Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1978/11.4TBVCD-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
INSOLVÊNCIA DA SUBSCRITORA
AVAL
Nº do Documento: RP201403131978/11.4TBVCD-B.P1
Data do Acordão: 03/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A livrança não padece de nulidade por dela constar como data de emissão uma data posterior à da declaração de insolvência da subscritora, dado estar assente que a mesma foi subscrita antes de ser declarada a sua insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1978/11.4TBVCD-B,
Relator - Leonel Serôdio (329)
Adjuntos - Amaral Ferreira
- Ana Paula Lobo

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B… deduziu oposição à execução nº 1978/11.4TBVCD-B, que corre termos nos Juízos de Execução do Porto em que é exequente o C…, S.A. e tem por título executivo uma livrança no montante de 25.537,69 € avalizada pelo oponente.
Sustentou a nulidade do aval, por a livrança entregue em branco ter sido preenchida em data posterior à insolvência da sociedade subscritora da livrança e locatária no contrato subjacente de aluguer de longa duração de um automóvel celebrado com o exequente. Arguiu ainda o preenchimento abusivo da livrança e estar o Exequente a agir em abuso de direito, nomeadamente pelo atraso na resolução do contrato e o pedido de restituição do veículo e estar a incluir na obrigação exequenda a totalidade das rendas ou prestações vencidas e vincendas.
O Exequente contestou, sustentando que reclamou os seus créditos no processo de insolvência, que respeitavam apenas aos valores em dívida à data por rendas vencidas e não pagas e que posteriormente perante a não resposta do administrador de insolvência execução do contrato ou recusar o seu cumprimento e na sequência do não pagamento de novas rendas, resolveu o contrato, tendo o veículo sido restituído na sequência de uma providência cautelar. Alega ainda que a livrança foi preenchida em conformidade com o pacto de preenchimento.
Termina pedindo a improcedência da oposição.

Findos os articulados, foi proferido saneador sentença a julgar a oposição à execução improcedente e a ordenar o prosseguimento da execução.

O Oponente apelou e terminou a sua alegação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
A.- A matéria de facto considerada provada na 1.ª instância deve ser rectificada quanto à alínea D) da sentença recorrida e complementada na alínea H).
B.- Ademais deverá ser modificada, para que dela passe a constar escrito e provado as datas de emissão e de vencimento da livrança dada à execução e quem nela consta como subscritora, bem como a data da declaração da insolvência da sociedade D…, S.A.
C.- Por outro lado, não está provada e tem de ser eliminada a alínea I).
D.- No domínio das relações imediatas e tratando-se de uma livrança em branco, é livremente oponível pela subscritora e pelo avalista ao portador da letra a inobservância do pacto de preenchimento.
E.- No caso concreto, o avalista recorrente interveio no pacto de preenchimento e o título não entrou em circulação, razão pela qual este pode opor ao portador, seu inicial tomador e beneficiário, a excepção do preenchimento abusivo e os outros meios de defesa, ficando a seu cargo o ónus da prova.
F.- A livrança mostra-se preenchida, quer quanto à data de emissão (2010-03-17), quer quanto à data de vencimento (2010-03-27), muito depois da declaração da insolvência (2008-11-04) da sociedade subscritora.
G.- Estas datas de emissão e vencimento são contra o consentimento ou sequer conhecimento do avalista, foram apostas ao completo arrepio do pacto de preenchimento anteriormente celebrado, e contra a sua vontade, pois este jamais avalizaria uma sociedade insolvente.
H.- É requisito essencial da livrança a indicação da data em que é passada.
I.- Na data da emissão, a sociedade subscritora estava insolvente, o que é conducente à ineficácia do acto e determina a nulidade do escrito, que não pode produzir efeitos como livrança.
J.- Sendo a livrança nula por vício de forma, a obrigação do avalista não se mantém e o problema da nulidade do aval nem chega a pôr-se.
L.- É ostensivo e manifesto que a matéria factual alegada na oposição não é irrelevante, nem inútil.
M.- Os autos habilitam a uma decisão de mérito de sinal contrário àquela que foi proferida pelo Tribunal de 1.ª instância e deles decorre desde já também o preenchimento abusivo e o abuso de direito.
N.- A assim não se entender, os autos devem prosseguir os seus trâmites, para serem conhecidas, apreciadas e decididas todas as questões suscitadas.
O.- Mostram-se violadas, entre outras, as disposições legais dos arts. 75.º n.º 6, 76.º, 32.º § 2.º e 17.º da L.U.L.L., arts. 220.º, 280.º e 342.º do Cód. Civil e art. 81.º n.ºs 1 e 6 do CIRE.
A final pede que se revogue a sentença recorrida.

O Apelado não apresentou contra alegações.

Factos dado como provados na 1ª instância:

A. O opoente manuscreveu a sua assinatura após a menção dou o meu aval ao subscritor no verso da livrança exequenda.
B. Em 3 de Julho de 2006, através de escritura pública, foi celebrado um contrato de sociedade nos termos e com o conteúdo constante de fls. 24 a 34.
C. O opoente faz parte do conselho de administração da sociedade E…, S.A..
D. O opoente faz parte do conselho de administração da sociedade em liquidação D…, S.A..
E. Por carta registada com aviso de recepção datada de 19 de Janeiro de 2010, nos termos e com o conteúdo constante a fls. 51, o exequente notificou o opoente de que resolveu o contrato subjacente à emissão da livrança.
F. O exequente e o opoente celebraram uma convenção de preenchimento de livrança em branco, nos termos e com o conteúdo constante a fls. 70.
G. O exequente reclamou créditos no processo de insolvência nº 694/08.9TYVNG, nos termos constantes de fls. 71 a 77, em que é insolvente D…, S.A.
H. O exequente, através de carta registada com aviso de recepção, nos termos e com o conteúdo constante a fls. 78, notificou a sociedade D…, S.A, de que resolveu o contrato de ALD nº …...
I. O exequente e o opoente, na qualidade de avalista da livrança dada em garantia, celebraram um contrato de aluguer de longa duração, nos termos e com o conteúdo constante de fls. 83 a 84.

Questões a decidir

Alterações aos factos julgados provados por documento;
Saber se o aval é nulo, por a livrança ter sido preenchida depois de ter sido declarada a insolvência da subscritora;
Se há factos controvertidos com interesse para a excepção do preenchimento abusivo e/ou do arguido abuso do direito do Exequente.

I – Alterações à matéria de facto julgada provada

O Apelante pretende se introduzam alterações à factualidade dada como provada nas al.s d) e h) e que se acrescente factos documentalmente provados.

Quanto à al. D), consta o que o opoente faz parte do Conselho de Administração da sociedade em liquidação D…, S.A.

Contudo como alega a certidão da Conservatória do Registo Comercial junta à oposição como documento n.º 3, fls 44 dos autos, prova que renunciou ao cargo de vogal no Conselho de Administração daquela sociedade em 31 de Março de 2008.
Deve, pois, alterar-se a redacção da citada al. D) passando a constar em substituição de “faz”, acima assinalado a negrito, por “fez

Relativamente à al, H) pretende que se consigne que a carta que foi enviada pelo exequente está datada de 19.01.2010.
Sendo um facto provado pelo documento para que remete a referida alínea, junto a fls. 78 dos autos e podendo ser relevante a data em que foi enviada a carta deve a mesma ser aditada à al. h), que passa a ser a proposta pelo Apelante:

O exequente, através de carta registada com aviso de recepção datada de 19 de Janeiro de 2010, nos termos e com o conteúdo constante a fls. 78, notificou a sociedade D…, S.A, de que resolveu o contrato de ALD n.º …...

Pede ainda quanto aos factos julgados provados na 1ª instância que se elimine ou a al. I), onde consta: “O exequente e o opoente, na qualidade de avalista da livrança dada em garantia, celebraram um contrato de aluguer de longa duração, nos termos e com o conteúdo constante de fls. 83 a 84”.

Como está redigida a transcrita alínea a única interpretação possível é que o Oponente também outorgou o contrato de aluguer de longa duração titulado pelo documento constante de fls. 83 a 84
Contudo desse documento apenas figuram como outorgantes o Exequente C…, S.A. como locador e a D…, SA, como locatário, dele constando que como garantia foi subscrita pela empresa uma livrança em branco avalizada por terceiros, sendo um deles o Oponente B…, que não assinou o contrato, tendo apenas avalizado a livrança e assinado o pacto de preenchimento referido em F).
Assim, a al. I), não é eliminada mas passa a ter a seguinte redacção:
No documento de fls. 83 a 84, dos autos, datado de 15. 02.2008, consta que entre o exequente C…, S.A. como locador e a C…, SA, como locatário, foi celebrado o contrato de aluguer de longa duração, com as condições nele exaradas, constando que como garantia foi subscrita pela empresa uma livrança em branco, com aval de terceiros, sendo um deles, o Oponente B….

O Apelante pretende ainda que se julgue provado o seguinte:
- Que no rosto da livrança exequenda consta escrito como data de emissão - 2010.03.17 e como data de vencimento - 2010.03.27 e que tem como subscritora D…, S.A. (documento junto ao requerimento executivo);
- Que a sociedade D…, S.A, foi declarada insolvente por sentença de 04 de Novembro de 2008, transitada em julgado em 15 de Dezembro de 2008.

Estes factos estão documentalmente provados, o primeiro consta da livrança exequenda (cf. cópia certificada a fls. 148 destes autos), o segundo da certidão comercial que constitui o documento n.º 3, junta com a oposição, concretamente a fls. 43 dos autos e têm interesse para a decisão.

II - Saber se o aval é nulo, por a livrança ter sido preenchida depois de ter sido declarada a insolvência da subscritora.

A sentença recorrida é omissa quanto a esta questão suscitada pelo Oponente nos artigos 32º a 36º do requerimento de oposição, o que configura a nulidade por omissão de pronúncia nos termos do art. 668 n.º 1 al. d) do CPC (actual art. 615º n.º 1 al. d) do NCPC).
Contudo, dado que a factualidade necessária para conhecer esta questão está documentalmente provada, nos termos do art. 665 n.º 1 do actual CPC (anterior art. 715º n.º 1) esta Relação vai conhece-la.

A posição da Apelante parte do pressuposto que tendo a livrança exequenda como data da emissão - 2010.03.17 - e como data do seu vencimento - 2010.03.27 - e tendo a sociedade subscritora sido declarada em estado de insolvência em 2008.11.04 e, por isso, a partir dessa data estar absolutamente privada, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição, com inibição e indisponibilidade para a prática de quaisquer actos em relação à massa insolvente, a data de emissão aposta na livrança é nula, tudo se passando como se a livrança não estivesse preenchida quanto à referida data, o que invalida o título cambiário, que não pode produzir efeitos como livrança, nos termos aplicáveis do disposto nos arts. 75.º n.º 6 e 76.º da L.U.L.L.

Não está em causa que a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si e seus administradores dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador e também que os actos praticados pelo insolvente depois da declaração de insolvência são ineficazes (art. 81º n.º 1 e 6 do CIRE), contudo como é indiscutível quem preencheu a livrança apondo-lhe a referida data de 17.03.2010, posterior à declaração de insolvência, não foram os administradores da insolvente, mas o Exequente.

Assim, apenas com base numa construção imaginativa mas artificial se pode sustentar que a aposição da data de emissão na livrança foi um acto ineficaz, pois o pressuposto fáctico em que assenta, acto praticado pela sociedade subscritora depois da declaração de insolvência não se verifica.

A questão reside pois em saber se o Apelado, portador da livrança em branco, subscrita pelo insolvente podia preenchê-la depois de estar ter sido declarado insolvente.

É pacifico que a lei admite e reconhece a figura da livrança em branco, a qual, preenchida antes da apresentação a pagamento, passa a produzir todos os efeitos próprios da livrança – arts. 10º e 77º LULL.

Nenhum obstáculo existe pois à existência de livrança contendo uma ou mais assinaturas nela apostas, quando essas assinaturas exprimam a intenção dos respectivos signatários de se obrigarem cambiariamente.

A questão está em saber quando nasce a obrigação cambiária nas letras e livranças em branco, ou seja, se essa obrigação nasce logo que o título é emitido em branco e entregue ao credor ou apenas só no momento do seu preenchimento.
A questão é controversa na doutrina como desde logo refere Ferrer Correia, em Lições de Direito Comercial, vol III, (Letra de Câmbio) a fls. 134 e segs., onde indica como defensor da posição que a obrigação cambiária só nasce com o preenchimento da letra ou livrança, Pinto Coelho.
Como se constata da referida obra a fls. 135 Ferrer Correia parece propender para a primeira posição, ainda que com uma nuance, ao referir: “o que existe antes do preenchimento para o emitente do título não é a obrigação cambiária, é apenas o estar ele sujeito ao exercício do direito (potestativo) do portador de preencher a letra, sendo o preenchimento que marca o nascimento da obrigação cambiária.”
Abel Delgado, LULL Anotado, 6ª edição, pág. 76 defende que “os aceitantes ao aporem a sua assinatura na letra, constituem-se em uma obrigação cambiária, desde o seu início, mas que como tal não pode ser efectivada senão depois do preenchimento.
Quer isto dizer que a obrigação cambiária surge logo no momento da emissão, podendo a letra circular por meio de endosso, mesmo ainda por preencher desde que tenha já indicado o nome do tomador.
Neste sentido, cita Vaz Serra, no BMJ n.º 61º, pág. 264, que escreveu: “ a letra em branco não é, enquanto lhe faltar um elemento essencial, uma letra com plena eficácia, mas já é um título de crédito endossável, com fundamento no qual o crédito e a obrigação não surgem somente com o preenchimento, embora seja necessário para fazer valer os direitos cambiários.
Também António Pereira de Almeida, em Direito Comercial, 3º Vol, edição da AAFDL, 1998, defende a mesma posição ao referir a fls. 152: “Consideramos, pois, que a letra em branco é um verdadeiro título de crédito e, por conseguinte, circula com autonomia mesmo antes de estar completada.”

Contudo, apesar da relevância da doutrina, a posição do STJ é determinante e como refere o recente acórdão proferido em 15.05.2013, no processo n.º 3057/11.5TBGDM-AP1.SI, onde se escreve: «(…)este mesmo Supremo Tribunal de Justiça vem asseverando relativamente à natureza jurídica dos créditos cambiários e das correspondentes obrigações, concluindo que quando se trate de letras ou de livranças sacadas ou subscritas em branco ou em branco avalizadas, o direito de crédito de natureza cartular se constitui simultaneamente com tais actos. (…) (cfr. os Acs. do STJ, de 29-11-11, e de 2-5-12, www.dgsi.pt).
Em tais circunstâncias, a constituição da relação cambiária (maxime a que integra o avalista) ocorre em paralelo com a outorga do pacto de preenchimento que define os termos em que o título poderá ser preenchido no que concerne aos elementos em falta, tais como a data de vencimento ou o montante, correspondendo este à quantia que, de acordo com o relacionamento contratual subjacente, se encontre vencido e seja exigível na data em que o título for preenchido.
(…)
Por isso, justifica-se que se separe o momento da constituição da obrigação cambiária traduzida em letras ou em livranças sacadas ou subscritas em branco daquele em que se efectiva o direito de crédito que naturalmente depende do preenchimento do título.»
No mesmo sentido, os acórdãos do STJ de 13.12. 2007, no proc. n.º 07A4034, com o sumário: “O crédito resultante da assinatura de uma livrança constitui-se na data da respectiva emissão e não na do vencimento desta” e de 22.06.2004, no proc. n.º 04A2056, onde se decidiu: “ I- Uma livrança incorpora uma promessa de pagamento de uma determinada quantia pelo seu subscritor a favor do tomador ou do seu detentor legítimo no vencimento; titula o direito nele incorporado (o chamado direito cartular) cuja origem se encontra numa relação anterior ao seu próprio surgimento (a relação subjacente). II- O crédito constitui-se, pelo menos, no acto de subscrição da livrança, o que significa que a obrigação cambiária nasce e fica constituída e que a responsabilidade do subscritor pelo respectivo pagamento fica estabelecida com e pelo acto de subscrição da livrança.”

De referir como escreve Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Títulos de Crédito, Vol III, pág. 117, que mesmo que se entenda que a letra só surge, como título cambiário, com o preenchimento (artigo 2.º) considera-se que retroaje ao momento do saque ou à data que da letra conste como aquela em que foi passada (artigo 1.º/7). Porém, se essa mesma data foi deixada em branco pelo detentor, é a data que vier a ser preenchida que deve considerar-se a data da letra.
Temos, pois, seguindo o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência que na letra ou livrança em branco a obrigação cambiária é logo constituída com a emissão, tanto a do subscritor como a do avalista, mas essa obrigação só pode ser efectivada depois do preenchimento.
Sendo o titulo preenchido em conformidade com o pacto de preenchimento é indiferente que a data nele aposta como sendo o da emissão coincida ou não com a data da entrega do título.
Como explica Ferrer Correia, obra citada, pág.134, a questão de quando deve estar preenchida a letra em branco «é resolvida pelo artigo 10.º (LULL); por ele ficamos a saber que, para tal efeito, o momento decisivo não é o da emissão da letra, mas o do seu vencimento. Pode, deste modo, uma letra ser emitida em branco; é óbvio, porém, que a obrigação que incorpora só poderá efectivar-se desde que no momento do vencimento o título se encontra preenchido. Se o preenchimento se não fizer antes do vencimento, então o escrito não produzirá efeitos como letra, de harmonia com os artigos 1.º e 2.º” mutatis mutandis tratando-se de livrança.»
Aplicando estes ensinamentos ao caso presente temos que a obrigação cambiária da subscritora, declarada em estado de insolvência nasce quando assina a livrança e celebra o acordo de preenchimento em 05 de Março de 2008 e, por isso, não está em causa que quando em 04 de Novembro de 2008 foi declarada insolvente essa obrigação estava constituída, não constituindo qualquer nulidade formal a aposição no titulo em causa uma data de emissão posterior à declaração de insolvência.
É, pois, de concluir que a livrança não padece de nulidade por dela constar como data de emissão uma data posterior à da declaração de insolvência da subscritora, dado não estar em causa que a mesma foi assinada antes dessa declaração.

III -
As questões de saber se a livrança foi ou não preenchida em conformidade com o pacto de preenchimento ou se o Exequente ao preenchê-la nos termos em que o fez está a agir em abuso de direito são distintas da arguida nulidade.

Importa, antes do mais, decidir a questão suscitada pelo Apelante de saber se há factos controvertidos com interesse para a excepção do preenchimento abusivo ou do abuso do direito por parte do Exequente.

Seguindo a posição maioritária da jurisprudência, entendemos que o avalista da livrança que tenha subscrito também o pacto de preenchimento está nas relações imediatas com o portador, desde que aquela não tenha sido transmitida a terceiro.
Assim, desde que estejam no domínio dessa relação imediata, ou seja avalista – portador, subscritores do título, é consentido ao avalista discutir a validade do pacto de preenchimento.
Neste sentido, por exemplo, o acórdão do STJ proferido no processo n.º 08B3905 de 23-04-2009, onde se escreve: “cabe lembrar que, como este Supremo Tribunal tem admitido, sendo a execução instaurada pelo beneficiário da livrança (que lhe foi entregue em branco) e tendo o avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento (o que permite situá-lo ainda no domínio das relações imediatas), tal como o subscritor, é-lhe possível opor ao beneficiário a excepção material de preenchimento abusivo do título (assim, por exemplo, os acórdãos de 19 de Junho de 2007, 4 de Março de 2008, 17 de Abril de 2008, de 9 de Setembro de 2008, procs. nºs 07A1811, 00A727, 07A4251, 08A1999, disponíveis em www.dgsi.pte ainda acórdão do STJ proferido em 13.04.2011, no processo n.º 2093/04.2TBSTB-A L1.S1, onde se escreve: “Tendo o avalista intervindo no pacto de preenchimento pode ele opor ao portador as excepções que competiam ao avalizado se o título cambiário estiver no domínio das relações imediatas – cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14.12.2006, in www.dgsi.pt.” e ainda o. Ac. desta Relação, de 16.11.2000, CJ, tomo V, pág. 191.
Assim, tendo o Apelante/avalista subscrito o pacto de preenchimento pode arguir o incumprimento desse acordo por parte do Banco.
Por outro lado, apesar de perfilhamos o entendimento, praticamente unânime na jurisprudência, que o ónus da prova do preenchimento abusivo cabe, nos termos do artigo 342º n.º 2 do C.C., ao obrigado cambiário, por ser facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito[1] também entendemos que esse ónus de difícil realização em particular quando como no caso presente está em causa a obrigação de um avalista que não foi parte no contrato subjacente à emissão da livrança, não se compadece com excessivas exigências formais quanto à factulalidade que integra o alegado preenchimento abusivo e muito menos quando é arguida a excepção do abuso de direito de contornos menos rígidos.
De resto, quando a alegação do preenchimento abusivo padeça de insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto o juiz deve convidar o Oponente a aperfeiçoar a petição, dever este que passou a ser vinculativo no actual CPC, não podendo julgar-se improcedente no saneador o pedido ou a excepção com fundamento em deficiente alegação, sem antes convidar ao aperfeiçoamento.
Por outro lado, no decurso da audiência podem ser aditados e provados novos factos nos termos do artigo 264º n.º 2 e 3 do CPC e com maior amplitude no actual art. 5º n.º 2 do NCPC, que possibilita ao tribunal mesmo oficiosamente considerar factos complementares ou concretizadores (cf. al. b) do n.º 2 do citado art.).
Por isso o conhecimento no saneador do pedido ou excepção quando haja factos controvertidos ainda que de cariz conclusivo, só deve ocorrer quando a questão tenha uma solução pacífica na jurisprudência e seja manifesto que os factos controvertidos são totalmente irrelevantes.
Ora, da factualidade alegada pelo Apelante, para além dos que estão documentalmente provados, como o que consta do pacto de preenchimento e do contrato subjacente, da reclamação apresentada pelo Exequente no processo de insolvência que importa transcrever no essencial, há factos controvertidos com interesse para a decisão da questão do preenchimento abusivo e do invocado abuso de direito.
Note-se que o Tribunal Recorrido conheceu do mérito, sem sequer se pronunciar sobre o pedido de notificação do Banco, para juntar aos autos, os documentos referidos a fls. 18 e 19 e se relativamente aos três primeiros já foram juntos pelo Banco com a contestação e também identificou o procedimento cautelar onde obteve a entrega do veículo (art. 9º da contestação), mas nada referiu sobre qual a concreta data em que o mesmo lhe foi entregue, nem indicou de forma discriminada os valores que serviram de base à livrança.
Por outro lado, designadamente o alegado nos arts. 22.º e 23.º da oposição (valor comercial e de mercado do veículo automóvel à data da declaração da insolvência) e art. 25º parte final - continua por esclarecer quando foi entregue o veículo ao Exequente -facto relevante para aferir da razão para apenas ter resolvido o contrato subjacente em 19.01.2010, mais de um ano após a declaração de insolvência da subscritora, podem ter interesse para a decisão. Também quanto à alegação conclusiva dos art.s 37ºa 39º, como se referiu, no decurso da própria audiência podem resultar factos complementares que esclareçam o montante aposto na livrança, que não coincide sequer com o valor indicado na carta enviada ao Oponente a fls. 51 dos autos.
Impõe-se, pois, a prossecução regular da oposição à execução.

DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente quanto à arguida nulidade do aval por a data da emissão constante da livrança ser posterior à data da insolvência da subscritora e procedente quanto à questão de haver factos controvertidos com interesse para a decisão das excepções do preenchimento abusivo e do abuso de direito e revoga-se o saneador/sentença, ordenando-se a prossecução regular da oposição à execução.

Custas deste recurso pelo Apelante na proporção de metade e a outra metade será suportada pelo vencido a final.

Porto, 13.03.2014
Leonel Serôdio
Amaral Ferreira
Ana Paula Lobo
_____________
[1] Cf. neste sentido, o citado acórdão do STJ proferido no processo n.º 08B3905 de 23-04-2009 e os nele referidos e dos publicados nas revistas, entre outros, Ac. do STJ de 28.6.96, BMJ n.º 457, 401, Ac. do STJ de 1.10.98, BMJ n.º 480, 482 e Ac. deste Tribunal de 14.06.94, CJ, tomo III, 222.