Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0754986
Nº Convencional: JTRP00040727
Relator: PINTO FERREIRA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO
PASSIVO
Nº do Documento: RP200711050754986
Data do Acordão: 11/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 317 - FLS 112.
Área Temática: .
Sumário: Pese embora o processo de insolvência ter sido declarado findo por insuficiência da massa falida e com decisão transitada, não torna impossível ou inútil o prosseguimento do processo para avaliação dos pressupostos do pedido de exoneração do passivo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

Na acta de assembleia de credores e apreciação de relatório relativo ao insolvente B………. profere-se despacho em que se declara encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente e quanto ao pedido formulado pelo insolvente, na oposição ao pedido de insolvência, de exoneração do passivo restante, indefere-se este liminarmente.
Inconformado com a decisão de indeferimento liminar relativo ao pedido de exoneração do passivo restante, interpõe o insolvente recurso.
Apreciando-o, o Tribunal da Relação revogou o despacho recorrido e ordenou a sua substituição por outro que, depois de analisado o disposto no art. 238º do C.I.R.E., ordene o prosseguimento dos autos se outra causa a tal não obstar.
No cumprimento de tal despacho e atendendo que ocorre outra causa que a tal obste, profere-se decisão em que, considerando ter já transitado em julgado o despacho exarado na acta de Assembleia de Apreciação do Relatório quanto à declaração de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente e que tal constitui circunstância superveniente impeditiva do prosseguimento do incidente de exoneração de passivo restante, julga o mesmo extinto nos termos dos artigos 287º do CPC, aplicável ex vi do art. 17º do C.I.R.E, sem prejuízo da tramitação até final do incidente limitado de qualificação de insolvência.
Novamente insatisfeito com tal despacho, recorre o insolvente.
Recebido o recurso, apresenta alegações.
Colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento do recurso.

II - Fundamentos do recurso

O âmbito dos recursos é limitado pelo teor das conclusões - artigos 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do CPC -
Dada a sua função, justifica-se a sua transcrição que, no caso concreto, foram:

1. - O presente recurso vem interposto da decisão de fls. 754, que na perspectiva do insolvente faz uma errada aplicação do direito aos factos, daí o presente recurso.
2. Na assembleia de credores que teve lugar no dia 22.12.2006 proferiu-se um despacho que: a) indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante; b) declarou encerrado o processo de insolvência; e c) determinou o prosseguimento do incidente da qualificação da insolvência com carácter limitado.
3. O insolvente recorreu desse despacho para o Tribunal da Relação do Porto, com sucesso.
4. Com efeito, por Acórdão de 15/03/2007, proferido no Proc.1007/07-3, da 3ª Secção, o Tribunal da Relação do Porto deu provimento ao dito recurso decidindo: «Acorda-se, em vista do exposto, nesta Relação, em conceder provimento ao recurso de agravo interposto e revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que, depois de analisado o disposto no art. 238°, ordene o prosseguimento dos autos se outra causa a tal não obstar.»
5. Ora, se tal despacho foi revogado, obviamente não se mantém a decisão de encerramento do processo nele contida.
6. Na verdade, o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante e o encerramento do processo integram um único despacho, não foram decididos em despachos diferentes.
7. O insolvente nunca restringiu o recurso do despacho de 22/12/2007 apenas à parte em que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante - recorreu de todo o despacho, com referência ao seu conteúdo.
8. O dito despacho subiu à Relação do Porto, juntamente com o requerimento de interposição do recurso e a decisão que o admitiu — art. 742°, n°3, CPC — e... foi revogado!
9. Não foi revogado apenas na parte em que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante — foi revogado tout court.
10. Foi revogado na parte em que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante mas também no mais ali decidido, designadamente quanto ao encerramento do processo e quanto ao prosseguimento do incidente limitado da qualificação da insolvência.
11. A Mma. Juiz a quo não tinha como deixar de respeitar essa decisão emanada do Tribunal Superior e proferir o despacho do art. 239° do CIRE, a menos que se verificasse no caso vertente alguma das circunstâncias elencadas no art. 2380 do mesmo Código, o que não sucede.
12. São essas e só essas as causas que, segundo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto a que supra se fez referência, poderiam obstar a que a Ma. Juiz a quo proferisse o despacho a que se refere o art. 2390 do CIRE.
13º. Não obviamente o encerramento do processo, já que o despacho que o determinava foi revogado pelo Acórdão em apreço.
14. Não se verificando qualquer circunstância impeditiva do prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante, este não podia ter sido pura e simplesmente “extinto”.
15. Conclui-se assim que a decisão de f 754 não poderá manter-se por violar o anterior Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que integra os presentes autos e aplicar ao caso vertente, sem fundamento para tal, o art. 287° do CPC.
16. Impondo-se pois a prolação do despacho a que se refere o art. 239° do CIRE, tal como determinou o Tribunal da Relação do Porto.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por uma outra que revogue a decisão de fls. 754 e determine a prolação do despacho inicial a que se reporta o art. 239º do C.I.R.E..
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III - Os Factos e o Direito

