Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0550502
Nº Convencional: JTRP00037755
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: ARTICULADOS
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
NULIDADE
CONTRATO DE SEGURO
Nº do Documento: RP200502280550502
Data do Acordão: 02/28/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - A omissão do despacho pré-saneador, visando o aperfeiçoamento de articulados deficientes - artº 508, n.1 al. b) do CPC - não gera qualquer nulidade processual, sindicável por via de recurso.
II - O princípio da cooperação deve ser temperado pelo princípio da responsabilidade das partes, não devendo estas esperar que o juiz supra as lacunas ou insuficiências dos articulados.
III - Se a autora alegou, na petição inicial, a existência de um contrato de seguro que cobria o risco de um sinistro ocorrido, no dia 08/07/2000, e junta cópia de apólice que demonstra que o contrato teve início em 31/07/2000, não tem o juiz que a convidar a corrigir o seu articulado, para provar que, à data do sinistro, existia contrato de seguro válido.
IV - A omissão de tal convite não exprime qualquer nulidade processual, nem acarreta violação dos princípios constitucionais da igualdade e do acesso à justiça.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

1- No Tribunal Judicial da Comarca de .........., a Autora “B.........., S.A.”, com sede em Itália e delegação na .........., ..., .......... intentou a presente acção declarativa com forma de processo ordinário contra “C.........., Ldª ”, com sede na Rua .........., ..., .........., .........., e “D.........., Ldª”, com sede na Rua .........., .., .........., alegando resumidamente:
Celebrou com determinada sociedade comercial um contrato de seguro do ramo multiriscos comércio, referente a um edifício e conteúdos, titulado pela apólice junta (cuja cópia juntou).
No dia 08 de Julho de 2000 ocorreu uma inundação em tal edifício que provocou danos no montante ora peticionado e que a A. pagou à tomadora e beneficiário do contrato.
Os referidos danos foram causados pela actuação das RR na montagem e comercialização de material inadequado.
Conclui pedindo a condenação das Rés no pagamento da quantia de € 20.493,01, acrescida de juros moratórios contados desde a citação.

2 - A Ré C.........., Ldª, contestou a acção negando qualquer responsabilidade na produção do evento danoso.

3 - A Ré D.........., Ldª contestou a acção, alegando, entre outras coisas, que à data da verificação do sinistro não existia o contrato de seguro invocado, que teve início no dia 31.07.2000.

4 - Igual argumento foi alegado pelas intervenientes acessórias Companhia de Seguros X.........., S.A. e E.........., Ldª.

5 - Notificada de tais contestações, a A. nada declarou.

6 – O processo prosseguiu termos com a elaboração do despacho saneador sentença que julgou a acção totalmente improcedente absolvendo as Rés do pedido.

7 – Apelou a Autora nos termos de fls. 209 a 217, formulando as seguintes conclusões:
1ª- O presente recurso recai sobre o Douto Despacho Saneador/sentença, que julga improcedente, por não existir qualquer fonte de obrigações em relação aos RR, a acção intentada pela Recorrente, absolvendo os mesmos.
2ª - Na verdade, a Recorrente considera que o Exmº Juiz a quo esteve mal ao decidir, desde logo, no despacho saneador, da substância da causa, não levando o processo à confrontação e contraditório da audiência de julgamento, absolvendo-se desde logo, somente com a análise das peças processuais, os réus do pedido.
3ª - A recorrente fundamenta a sua pretensão e sub rogação na existência de um contrato de seguro titulado pela apólice .... ..........., tendo junto para prova o referido documento.
4ª - A mencionada apólice junta aos autos traduz uma renovação das anteriores, pois que o contrato de seguro teve o seu inicio em 31-12-1997, e à data do sinistro ela já existia, conforme se pode aferir pela análise da apólice e proposta de seguro que se junta sob documento n.º 1 A e B.
5ª - Entende a ora Recorrente que esteve mal o juiz a quo, porquanto, limitou-se a proferir saneador sentença, absolvendo os réus do pedido, sem antes analisar o referido documento, ou ainda considerando que tal documento junto com a p. i. não é esclarecedor quanto ao inicio de vigência do contrato de seguro, deveria o Mtmo Juiz nos termos do artigo 266 do CPC, convidar a recorrente a fornecer os esclarecimentos que se afigurem pertinentes para a boa discussão da causa.
6ª - Ficaram assim coarctados todos os possíveis meios de prova da autora, cujo momento processual se encontra a jusante do despacho que liquidou a acção, quando é certo que foram alegados factos que consubstanciam o alegado.
7ª - Refere ainda o Mtmo Juiz, que não se encontram preenchidos os requisitos da sub rogação, pelo credor, por ausência expressa de declaração de vontade nesse sentido. Acontece que a sub rogação legal acontece quando o terceiro que cumpre a obrigação fica sub rogado quando tiver garantido o cumprimento (que foi o caso), ou quando, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do seu crédito.
8ª - Na eventualidade de se considerar que a ora recorrente não alegou cabalmente fez prova da existência da apólice em vigor na altura do sinistro, a verdade é que sempre deveria o Exmº Juiz a quo ter aplicado o artigo 508 n.º 1 al. b) e n.º 2 e 3 do CPC.
9ª - Na verdade, “impõe-se ao juiz convidar os autores a aperfeiçoar a p.i. e não proferir saneador sentença julgando a acção improcedente, com base nessa deficiência” (Ac. R.P. de 25.6.98, C.J.1998, 3º e BMJ, 478, 456) – ver também Ac. R.C. de 5.3.96, BMJ, 455, 578 e doutrinalmente, entre outros, Prof. M. Teixeira de Sousa, na ROA, 1995, II, p. 352 e ss.
10ª - Ora, seguindo a interpretação feita pelo Juiz do que foi alegado ou não na petição inicial, o que deveria ter sido feito era observar o plasmado nos artigos 508, 266 e 266-A do CPC. Ao não seguir esta via, violou o Exmº Juiz a quo este princípio da cooperação e estes artigos processuais civis.
11ª - Na verdade, o poder dever conferido ao Juiz pelo artigo 508 n.º 3 do CPC resulta na prevenção das partes sobre putativas deficiências ou lacunas na sua alegação, sendo que a omissão desse poder dever constitui uma verdadeira nulidade, por influir no exame e decisão da causa.
12ª - Acresce que este poder do Juiz não pode ser meramente discricionário, sob pena de, seguindo-se por essa interpretação do artigo 508 n.º 3 do CPC, o referido artigo ser inconstitucional, por violação grosseira do princípio da igualdade e do acesso à justiça, inconstitucionalidades que agora expressamente se alegam e argúem, para todos os efeitos legais.
13ª - Acresce ainda o facto do Juiz absolver os réus do pedido, no entender da recorrente, ainda que todo o processado pudesse resultar numa absolvição (só por mera hipótese, e ainda assim descabida atento o supra descrito) esta nunca seria do pedido. Senão vejamos.
14ª - Como resulta inequivocamente da fundamentação da sentença, esta não decidiu do mérito da causa, assim a solução lógica seria uma decisão de forma, portanto uma absolvição da instância.
Conclui pedindo a procedência do recurso devendo ser revogado o saneador sentença recorrido.

6 - Contra-alegaram D.........., Ldª as recorridas, D.........., Ldª e C.........., Ldª, batendo-se pela confirmação do julgado.

II - FACTUALIDADE PROVADA

O despacho recorrido é do seguinte teor (na parte que importa ter em consideração):
“Nos contratos de seguros contra riscos (artigo 432º do Código Comercial), como o que aqui se aprecia., celebrado entre a A. e uma sociedade comercial, encontra-se legalmente consagrada a sub-rogação do segurador que pagou a deterioração ou perda dos objectos em todos os direitos do segurado contra terceiro causador do sinistro – o responsável civil (artigo 441º do Código Comercial).
Porém, mesmo que demonstrado o pagamento efectuado pela A ao tomador e beneficiário do contrato de seguro (uma vez que tal facto se encontra controvertido), encontra-se já assente que o sinistro ocorreu no dia 08.07.2000 e que o contrato de seguro invocado pela A. teve o seu início no dia 31.07.2000 (cfr. documento de fls. 8 a 10).
Quer o exposto significar que a alegada prestação efectuada pela A. não pode ter como causa o referido contrato de seguro.
Por outro lado, não se encontram preenchidos os requisitos da sub-rogação pelo credor (artigo 589º do Código Civil) por ausência de expressa declaração de vontade nesse sentido.
Não tendo a alegada prestação efectuada pela A. virtualidade para operar a transmissão do crédito da sociedade comercial (lesada), inexiste qualquer fonte das obrigações em relação às RR.
Pelo exposto julgo improcedente a presente acção e, em consequência, absolvo as RR do pedido”.

III – DA SUBSUNÇÃO - APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, artigo 684 nº 3 do Código de Processo Civil.
As questões concretas a decidir no presente recurso são as seguintes:
1ª - Deveria o juiz a quo ter, nos termos dos artigos 266, 266-A e 508 n.º1 al. b), n.º 2 e 3 ter convidado a Autora a aperfeiçoar os articulados fornecendo os esclarecimentos pertinentes à boa discussão da causa?
2ª - A omissão desse poder dever (é assim designado nas alegações da Recorrente) constitui uma verdadeira nulidade, por influir no exame e decisão da causa?
3ª - Este poder do Juiz não pode ser meramente discricionário, sob pena de, seguindo-se por essa interpretação do artigo 508 n.º 3 do CPC, o referido artigo ser inconstitucional, por violação grosseira do princípio da igualdade e do acesso à justiça?
4ª - Mesmo com a factualidade alegada a absolvição não poderia ser do pedido devendo ser da instância?
Vejamos.
A) Dispõe o art. 508º do CPC:
1. Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do n.º 2 do art. 265º;
b) Convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes.
2. O juiz convidará as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
3. Pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
E, nos termos do artigo 266 n.º 1 do CPC “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”.
Acrescenta o n.º 2 deste preceito que “o juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes......”.
“As partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”, artigo 266-A do CPC.
Tendo presente estes preceitos legais vejamos o caso concreto.
Entende a Recorrente que se impunha ao Sr. Juiz o dever de a convidar a aperfeiçoar o seu articulado, convidando-a a juntar documento comprovativo da existência do contrato de seguro bem como a alegar os factos que entendesse como necessários à verificação da sub-rogação legal.
Isto é ao Sr. Juiz impunha-se, na opinião da Recorrente, proferir um despacho prévio ao saneador sentença.
Mas deveria o Sr. Juiz, no caso concreto, ter proferido o despacho pré-saneador, convidando a parte a aperfeiçoar o que eventualmente estava deficiente (ou seja convidando-a a suprir as suas deficiências – se efectivamente de deficiências se trata?
Entendemos claramente que não.
Ninguém coloca em causa que um dos princípios fundamentais do novo Código de Processo Civil é o da cooperação entre todos os intervenientes processuais.
Igualmente ninguém questiona que com a reforma processual civil se pretendeu “privilegiar a decisão de fundo” consagrando “como regra, que a falta de pressupostos processuais é sanável”, tudo em vista da “eliminação de todos os obstáculos injustificados à obtenção de uma decisão de mérito, que opere a justa e definitiva composição de um litígio, privilegiando-se, assim claramente a decisão de fundo sobre a mera decisão de forma”. [Cfr. Relatório do Dec. Lei. n.º 329/95 de 12.12]
Todavia, apesar desta ideia matriz de se privilegiar o mérito sob a forma o certo é que o legislador não impôs de forma genérica o convite ao aperfeiçoamento, o que dito de outro modo, significa que há regras que se impõe cumprir no sentido de se privilegiar uma cultura de responsabilidade em detrimento de uma cultura laxista.
Atentemos no caso dos autos, o qual devemos situar no âmbito da aplicação do artigo 508 do CPC.
O artigo 508 do CPC comporta, desde logo e além do mais, duas vertentes bem distintas.
Por um lado – n.º 1 al. a) – deve o juiz providenciar pelo suprimento das excepções dilatórias, nos termos do artigo 265 n.º 2. Estamos perante um poder-dever do juiz, um poder “vinculado”, poder esse que contém em si mesmo uma obrigação, que bem se compreende pela ideia global dos princípios processuais de dirimir de forma definitiva e perante todos os interessados a questão colocada ao Tribunal.
Por outro lado – n.º 1 al. b) – o despacho a convidar as partes no âmbito nos números 2 e 3 (que contempla situações diferentes, sendo o número 2 destinado a corrigir as irregularidades dos articulados e o número 3 destinado a completar articulados deficientes), apesar da diferença de terminologia usada (“o juiz convidará” - n.º 2 e “pode ainda o juiz” - n.º 3), consagra o designado “dever de prevenção”, pelo que não estamos perante um puro poder discricionário do juiz, mas é um despacho que o juiz poderá ou não proferir no seu prudente critério, sempre que se lhe afigure que o mesmo é necessário à justa composição do litígio despacho, (há quem veja no n.º 2 a existência de um “despacho vinculado e no n.º 3 um “despacho não vinculado”, por neste estar em causa um poder discricionário do juiz – Cfr. Ac. R. C. de 29.05.2001, Relator Desembargador Nuno Cameira)
Não sendo um despacho arbitrário, ao livre capricho do Juiz, a verdade é que o mesmo goza de uma certa discricionariedade técnica. [No sentido de que este despacho se insere num quadro de poderes discricionários do juiz cfr.: na Doutrina Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 68”; Abrantes Gearaldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 77 e ss; na Jurisprudência, entre outros Ac. STJ de 11. 5. 99, BMJ 487/244]
Aliás, tem entendido a Jurisprudência, pensamos que forma maioritária, que a omissão do despacho pré saneador de aperfeiçoamento de articulados deficientes (n.º 1 al. b) do artigo 508) não gera qualquer nulidade processual e não é sindicável por via recursiva. [Cfr. neste sentido e a título meramente exemplificativo Ac. R.C. de 28.09.2004, Relator Desembargador Jorge Arcanjo “2. O despacho pré-saneador de aperfeiçoamento de articulados deficientes, proferido ao abrigo do art.508.º, n.º 1 b) e n.º3 do CPC, não é um despacho vinculado, pois inscreve- se no poder discricionário do juiz (artigo 156.º, n.º (4 do Código de Processo Civil). 3. A sua omissão não gera qualquer nulidade processual e não é sindicável por via recursiva”; Ac. R.C de 06.03.2001, Desembargador Araújo Ferreira “O poder-dever de o Juiz ordenar o suprimento das excepções dilatórias susceptíveis de sanação, nos termos do artº 265º nº2 do C.P.C., e bem assim, convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados (artºs 508º nº1 al. a) e b) do C.P.C.) não é sindicável por via de recurso”; Ac. R. C. de 09.05.2000, Desembargador Pires da Rosa I - O dever de prevenção consagrado na al. b) do nº1 do artº 508º do CPC (Reforma de 1995/1996) para a fase do pré-saneador assenta, no que respeita ao convite para o aperfeiçoamento pelas partes dos seus articulados, numa «previsão aberta» que não prescinde do olhar de ponderação do juiz sobre os articulados.
II - Esse juízo, que não é um mero arbítrio, não deixa de ser um exercício de discricionariedade, cujo resultado não pode ser censurado se acaso a ponderação dos articulados não sugere ao juiz a urgência de um convite que, mais tarde, se vier a revelar teria sido útil.
III - A parte, à qual cabe, num processo cujo princípio básico é o dispositivo, o primeiro e matricial dever de ponderação que é o seu próprio, não pode colocar a sua irreflexão a coberto da actividade do juiz, se acaso a este uma primeira análise dos articulados lhe não fizer descobrir de imediato o que, a final, se veio a revelar teria sido útil e necessário.
IV - Por isso, o não exercício pelo juiz do poder de convidar ao aperfeiçoamento (porque se não apercebeu da sua necessidade), não implica qualquer nulidade processual.
V - Não há lugar a convite ao aperfeiçoamento quando o que é insuficiente não é a alegação, mas a realidade alegada.
VI - O mecanismo do artº 508º, nº3, destina-se a suprir a insuficiência da alegação, não a insuficiência da realidade.”; Ac. R. Porto de 13.12.2001, Desembargador Leonel Serôdio, “II - O poder de convidar a parte a corrigir o pedido não é vinculado e, por isso, não tem qualquer sanção”; Ac. R.P. de 16.10.2001, Relator Desembargador Lemos Jorge “A omissão do convite do juiz para o suprimento referido traduz-se na falta de um despacho de aperfeiçoamento não vinculativo, sem qualquer sanção”]
Acresce que não podemos esquecer que uma das traves mestras do nosso ordenamento jurídico, no que ao ramo do direito processual civil respeita, continua a ser o princípio do dispositivo.
Às partes, designadamente ao Autor, compete apresentar ao tribunal uma pretensão devidamente clarificada e estruturada, municiada de todos os elementos necessários à procedência do peticionado.
E o Juiz confia na bondade do que vem articulado e na suficiência da prova oferecida, nomeadamente nos documentos apresentados, tanto mais que se deve exigir do Autor que é “normalmente patrocinado por profissional do foro, apetrechado com os necessários conhecimentos técnicos que saiba identificar os fundamentos fácticos da sua pretensão, de acordo com os preceitos que são aplicáveis, e transpor para o articulado inicial, através da verbalização adequada, a realidade histórica que subjaz ao litígio”. [Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol. pág. 81, citado no Ac. R. Porto de 13.12.2001, supra referido]
No caso em apreço o juiz confiou que a Recorrente alegou os factos que entendia como necessários e suficientes à procedência da sua pretensão e que indicou a prova documental que comprovava esse pedido, tanto mais que notificada das contestações em que expressamente vinha referido que aquele documento não seria suficiente, nada disse. O Juiz confiou, logicamente, que se a Recorrente nada disse isso seria devido ao facto de que nenhum outro documento teria em seu poder que pudesse alterar o que já constava dos autos.
Face ao silêncio da Recorrente o Juiz não podia advinhar que, eventualmente, esta teria um documento que comprovaria a sua tese.
O dever de cooperação do Juiz não pode ser levado a este ponto.
O juiz não podia convidar a Recorrente a juntar um documento que desconhecia existir, tanto mais que se encontrava nos autos um outro documento junto pela Autora/recorrente que não oferecia dúvidas quanto ao inicio da vigência do contrato invocado nos autos.
Ao contrário do que afirma a Recorrente (conclusão 5ª) o Sr. Juiz a quo analisou o documento junto. E, não considerou que tal documento não fosse esclarecedor quanto ao inicio de vigência do contrato de seguro, pois, pelo contrário entendeu claramente que resultava, de forma inequívoca desse documento que a sua vigência se teria iniciado em data posterior ao sinistro.
O dever de cooperação e de prevenção exigido ao Juiz não pode ser levado ao ponto de ele imaginar, advinhando, que o Autor além dos documentos que apresenta e que traduzem uma realidade tem outros que traduzem realidade diversa.
As partes devem ser responsabilizadas pelos actos que praticam em juízo.
Permitimo-nos seguir aqui de perto o recente Acórdão do STJ de 24 de Maio de 2004, cujo Relator é o Conselheiro Neves Ribeiro e no qual se pode ler “Se é salutar a cooperação entre as partes, também se afigura importante a criação e desenvolvimento de uma cultura judiciária de responsabilidade, e de saber, que não tenha no juiz, o limite corrector dessa responsabilidade (ou irresponsabilidade: inconsciente ou provocada) ou desse saber, (ou ignorância: inconsciente ou provocada), quando se está perante uma clara ausência de um preceito legal, e de processo, que permita contar com a ajuda dos outros, suprindo faltas processuais graves, essenciais ao objecto do conhecimento, exactamente do que se pede ao tribunal, que conheça”.
E continua o referido Acórdão “Em desfavor destas - das pessoas - vulgariza-se o princípio, igualmente respeitável, da preclusão processual civil, agravando o factor da incerteza do tempo da definição do direito; e introduz-se uma pedagogia processual negativa, a benefício do arbítrio ao convite, do uso e do abuso, sem critério, que em nada abona a confiança, a celeridade e a prontidão da justiça, acabando por conferir a esta, a imagem perigosa geradora do "deixar andar "ou do "erra que o Juiz corrige!"”.
O princípio da cooperação tem assim de ser temperado pelo princípio da responsabilidade das partes, não podendo estas esperar que o Juiz tudo venha a suprir (tanto mais que o Juiz não pode ser visto como o depositário da sabedoria infinita, que tudo sabe e tudo resolve, suprindo as lacunas das partes).
Aceitamos que o Juiz pode e deve, segundo o seu prudente critério, sempre que se lhe afigure que face aos elementos dos articulados não será possível obter uma justa decisão definitiva sobre o mérito da causa, proferir um despacho convidando ao aperfeiçoamento.
Porém, se o Juiz não se apercebeu dessas deficiências ou se entendeu (ainda que erradamente) que os elementos constantes dos autos, designadamente os factos articulados e os documentos juntos são aqueles que efectivamente o Autor pretendeu (e que outros não tinha, até face à ausência de resposta à contestação) e perante eles profere decisão conhecendo do mérito afigura-se-nos que nenhuma omissão foi cometida.
Nenhuma nulidade é cometida com essa pretensa omissão.
No caso concreto o Sr. Juiz a quo entendeu (e bem refira-se) que face à alegação da autora e tendo em consideração o documento junto a fls. 8 a 10 dos autos (documento junto pela própria Recorrente) se impunha conhecer de imediato do mérito da causa.
A autora alegou a existência de um sinistro no dia 08.07.2000 e invocou que o mesmo se encontrava abrangido por um contrato de seguro titulado por uma apólice, cuja cópia juntou, da qual resulta, de forma inequívoca, que tal contrato de seguro teve o seu início no dia 31.07.2000.
Perante tais elementos era manifesto que na data do sinistro não havia contrato de seguro, impondo-se, assim, a absolvição dos Réus do pedido.
Aliás, a Ré D.........., Ldª na sua contestação invocou que, à data da verificação do sinistro, não existia o contrato de seguro invocado, que teve início no dia 31.07.2000.
E este argumento foi igualmente invocado pelas intervenientes acessórias Companhia de Seguros X.........., S.A. e E.........., Ldª.
E, qual foi a reacção da Recorrente face a esta posição?
Notificada nada disse remetendo-se ao silêncio.
Nessa altura, nesse momento próprio é que a Recorrente deveria ter vindo invocar (como tardiamente o faz nas suas alegações de recurso) que a “mencionada apólice junta aos autos traduz uma renovação das anteriores, pois que o contrato de seguro teve o seu inicio em 31-12-1997, e à data do sinistro ela já existia, conforme se pode aferir pela análise da apólice e proposta de seguro que se junta sob documento n.º 1 A e B”.
A Recorrente podia e devia tê-lo feito naquele momento mas preferiu remeter-se ao silêncio, em nada contribuindo para a correcta decisão da causa. A inércia da Autora/Recorrente não podia ser suprida pelo Sr. Juiz a quo.
Ao Sr. Juiz, perante a posição assumida pelas partes, não restava outra solução que não fosse julgar a causa, de imediato, com os elementos constantes dos autos.
Esses indicavam claramente que na data do sinistro, dia 08.07.2000, não havia contrato de seguro válido pois, como decorre da apólice junta pela Recorrente, o contrato invocado apenas iniciou a sua vigência em 31.07.2000.
Ao contrário do que afirma a Recorrente – conclusão 5ª - o Sr. Juiz a quo não considerou que o documento junto com a p.i. não era esclarecedor quanto ao inicio da vigência do contrato de seguro. Pelo contrário tal documento é bem claro quanto ao seu inicio. O que sucede é que esse inicio ocorre após o sinistro.
E se tal apólice junta aos autos traduz uma renovação das anteriores – conclusão 4ª - à Recorrente impunha-se que informasse o Tribunal desse facto, fosse na p.i. fosse em eventual resposta às contestações.
Nada tendo dito acarreta com as consequências do seu acto.
Bem andou o Sr. Juiz em absolver as Rés do pedido, não tendo cometido qualquer nulidade. [Veja-se neste sentido o Ac. STJ de 29 de Janeiro de 2004, Relator Conselheiro Araújo Barros “Em todo o caso, três razões nos levam a considerar inócua a omissão do julgador (se é que de omissão se tratou): por um lado, a omissão de acto ou formalidade que a lei prescreve apenas produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa, naturalmente de forma desfavorável para o arguente (art. 201°, n° 1, do C. Proc. Civil)”]
Deste modo podemos concluir pela improcedência das duas primeiras questões deduzidas pela Recorrente afirmando claramente que – contendo os autos todos os elementos necessários à decisão de mérito, face a tais elementos – não se impunha ao juiz a quo Ter, - nos termos dos artigos 266, 266-A e 508 n.º1 al. b), n.º 2 e 3 -, de proferir despacho a convidar a Autora a aperfeiçoar os articulados, nem a omissão (se de omissão se pode falar) desse poder dever (é assim designado nas alegações da Recorrente) constitui uma verdadeira nulidade.

B) Resolvidas estas duas questões importa abordar e decidir a terceira questão: Este poder do Juiz não pode ser meramente discricionário, sob pena de, seguindo-se por essa interpretação do artigo 508 n.º 3 do CPC, o referido artigo ser inconstitucional, por violação grosseira do princípio da igualdade e do acesso à justiça?
Entende a Recorrente que o poder do Juiz – refere-se ao poder-dever (nas suas palavras) conferido pelo artigo 508 n.º 3 do CPC não pode ser meramente discricionário.
Como deixamos dito supra estamos de acordo que o convite ao aperfeiçoamento previsto no artigo 508 do CPC não pode ser entendido de forma arbitrária. Mas o certo é que o despacho a convidar a parte a aperfeiçoar, previsto no n.º 3 do citado preceito, é um despacho que o Juiz deverá ou não proferir ao abrigo do seu prudente critério. O Juiz goza de liberdade judicativa na prolacção desse despacho. Estamos perante um poder funcional do Juiz, poder este que deve ser exercido de acordo com a ponderação que seja feita da situação concreta.
Como é evidente esta ponderação nunca pode ser arbitrária nem discricionária.
O Tribunal Constitucional tem entendido que «o convite só tem justificação, como concretização do direito de acesso à justiça e do princípio da proporcionalidade quando as deficiências notadas forem estritamente formais, ou de natureza secundária, ligadas à apresentação ou formulação, mas não ao conteúdo, concludência ou inteligibilidade da própria alegação ou motivação produzida, não podendo o mecanismo do convite ao aperfeiçoamento de deficiências formais do acto da parte, transmudar-se num modo de esta obter novo prazo para, reformulando substancialmente a sua própria pretensão ou impugnação, obter novo e adicional prazo processual para substancialmente cumprir o ónus que sobre ela recaía» [Ac. do T. Constitucional. n.ºs 40/00 e 374/00, os quais se encontram citados no Ac. STJ de 20 de Maio de 2004, Relator Conselheiro Neves Ribeiro]
Significa isto que o juízo que o julgador faz, no momento do despacho a que se refere o artigo 508 do CPC, não pode ser de mero arbítrio, mas o não exercício do poder de convidar ao aperfeiçoamento não pode implicar qualquer nulidade – pois não está prevista na lei – nem pode ser considerado uma violação do principio da igualdade e do acesso à justiça.
Este entendimento que se faz do artigo 508 do CPC, nomeadamente da al. b) do seu número 1 e dos números 2 e 3, não se mostra ofensivo nem do princípio constitucional do acesso à justiça nem do princípio da igualdade, uma vez que o acesso à justiça não é posto em causa (nem se vislumbra como o poderia ser) nem a regra básica de igualdade, traduzida numa exigência de tratamento igual do que é igual e diferente do que é diferente, se mostra violada.
É verdade que o art. 508 do CPC, nomeadamente a al. b) do seu número 1 e dos números 2 e 3 não confere, como se referiu, um poder discricionário, mas isso apenas significa que o juiz há-de convidar a aperfeiçoar a peça apresentada se entender que existem razões que o justifiquem (as quais deverão ser estritamente formais, ou de natureza secundária, ligadas à apresentação ou formulação do articulado).
Significa isto que as enfermidades reveladas não devem ser de natureza substantiva de forma a condenar ao fracasso a petição, pois nesse caso, significaria a prática de um acto processual inútil, que o próprio legislador proíbe, artigo 137 do CPC.
Por isso, não tendo sido adoptada a interpretação que a Recorrente acusa de inconstitucional não faz sentido ver na falta de convite ao aperfeiçoamento a interpretação susceptível de violar os princípios constitucionais da igualdade e do direito de acesso à justiça.
Do mesmo modo que carece de sentido ver nessa falta de convite ao aperfeiçoamento a violação de qualquer preceito legal, nomeadamente a prática de qualquer nulidade.
Aliás, o próprio recorrente não aduz uma única razão em abono das inconstitucionalidades suscitadas.
Deste modo, é manifesto que se impõe a improcedência desta questão, uma vez que não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade.

C) Resta decidir a última questão: Mesmo com a factualidade alegada a absolvição não poderia ser do pedido devendo ser da instância?
Também neste ponto não assiste razão à Recorrente.
Ao contrário do que pretende a Recorrente a sentença recorrida conheceu do mérito da causa, pois não conheceu de nenhuma excepção dilatória – que daria lugar à absolvição da instância, artigo 493 n.º 2 do CPC – nem conheceu de nenhuma excepção peremptória.
Na sentença recorrida entendeu-se que tendo o sinistro ocorrido em 08.07.2000 e tendo o contrato de seguro invocado nos autos tido inicio em 31.07.2000, não podia a prestação efectuada pela Autora/Recorrente ter tido como causa esse mesmo contrato de seguro.
A sentença entendeu que com aqueles factos não podiam as rés ser responsabilizadas e por isso as absolveu do pedido.
Não se vislumbra, nem a Recorrente indica, porque razão se impunha uma absolvição da instância e não do pedido.
É certo que na sentença recorrida também se faz apelo a uma outra razão para a improcedência da pretensão da Recorrente, ou seja afirma-se que não se encontram preenchidos os requisitos da sub-rogação legal por ausência de expressa declaração de vontade nesse sentido.
Mas também este motivo (e neste ponto igualmente assiste razão à decisão recorrida pois a sub-rogação proveniente da vontade do credor está subordinada ao requisito de que a declaração de vontade de sub-rogar seja expressa, artigo 589 do CC), ou seja de que não se verificam os requisitos legais da sub-rogação, impunham a absolvição do pedido e não da instância.
De todo o modo atenta a falta de contrato de seguro vigente na data do sinistro sempre se impunha a absolvição das rés do pedido e não da instância.
Em suma, impõe-se a improcedência desta questão e consequentemente do recurso.

IV - Decisão

Por tudo o que se deixou exposto e nos termos dos preceitos citados, acorda-se em negar provimento ao recurso de apelação e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Porto, 28 de Fevereiro de 2005
José António Sousa Lameira
José Rafael dos Santos Arranja
Jorge Manuel Vilaça Nunes