Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1840/05.0TBESP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: CASINO
JOGO DE FORTUNA E AZAR
INTERDIÇÃO DE ACESSO ÁS SALAS DE JOGO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RP201107131840/05.0TBESP.P1
Data do Acordão: 07/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A ré, entidade concessionária da actividade de exploração de jogos de fortuna e azar no D…, conhecedora da prática obsessiva do jogo e da iniciativa do autor de requerer a sua interdição às salas de jogo, tinha que proibir a sua entrada nas salas de jogo de máquinas e não incentivar o autor a deslocar-se ao casino e a aproximar-se das zonas de jogo.
II - Não o tendo feito, a conduta da ré é passível de um juízo de reprovação ético-jurídico à, que se reconduz à culpa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 1840/05.0TBESP.P1
Acção Ordinária 1840/05.0TBESP, 1º Juízo do Tribunal Judicial de Espinho

Acórdão

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
1. B…[1], residente no …, freguesia de …, concelho de Marco de Canaveses, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra C…, S.A., com sede na Rua .., n.º .., freguesia e concelho de Espinho, peticionando a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 240.000,00 euros (duzentos e quarenta mil euros), acrescida de juros vincendos após citação até efectivo e integral pagamento, bem como a quantia de 50.000,00 euros a título de danos morais, e nas sanções administrativas decorrentes da violação das disposições legais, ou, se assim se não entender, a comunicação às entidades competentes a conduta da ré para os fins tidos por convenientes.
Alegou, para tanto e em síntese, que jogava no D…, explorado pela ré, desde o último trimestre de 2003. Viciou-se no jogo, passando a ser um cliente conhecido no referido D…. Começando a tomar consciência dos riscos associados ao jogo, tentou colocar um ponto final nessa situação, solicitando, em 02/12/2003, por sua iniciativa, a proibição de acesso a salas de jogos, nos termos do art. 38º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro. Por despacho do Inspector-Geral de Jogos, de 10/12/2003, foi deferida a sua pretensão, tendo sido ordenada a respectiva proibição de acesso às salas de jogos de todos os casinos do país, pelo período de dois anos. Esta decisão foi comunicada à ré, na pessoa do Director do Serviço de Jogos. Cerca de um mês após a proibição, não conseguindo resistir à tentação, voltou ao D…. Começou a jogar forte, na roleta, apostando diariamente, desde o meio da tarde até às 03:00 e mesmo 04:00 horas do dia seguinte, entre 500,00 a 8.000,00 euros. Os funcionários da ré sabiam da proibição comunicada, expressando-o, mas permitiam-lhe que continuasse a joga, ao invés do que faziam com outros jogadores. Era conhecido dos funcionários e frequentava os restaurantes e o salão nobre, sem nada pagar. Pernoitava, se o pretendesse, no E…. Era convidado para jantares de gala, mediante convites endereçados para sua casa. O autor estava desorientado e não conseguia viver sem o jogo. Quanto dinheiro levantava ou trocava, quanto perdia ao jogo. Em consequência disso, perdeu a sua actividade profissional de negociante de veículos automóveis. Ao tempo do deferimento da proibição tinha viaturas no valor de 60.000,00 euros, que perdeu no jogo, pois de cada vez que fazia uma venda, ia jogar. Nas suas contas bancárias tinha cerca de 40.000,00 euros, que também gastou no D… da ré. Perdeu ainda ao jogo 10.000,00 euros de dinheiro que havia emprestado a pessoas amigas. Passou, então, a pedir dinheiro emprestado, tendo pedido 100.000,00 euros entre Setembro de 2004 e os primeiros meses de 2005. Em Maio de 2005 tinha perdido tudo, tendo destruído a quantia de 240.000,00 euros. Tinha, como ainda tem, muitas dívidas. Perdeu o crédito, credibilidade, dignidade, amigos e alegria de viver. Está presentemente desempregado, com tendências suicidas. Tudo isto porque a ré não cumpriu uma ordem, emanada e notificada, violando-a. As entradas do autor no E… foram registadas, nos termos do art. 52º daquele Decreto-Lei. A ré violou igualmente o disposto nos artigos 118º, 119º, al. h), e 125º do mesmo diploma legal, e constituiu-se na obrigação de o indemnizar pelos prejuízos havidos.

2. Citada a ré, deduziu contestação, impugnando a versão do autor e alegando que as entradas do autor no D… nunca foram objecto de registo. O autor pediu apenas a interdição de acesso às salas de jogo dos casinos. O acesso às salas de máquinas é, e sempre foi, livre, sendo apenas recusado nas situações previstas no art. 36º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro. Não se prevê na legislação reguladora da exploração de jogos qualquer mecanismo de identificação dos frequentadores das salas de máquinas automáticas. A elevada frequência dessas salas, em certos dias e horas, inviabiliza também qualquer tipo de controlo e de prévia identificação dos frequentadores. Até 21/02/2005 apenas o acesso às salas de jogos tradicionais e às salas mistas era precedido de controlo e identificação; a partir dessa data, o acesso às salas mistas passou também a ser livre. Não pode, por sua exclusiva iniciativa e responsabilidade, instalar sistemas de controlo e identificação dos frequentadores no acesso a essas salas de jogo. Na notificação da decisão de interdição do acesso do autor havia uma mera cópia da sua fotografia a preto e branco, a qual não permite a identificação visual e presencial da sua pessoa. Depois de 17/12/2003, o autor não acedeu à sala de jogos tradicionais, nem entre essa data e 17/02/2005 acedeu à sala mista. A notificação de proibição do autor em aceder às salas de jogos, seguindo para a Direcção do Serviço de Jogo, não foi transmitida para a Direcção dos Serviços Comerciais, pelo que ele continuou a integrar a listagem de convidados para especiais eventos culturais e de animação.
Invocando o direito de regresso contra o Estado Português, em caso de ser condenada a pagar ao autor qualquer indemnização, requereu a intervenção acessória provocada daquele, a fim de intervir nestes autos como seu auxiliar na defesa.

3. Replicou o autor, reiterando a posição anteriormente assumida e manifestando oposição ao requerido chamamento do Estado.

4. Admitida a intervenção acessória do Estado, foi citado o Ministério Público.

5. Realizou-se audiência preliminar, com a efectivação do saneamento e condensação do processo, esta sem reclamação.

6. Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, tendo-se respondido à matéria de facto, sem qualquer reclamação.
Proferida a sentença, foi a acção julgada parcialmente procedente e condenada a ré C…, S.A. a pagar ao autor B… a quantia de 82.893,33 euros (oitenta e dois mil oitocentos e noventa e três euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal supletiva para as obrigações civis, desde a citação até efectivo e integral pagamento, no mais a absolvendo do pedido formulado.

7. Inconformada com a sentença, interpôs a ré recurso, assim finalizando a sua alegação:
7.1. A condenação da ora apelante constante da douta sentença recorrida assenta no instituto da responsabilidade extracontratual.
7.2. O que significa que a ora apelante só poderia ser condenada se se tivesse provado, entre outros requisitos, o da ilicitude do seu comportamento e a natureza culposa, ainda que sob a forma menos gravosa da negligência, desse mesmo comportamento.
7.3. O comportamento da ora apelante não foi ilícito, já que se não descortina qual tenha sido a norma jurídica que a ora apelante tenha violado.
7.4. A actividade de exploração de jogos de fortuna ou azar está minuciosamente regulada, designadamente no que toca ao regime de acesso aos casinos e às salas de jogos.
7.5. E no que toca ao acesso às salas de jogos, tal regime é distinto para as salas de jogos tradicionais (e para as salas mistas até Fevereiro de 2005) e para as salas de máquinas automáticas.
7.6. Caso o regime aplicável às salas de máquinas automáticas (e salas mistas depois de Fevereiro de 2005) fosse aquele que está consagrado para as salas de jogos tradicionais, o controlo de acesso dele resultante teria impedido que o apelado tivesse acedido a qualquer das salas existentes no E….
7.7. A ora apelante não poderia ter implementado sistema de controlo de acesso à sala de máquinas diferente daquele que estava em vigor, e que resultava da lei aplicável, sob pena de ela própria violar a lei.
7.8. A douta sentença recorrida não aponta, aliás, qualquer preceito legal concreto que a ora apelante tivesse violado.
7.9. E nem vale como tal constatar que o apelado acedeu efectivamente à sala de máquinas automáticas quando estava proibido de o fazer, uma vez que esse é o facto omissivo que está na base do dano por ele alegadamente sofrido.
7.10. E uma coisa é o facto do agente e coisa bem distinta é a sua ilicitude.
Por outro lado,
7.11. Ainda que o comportamento da ora apelante tivesse sido ilícito, a verdade é que não foi culposo, já que lhe não era exigível, face ao circunstancialismo do sistema de entrada nas salas de máquinas automáticas, atitude diferente daquela que assumiu.
7.12. Nem se diga -como vem afirmado na douta sentença recorrida que, de acordo com o sentido das coisas é de presumir, iuris tantum, a culpa da ora apelante na prática da infracção, e que esta não logrou provar a ausência de tal culpa, já que no domínio da responsabilidade extracontratual a culpa do agente se não presume.
7.13. E da factualidade provada não resulta de forma alguma a culpa da ora apelante.
7.14. A douta sentença recorrida violou, por errada interpretação e aplicação, as disposições dos artigos 483º, 1, e 342º, 1, ambos do C.Civil, bem como as normas dos artigos 36º, 1 e 2, 41º, 1 e 3, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelos Decretos-Lei nºs 10/95, de 19 de Janeiro, e 40/2005, de 17 de Fevereiro.
Nos termos expostos, e nos mais de direito que V. Exªs doutamente suprirão, deverá o presente recurso de apelação ser julgado provado e procedente e, por via dele, ser revogada a douta sentença recorrida. Assim se fará justiça.

8. Em contra-alegação objectou o autor, em síntese:
8.1. A ré alega, em súmula, que não tinha meios suficientes para controlar o acesso às salas de máquinas automáticas e, consequentemente, a sua actuação não pode considerar-se culposa até porque da factualidade provada não resulta de forma alguma a sua culpa.
8.1. O artigo 38º da Lei do Jogo dispõe que a Inspecção-Geral de Jogos pode proibir o acesso de quaisquer pessoas aos referidos estabelecimentos, a pedido destas ou a pedido das concessionárias quando justificado. E o artigo 41º, 1, dispõe que as concessionárias devem dispor de meios necessários, suficientemente apetrechados para identificar as pessoas que acedem às suas salas e fiscalizarem as entradas.
8.2. A recorrente tinha conhecimento, porque foi notificada, da proibição de acesso do autor às suas salas ou recinto de jogo. E a factualidade dada como provada mostra que a recorrente nada fez para o impedir de aceder às suas salas de jogo.
8.3. Antes pelo contrário, incentivou-o para frequentar e jogar nas suas salas e máquinas de jogo.
8.4. O autor era um jogador conhecido no D… quer pela direcção, quer pelos funcionários. Mesmo após o conhecimento da proibição imposta, o autor foi convidado pela recorrente para festas e galas. Enviou ao autor convites para eventos sociais. Concedeu-lhe ofertas de dormidas num hotel por si explorado. Ofereceu-lhe serviços de bar da sala de máquinas, tendo frequentado o restaurante e o salão nobre sem nada pagar.
8.5. Era um jogador, como se disse, perfeitamente conhecido e os responsáveis pelo
D… sabiam que era um jogador forte – um bom cliente – e daí o D… lançar sobre o autor diversas operações de charme, de cativação e incentivo ao jogo.
8.6. Daqui resulta que a recorrente não pode vir alegar que ignorava que o autor frequentava as suas salas ou de que não tinha maneira ou meios de poder controlar o seu acesso e permanência nos respectivos recintos de jogo. Para além de ter conhecimento da proibição imposta, o autor era pessoa conhecida pelos responsáveis e funcionários que nada fizeram para impedir o seu acesso, antes, como se depreende da factualidade dada como provada, o incentivavam ao consumo.
8.7. A conduta da recorrente é merecedora de censura ético-jurídica e sua culpa mostra-se acentuada.
8.8. Donde a improcedência do recurso.

II. Objecto do recurso
Ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente (artigos 684º e 690º do Código de Processo Civil[2]). No caso, a solução decorrente da dinâmica processual envolvente, da lei e das conclusões alegatórias supõe o enfoque das seguintes matérias:
1. A ilicitude da conduta da ré.
2. A culpa.

III. Fundamentação de facto
1. O autor era jogador das salas de jogo do D…, F…, explorado pela ré (A).
2. Por despacho de 10/12/2003, a Inspecção-Geral de Jogos, a requerimento do autor, determinou a proibição deste de aceder às salas de jogos tradicionais, máquinas automáticas e jogo do bingo de todos os casinos do país, pelo período de dois anos (B).
3. No dia 17/12/2003 a ré tomou conhecimento, por notificação da Inspecção-Geral de Jogos, da proibição de acesso do autor, a pedido do mesmo, às salas de jogos de todos os casinos do país, pelo período de dois anos (C).
4. Da notificação referida em C) constavam elementos de identificação e fotografia do autor (D).
5. Antes da data referida em C) o autor era convidado para as festas e galas realizadas no D… (E).
6. Após a data referida em C) a ré enviou ao autor convites para eventos sociais no D… (F).
7. Após a data referida em C) o autor recebeu da parte da ré pelo menos duas ofertas de dormida no E…, explorado pela ré (G).
8. Durante o período de dois anos referido em C), o autor levantou com cartões bancários em terminais multibanco, situados nas instalações do D…, a quantia de 63.740,00 euros (H).
9. A ré explora, de forma exclusiva, os jogos de fortuna e azar da zona de jogo permanente de …, ao abrigo do contrato de concessão e exploração celebrado com o Governo Português e publicado no DR, III Série, 14/02/89 (I).
10. O facto referido em A) ocorre desde Outubro de 2003 (1º).
11. O autor começou, desde essa altura, a fazer apostas de valores cada vez maiores e de maior risco (2º).
12.Tornando-se um jogador conhecido no D…, quer pelos responsáveis deste, quer pelos respectivos funcionários (3º).
13. Um mês após a data referida em B) o autor regressou ao E…, recomeçando a jogar roleta (4º).
14. Em inícios do ano de 2004, a direcção da sala de jogo do E… ofereceu ao autor, gratuitamente, os serviços de bar da sala de máquinas e ainda do restaurante (8º).
15. Após a data referida em C), o autor frequentou o restaurante … e o salão nobre, ambos do D… da ré, sem nada pagar (9º).
16. O autor chegava a jogar, durante o período de dois anos referido em C), em sete máquinas em simultâneo (10º).
17. O autor, muitas vezes, jogava desde o meio da tarde até às três e quatro horas do dia seguinte (11º).
18. O autor era conhecido por um dos jogadores mais fortes da roleta (em máquina) (12º).
19. Durante o período de dois anos referido em C) os funcionários da ré permitiram a permanência do autor nas instalações do D… (14º).
20. O autor jogava, em regra, diariamente valores entre os 500,00 e os 8.000,00 euros (15º).
21. No período de dois anos referido em C), o autor despendeu montante não inferior a 124.340,00 euros a jogar no D… (16º).
22. O autor perdeu a actividade profissional que, à data referida em C), exercia (17º).
23. O autor passou por períodos de angústia, tristeza e desequilíbrio emocional (18º e 19º).
24. Durante o período de dois anos referido em C), por força dos convites referidos em F), o autor deslocou-se às instalações do D… e, uma vez aí, sentindo-se incentivado, jogou (23º).
25. Pelo menos uma das ofertas referenciadas em G) ocorreu no ano de 2005 (25º).
26. Aquando da inscrição da proibição de acesso do autor no registo informático dos serviços de controlo de acesso da ré, não existia qualquer registo de cartão de acesso do autor na sala de jogos tradicionais e na sala mista (26º).
27. Após a data referida em C) o autor não obteve cartão de acesso à sala de jogos tradicionais e à sala mista (27º).
28. Sem cartão de acesso os serviços de portaria da ré não permitem a entrada nas salas de jogos tradicionais e sala mista (28º).
29. Depois da data referida em C) o autor não acedeu à sala de jogos tradicionais (29º).
30. Entre a data referida em C) e o dia 17 de Fevereiro de 2005 o autor não acedeu à sala mista (30º).
31. A identificação dos frequentadores no acesso às salas de máquinas ou salas de bingo é dificultada, em certos dias da semana e em certas horas, pelo significativo afluxo de pessoas (31º).
32. Recebendo ainda a ré centenas de notificações da Inspecção-Geral de Jogos idênticas à referida em C (32º).
33. A fotografia aludida em D) era uma fotocópia a preto e branco (33º).
34. No período de dois anos referido em C), a Inspecção-Geral de Jogos tinha sedeada nas instalações do D… uma equipa com um número de inspectores nunca inferior a sete (34º).
35. Tais inspectores têm os seus gabinetes nas instalações do D… (35º).
36. Tendo liberdade de actuação no desempenho da sua actividade inspectiva, circulando por todas as áreas e salas de jogos do D… (36º).
37. A Inspecção-Geral de Jogos aprovou e pagou na íntegra o sistema de controlo e identificação dos frequentadores das salas de jogos do D… (37º).
38. A Inspecção-Geral de Jogos nunca notificou ou exigiu da ré a instalação ou introdução de alterações no sistema de controlo de acesso dos frequentadores às salas de máquinas, salas de bingo e salas mistas (38º).
39. E não deu instruções à ré no sentido de adoptar procedimentos diferentes relativos ao acesso às diferentes salas de jogos, tendentes a proceder à identificação do autor, por forma a impedir o seu acesso (39º).

IV. Fundamentação de direito
Como bem assinala a sentença recorrida, o pedido do autor focaliza-se no instituto da responsabilidade civil extracontratual, enquadramento jurídico que as partes aceitam. Dos seus pressupostos, também enunciados na sentença impugnada, a ré apelante apenas questiona a verificação dos requisitos ilicitude e culpa.
1. A ilicitude
Acentua a sentença apelada que a ilicitude, ou antijuridicidade, é uma característica do facto traduzida na contrariedade ao Direito, sendo ilícito, numa primeira aproximação, aquilo que está em oposição com a ordem jurídica. No fundo, é a reprovação da conduta comitiva ou omissiva do agente no plano geral e abstracto, pois, em princípio, há ilicitude sempre que alguém pratique um acto que seja proibido pelo direito ou não seja por ele permitido[3]. Distingue-se a ilicitude objectiva e a ilicitude subjectiva. Esta correspondente à violação voluntária de estatuições normativas (permissivas ou de obrigação) e aquela traduzida na simples desconformidade entre o comportamento exterior da pessoa e a factualidade pretendida pelo direito[4].
A ilicitude pode emergir da violação do direito de outrem ou de disposição legal destinada a proteger interesse alheio (artigo 483º, 1, do Código Civil). Na primeira forma enquadram-se os direitos subjectivos, reportados, no essencial, aos direitos absolutos, como os direitos reais, os direitos de personalidade, os direitos familiares patrimoniais e a propriedade intelectual. Na segunda variante prevê-se a infracção de norma destinada a proteger interesses alheios[5]. E neste caso é indispensável que à lesão dos interesses do particular corresponda uma norma legal, a tutela desses interesses figure entre os fins da norma violada e o dano deve registar-se no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar[6].
Percorramos as normas que condicionam o jogo de fortuna ou azar.
A actividade de exploração de jogos de fortuna ou azar nas zonas de jogo legalmente reconhecidas, ou seja, em casinos, para o caso concreto que apreciamos, está regulada pelo Decreto-Lei nº 422/1989, de 2 de Dezembro, alterada pelos Decreto-Lei nº 10/1995, de 19 de Janeiro, Lei nº 28/2004, de 16 de Julho e Decreto-Lei nº 40/2005, de 17 de Fevereiro, doravante designada por Lei do Jogo[7].
Estatui o artigo 38º, 1 e 2, da Lei do Jogo (aqui aplicável a redacção dada pelo Decreto-Lei 10/1995) que, por sua iniciativa, ou a pedido justificado das concessionárias, ou ainda dos próprios interessados, o inspector-geral de jogos pode proibir o acesso às salas de jogos a quaisquer indivíduos por períodos não superiores a cinco anos, e, quando a proibição for meramente preventiva ou cautelar, não excederá dois anos e fundamentar-se-á em indícios reputados suficientes de ser inconveniente a presença dos frequentadores nas salas de jogos. Vale por dizer que um jogador pode ser proibido de entrar nas salas de jogos, dentre o mais, por razões que lhe são inerentes, devidas a compulsividade, prodigalidade, esbanjamento, empobrecimento, pressão familiar, remoques de consciência transviada. E proibido que seja, o jogador adquire a expectativa jurídica de ser impedido no acesso às salas de jogo e as empresas concessionárias assumem a obrigação de impedir esse acesso[8].
Está adquirido que, por despacho de 10/12/2003, a Inspecção-Geral de Jogos, a requerimento do autor, determinou a sua proibição em aceder às salas de jogos tradicionais, máquinas automáticas e jogo do bingo de todos os casinos do país, pelo período de dois anos (n.º 2 dos fundamentos de facto), o que significa que, no período decorrente de 10/12/2003 a 10/12/2005, ao autor estava vedado o acesso às salas de jogo do D…, explorado pela ré. Decisão que foi notificada à ré em 17/12/2003, com a menção dos elementos de identificação do autor e junção de uma sua fotografia a preto e branco (n.ºs 3, 4 e 33 da fundamentação de facto).
Esta notificação fez pender sobre a ré a obrigação de impedir a entrada do autor nas salas de jogos do D…, desde as salas de jogos tradicionais e máquinas automáticas ao bingo, o que não sucedeu. O autor recomeçou a jogar em máquina (roleta) logo um mês depois da interdição e chegava a jogar em sete máquinas em simultâneo, desde o meio da tarde até às três e quatro horas do dia seguinte (n.ºs 13, 16 e 17 dos factos provados), com a complacência dos responsáveis do D… e dos seus funcionários. Ora, só a entidade que assumiu a obrigação e o encargo de impedir a entrada do jogador nas salas de jogos é que está em condições, através dos seus agentes, de a executar, ou seja, a empresa concessionária do D…, aqui a ré[9]. Com efeito, está demonstrado que o autor era um jogador conhecido dos funcionários e responsáveis do D…, mesmo como sendo um dos jogadores mais fortes da roleta em máquina, jogando diariamente entre os 500,00 e os 8.000,00 euros (nºs 12 e 18 da fundamentação de facto). A ré adoptou, assim, uma atitude omissiva, não proibindo ao autor o acesso à sala das máquinas; o mesmo é dizer não cumpriu a obrigação administrativamente imposta pela Inspecção-Geral de Jogos no sentido de vedar ao autor o acesso às suas salas de jogos, o que já acarreta uma violação da prescrição imposta.
Dentre os casos especiais de ilicitude especificamente previstos no ordenamento juscivilista contam-se os factos negativos, as omissões, em que releva o modo da conduta lesiva (artigo 486º). Situação em que a obrigação de reparar o dano, além dos requisitos gerais, reclama um pressuposto específico, a existência do dever jurídico de praticar o acto omitido. Dever jurídico de agir que pode resultar da lei ou de negócio jurídico[10]. Logo, a omissão só é ilícita quando há o dever jurídico de agir. Se não há esse dever a abstenção não é censurável; confina-se no direito de fazer ou não fazer.
O anteprojecto do Código Civil, para além do dever jurídico poder derivar da lei ou de negócio jurídico, previa a regra segundo a qual quem abre uma fonte de perigo ou vê produzir-se na esfera de poder situações produtoras de riscos, tem o dever jurídico de adoptar as cautelas necessárias para os impedir[11]. O dever jurídico poderia resultar do facto de, na esfera de poder de alguém, se dar uma situação de risco que só essa pessoa poderia fazer desaparecer. Aquele que no tráfico criasse ou mantivesse uma fonte de perigo seria obrigado a tomar as medidas necessárias para afastar o perigo para os participantes no tráfico. Dever de agir que variava com a gravidade do perigo, com o maior ou menor risco criado, a fazer actuar maior ou menor intensidade do dever de agir. Dimensão que não chegou a ser normativizada pelo Código ao plasmar que, nas condutas omissivas, só age ilicitamente quem tem o dever jurídico de agir.
Cabe, então, perguntar se impendia sobre a ré o dever de vedar a entrada do autor nas suas salas de jogo, designadamente na sala de máquinas a que sempre acedeu, apesar da interdição. Esse dever parece resultar da lei (artigo 41º da Lei do Jogo, na redacção do Decreto-lei 10/95), pois as concessionárias têm de manter, durante todo o tempo em que se mantiverem abertas as salas de jogos tradicionais e as salas mistas, um serviço, devidamente apetrechado e dotado com pessoal competente, destinado à identificação dos indivíduos que as pretendam frequentar e à fiscalização das respectivas entradas. Os porteiros das salas devem solicitar aos frequentadores a apresentação do cartão de acesso, por forma bem visível, e ainda, quando os não conheçam e o respectivo cartão não inclua a fotografia do titular, a exibição do documento que haja servido de base à emissão. Quanto ao acesso àquelas salas, a norma coloca sobre os casinos o dever jurídico de controlar as entradas, exigindo a identificação de todos os indivíduos que a elas pretendam aceder.
No entanto, nesse período, o autor não acedeu às salas de jogos tradicionais e às salas mistas, limitando o jogo às salas de máquinas. A entrada e permanência nas salas de máquinas e de bingo e nas salas de jogo do keno é condicionada somente à posse de um documento de identificação (artigo 39.º). A lei não exige qualquer cartão de acesso nem um serviço de identificação como o imposto para as salas de jogos tradicionais e salas mistas. A reforma introduzida pelo referenciado Decreto-Lei 10/1995 aboliu o serviço de identificação de jogadores, dificultando essa tarefa de proibição de acesso dos interditos a tais salas. E com as alterações introduzidas pelo predito Decreto-Lei 40/2005 o mesmo veio a suceder com as salas mistas, embora, quanto a elas, esta problemática não seja suscitada, uma vez que, no período em causa, o autor a elas não acedeu.
O âmago da questão está, pois, em saber se a mera exigência legal de um documento de identificação fazia impender sobre a ré o dever legal de vedar a entrada do autor, porque interdito ao jogo. Numa primeira aparência, somos tentados a defender que a notificação à ré da interdição aplicada ao autor basta para a mesma dever diligenciar, pelos meios que repute adequados, pela execução da medida. Ao não praticar o acto omitido e ao não obstar à verificação do dano, não exerceu as suas competências e actuou ilicitamente. Acto omitido que teria obstado, com certeza ou com a maior probabilidade, ao dano.
Cremos, no entanto, que esse dever jurídico de agir não pode resultar da mera notificação, exigindo-se o correspondente enquadramento normativo. E como propugna a apelante, a Lei do Jogo só impõe aos casinos o controlo directo das entradas nas salas de jogos tradicionais e nas salas mistas, deixando fora desse sistema as salas de máquinas, de bingo e de keno, a sugerir a inexistência do dever jurídico dos casinos de nelas darem exequibilidade às interdições que lhes são notificadas pela Inspecção-Geral de Jogos. Se a lei não impõe qualquer sistema de controlo de entradas nessas salas, inexiste fundamento para admitir que sobre a ré impendia o dever jurídico de agir e dele se demitiu.
A atitude da ré não se ficou, no entanto, pela omissão do cumprimento da notificação da Inspecção-Geral de Jogos. Mais do que isso, adoptou condutas que aliciavam o autor a deslocar-se ao D…. Conhecedora da proibição e depois dela, à semelhança do que acontecia anteriormente, a ré continuou a enviar ao autor convites para eventos sociais que decorriam no D… e para pernoitar no E…, também por si explorado, e ofereceu-lhe gratuitamente os serviços de bar da sala de máquinas e do restaurante. Convites que o levaram a deslocar-se ao D… e, lá, sentindo-se incentivado, jogou (n.ºs 6, 7, 14, 15 e 24 dos factos provados).
A ilicitude da conduta da ré está bem patente em qualquer uma das duas modalidades que acima expressámos, quer na lesão de direitos subjectivos quer na lesão de interesses legalmente tutelados.
O direito administrativo português pode definir-se como o sistema de normas jurídicas que regulam a organização e o processo próprio de agir da administração pública e disciplinam as relações pelas quais ela prossiga interesses colectivos podendo usar de iniciativa e do privilégio de execução prévia. Direito que pressupõe órgãos dotados de autoridade e relações jurídicas a que essa autoridade empresta o seu carácter[12]. Os órgãos administrativos podem tomar resoluções obrigatórias para os particulares e que, em caso de não observância, são impostas coercivamente. Poder conferido à administração e que, para prossecução de interesses públicos, goza do privilégio de execução prévia, a significar que a execução pode ser anterior à discussão contenciosa e à decisão jurisdicional[13]. Acto executório que é, por princípio, obrigatório e que impõe à administração o dever de notificar a pessoa que deva acatá-lo, que está vinculada a cumpri-lo, sob pena de execução forçada, a assumir diversas formas, como seja a sujeição a coima.
Acto administrativo aqui consubstanciado no despacho de 10/12/2003 da Inspecção-Geral de Jogos, determinante da proibição do autor aceder às salas de jogos tradicionais, máquinas automáticas e jogo do bingo de todos os casinos do país, pelo período de dois anos, e notificado à ré em 17/12/2003 (n.sº 2 e 3 da fundamentação de facto). Trata-se de um acto administrativo imperativo que impõe ao seu destinatário uma conduta ou uma sujeição. Se a conduta é uma acção, resulta de ordem; se é uma abstenção, traduz-se numa proibição[14]. A conduta imposta à ré traduziu-se numa ordem: o vedar a entrada do autor em qualquer das suas salas de jogos, ordem que não observou no tocante às salas de máquinas.
A generalidade das normas administrativas tutelam valores ligados à personalidade física ou moral dos indivíduos. E a norma em causa, a interdição dos dependentes do jogo às salas de jogo, tutela a sua personalidade moral, procurando contê-los da adição a que estão sujeitos e, por essa via, evitar a sua degradação moral, social e financeira que qualquer estado de sujeição sempre envolve.
A integridade moral e física das pessoas é inviolável (artigo 25º, 1, da Constituição da República Portuguesa). A sua protecção não se basta com um mero reconhecimento declarativo oponível erga omnes, incluindo às entidades privadas, antes envolve, no quadro dos deveres de protecção dos direitos fundamentais, uma exigência positiva de actuação dos poderes públicos no sentido de assegurar a sua efectiva tutela material, designadamente impondo as medidas legislativas correspondentes[15]. E no que respeita aos direitos de personalidade, é o artigo 70º, 2, do Código Civil, que expressamente inclui a responsabilidade civil entre os meios gerais de tutela da personalidade física ou moral. Adoptando o sistema de cláusula geral de protecção à personalidade, a não especificação dos bens pessoais a que correspondem direitos autónomos, deixou para o julgador a prudente definição da ideia vaga de “ofensa à personalidade física ou moral”. Prudência que deve atentar em que a vida em sociedade comporta limitações à plena liberdade de cada um, de modo a que a tutela jurídica dos bens da personalidade só é admissível quando, face à consciência jurídica dominante, esses bens mereçam tutela autónoma e a ofensa, pela sua gravidade ou anormalidade, se deva considerar excluída dos “riscos próprios da vida em comunidade”[16].
Em 1980, pela primeira vez, a Associação Americana de Psicologia considerou os comportamentos adictícios ao jogo como uma desordem psiquiátrica do controlo dos impulsos. Desde então, têm surgido vários estudos e tentativas de teorização e desenvolvimento de modelos explicativos até à actual discussão pública sobre a natureza patológica da adição. O nosso legislador, sensibilizado pela necessidade de prevenir comportamentos compulsivos ao jogo, previu a medida cautelar de interdição ao jogo, promovida por iniciativa da Inspecção-Geral de Jogos ou a pedido das concessionárias ou dos próprios jogadores.
Reflexões que nos permitem ajuizar que aquele preceito visa proteger o indivíduo do estado de sujeição gerado pela dependência do jogo, colocando também nas mãos do próprio dependente o accionamento dos mecanismos legais que o podem proteger. Norma que concede ao respectivo titular um direito subjectivo, facultando-lhe que seja ele mesmo a requerer a protecção da norma, obtendo a interdição às salas de jogo. Julgamos que, por esta via, assistimos à violação pela ré dos direitos de personalidade do autor, pois livremente consentiu o seu acesso às salas de máquinas, apesar de conhecer a sua interdição às mesmas e de ter sido notificada pela entidade administrativa competente para executar essa proibição.
Se considerarmos que a norma violada não confere ao autor um verdadeiro direito subjectivo, sobrevém infracção a uma norma destinada a proteger interesses alheios, em que a tutela dos interesses particulares figura, como dissemos, entre os fins da norma violada, e o dano se regista no círculo de interesses privados que a lei visa proteger. As normas legais que tutelam direitos subjectivos podem proibir a lesão ou proibir certas condutas que levam a essa lesão. No primeiro caso, a violação da norma coincide com a violação do direito subjectivo; no segundo, pode não haver essa coincidência, mas se houver o pressuposto da responsabilidade civil preenche-se pela violação do direito subjectivo[17].
Se os interesses legalmente tutelados não constituírem direitos subjectivos, podem ainda dar lugar a responsabilidade civil quando são interesses comuns a um círculo limitado de pessoas e é à protecção desses interesses que a norma em causa se destina. O fim da norma é proteger directamente os interesses da categoria de cidadãos a que se refere. A lesão tem de se produzir no próprio bem cuja tutela a lei visou e a norma tem de procurar tutelar interesses de algumas pessoas, embora delimitadas em termos abstractos, ou seja, por categorias[18].
A legislação em causa é de interesse e ordem públicos, tal como o assinalam o preâmbulo do referenciado Decreto-Lei 422/89, de 2 de Dezembro, e o seu artigo 95º, dadas as respectivas incidências sociais, administrativas, penais e tributárias e, por isso, a actividade do jogo está sujeita à inspecção tutelar do Estado, exercida pela Inspecção-Geral de Jogos, que fiscaliza a execução das obrigações das concessionárias. Donde a previsão da proibição de acesso às salas de jogo, em termos preventivos e cautelares, procure tutelar directamente os interesses dos adictos do jogo, facultando-lhes até que eles próprios reclamem essa proibição, para os ajudar a vencer a ausência de autocontrolo e, por via indirecta, forçar ao seu distanciamento das salas de jogo. A ludopatia tem reflexos ao nível do indivíduo, numa compulsividade que comporta prejuízos familiares, financeiros e profissionais, mas também ao nível social pelos efeitos perversos que comporta para a sociedade num aviltamento ôntico que levou o legislador a prevenir o jogo compulsivo através da proibição de acesso aos casinos de alguns dos seus frequentadores.
Vale por dizer que o carácter protector da norma reside no facto de a sua tutela abranger não só a generalidade dos indivíduos, mas também um determinado núcleo de sujeitos contra ofensas a determinados bens jurídicos, o que decorre não do efeito da norma, mas do seu conteúdo e dos seus objectivos e da circunstância de o legislador, aquando da sua elaboração, ter tomado em linha de conta a protecção jurídica de um determinado núcleo de pessoas[19]. Aferida a finalidade originária daquela norma concluímos que a mesma visa a protecção individual ou do núcleo de jogadores de casinos sujeitos a compulsividade e prodigalidade. Erigida, por esta via, está a ilicitude da conduta da ré naquela segunda variante, decorrente da violação de norma protectiva de interesse alheio.
Na sua alegação contrapõe a ré apelante a ausência de violação de qualquer norma legal, por estar comprovado que, naquele período de interdição, o autor não obteve cartão de acesso às salas de jogos tradicionais e mistas e não acedeu à sala de jogos tradicionais e à sala mista (n.ºs 27 a 30 dos factos provados). Por outro lado, a lei não contempla mecanismos de controlo para proibir o acesso às pessoas interditadas de entrar nas salas de jogo. Daí que a proibição prevista seja apenas para as pessoas cuja presença seja inconveniente (artigos 29º e 36º da Lei do Jogo).
É certo que os referenciados preceitos (29º, 2, e 36º) estatuem que o acesso às salas de jogos de fortuna ou azar é reservado, devendo o director do serviço de jogos ou a Inspecção-Geral de Jogos recusar a emissão de cartões de entrada ou o acesso aos indivíduos cuja presença nessas salas considerem inconveniente, designadamente a partir das 22 horas, se forem menores de 14 anos, excepto quando maiores de 10 anos, desde que acompanhados pelo respectivo encarregado de educação, não manifestem a intenção de utilizar ou consumir os serviços nelas prestados, se recusem, sem causa legítima, a pagar os serviços utilizados ou consumidos, possam causar cenas de violência, distúrbios do ambiente ou causar estragos, possam incomodar os demais utentes do D… com o seu comportamento e apresentação, sejam acompanhados por animais, exerçam a venda ambulante ou prestem serviços. E, independentemente desse dispositivo, é ainda vedada a entrada nas salas de jogos a menores de 18 anos, incapazes, inabilitados e culpados de falência fraudulenta, desde que não tenham sido reabilitados, membros das Forças Armadas e das corporações paramilitares, de qualquer nacionalidade, quando se apresentem fardados, empregados das concessionárias que prestam serviço em salas de jogos, quando não em serviço, portadores de armas, engenhos ou matérias explosivas e de quaisquer aparelhos de registo e transmissão de dados, de imagem ou de som.
Nesta enunciação não se encontram referenciados os casos de proibição de acesso às salas de jogo de indivíduos como o autor, em que a interdição foi por si pedida como medida cautelar para a sua dependência do jogo. O que não significa, ao invés do pugnado pela ré apelante, que essa situação não esteja abrangida pelos mecanismos de controlo ínsitos às normas citadas, tanto mais que as mesmas usam o advérbio “designadamente” para aludir a uma narração meramente exemplificativa. Donde consideremos que, declarada a proibição de o autor aceder às salas de jogos dos casinos e notificada a ré apelante dessa proibição, sobre ela passou a impender o ónus de accionar os mecanismos específicos de controlo do acesso às salas de jogos de modo a vedar ao autor a sua entrada. A Lei do Jogo (artigo 41º) coloca sobre os porteiros das salas de jogos tradicionais e mistas (quanto a estas apenas, como dissemos, até à entrada em vigor da Lei 40/2005, de 17 de Fevereiro) a obrigação de identificar os indivíduos que a elas acedem através de cartão de acesso específico, mas para o acesso às salas das máquinas apenas exige que o frequentador seja portador de documento de identificação. E acrescentando que o controlo de acesso às salas de jogo tradicionais e mistas é feito por pessoal devidamente apetrechado e dotado de competência para identificação dos indivíduos que as pretendam frequentar e à fiscalização das respectivas entradas (artigo 41º, 1, da Lei do Jogo), não inclui nesse controlo o acesso às salas de máquinas, estando mesmo demonstrado que a identificação dos seus frequentadores é dificultada, em certos dias da semana e em certas horas, pelo significativo afluxo de pessoas (n.º 31 dos fundamentos de facto). Todavia, sendo o autor pessoa conhecida dos responsáveis e funcionários do D…, de fácil execução seria vedar-lhe a sua entrada no D… logo nos serviços da portaria das salas de jogo. Caso escapasse a tal controlo, qualquer funcionário das salas de máquinas poderia executar a ordem de proibição, expulsando-o e, assim, dando cumprimento à medida aplicada. Na verdade, todos aqueles que sejam conhecidos dos empregados da concessionária ou dos inspectores de jogos devem ser impedidos de entrar e, caso se encontrem dentro das salas, devem ser expulsos pelos trâmites processuais normais[20]. Donde estejam previstas sanções administrativas para a concessionária quando ocorre violação das regras de acesso às salas de jogo (artigo 125º da Lei do Jogo), também previstas para as irregularidades cometidas no acesso às salas pelos próprios frequentadores (artigo 146º da Lei do Jogo).
No período de interdição, como mencionámos, o autor não acedeu às salas de jogos tradicionais e mistas, para as quais era necessário cartão de acesso (para as mistas o cartão de acesso deixou de ser exigido pela Lei 40/2005, de 17 de Fevereiro) e o autor dele não dispunha (n.ºs 27 a 30 dos fundamentos de facto). Acedeu, no entanto, às salas de máquinas, onde jogou sete máquinas em simultâneo, desde o meio da tarde até às três e quatro horas do dia seguinte, sendo conhecido como um dos jogadores mais fortes da roleta em máquina (n.ºs 13, 16 a 18 dos factos provados). Nestas salas não é necessário o cartão de acesso mas apenas um documento de identificação (artigo 36º, 3, da Lei do Jogo), a querer significar que os funcionários e responsáveis do D… sempre poderiam ter exercido o controlo do autor no acesso às salas de máquinas através do seu conhecimento pessoal e, em caso de dúvida, pela verificação do documento de identificação de que se devia fazer acompanhar. Ao invés, se, por um lado, a ré omitiu qualquer atitude nesse controlo, “fechando os olhos” à presença do autor, por outro, continuou a incentivá-lo à frequência do D…, convidando-o para eventos sociais e para pernoitar nas instalações do seu .... Por isso, repetimos, cremos estar bem delineada a ilicitude do comportamento da ré.

2. A culpa
A ré apelante igualmente questiona a culpa atribuída à sua conduta pela sentença impugnada.
A culpabilidade é definida como um conjunto de qualidades que, por integrarem certas previsões normativas, concitam, ao acto praticado, um juízo de desvalor ou de desaprovação. Como encerra um conjunto de características que merecem o desfavor do Direito, diz-se que tem culpa aquele cuja actuação é culpável, isto é, que concita o referido juízo de reprovação[21]. Dito doutro modo, como a culpa corresponde a um juízo de censura sobre o comportamento do agente, se o facto, acção ou omissão, é recortado pela previsão normativa enquanto ilícito nas normas de protecção, a culpa deve reconduzir-se a essa violação normativa[22].
A mera culpa, modalidade de que aqui nos ocupamos, é entendida como violação de uma norma por inobservância dos deveres de cuidado, aferida por critérios estritamente normativos, reconduzida a uma juízo de censura ético-jurídico da conduta. Na sua actuação social as pessoas devem observar determinadas regras de cuidado, prudência, atenção ou diligência para que não violem as normas jurídicas que regulam a vida em sociedade. A não observância desses cuidados pode provocar violação de norma jurídica, assim ocorrendo a negligência, que se pode verificar em dois graus, comummente aceites: a negligência consciente e a negligência inconsciente. No primeiro caso o agente tem conhecimento da exigência desses deveres de cuidado, mas não os acata, esperando a não verificação do resultado. No segundo, o agente ignora os deveres de cuidado[23]. Culpa que se afere pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso concreto (artigo 487º, 2, do Código Civil), consagrando-se a apreciação da culpa in abstracto e não segundo a diligência habitual do seu autor, in concreto[24].
O enfoque da recorrente é no sentido de que lhe não pode ser dirigido qualquer juízo de desvalor por ser muito difícil a identificação dos frequentadores das salas de máquinas, devido ao afluxo de pessoas, e por receber centenas de notificações da Inspecção-Geral de Jogos idênticas à relativa ao autor. Incumbindo ao lesado provar a culpa do autor da lesão, interroga-se acerca dos cuidados que deveria ter adoptado.
Como vimos, a imputação a título de culpa reclama uma relação de desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado, de modo a que seja possível a formulação de um juízo de censura na imputação do facto. No fundo, trata-se de averiguar se, nas circunstâncias específicas do caso, a ré poderia ter conformado a sua conduta de modo a assegurar o cumprimento do dever que lhe era exigível. E, tal como a sentença sindicada, cremos que esse juízo de censurabilidade deve ser dirigido ao comportamento da ré. Conhecedora da proibição de o autor aceder às salas de jogos, incluindo às salas de máquinas, apesar de se tratar de pessoa conhecida dos seus responsáveis e funcionários, não cuidou de colocar em prática essa proibição. Para tanto, bastava que instruísse os funcionários responsáveis pela vigilância nas salas de máquinas da necessidade de vedar o acesso do autor a tais salas. Como os mesmos o conheciam, facilmente davam execução à ordem correspondente. Não cuidou de pôr em prática a execução dessa proibição, assim preterindo o dever legal que lhe assistia no seu cumprimento, agravando e potenciando os riscos que a norma pretendia tutelar e fomentando a compulsividade do autor ao jogo.
Não releva o predito argumento da ré no sentido de que era muito difícil a identificação dos frequentadores das salas de máquinas, devido ao afluxo de pessoas, e por receber centenas de notificações da Inspecção-Geral de Jogos idênticas à aqui em causa, uma vez que o autor era pessoa conhecida dos funcionários e, para além disso, assumia comportamentos inusitados: jogava em sete máquinas em simultâneo, era o jogador de roleta em máquina que mais forte apostava e ali se mantinha desde o meio da tarde até às três/quatro horas do dia seguinte. Dados a que não correspondia, seguramente, a maioria dos jogadores e que colocava em evidência a pessoa do autor. Destaque que a ré não usou para dar cumprimento à prescrição imposta, mas que não deixou de utilizar para dirigir ao autor convites para eventos sociais e até para pernoitar no seu ….
Opôs a recorrente que o autor integrava a listagem protocolar existente na empresa e que os espectáculos tinham lugar em espaços não afectos ao jogo. Embora não estando demonstrada essa factualidade, mesmo aceitando que assim fosse, a ré, notificada da proibição de acesso do autor às salas de jogos, deveria ter diligenciado por mandar suprimir o nome do autor dessa listagem. Impunha a prudência, exigível a qualquer bom pai de família, que a ré não incentivasse o autor a deslocar-se ao D… e a aproximar-se das zonas de jogo. Conhecedora da sua prática obsessiva do jogo e da iniciativa dele próprio requerer a sua interdição às salas de jogo, era razoável admitir que o acercar-se da zona de jogo promoveria a recidiva. Não só não evitou a recaída como não cuidou de proibir a sua entrada nas salas de jogo de máquinas. Ainda que fosse inexequível o controlo da sua entrada, os vários funcionários que circulam nas zonas de jogo, se tivessem sido alertados para a necessidade de interditar o autor à sala, conhecendo-o, sempre estariam vinculados a expulsá-lo.
Estes elementos focalizam um juízo de reprovação ético-jurídico à conduta da ré, que se reconduz à culpa.
A sentença recorrida considerou que o facto culposo do lesado também contribuiu para a produção do dano em moldes que a recorrente não censura, tal como não questiona o montante indemnizatório, tudo a justificar que se mantenha in totum a decisão apelada.

V. Decisão
Na defluência do debatido, acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação do Porto em:
1. julgar a apelação improcedente, confirmando, em consequência, a sentença apelada;
2. condenar a apelante nas custas da apelação (artigo 446º, 1, do Código de Processo Civil).
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Porto, 13 de Julho de 2011
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas
José Bernardino de Carvalho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
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[1] Litiga com apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo.
[2] Na redacção imperante até à vigência da introduzida pelo Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto.
[3] António Menezes Cordeiro, “Direito das Obrigações”, II, 1986, Reimpressão, pág. 303.
[4] António Menezes Cordeiro, ibidem, pág. 304.
[5] Antunes Varela, “Das obrigações em Geral”, I, 3ª ed., págs. 425 e 427.
[6] Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 4ª ed., págs. 369 e 370.
[7] Sem relevância para este caso, ainda alterada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
[8] Januário Pinheiro, “Lei do Jogo”, Anotada e Comentada, 2006, pág. 202.
[9] Januário Pinheiro, ibidem, pág. 202.
[10] Almeida Costa, ibidem, pág. 366.
[11] Vaz Serra, in BMJ n.º 84, pág. 118.
[12] Marcello Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, I, 8ª ed., págs. 42 e 43.
[13] Marcello Caetano, ibidem, pág. 408.
[14] Marcello Caetano, ibidem, pág. 417.
[15] Jorge Miranda - Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, 2005, pág. 269.
[16] Fernando Pessoa Jorge, “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1995, pág. 300.
[17] Fernando Pessoa Jorge, ibidem, pág. 304.
[18] Fernando Pessoa Jorge, ibidem, pág. 303.
[19] Adelaide Menezes Leitão, “Normas de Protecção e Danos Puramente Patrimoniais”, 2009, pág. 627.
[20] Januário Pinheiro, ibidem, pág. 209.
[21] António Menezes Cordeiro, ibidem, pág. 308.
[22] Adelaide Menezes Leitão, ibidem, pág. 671.
[23] António Menezes Cordeiro, ibidem, pág. 318.
[24] Almeida Costa, ibidem, pág. 384.