O problema que se coloca para discussão e será necessariamente objecto de decisão, consiste em se saber se transitada em julgado o despacho em que declara encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente, impossibilitado fica o prosseguimento do processo para análise e averiguação do pedido, que anteriormente havia sido formulado, na oposição ao pedido de declaração de insolvência, de exoneração do passivo restante, ou seja, se será esta circunstância facto superveniente impeditivo do prosseguimento de tal incidente, nos termos do art. 287º do CPC, ex vi do art. 17º do C.I.R.E.
O tribunal a quo considera que sim e suporta o seu despacho na decisão do Tribunal da Relação quando afirma que «o despacho recorrido deve ser substituído por outro que, depois de analisado o disposto no art. 238º ordene o prosseguimento dos autos se outra causa a tal não obstar»
E foi esta segunda parte da decisão, isto é, em que prevê a ocorrência de outra causa - decisão de encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente, devidamente transitada - que o tribunal encontrou como obstativa ao prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente.

Vejamos da razoabilidade da decisão

Deixamos desde já claro que da análise que fazemos de todo o processado, se não pode retirar as conclusões V a X formuladas pelo agravante, com todo o respeito que nos mereça opinião contrária e que vão no sentido de considerar que a decisão proferido no acórdão abrange tanto a declaração de encerramento do processo como do indeferimento liminar, integrando um único despacho.
E desde logo porque no recurso que foi interposto a fls. 713 do despacho proferido a fls. 709 e no qual se encerrou o processo por insuficiência da massa insolvente e do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, ressalta claramente, até mesmo pelos seus dizeres, que este se limita à parte que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Em segundo lugar, na conclusão 1º de tal recurso (fls. 732) novamente insiste na limitação que faz de tal recurso e como referente ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Em terceiro lugar, no pedido final que formula em tal recurso insiste que seja proferido despacho a que se refere o art. 239º do C.I.R.E..
Por fim, no Acórdão que sobre tal recurso incidiu, resulta também com clareza nítida que a apreciação e decisão incidiu apenas e só sobre a bondade ou não de tal indeferimento liminar quanto ao pedido de exoneração do passivo restante.
Por isso que diremos, com a devida vénia, que o recorrente restringiu sempre o seu recurso ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante e não com o sentido abrangente que lhe pretende atribuir, ou seja, que engloba este particular e o do encerramento do processo.
Isto é, não podemos aceitar a conclusão em que afirma que o insolvente nunca restringiu o recurso do despacho de 22/12/2007 apenas à parte em que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante - recorreu de todo o despacho, com referência ao seu conteúdo.

Porém e apreciando agora a questão fulcral objecto do recurso e que consistiu no não conhecimento do instituto de exoneração do passivo restante por causa impeditiva superveniente e para uma melhor e mais correcta análise do problema aqui colocado, convirá lançar uma visão global sobre este novo instituto falimentar, nomeadamente descobrir e averiguar a finalidade da sua criação, os seus objectivos, bem como os meios necessários para a sua concessão, conjugando-os com os requisitos expostos e exigidos pela nova lei da insolvência e recuperação de empresas.
Assim, como já anteriormente analisamos no Acórdão proferido em 9 de Janeiro de 2006 e inserido em CJ, Ano XXXI; Tomo, I, pág. 160, onde se colocava uma outra situação factual incidente sobre este mesmo instituto, diremos que da faculdade concedida pelo art. 235º do C.I.R.E. ao insolvente resulta que sendo devedor uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Do Preâmbulo do DL n.º 53/2004 de 18 de Março (n.º 45), retira-se que se está na presença do “princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a possibilidade de os devedores singulares se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, denominado como de fresh start, concedendo-lhe a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo ou nos 5 anos posteriores ao encerramento deste, restando-lhe uma nova oportunidade de vida.
Sobressai então que tal faculdade consiste num benefício concedido aos insolventes, constituindo pois uma medida de protecção do devedor, que se pode traduzir num perdão tanto de poucas como de elevadas quantias e montantes, exonerando-os sempre dos seus débitos e que, por parte dos credores, se traduz numa perda correspondente.
O passivo restante pode constituir mesmo assim somas avultadas.
Mas, para se ter acesso a tal benefício e ser deferido o pedido inicial, a lei impõe certos requisitos e procedimentos, fixados nos artigos 236º, 237º e 238º.
Desde logo, a concessão efectiva da exoneração pressupõe a não existência, para um indeferimento liminar, da verificação das condições do n.º 1 do art. 238º.
Por outro lado, nunca se pode deixar de ter presente que o processo de insolvência tem, no seu todo, como objectivo precípuo o de obter a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores – Preâmbulo do DL n.º 53/2004 - e que o presente benefício se reflecte apenas na esfera patrimonial do devedor.
Como explica ainda este Preâmbulo, o insolvente assume a obrigação, entre outras, de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores e findo esse período de cessão, profere-se despacho em que se exonera ou não o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
Significa isto que este procedimento impõe dois momentos distintos, como sejam um despacho inicial - art. 238º - e um despacho de exoneração - art. 237º -.
Menezes Leitão, C.I.R.E, anotado, 3ª ed. 2006, pág. 220, ao manifestar-se sobre este princípio geral, explica que consiste na possibilidade concedida aos devedores a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, visando conceder ao devedor um fresh start, permitindo-lhe recomeçar de novo a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior.
Ora, da análise de todos os motivos que se impõem ao tribunal para averiguação e para deferir ou indeferir liminarmente o pedido, isto é, para o dito despacho inicial do art. 238º e 239º n.º 1, resulta que a função do Juiz será a de verificar, mesmo com produção de prova, se necessário, se o insolvente merece ou não que lhe seja dada uma nova oportunidade, ainda que apenas com concretização a prazo de 5 anos, submetendo-o a um período experimental, denominado “período de cessão” – n.º 2 do art. 239º -, findo o qual poderá terminar em sucesso ou não do mesmo pedido.
Por outro lado, considera Assunção Cristas, Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Ed. Especial, pág. 264, que para ser proferido despacho inicial é necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, apertando-a, com ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta.
Também Carvalho Fernandes e João Labareda, em C.I.R.E, Anotado, vol. II, pág. 190, acentua que as alíneas do art. 238º n.º 1, embora pela negativa, enumeram os requisitos a que deve sujeitar-se a verificação das condições de exoneração e inclui a al. d) dentro do quadro daquelas que respeitam a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram.
Ora, na presença destes princípios e ensinamentos atrás expostos, estaremos mais aptos a analisar agora o caso posto em apreço.
Como resulta da decisão agravada, o tribunal indeferiu o pedido do insolvente de exoneração do passivo restante, ou melhor, considerou existir facto impeditivo do conhecimento de tal pedido e como tal julgou-o extinto, com fundamento nos artigos 287º do CPC e 17º do C.I.R.E. e com base no facto de se ter declarado encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa falida.
Acontece que o pedido formulado pelo insolvente ocorreu logo na sua oposição à insolvência.
E declara expressamente o art. 39º n.º 8 do C.I.R.E. que toda a legislação deste normativo, que incide sobre a insuficiência da massa falida, se não aplica caso o devedor, sendo pessoa singular, tenha requerido anteriormente à sentença de declaração de insolvência a exoneração do passivo restante.
Daqui podemos concluir que os casos de indeferimento estão taxativamente fixados no art. 238º e a circunstância de ter ocorrido encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente não é obstáculo a que seja analisado o pedido de exoneração do passivo restante.
Convirá, então e para análise completa da realidade aqui colocada de atender ao facto de no processo de insolvência vir fixado um poder inquisitório do juiz no artigo 11º, permitindo-lhe fundar a decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes, tudo em conformidade com o art. 265º do CPC.
E pese embora a decisão do art. 238º se tratar de uma decisão provisória, sendo a definitiva aquela que ocorre passados que sejam os 5 anos, convirá não esquecer que será sempre de mérito, aferindo-se do preenchimento dos requisitos e pressupostos e assente na convicção formada sobre a vantagem ou não em permitir ao devedor esta faculdade, bem como saber da vontade a capacidade no cumprimento das exigências legais, conjugados sempre com o dever de honestidade e boa-fé, requisitos estes de ordem substantiva, daí resultando e justificando a importância dada no art. 238º em se conhecer se o devedor:
- com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas situações económicas com vista à obtenção de crédito ou subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza.
- o devedor tiver já beneficiado de exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início da insolvência.
- saber da existência de elementos que indiciem com toda a probabilidade a culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
- a sua condenação por crimes previstos nos artigos 227º a 229º do C. Penal.
- violação dos deveres de informação, apresentação e colaboração no decurso do processo de insolvência.
Mas esta apreciação não é discricionária, obrigando, como se deixou dito já, a uma produção de prova e a um juízo de mérito, que consistirá na aferição do preenchimento dos requisitos substantivos que se destinam a perceber se o devedor merece uma nova oportunidade que lhe seja dada e que consiste em se submeter a um período probatório que pode, a final, resultar num desfecho que lhe seja favorável - Assunção Cristas, obra citada, pág. 169 -.
É que, para além do mais, não são permitidas execuções sobre bens do devedor durante o “período de cessão” – art. 242º - e a sua concessão importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedido – art. 245º -
Para Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 3º ed., 2006, pág. 237 e segts., aliás já acima citado, considera que a exoneração do passivo restante surge como subsidiário ao plano de insolvência e tem como contrapartida a cessão do rendimento disponível do devedor, nos termos do art. 239º.
Este mesmo autor, a fls. 222 também considera que estranho o uso do termo de indeferimento liminar uma vez que considera que se terá de fazer prova desses factos, como resulta do n.º 2 do art. 238º.
Finalmente, diremos ainda e em reforço desta tese, que os arts. 237º e 238º do C.I.R.E contém uma enumeração taxativa do indeferimento liminar do pedido de exoneração e nele não consta como motivo a circunstância de ocorrer o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente. E nem seria justificável que assim fosse, sob pena de se retirar pela janela aquilo que se concedia pela porta.
Mais, o próprio art. 237º al. c) pressupõe, para a concessão efectiva da exoneração do passivo restante, que não tenha sido aprovado e homologado um plano de insolvência. Se existir bens do insolvente, haverá um plano de insolvência.
E não convirá esquecer ainda que o art. 3º n.º 1 do C.I.R.E. pressupõe que, para se declarar a insolvência, ocorra uma impossibilidade de cumprimento, que se deve aferir em função da incapacidade ou impotência financeira ou patrimonial do devedor para liquidar a obrigação vencida, decorrendo daqui então uma impossibilidade de incumprimento objectiva - Nuno Pinheiro Torres, Revista Direito e Justiça, vol. XIX, Tomo II, 2005, pág. 165 e segts. -
Todos estes argumentos se destinam a concluir que, pese embora o processo de insolvência ter sido declarado findo por insuficiência da massa falida e com decisão transitada, não torna impossível ou inútil o prosseguimento do processo para averiguação dos pressupostos do art. 238º do C.I.R.E.
Acresce ainda que na Acta da assembleia de Credores e apreciação do Relatório foi ordenado, por sugestão da Sr.ª Administradora da Insolvência o encerramento do processo com base na insuficiência da massa insolvente - art. 232º do C.I.R.E.
Esta declaração tem os seus custos definidos no art. 233º e aí se dispõe (al. a) que embora cessem todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recupera o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios.
E quanto aos credores dispõe (al. c) que poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do art. 242º (sublinhado nosso).
Ora, este n.º 1 do art. 242º do C.I.R.E está precisamente inserido na problemática respeitante à exoneração do passivo restante, ou seja, que não são permitidas execuções sobre os bens do devedor destinados à satisfação dos créditos sobre a insolvência, durante o período da cessão. (sublinhado nosso).
Há aqui como que uma autonomia patrimonial dos rendimentos de devedor durante este período de cessão - Menezes Leitão, obra citada, pág. 226.
Da conjugação sistemática e da interpretação destes normativos resulta então, salvo melhor entendimento, que o encerramento do processo de insolvência decretado na assembleia de credores e de apreciação do relatório, tem os seus efeitos definidos no art. 233º n.º 1 e 2, mas dentro destes não está abrangido e nem tem reflexo imediato o pedido de exoneração do passivo restante.
A lei - artigos 233º - não o inclui expressamente como um efeito da declaração de encerramento do processo e retira-se, por outro lado e antes (233º al. c), que o deixou de pé, para prosseguir.
Reforça-se este entendimento com o facto de o fim da exoneração do passivo restante não ser antes a satisfação dos credores da insolvência - trata-se de uma medida específica da insolvência de pessoas singulares -, mas sim conceder uma segunda oportunidade ao insolvente, caso ocorram as circunstâncias do art. 238º, para o liberar do passivo da insolvência que não seja pago no processo de insolvência.
Se a finalidade de tal pedido de exoneração fosse a liquidação das dívidas da insolvência durante aquele período, então é que ocorreria inutilidade superveniente da lide.
Assim e em conclusão, formulamos um outro entendimento sobre a problemática objecto de recurso e, ressalvando sempre melhor opinião, consideramos que será de revogar o despacho proferido, devendo o tribunal cumprir o que lhe havia sido fixado no acórdão anterior, ou seja, analisar o disposto no art. 238º do C.I.R.E., pois o facto de se ter declarado encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente, mesmo que transitado tal despacho, não é motivo de extinguir o processo e incidente de exoneração do passivo restante - art. 287º do CPC ex vi do art. 17º do C.I.R.E. - e deixar-se, deste modo, de apreciar, com despacho inicial, o pedido formulado pelo insolvente de exoneração do passivo restante feito ainda em sede de oposição à insolvência.
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V - Decisão

Nos termos e pelas razões expostas, acorda-se sem e dar provimento ao recurso e revogar o despacho proferido que deverá ser substituído por outro onde aprecie, de mérito, das condições do art. 238º do C.I.R.E..
Sem custas.
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Porto, 5 de Novembro de 2007
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome