natureza de um simples documento particular, em que não há incorporação da pretensão, falta a menção da obrigação subjacente que visava satisfazer”, pelo que, "não pode reconhecer-se a força de titulo executivo quanto à obrigação subjacente a um cheque que não foi apresentado a pagamento nos termos impostos pela Lei Uniforme,” tendo perfilhado igual entendimento, entre outros, os Ac. S.T.J. 29-02-00, C.J., I, p.24; 26-09-00, Sumário 43, Boletim S.T.J., p. 30.
F) Ora, a presente execução não foi instaurada com base no cheque enquanto titulo de crédito, (até porque foi proposta depois de decorridos os seis meses), mas sim na veste executiva de mero quirógrafo, exigindo-se não a obrigação cambiaria, que se encontra já prescrita, mas sim a obrigação causal, subjacente ou fundamental, constituindo esta a causa de pedir.
G) Porém, enquanto documento particular, do cheque constante nos autos não consta a causa da relação jurídica subjacente, a constituição ou reconhecimento da obrigação pecuniária do sacador, dele não emerge a obrigação de pagar a quantia nele aposta, em suma, inexiste causa de pedir.
H) Tem plena aplicação nesta matéria e com referência ao titulo constante dos autos a posição assumida pelo S.T.J. em Ac. vindo de referir, segundo a qual "o cheque é completamente inexpressivo nos seus dizeres, nem constitui essa obrigação, nem sequer a reconheceu, já que não contém qualquer referência identificadora da origem da mesma”.
I) Assim, o cheque dado à execução não preenche os pressupostos da ai. c) do Art. 46º do C. P.C..
J) Sobre esta matéria pronunciaram-se já vários autores, destacando-se aqui lebre de Freitas, (in A Acção Executiva à Luz do Código revisto, 2ª ed-, pág. 49), que, no essencial entende que “o Exequente que se limita a dar à execução o título cambiário prescrito, se deste não consta a causa. da obrigação, então só será titulo executivo se a dita causa vier a ser a legada na petição da execução”.
K) Tal tese é corroborada por Miguei Teixeira de Sousa, que entende que "quando a obrigação exequenda for causal, ela exige a alegação da respectiva causa debendi, pelo que se esta não constar ou não resultar do titulo executivo, este deverá ser completado com essa alegação. Um título executivo relativo a uma obrigação causal exige sempre a indicação do respectivo facto constitutivo, porque sem este a obrigação não fica individualizada e, por isso, o requerimento executivo é inepto, por falta de indicação da respectiva causa de pedir (artº 193º, nº 2, al. a) do CPC)”-in A Acção Executiva Singular, 1998, págs. 68 e 69.
L) E, sem prescindir, mesma que se entenda que o titulo constante dos autos consubstancia, conforme referido na sentença ora em crise, uma confissão de dívida, a este propósito, esclarece Lebre de Freitas, na pág. 134 da ob. cit.: “Esta falta de referência ocorrerá quando o titulo contiver uma promessa de cumprimento ou o reconhecimento duma dívida sem indicação da respectiva causa (art. 458º do CC), maxime se se tratar de (..) cheque relativamente ao qual tenham decorrido já os prazos de prescrição da obrigação cartular. Neste último caso, se a prescrição já tiver sido invocada pelo devedor, bem como, se não tiver, para prevenir a hipótese da sua invocação em embargos de executado, o Exequente deverá, em obediência ao artº 467, nº 1, al. c) do CPC, alegara causa da obrigação...”.
M) No caso em análise desconhece-se a relação subjacente que, além de não constar do titulo, não foi minimamente invocada pelo Exequente no requerimento executivo.
N) Acresce que, não obstante o Art. 458º do C.C. estabelecer uma presunção, a credor, por via dela, não fica desobrigado de alegar, mas sim de provar.
O) No mesmo sentido, Castro Mendes, in Dto. Proc. Civil, 2º, p. 59, refere que “a citada norma legal, embora dispensando o credor da prova da relação fundamental, não dispensa a alegação da causa de pedir.”
P) Daí que o cheque dado à execução, em face do vindo de referir e contrariamente ao decidido na sentença em crise, em violação do disposta no citado Aft. 46º al. c) do CP.C., não reveste força executiva, nem como cheque nem como documento particular.

Pela exposto e sem necessidade de quaisquer considerações, entendemos que V. Ex.as, revogando a douta sentença recorrida e, em consequência, declarando os embargos procedentes e , consequentemente, extinta a execução, farão como sempre

JUSTIÇA”
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
--O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
-- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
-- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a única questão a resolver consiste em saber se não obstante ter prescrito a obrigação cambiária constante do cheque exequendo, este ainda vale como título executivo.

II. 2. OS FACTOS
Resulta dos autos a seguinte factualidade:
1. Foi dado à execução um cheque, do qual é legítimo portador o exequente, com o n.º ....., sacado sobre o Banco A.....- Agência de ....., da conta de que o executado é titular, com o n.º ....., da importância de 5.000,00 EUR, datado de 15.12.2002.
2. A acção executiva a que os presentes autos de embargos estão apensos, em que constitui título executivo o cheque aludido em 1, deu entrada neste tribunal em 25.07.2001, sendo que o executado apenas foi citado para a acção em 30.09.2003.
3. Na petição executiva, o exequente apenas alega que: “apresentado a pagamento o aludido cheque veio devolvido com indicação de “extravio”” e que: “o executado deve ao exequente a quantia de EUR 5.000,00”.
4. Na contestação aos embargos de executado (arts. 20º e 21º) veio o exequente/embargado alegar o seguinte:
““POR MERA CAUTELA” [.......................], sempre se dirá que o cheque dos Autos foi passado para pagamento de uma viatura marca HONDA, matrícula ...-...-..., que o executado adquiriu ao exequente no valor de € 4.000,00, cfr, cópia de uma factura que se junta [............] como documento nº 1.
Os restantes € 1 000,00 (mil euros) foram para liquidar um conjunto de quatro jantes especiais MOMO e respectivos pneus, que o executado solicitou, para aplicação no veículo”.

III. O DIREITO:
DO CHEQUE COMO TÍTULO EXECUTIVO:
Vejamos, então, da questão de saber se prescrito o cheque como título cambiário, este continuaria a ser título executivo.
Antes de mais, deve referir-se que para que o cheque pudesse ser considerado título executivo tinha que ser apresentado a pagamento dentro dos oito dias posteriores à sua emissão.
Efectivamente, temos entendido que, não obstante as alterações verificadas nem matéria de títulos executivos pela actual lei adjectiva civil, continua a ter aplicação o disposto pelo artº 29º da lei Uniforme Sobre Cheques (LUC).
Com a ampliação do elenco dos títulos executivos não houve qualquer alteração quanto aos requisitos necessários para que um cheque possa ser considerado título executivo. Nesta matéria, mantém-se aplicável o entendimento defendido pela jurisprudência e pela doutrina antes da entrada em vigor das alterações sofridas pela citada lei processual em consequência da reforma de 1995.
A título exemplicativo, citem-se os Acs. da Rel. de Coimbra de 02.11.88, sumariado no Bol. M. J. 381, pág. 756; da Rel. do Porto, de 28.06.1990 (sumariado no mesmo Boletim nº 398, pág. 587; do S. T. J. de 14.06.1983, Processo nº 70.862, publicado no mesmo Boletim, nº 328, págs. 599 e segs.
No sentido do ora expendido, pode ver-se, por todos, o Ac. S. T. J. de 04.05.1999, in Col. Jur. , Acs. STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 82, cujo sumário ensina o seguinte:
“I--Está ausente da letra ou do espírito da reforma processual civil de 1995, no que respeita às alterações introduzidas na norma da al. c) do artº 46º , qualquer intencionalidade visando a não aplicação dos normativos próprios da LUC.
II—O direito de acção do portador contra o sacador, por falta de pagamento, só poderá ser exercido se o cheque, apresentado dentro de oito dias, não for pago e se a recusa de pagamento for verificada, antes de expirar esse prazo, por um dos meios referidos nos arts. 40º e 41º da LUC”.
Assim, caso a aludida apresentação a pagamento não ocorra no aludido prazo de oito dias, perde-se o direito de acção previsto no artº 40º da Lei Uniforme sobre Cheques—o que, a acontecer no caso presente, levaria à procedência dos embargos de executado, com a consequente extinção da execução apensa.
E não importam as razões eventualmente determinantes da não apresentação atempada do cheque a pagamento. O que releva é tão só que fica a faltar, segundo os normativos aplicáveis da Lei Uniforme, um dos requisitos necessários para que o cheque possa ser considerado título executivo.

No caso presente, porém, tal apresentação a pagamento foi atempada, como se vê do verso do cheque: ocorreu, pela primeira vez, em 18.12.2002 (tendo, como dissemos, o cheque sido emitido em 15.12.2002).
Neste aspecto, portanto, nada a observar ou censurar.

Mantém-se, porém, a questão de saber se prescrito o cheque -- pelo facto de ter sido instaurada a execução decorridos mais de seis meses sobre a data da emissão daquele-- , o mesmo continuará a valer como título executivo.
Efectivamente, veio o embargante excepcionar a prescrição do direito de accionar, pelo facto de o cheque ter sido apresentado a pagamento há mais de seis meses relativamente à data da execução.
Quid juris?

Não existem dúvidas de que o cheque dos autos, enquanto título cambiário, não permite accionar o sacador (embargante), pois tal direito encontra-se prescrito, nos termos do art. 52º da Lei Uniforme sobre Cheques.
Refere este normativo que:
“Toda a acção do portador contra os endossantes, contra o sacador ou contra os demais co-obrigados prescreve decorridos que sejam seis meses, contados do termo do prazo de apresentação”.
Na verdade, basta atentar nas datas do cheque (15.12.2002) para se concluir, forçosamente, que à data da instauração da execução há muito que se havia esgotado o aludido prazo de seis meses, pois a execução deu entrada em juízo em 25.07.2003 (cfr. fls. 51-52).
Encontramo-nos, assim, perante uma situação de prescrição cambiária, facto pelo qual o cheque só valerá como documento particular e não produzirá quaisquer efeitos cambiários (cf. Ac. RL, 16-01-79, CJ, IV, tomo I).

Mas continuará a ser o cheque título executivo?
Continuaria a sê-lo, enquanto documento particular assinado pelo devedor e que importa o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, de montante determinado?
Vejamos.

Define-se título executivo como “(…) o instrumento que é considerado condição necessária e suficiente da acção executiva”, Anselmo de Castro, A acção Executiva Singular, Comum e Especial, Coimbra Editora, 1977, pág. 14.
Considera-se que o título executivo é condição necessária da execução na medida em que os actos executivos em que se desenvolve a acção apenas podem ser praticados na presença dele.
Por outro lado, diz-se que o título executivo é condição suficiente da acção executiva, na medida em que na sua presença segue-se imediatamente a execução, sem ser necessário indagar previamente sobre a real existência do direito a que se refere.
Mas o título, além, de ser a condição necessária e suficiente da execução, define-lhe também os fins e os limites.
Nos termos do art. 45º do Código de Processo Civil (CPC), “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”.
Ora, o art. 46º, nas suas diversas alíneas, diz quais os títulos com força executiva. Trata-se de uma enumeração taxativa, como facilmente se constata da letra do preceito em análise (“À execução apenas podem servir de base(…)”).
A enumeração legal pode ser reduzida à seguinte classificação: títulos judiciais, parajudiciais e extrajudiciais.
Dentro dos títulos extrajudiciais, temos os documentos particulares. Antes da revisão da lei adjectiva, para os documentos particulares serem títulos executivos exigia-se que contivessem a assinatura do devedor e o reconhecimento dessa assinatura.
A evolução da nossa lei caracteriza-se por uma progressiva expansão dos títulos executivos extrajudiciais, em contraste com a maioria das legislações que persistem em os restringir à escritura pública e aos títulos mercantis.
Prova desta evolução encontra-se a reforma processual de 1995, onde o elenco dos títulos executivos foi significativamente ampliado, conferindo-se força executiva aos “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto” - (al. c) do art. 46º do CPC). Desapareceu, assim, a exigência de reconhecimento da assinatura que antes existia.
Mantém-se, contudo, um requisito de fundo: que deles conste a obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, de entrega de coisa móvel ou de prestação de facto.
Ora, no caso do cheque essa quantia encontra-se perfeitamente determinada.

Sendo certo que a al. c) do art. 46º confere exequibilidade aos documentos particulares, assinados pelo devedor, constitutivos ou recognitivos de obrigações, a questão que se coloca é de saber se o cheque prescrito pode ser incluído nesta alínea ou se está sujeito a um regime diferente.
No fundo, o que se procura saber é se prescrita a obrigação cambiária constante do cheque, poderá o título de crédito continuar a valer como título executivo, desta vez enquanto escrito particular consubstanciando a obrigação subjacente.
Alberto dos Reis pronunciou-se em sentido favorável, afirmando que: “Não estamos em presença de um caso de título inexequível, estamos em presença dum caso de prescrição da obrigação cartular. A letra continua a ser título executivo, porque continua a reunir os requisitos exigidos para a sua exequibilidade”, in Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 1960, vol. 1º, pag. 78.
O que é dito em relação às letras vale igualmente para os cheques.

Ora, quando o título de crédito menciona a causa da relação jurídica subjacente, não há motivos para distinguirmos entre o título prescrito e outro documento particular, enquanto ambos se reportam à relação jurídica subjacente.

Contudo, não é esta a situação dos autos, pois do cheque não consta a causa da obrigação.
Assim sendo, há quem distinga consoante a obrigação a que se reportam emirja ou não de um negócio jurídico formal: no primeiro caso, dado que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (arts. 221º1 e 223-1 CC); no segundo caso, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação ter de ser invocada no requerimento inicial da execução (Cfr., neste sentido, Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 1997, pag. 53 e ss.).
Ora, a seguirmos esta esquematização, temos que, caindo a situação dos autos no âmbito do segundo caso referido e não tendo sido invocada no requerimento inicial a causa da relação jurídica subjacente, como causa de pedir da acção executiva, então o cheque em causa, tendo prescrito, não conserva a sua exequibilidade quanto à relação fundamental.
Isto é, neste caso concluiríamos que o cheque em causa não só prescreveu, como não constitui título executivo.

É certo que in casu o exequente veio na contestação aos embargos invocar a causa da obrigação que esteve na origem da emissão do cheque (cfr. arts. 20º e 21º desse articulado). No entanto, tem-se entendido—e bem-- que se o exequente não invocar a causa da obrigação, ainda que a título subsidiário, no requerimento inicial, não será possível fazê-lo na pendência do processo, após a verificação da prescrição da obrigação cartular e sem o acordo do executado (artº 272º, CPC), por tal implicar alteração da causa de pedir (Ac. Rel. Lisboa, de 25.11.82, Bol. M.J., 327º-685).

Mas será que tinha mesmo o exequente de invocar a causa da obrigação no requerimento inicial da execução, sob pena de o cheque—cuja prescrição cambiária é coisa segura—não valer como título executivo?
Não entendemos que o tivesse.

Não obstante a ausência de (atempada) alegação da obrigação causal, o cheque continua a ser título executivo por obedecer aos requisitos cominados na al. c) do artº 46º do CPC.
Como escreve Pinto Furtado, Títulos de Crédito, a págs. 82/83:
“Efectivamente, prescrita a obrigação, deixaremos de estar em presença de um título de crédito e nem poderá pôr-se a questão da executoriedade do crédito cartular correspondente—mas nem por isso desaparecerá o papel que, muito embora não seja um título de crédito, constitui decerto, ainda, um escrito particular do qual conste a obrigação de prestação de quantia determinada e a assinatura do devedor.
Ele não documenta, é certo, a inteira obrigação fundamental—mas nem isso é preciso para poder valer como título executivo, nos termos da facti species constante da al. c) do artº 46º CPC; basta, para tanto, que dele conste, como efectivamente consta, a obrigação do pagamento de uma quantia determinada e esteja assinado pelo devedor executado.
Se estes requisitos se configuram num escrito, ele poderá não ser um título de crédito e pode mesmo ter deixado de sê-lo, em face da prescrição cambiária; não deixará por isso é de constituir um título executivo da obrigação de pagamento nele literalmente expressa.
[......................................]
Isto é, hoje em dia, particularmente mais claro, em presença da actual versão desta alínea, a qual, como se sabe, deixou de conter uma enumeração de títulos de crédito típicos, que inseria no elenco dos títulos executivos para se limitar a descrever apenas as menções que deverá conter todo o documento de dívida, em geral, para constituir um título executivo.”—sublinhados e negritos nossos.
Mais escreveu, ainda, o autor que ora seguimos, a fls. 285 da ob. cit.: “Sendo o cheque um documento particular, assinado pelo devedor, que importa o reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado, é, obviamente, um título executivo (al. c) do artº 46º CPC).....”.
E acrescenta: “No âmbito das relações imediatas e para execução da respectiva obrigação subjacente, é quanto a nós inegável que o cheque valerá como quirógrafo dessa obrigação, com a força de um título executivo que lhe é dada pela al. c) do artº 46º CPC”.

Portanto, atenta a nova redacção da citada al. c) do artº 46º CPC, o cheque—tal como as letras e livranças--, embora possa—como no caso sub judice— não constituir título cambiário, pode, sem dúvida, constituir título executivo, como mero documento particular, bastando, para tal, que obedeça aos requisitos contidos nessa mesma alínea.
Tais elementos ou requisitos são a assinatura do devedor e a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artº 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto.
Tais requisitos estão bem plasmados no cheque exequendo.
Efectivamente, o cheque é, no dizer de Ferrer Correia e Agostinho Caeiro (in Revista de Direito e Economia nº 4, pág- 47), "um titulo cambiário à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada de pagar a soma nele inscrita, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis”.
Ora, parece indiscutível que ninguém passa um cheque por acaso.
Como escreveu o Ac. do STJ de 11.05.99 (Col. Jur. , Acs. STJ, Ano VII, T. II, pág. 88), ninguém se obriga por nada e sem causa, o mesmo é dizer que ninguém ordena pagamentos sem se encontrar a tal juridicamente vinculado.
Daí que a ordem de pagamento concretizada no cheque recorte o reconhecimento de dívida existente à data da emissão e para a qual ele constitui datio prosolvendo.
Assim, quando um sacador de um cheque o emite e entrega a alguém, outra leitura não se pode fazer que não seja a de que esse emitente do cheque constitui ou reconhece uma obrigação pecuniária da sua parte para com a pessoa a favor de quem o emitiu e entregou. Pelo que tal título não pode deixar de valer como documento particular em que é reconhecida uma obrigação pecuniária do sacador perante o tomador do cheque.

É certo—repetimos-- que do cheque exequendo não consta a causa da sua emissão, ou seja, a causa debendi—embora o exequente a tivesse introduzido na contestação aos embargos, embora sem lhe ser possível, como supra se anotou (cfr. artº 272º CPC).
No entanto, cremos que não se impunha tal alegação da causa debendi.

Efectivamente, como emerge do artº 458º do CC, se alguém, por declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, mesmo que não indique a respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presumirá até prova em contrário.
Como sustenta Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., pág. 442, estamos perante uma presunção de causa e de inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.
Assim sendo, torna-se desnecessário que do título executivo (cheque) conste a causa da obrigação.
Já Vaz Serra (citado por Rodrigues Bastos, in Das obrigações em Geral, Vol. I, 2ª ed., pág. 181) escrevia que “a promessa ou reconhecimento de dívida podem não mencionar a relação fundamental, cabendo ao Réu a prova dela ou da sua falta ou dos seus vícios, se quiser tirar daí as consequências que comportam”.
Assim sendo, como bem se escreveu no despacho recorrido, “abstraindo da génese de um documento integrado por um cheque prescrito nos termos e para os efeitos da Lei Uniforme, dele jorra uma declaração de dívida que, independentemente da sua causa, vincula o respectivo subscritor ao pagamento de uma determinada quantia, sem prejuízo da invocação, no âmbito da defesa, de factos impeditivos dos efeitos pretendidos (v.g., aceite de favor, nulidade do mútuo, simulação, etc.).
Ora, se uma tal declaração envolvida num qualquer outro documento representa para quem a subscreve uma fonte de obrigação, nos termos do art. 458º do Código Civil, não detectamos qualquer diferença substancial relativamente a um título de crédito que, fora do regime específico das obrigações cambiárias, não deixa de expressar, de modo semelhante, o mesmo efeito confessório ou recognitivo”- (neste sentido António Santos Abrantes Geraldes, Títulos Executivos, in THEMIS, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano IV, n.º 7, 2003).
Portanto, cremos que se não impõe que o exequente indique a causa debendi, desde que transpareça do documento executivo (in casu, um cheque) o reconhecimento de uma dívida que a lei substantiva presuma, nos termos do referido artº 458º CC.
Sabemos não ser esse entendimento pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência (contra, v.g., Lebre de Freitas, “A Acção Executiva”, págs. Cits. e, ainda, A Confissão no Direito Probatório, págs. 390/391 e Ac. STJ in CJ, Acs. STJ, T. I, pág. 64).
Mas parece-nos que é o entendimento mais justo, na ponderação dos interesses das partes e da letra e espírito da lei.
No sentido aqui defendido, ver., v.g., Ac. Rel. de Lisboa, de 27.06.2002, Col. Jur. 2002, T. III, pág. 121.
Temos, assim, como acertada a posição vertida no despacho recorrido, de que nos permitimos fazer a seguinte transcrição:
“Seguimos agora, de novo, de perto, A. Geraldes, loc. cit..”—a obra referida supra.
“É que, atento o regime prescrito pelo art. 458º do Código Civil e a conexão existente entre o ónus da alegação e o ónus da prova, não se vislumbra fundamento para impor ao credor o ónus de alegação/invocação da causa da dívida reconhecida, porquanto só faz sentido impor o ónus da alegação àquele sobre quem recai simultaneamente o ónus da prova.
Atendendo a que a lei, face a uma promessa de cumprimento ou a uma declaração de reconhecimento de dívida, presume a existência da respectiva causa, o credor está exonerado do respectivo ónus da prova (art. 344º, n.º 1 do Código Civil) e, assim, não faz qualquer sentido impor-lhe o ónus de alegação, totalmente despiciendo no contexto processual. Cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.05.99, CJSTJ, tomo II, p. 88.
É que se nos afigura ainda inexistente ou insubsistente o perigo a que atende Lebre de Freitas para sustentar a posição supra referida: o de o mesmo documento poder servir para instruir uma outra acção, uma vez que sempre o devedor pode ilidir a presunção da existência da dívida, em resultado do confronto entre os factos alegados pelo executado na oposição à acção executiva e a contestação do exequente.”

Portanto, a ordem de pagamento dada ao banco, concretizada no cheque, implica, em princípio, um reconhecimento unilateral de dívida. Como tal, o documento pode valer como título executivo, sendo ao devedor que, em conformidade com o disposto no artº 458º-1 CC, incumbe fazer a prova da inexistência ou da cessação da respectiva causa (cfr., além do Ac. do STJ de 11.05.99, já supra referido, bem assim os Acs. Rel. de Lisboa de 24.06.99 e da Rel. do Porto de 05.1.2000 e de 15.05.2003 (Col. Jur. STJ, Ano VI, 2, 88 e Col. Jur. XXIII, 5, 33 e www.dgsi.pt-- seguindo ainda esta posição os Acs. proferidos nas apelações nºs 1257/99 e 1165/01, ambos da 3ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto).

Sendo a normal função do cheque a de meio de pagamento, a sua emissão configura o reconhecimento da obrigação de pagamento, que, a par da assinatura do executado—não posta por ele em causa, pelo que se tem de reconhecer por verdadeira, em conformidade com o disposto no artº 374º, nº1, CC, da mesma forma que o executado não invocou a falsidade do documento, pelo que o mesmo faz prova em conformidade com o artº 376º, nº1, CC—preenche a previsão do artº 46º-1-c) CPC.
Ainda a respeito do artº 458º CC, refere Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, I, 253: “...no que respeita à substância, é dispensada a invocação pelo credor da relação subjacente- causa- cuja existência e licitude se presume. Esta presunção é ilidível- tantum iuris- pelo respectivo obrigado, que é admitido a invocar a sua falta ou qualquer outra excepção ex causa”.
E, como bem refere o exequente, sem dúvida, portanto, que o executado aceitou em toda a sua plenitude o reconhecimento de uma dívida.

Nada a censurar, portanto, à decisão recorrida, claudicando, por conseguinte, as conclusões das alegações de recurso.

CONCLUINDO:
- Não obstante a prescrição da obrigação cambiária constante de cheque, este configura um título executivo integrado por um documento particular que integra uma confissão de dívida, a qual faz presumir a existência de uma causa para a obrigação de pagamento da quantia nele inscrita.
- Assim, transparecendo do documento executivo o reconhecimento de uma dívida que a lei substantiva presuma, nos termos do artº 458º CC não se impõe que o credor/exequente indique a causa debendi, subjacente à emissão do título.

IV. DECISÃO:
Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos apelante/embargante, sem prejuízo de apoio judiciário concedido.

Porto, 8 de Julho de 2004
Fernando Baptista Oliveira
Manuel Dias Ramos Pereira Ramalho
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha