Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0634770
Nº Convencional: JTRP00039579
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: COMPETÊNCIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RP200610120634770
Data do Acordão: 10/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 685 - FLS. 170.
Área Temática: .
Sumário: I- Apesar da reforma do contencioso administrativo ter alargado o âmbito da jurisdição administrativa, deixando a al. g) do nº1 do artº 4º do novo ETAF (Lei nº 13/2002, de 19.02 com subsequentes alterações) de fazer qualquer referência aos actos de gestão pública, continua a não ser indiferente que as “questões” ali referidas sejam regidas por um regime de direito público ou de direito privado.
II. Pelo contrário, continua a ter interesse a qualificação do acto lesivo daspessoas colectivas de direito publico”. Pelo que, sendo demandadas com base na responsabilidade civil extracontratual, continuam a ser demandadas na jurisdição administrativa apenas no caso de o acto lesivo dos interesses do terceiro demandante ser qualificado como acto de gestão pública - devendo, ao invés, tal demanda ocorrer nos tribunais comuns no caso de tal acto ser qualificado como de gestão privada--,
III- primeiro, porque a letra da lei (als. g) e h) daquele artº 4º do ETAF) não basta para afastar este entendimento, pois para tal deveria o legislador mencionar, de forma expressa e clara, que a jurisdição dos tribunais administrativos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas, órgãos, funcionários ou agentes, era “indiscutível” independentemente da possível qualificação do acto lesivo dos interesses de terceiro como de gestão pública ou de gestão privada;
IV- segundo, porque não há motivos para privilegiar a incidência do mero factor subjectivo para a determinação da competência neste domínio - também isso não resulta, pelo menos de forma clara, da lei.
V- E não sendo clara a competência da jurisdição administrativa para apreciação dos litígios que tenham por objecto a responsabilidade extracontratual de tais pessoas pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão… privada, não pode deixar de valer a regra geral da competência residual dos tribunais judiciais comuns.
VI- Por outro lado, sendo a competência material do tribunal dependente, sempre, do thema decidendum, aferido pelo pedido do autor, concatenado com a causa de pedir, não cabendo uma causa na competência de outro Tribunal, ela é da competência do Tribunal Comum.
VII- Ao proferir palavras ofensivas da “honra e dignidade”, bem assim do “crédito e bom nome pessoais e profissionais” dos autores, a pessoa colectiva, seu órgão ou agente, passa a agir como qualquer particular que agride outrem nos mesmos valores. Pelo que a reacção contra essa ofensa tem que ocorrer nos tribunais judiciais comuns. É que a ofensa ao direito de personalidade não cabe nas atribuições daqueles; não pode tal acto ofensivo daquela honra e dignidade de terceiro integrar a competência de um agente administrativo; não pode ser considerado, afinal, um acto…. administrativo.
VIII- Como tal, declarar aquela ofensa do direito dos particulares, com a consequente obrigação de indemnizar e decorrente liquidação dos danos sofridos, é uma actividade jurisdicional típica dos tribunais comuns, de direito civil material e de processo civil, pelo que cabe a estes, e não à jurisdição administrativa, a competência para aferir da responsabilidade civil extracontratual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

Na ..ª Vara Cível do Porto (..ª Secção), os Drs. B……… e C……. instauraram contra o Prof. Dr. D……., Ministro da Saúde em funções, acção declarativa de condenação sob a forma ordinária, pedindo a condenação do réu a pagar a cada um dos AA uma indemnização no valor de € 10.000,00 e juros de mora, bem assim a retratar-se perante os autores com a publicação de um anúncio na imprensa.

Para tal, invocam excertos do discurso proferido pelo réu na cerimónia de posse do Conselho de Administração do E……., no Porto, na qualidade de Ministro da Saúde, discurso esse que entendem ter sido ofensivo da honra, dignidade, crédito e bom nome pessoal e profissional dos AA, do que pretendem ser ressarcidos.

Contestou o Réu, excepcionando a incompetência material do tribunal, entendendo que a competência para a apreciação do pedido pertence aos tribunais administrativos e não aos tribunais judiciais.

Foi proferido despacho a julgar improcedente a deduzida excepção da incompetência material, por se entender ser competente o tribunal judicial (a quo) para a apreciação da questão de mérito suscitada nos autos.

Inconformado com este despacho, dele recorreu o réu, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES:
“Iª. A decisão recorrida incorre em erro de julgamento, no sentido da alínea b) e da alínea c) do artigo 690° do Código do Processo Civil, já que, sem fundamento legalmente atendível, recusa a aplicação das alíneas g) e h) do n° 1 do artigo 4° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
IIª. Se tivesse procedido a uma aplicação adequada das alíneas g) e h) do n° 1 do artigo 49 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Mmo. Tribunal teria concluído que o conhecimento da presente questão de responsabilidade civil extracontratual cabia aos tribunais administrativos e não aos tribunais judiciais.
IIIª. O legislador do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais manifestou expressamente a intenção de que no novo regime o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos se estendesse à apreciação de todos os litígios respeitantes à questão da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, seus órgãos e agentes. O legislador pretendeu essa solução normativa.
IVª. Por outro lado, é manifesto que se pretendeu alterar o regime, mesmo do ponto de vista literal, já a referência a actos de gestão pública que anteriormente delimitava o âmbito da jurisdição administrativa desapareceu do novo Estatuto.
Vª. A generalidade da doutrina vem assumindo que, na sequência do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os tribunais administrativos são competentes para conhecer todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, seus órgãos e agentes, independentemente de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou de direito privado, assim se devendo interpretar o facto de a alínea g) do n° 1 do artigo 4° do ETAF ter deixado de fazer qualquer alusão aos actos de gestão pública.
VIª. De acordo com a interpretação que o Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal Administrativo e a doutrina vêm fazendo, o nº 3 do artigo 212° da Constituição não impede que o legislador atribua aos tribunais administrativos o conhecimento de litígios não emergentes de relações jurídicas-administrativas e a outras categorias de tribunais o conhecimento de alguns litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
VIIª. Assim, as alíneas g) e h) do nº 1 do artigo 4º do estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais não são inconstitucionais por violação do nº3 do artigo 212° da Constituição.
VIIIª No caso em julgamento, o comportamento supostamente lesivo insere-se numa actividade manifestamente pública (o acto de posse do conselho de administração de um hospital EPE); os poderes para conferir a posse foram atribuídos ao Ministro da Saúde por disposições de direito administrativo; e até os próprios autores se encontravam na cerimónia de posse na qualidade de titulares cessantes de uma relação jurídico-administrativa (anteriores membros do conselho de administração). Ou seja, tudo indícios de publicidade.
IXª. O facto dos autores invocarem um direito de natureza privada supostamente lesado não releva para a delimitação do âmbito da jurisdição.
Xª. O próprio Tribunal de Conflitos tem jurisprudência anterior à entrada em vigor da reforma do contencioso administrativo, qualificando situações idênticas à dos autos como relevando da jurisdição administrativa.
XIª Deve ser concedido efeito suspensivo ao presente agravo já que a continuação do processo é susceptível de causar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação ao agravante.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que declare os tribunais judiciais materialmente incompetentes para conhecer das pretensões formuladas pelos autores, assim se fazendo a usual
Justiça”.

Contra-alegaram os AA, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.

Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir, sendo que a instância mantém a sua validade.

II . FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. OS FACTOS:

A factualidade a ter em conta é, essencialmente, a supra referida que ora nos dispensamos de repetir.

II. 2. AS QUESTÕES:

Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão suscitada pelo agravante restringe-se à procedência da excepção invocada pelos réus de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal judicial (no caso as Varas Cíveis do Porto) para conhecer do pedido formulado contra si, por entenderem que a competência, para o efeito, pertence apenas e só ao Tribunal Administrativo.
Ou seja, pretende-se saber se o pedido indemnizatório decorrente da (invocada) responsabilidade civil extracontratual do Réu - por alegada ofensa à dignidade, bom nome e brio profissional dos Autores - pode ser apreciado e decidido no tribunal comum, ou, ao invés, se tal apreciação é da competência dos tribunais administrativos.
Quid juris?

Segundo o art. 209º da CRP, “1.- Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de Tribunais:
a)- O Supremo Tribunal de Justiça e os Tribunais Judiciais de primeira e de segunda instância:;
b)- O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais;
c) O tribunal de contas.”.

Por sua vez, o art. 212º, nº3 daquela Lei Fundamental diz que «compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Na base da repartição da competência está o princípio da especialização, reservando para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito (A. Varela, Manual Proc. Civil, pág. 194, 195 e 207).

"Ex vi" da anterior lei ordinária do art. 51º-1 h), ETAF (Dec. Lei nº 129/84. de 27.4, alterado pelo Dec. Lei nº 228/96, de 29.11) «compete aos Tribunais Administrativos de Círculo, conhecer das acções sobre a responsabilidade civil extracontratual dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes, por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso».
Por sua vez, o seu (ainda anterior) art. 4º, nº1, al. f), definindo os limites desta jurisdição, dizia que estavam excluídos da jurisdição administrativa e fiscal, os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.
O conhecimento destas questões é que cabe aos Tribunais Judiciais, porque “ex vi" art. 211, nº1, da CRP; 18º, nº1, LOFTJ; e 66º, CPC , são os Tribunais comuns em matéria cível e criminal que exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Dito de outra forma, tais acções caem na competência residual dos tribunais judiciais, pois que, segundo os artsº 18º da Lei nº 3/99, de 13.01 e já citado artº 66º do CPC, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Assim sendo, a verem-se as coisa à luz do anterior ETAF, logo ressalta que teríamos, essencialmente, de averiguar se a responsabilidade que os autores assacam ao agravado estava no âmbito da gestão pública (citado art. 51º do ETAF) ou privada (seu art. 4º).
Esta era, à luz do anterior ETAF, de facto, a questão central,-- e, então, entendendo-se que estava em causa nesta demanda uma conduta ou omissão do Réu/agravante por acto de gestão pública, era o Tribunal Administrativo respectivo o competente para conhecer do mérito da causa; não o estando, a competência pertenceria ao Tribunal judicial (Comum) -- in casu, as Varas Cíveis do Porto.

As coisas, porém, mudaram com o novo ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro [Rectificada pela Declaração de Rectificação nº 14/2002, de 20 de Março e alterada pelo artº 1º da Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, e pelo artº 1º da Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, que a republicou em anexo ( artº 3º)].

E, atenta a data da prática dos facto, logo se vê ser aplicável ao caso sub judice a nova redacção do ETAF.
O que significa, desde logo - e em primeiro lugar – que para se distinguir o âmbito de competência dos tribunais administrativos dos tribunais judiciais comuns, parece ter deixado de ter interesse a tão discutida questão da qualificação entre actos de gestão pública e/ou privada.
Haverá, agora, então que recorrer apenas aos critérios que vêm plasmados, quer na lei ordinária (o aludido ETAF na actual redacção), quer, obviamente, na Constituição (cit. nº 3 do artº 212º).
Vejamos, porém, melhor este último aspecto.

Como bem anota o agravante, a reforma do contencioso administrativo alargou a jurisdição administrativa.
Efectivamente, dispõe o actual artº 4º do ETAF que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
“g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa” - alteração decorrente da Lei nº 107-D/2003, de 31.12;
“h)- Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos”.

Comparando a anterior redacção, parece (cfr. citada al. g)) ter pretendido o legislador cometer aos tribunais administrativos a apreciação e decisão de todas as questões em que esteja em causa a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas públicas, independentemente de emergirem de actos de gestão pública ou de actos de gestão privada.
Parece - repete-se -- que foi essa a intenção ou pretensão do legislador.
Com efeito, como refere o Prof. Dr. Mário Aroso de Almeida - principal redactor do texto do novo ETAF--, in O Novo Regime do Processo dos Tribunais Administrativos, Almedina, 2003, pág. 85--, “Compete à jurisdição administrativa apreciar toda e qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual emergente de actuação de órgãos da Administração Pública. É o que claramente decorre do artº 4º, nº1, al. g), do ETAF, [……………].”.

A questão que se põe, porém, é saber se, apesar de a aludida al. g) do nº1 do artº 4º do ETAF ter deixado de fazer qualquer referência aos actos de gestão pública, tal significa que já não importa que as “questões” ali referidas sejam regidas por um regime de direito público ou de direito privado.
Não cremos, porém, que tal seja indiferente, desde logo porque a aludida alínea não prima, de forma alguma, pela clareza neste domínio. Antes nos parece que continua a ter interesse a qualificação do acto lesivo das aludidas “pessoas colectivas”, as quais, portanto, sendo demandadas com base na responsabilidade civil extracontratual, continuam a ser demandadas na jurisdição administrativa apenas no caso de o acto lesivo dos interesses do terceiro demandante ser qualificado como acto de gestão pública - devendo, ao invés, tal demanda ocorrer nos tribunais comuns no caso de tal acto ser qualificado como de gestão privada.

Com efeito, a letra da lei (aludida al. h) não basta para afastar este entendimento, pois para tal deveria o legislador ser mais cuidadoso na alteração, mencionando, de forma expressa e clara - até pelo facto de terem corrido rios de tinta à volta da aludida questão gestão pública/gestão privada -- que a jurisdição dos tribunais administrativos era “indiscutível” independentemente da possível qualificação do acto lesivo dos interesses de terceiro como de gestão pública ou de gestão privada.
Não o disse - repete-se! E não o dizendo, não se vê razões para tal entendimento, metendo as situações…. no “mesmo saco”.

Não parece correcto, por outro lado, aceitar-se privilegiar a incidência do mero factor subjectivo para a determinação da competência no domínio que ora nos ocupa. Isto é, não basta, para a determinação da aludida competência, que seja pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos [Assim nos permitindo discordar - obviamente com o devido respeito-- do entendimento do Prof. Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, I, Editora Lex, Lisboa, 2005, 714].
Tal não resulta, pelo menos de forma clara da lei e não se almejam razões válidas que o imponham.
Nesta senda está, v.g., o entendimento do Prof. Dr. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, pp. 123-124 - citado, aliás, pelo agravante--, que expressa algumas reservas relativamente à solução que “boa parte da doutrina” tem dado à pergunta sobre se também passa a competir à jurisdição administrativa a apreciação dos litígios que tenham por objecto a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão privada.
Este Ilustre Professor chama à atenção o facto de que, ao contrário do que acontece com a função política e legislativa, “não é expressamente afirmado pelo preceito” que os tribunais administrativos passam a ser competentes para conhecer da responsabilidade das pessoas colectivas públicas por actos de gestão privada. E acrescenta que “em seu abono” - deste alargamento de competência da jurisdição administrativa, entenda-se - “apenas se pode esgrimir com o elemento histórico” - o qual, como ali bem se ressalta, “não é decisivo” --“e com a circunstância de o ETAF deixar de excluir expressamente o conhecimento das questões de direito privado - um argumento que provaria demais”. E acrescenta o mesmo autor que “em sentido contrário poderia argumentar-se precisamente com a cláusula geral do artº 1º, interpretada em termos estritos, que constituiria a regra delimitadora do âmbito da jurisdição administrativa - na dúvida, valeria a regra geral de competência, carecendo as adições de serem expressamente determinadas”—sublinhado nosso [Sobre esta matéria, cremos ser relevante citar o Ac. da Rel. do Porto, de 23.02.2006, in www.dgsi.pt, citado no despacho recorrido, onde se escreveu:
“Não se desconhece que a Reforma do Novo Contencioso Administrativo pretendeu estender a competência da jurisdição administrativa a algumas questões que anteriormente lhe estavam vedadas, nem que algumas posições doutrinárias, vieram já tomar partido e considerar que os Tribunais Administrativos serão competentes para conhecer de todas as questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de qualquer entidade pública seja ela emergente de uma relação jurídica de direito público ou de direito privado.
Não estão ainda debatidas estas questões, pelo menos de forma pública e suficiente ao nível da jurisprudência que permitam estabelecer que efectivamente o legislador do Etaf pretendeu, pelo menos em matéria de responsabilidade civil extracontratual converter os Tribunais Administrativos nos Tribunais privativos de quem desempenha funções públicas quer essa responsabilidade tenha algo a ver, pouco, ou nada com esse desempenho de funções.
No limite esta interpretação levará a uma alteração completa da definição da competência material dos Tribunais em função do objecto do processo para a deslocar para a qualidade das partes que titulam a relação material controvertida. Ou seja, com esta interpretação, em sede de responsabilidade civil extracontratual, mesmo que esteja em causa apenas uma questão de direito privado, os Tribunais comuns conhecerão das questões entre os particulares, excepto se uma das partes exercer qualquer função pública, porque isso implicará que só perante o Tribunal Administrativo se poderá colocar a questão, mesmo que os factos geradores dessa responsabilidade nada tenham a ver com o exercício de funções públicas.
Admitindo-se que da especialização possa resultar algum melhor conhecimento das matérias, não se compreende como da qualidade dos intervenientes processuais – entes que desempenham funções públicas versus entes particulares – alheada em absoluto dos conteúdos a discutir, possa resultar a definição da competência material dos Tribunais, pelo menos numa interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa, sob pena de se estabelecer que os Tribunais Administrativos, dotados além do mais de um corpo privativo de juízes, recrutados de forma diversa daquela em que o são os juízes da Magistratura Judicial comum, e em que é factor preferencial o exercício anterior de cargos administrativos, são os únicos onde podem ser demandados os cidadãos que exerçam qualquer cargo público.
Por se tratar da norma primária de legislação, e dado o texto do artº 212, nº 3 da Constituição da República Portuguesa – Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – sempre a interpretação de todas as disposições do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais terá que ser conforme à Constituição da República Portuguesa, nessa medida se limitando a competência dos Tribunais Administrativos apenas aos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”.]

Do explanado se conclui, portanto, que, apesar da alteração do ETAF referida supra, continua a não ser indiferente a qualificação dos actos das pessoas colectivas de direito público - tal como dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes.
Ou seja, não aceitamos como líquido que com o novo ETAF tenha passado, sem mais, a competir à jurisdição administrativa a apreciação dos litígios que tenham por objecto a responsabilidade extracontratual de tais pessoas pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão… privada.
Pelo contrário, continuamos a entender que a qualificação (como de gestão pública ou privada) dos actos por elas praticados (e de seus órgãos, funcionários ou agentes) continua a ser da maior relevância para a questão que ora nos ocupa (competência da jurisdição administrativa ou da jurisdição comum para a apreciação da responsabilidade civil extracontratual).

Repete-se: a lei não foi (não é) clara a tal respeito. E não o sendo, não pode deixar de valer a regra geral da competência residual dos tribunais judiciais comuns.

Assim - com o devido respeito, obviamente - permitimo-nos discordar do entendimento do agravante - de que “o que releva é que as questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas, dos seus órgãos e dos seus agentes, são julgadas pelos tribunais administrativos, sem necessidade de considerações sobre a natureza da actividade desenvolvida”.

Atento o explanado, dir-se-á que muito se tem escrito, na doutrina e jurisprudência, sobre a distinção entre acto de gestão pública e acto de gestão privada, podendo-se aqui citar inúmeros arestos onde se procura fazer tal distinção - o que se tornaria monótono, sendo, porém, desnecessário.
Cremos, porém, que se gerou uma base de consenso na nossa doutrina e jurisprudência, quanto à citada distinção, podendo afirmar-se que as ideias básicas consensuais a tal respeito são estas:
- Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, ou seja, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção;
- Actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida do poder público (o ius imperii), e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, e, daí, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com inteira submissão às normas do direito privado.
No entanto, esta ideia de nos actos de gestão pública haver a submissão às mesmas regras que vigorariam para o caso de serem praticados por meros particulares tem de ser entendida dando atenção à verdadeira realidade que pretende exprimir, pois a sua formulação pode prestar-se com alguma facilidade a uma menos correcta interpretação e conduzir a resultados que ultrapassam aquilo que a ideia realmente deseja traduzir.

Mais expressivamente, diremos que o acto é de gestão pública se for “praticado no exercício de um poder público, isto é, na realização de uma função pública para os fins de direito público da pessoa colectiva; isto é, regidos pelo direito público e, consequentemente, por normas que atribuem à pessoa colectiva pública poderes de autoridade (“ius imperii”) para tais fins” (Vaz Serra, Rev. Leg. Jur., ano 110, 315; Ac. STJ de 19.03.1998, agravo nº 800/97), independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção ou de regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas (Ac. Trib. de Conflitos de 12.05.1999, AD STA, nº 455, XXXVIII, pág. 1459; Ac. STA, de 30.10.83, BMJ 331-587; Ac. STA de 05.12.1989, proc. nº 25 858, DR (Ap) de 30.12.94, pág. 6 939).
Acto de gestão privada é, ao invés, aquele que for praticado no quadro de uma actuação nos termos do Direito Privado, despido de “auctoritatis”, isto é, numa posição de paridade com os particulares, sujeito às mesmas regras que vigoram para a hipótese de esse acto ser praticado por estes, no desenvolvimento de uma actividade exclusivamente sob a égide do Direito Privado (Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, II, ed. brasileira, pág. 1311 e segs.. Ainda, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª ed., pág. 671).

Diga-se, desde já, que, segundo cremos, a entrega, aos tribunais administrativos, da competência para conhecer dos pedidos de indemnização formulados à Administração por danos causados por actos dos seus órgãos e agentes, emergentes de actos de gestão pública, radica na presunção de que aqueles órgãos judiciários se encontram melhor preparados para a apreciação de tais litígios, resultante da sua especialização.
O que leva a concluir que a atribuição de tal competência assenta na presunção de uma certa conexão das matérias aí a decidir com a organização e o funcionamento dos serviços públicos, ou com o conhecimento de relações jurídico-administrativas, e, ao mesmo tempo, na assunção pela Administração, naqueles casos, da sua veste de poder público, para a realização de uma função pública (Marcelo Caetano, Manual cit., Tomo II, pág. 1198, e Vaz Serra, Revista de Leg. e Jur., Ano 103º, págs. 348 e 349).
No entanto, porém, esta conclusão tão só respeita à justificação da solução legal, abstractamente considerada, não servindo para definir - pelo que supra já se disse --, em cada caso concreto, a jurisdição competente, pela natureza das normas ou pelas razões que a decisão do litígio irá pôr em causa.

Sem embargo de todo o explanado supra, por outro lado, não se pode olvidar que, como é sabido, a competência material do tribunal depende, sempre, do thema decidendum concatenado com a causa de pedir, ou seja, do quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum).
Ou seja, existe uniformidade no sentido em que a competência se afere pelo pedido do autor e que, não cabendo uma causa na competência de outro Tribunal, ela é da competência do Tribunal Comum (ver Ac. do STJ de 3/2/87 in BMJ, 364.º-591 e 596 e doutrina aí indicada e Bol. M.J. 459-449 ).
Escreve MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, que a competência do tribunal não depende da legitimidade das partes nem da procedência da acção, não havendo, para tanto, que averiguar quais deviam ser as partes e os termos da pretensão formulada em juízo.
Portanto a competência que ora nos ocupa - tal como ocorre com qualquer outro pressuposto processual - afere-se em face da natureza da relação jurídica material em litígio, tal como a apresenta o autor na demanda.

Importa, assim, ver se a conduta do réu/agravante que integra a causa de pedir, tal como a configuram os autores na acção, se integra, ou não, no supra aludido conceito de acto de gestão pública. Ou melhor, há que ver se a responsabilidade assacada ao réu/agravante, em face da factualidade alegada na petição inicial como causa de pedir da demanda, se insere no quadro ou âmbito da gestão privada ou da gestão pública.

Cremos que se insere no âmbito da gestão privada.

Efectivamente, face à factualidade alegada pelos agravados/ autores na acção ordinária instaurada contra o ora agravante para alicerçar o seu pedido, vemos que este é consubstanciado na prática de danos de natureza não patrimonial, emergentes das declarações prestadas pelo réu aquando da cerimónia da tomada de posse do novo Conselho de Administração do Hospital E…… (Porto), o qual - segundo se alega na petição inicial --, “na presença de largas dezenas de pessoas [….], e de muitos jornalistas da imprensa escrita, radiofónica e televisiva”, “quis criticar” a gestão anterior exercida pelos autores, imputando-lhes, “aquando do desempenho dos respectivos cargos, comportamentos negocistas” e “de clientelismo”, alem do mais que na petição vem referido, o que tudo é entendido pelos autores como ofensivo da sua “honra e dignidade e no seu crédito e bom nome pessoais e profissionais”.
Trata-se - repete-se, no entender dos autores/agravados -- de situação que, “ face ao previsto nos arts. 70º/1, 483º e 484º do Código Civil e no artº 26º da Constituição da República Portuguesa, constitui os autores no direito a serem ressarcidos e compensados por esses prejuízos”, bem assim no direito de verem o réu a retratar-se perante os autores, publicando na imprensa anúncio nesse sentido.

Ora, parece, com efeito, que esses actos (declarações) praticados pelo agravante - a serem despidos de fundamento no que aos autores respeita, obviamente, o que, naturalmente, só na acção ordinária será apurado--, porque violadores do direito de personalidade ((ut, em especial, o cit. artº 70º do CC) e geradores da alegada obrigação de indemnizar se não integram em qualquer relação jurídica administrativa, regulada pelo direito público, mesmo que ocorridos aquando da prolação, pelo Sr. Ministro da Saúde, do referido discurso de posse do novo Conselho de Administração supra referido.

Com o devido respeito por diferente opinião, parece que nunca poderia considerar-se a referida actuação como acto de gestão pública.
A gestão publica pressupõe uma actuação correspondente ao exercício do poder da autoridade e exige que os meios utilizados sejam adequados ao prosseguimento das atribuições conferidas por lei ao agente.
Ora, in casu, o agravante, ao proferir palavras ofensivas - no parecer dos autores, entenda-se -- da “honra e dignidade”, bem assim “no crédito e bom nome pessoais e profissionais” dos agravados”, passa a agir como qualquer particular que agride outrem nos mesmos valores. E, assim, a reacção contra essa ofensa tem que ser demandada nos tribunais judiciais comuns por (como ficou acima demonstrado) não haver jurisdição especial (ver o Bol. M.J. 364-603).

Da mesma forma que “Uma coisa é proceder à abertura de uma estrada, expropriando os terrenos necessários à sua implantação e realizando por administração directa ou por empreitada, a obra, e outra é invadir prédio alheio, terraplenar e causar danos, sem autorização dos donos ou prévia expropriação”(Ac. STJ/Col. Jur. STJ, 94-I-114), também uma coisa é dar posse aos elementos do novo Conselho de Administração do Hospital, com todo o ritual que isso possa acarretar (discurso do empossante, etc.), e outra - bem diferente -- é invadir a esfera pessoal de outrem, aquilo que, porventura, lhe é mais querido, a sua honra e dignidade e o seu crédito e brio pessoal e profissional.
Esta ofensa ao direito de personalidade não cabe - não pode caber -- nas atribuições de uma pessoa colectiva de direito público, ou nos seus órgãos e agentes; não pode tal acto ofensivo daquela honra e dignidade de terceiro integrar a competência de um agente administrativo; não pode ser considerado, afinal, um acto…. administrativo.
O direito dos AA que estes invocam na petição inicial da acção como ofendido é um direito privado e não um direito ou uma garantia de natureza publicista.

Sobre a matéria, ver, designadamente - embora em situações não de todo semelhantes - o que decidiu o nosso Supremo Tribunal nos Agravo nsº 2516/01, Ac. de 27.9.2001-6ª Secção e 2948/01, Ac. de 27.11.01-1ª Sec.

Portanto, os actos (declarações alegadamente ofensivas) do agravante que provocaram os peticionados danos aos agravados não parece poder dizer-se terem sido praticados no âmbito duma gestão pública, nos termos que supra a configurámos.
Estamos tão só e apenas perante uma actuação que qualquer pessoa, pública ou privada, singular ou colectiva, na sua gestão comum, pode praticar, em violação de normas exclusivamente de direito privado. O que requer, por consequência, tratamento diferente, maxime em sede da competência material do Tribunal.

Assim, também, razão parece terem os agravados quando referem que “o acto concreto gerador de responsabilidade civil extracontratual, apesar de praticado durante o exercício das suas funções” - do agravado - “ de titular de órgão público e por causa delas, não é mais do que uma acto meramente pessoal”; bem assim que “o réu, aproveitando-se da sua qualidade de titular de um órgão público proferiu palavras ofensivas e injuriosas, sem que tal constitua, como é óbvio, um acto inerente às funções por ele ocupadas”.
E com igual razão rematam : “Nem de outra forma se poderia entender sob pena de estarmos a incluir nas funções de titular de órgão público os actos de calúnia e difamação para com os cidadãos”(arts. 28º a 31º das contra-alegações) [Sobre actos funcionais e actos pessoais, veja-se, designadamente, os Ac.s do STJ, de 21.11.2001 e 16.10.2002, publicados no site www.dgsi.pt.]

Declarar a ofensa do direito dos particulares sobre a sua honra e dignidade, ou o seu bom nome, com a consequente obrigação de indemnizar e decorrente liquidação dos danos sofridos, é uma actividade jurisdicional típica dos tribunais comuns, de direito civil material e de processo civil.

Estamos, por isso, em face de uma causa de pedir que se traduz numa actividade que se desenvolveu no âmbito e pelas formas próprias do direito privado; tal como temos um pedido que, por sua vez, também é fundamentado exclusivamente em regras de direito privado (ut artº 75º da petição inicial).[Sobre a matéria cremos ser de especial relevo o Ac. do STJ, de 20.10.2005, in www.dgsi.pt, onde se escreveu:

“O verdadeiro distinguit - para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, ou facto, causador de prejuízos a terceiros (particulares) numa ou noutra das aludidas categorias (gestão privada / gestão pública) reside em saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade disciplinada por normas de direito público administrativo.

[…………] do que se trata é de uma actividade, acto, comportamento ou conduta, vista da perspectiva de um lesado (terceiro) particular, cuja avaliação, para efeitos do apuramento da respectiva responsabilidade civil é regulada por normas de direito privado que não por normas, princípios e critérios de direito público.

Ora, a uma tal apreciação/avaliação não subjaz qualquer relação jurídico-administrativa, uma relação jurídica regulada pelo direito público, mas uma mera relação jurídico-privada, como tal regulada pelo direito privado.

Rege, neste domínio, o princípio de que os tribunais de jurisdição ordinária, na circunstância os tribunais cíveis, são os tribunais-regra por força da delimitação negativa do nº 1 do art. 18º da LOFTJ e do art. 66º do C.Proc.Civil, nos termos dos quais "são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional".

Trata-se, no fundo, da apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual estabelecidos nos artigos 483º e seguintes do C. Civil.

Reconduz-se, pois, a questão central a decidir sobre uma relação jurídica de direito privado (actividade por sua natureza potencialmente geradora de danos), como tal regulada pelas normas e princípios do direito civil comum, sem embargo de, a montante, na fase da construção e, ulteriormente, no exercício dos seus poderes de fiscalização nela haver intervindo - na sua veste de publica autorictas - uma empresa pública (a recorrente).

É, em suma, uma "questão de direito privado" aquela que as partes submeteram à apreciação do tribunal, ainda que uma das entidades putativamente responsáveis, isto é uma das "partes" alegadamente responsável seja uma pessoa de direito público, para utilizar a expressão contemplada na al. f) do nº 1 do art. 4º do ETAF.

Questão essa que deve ser aferida por normas, princípios e critérios próprios do direito privado, e, como tal, a respectiva apreciação encontrar-se-á, por sua própria natureza, arredada da jurisdição especial dos tribunais administrativos.

O entendimento que vimos de expor tem, aliás, sido sufragado maioritariamente pelo Supremo, que, em situações similares, tem declarado a competência dos tribunais comuns, que não dos administrativos. ]“


Posto isto, e considerando que:
Não estando expressamente excluídas da jurisdição administrativa as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público;
as causas que não sejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência do tribunal judicial comum (a competência residual tem consagração no art. 213º, nº1 da Constituição; arts.13.º, 14.º e 56.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e arts. 66.º e 67.º do CPC.);
não sendo atribuída expressa e claramente ( como explanado supra) a outra jurisdição o conhecimento da matéria objecto desta demanda,
a conclusão a extrair é que no caso sub judice a competência material para o conhecimento do mérito da causa não pertence ao Tribunal Administrativo, antes pertence ao Tribunal “a quo”, ou seja, às Varas Cíveis do Porto.

Claudicam, por isso, as conclusões das alegações do agravante.

CONCLUINDO:
Apesar da reforma do contencioso administrativo ter alargado o âmbito da jurisdição administrativa, deixando a al. g) do nº1 do artº 4º do novo ETAF (Lei nº 13/2002, de 19.02 com subsequentes alterações) de fazer qualquer referência aos actos de gestão pública, continua a não ser indiferente que as “questões” ali referidas sejam regidas por um regime de direito público ou de direito privado.
Pelo contrário, continua a ter interesse a qualificação do acto lesivo daspessoas colectivas de direito publico”. Pelo que, sendo demandadas com base na responsabilidade civil extracontratual, continuam a ser demandadas na jurisdição administrativa apenas no caso de o acto lesivo dos interesses do terceiro demandante ser qualificado como acto de gestão pública - devendo, ao invés, tal demanda ocorrer nos tribunais comuns no caso de tal acto ser qualificado como de gestão privada--,
primeiro, porque a letra da lei (als. g) e h) daquele artº 4º do ETAF) não basta para afastar este entendimento, pois para tal deveria o legislador mencionar, de forma expressa e clara, que a jurisdição dos tribunais administrativos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas, órgãos, funcionários ou agentes, era “indiscutível” independentemente da possível qualificação do acto lesivo dos interesses de terceiro como de gestão pública ou de gestão privada;
segundo, porque não há motivos para privilegiar a incidência do mero factor subjectivo para a determinação da competência neste domínio - também isso não resulta, pelo menos de forma clara, da lei.
E não sendo clara a competência da jurisdição administrativa para apreciação dos litígios que tenham por objecto a responsabilidade extracontratual de tais pessoas pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão… privada, não pode deixar de valer a regra geral da competência residual dos tribunais judiciais comuns.
Por outro lado, sendo a competência material do tribunal dependente, sempre, do thema decidendum, aferido pelo pedido do autor, concatenado com a causa de pedir, não cabendo uma causa na competência de outro Tribunal, ela é da competência do Tribunal Comum.
Ao proferir palavras ofensivas da “honra e dignidade”, bem assim do “crédito e bom nome pessoais e profissionais” dos autores, a pessoa colectiva, seu órgão ou agente, passa a agir como qualquer particular que agride outrem nos mesmos valores. Pelo que a reacção contra essa ofensa tem que ocorrer nos tribunais judiciais comuns. É que a ofensa ao direito de personalidade não cabe nas atribuições daqueles; não pode tal acto ofensivo daquela honra e dignidade de terceiro integrar a competência de um agente administrativo; não pode ser considerado, afinal, um acto…. administrativo.
Como tal, declarar aquela ofensa do direito dos particulares, com a consequente obrigação de indemnizar e decorrente liquidação dos danos sofridos, é uma actividade jurisdicional típica dos tribunais comuns, de direito civil material e de processo civil, pelo que cabe a estes, e não à jurisdição administrativa, a competência para aferir da responsabilidade civil extracontratual.

III. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao agravo, mantendo o despacho recorrido.

Sem custas, por o Agravante delas estar isento.

Porto, 12 de Outubro de 2006
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves