Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0330757
Nº Convencional: JTRP00034673
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP200302200330757
Data do Acordão: 02/20/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J PAREDES
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Área Temática: .
Legislação Nacional: CPC95 ART46 C.
Jurisprudência Nacional: AC STJ DE 2002/01/29 IN CJSTJ T1 ANOX PAG64.
Sumário: Um cheque prescrito constitui título executivo se o exequente no requerimento executivo invocar o negócio jurídico causal da dívida e desde que este negócio não seja formal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Em 02.04.12, no Tribunal Judicial da Comarca de ........., “F.............., L.da” instaurou contra Fernanda .............. e Carlos ............. execução para pagamento de quantia certa presente acção com processo sumário, apresentando como titulo executivo um cheque.

Os executados deduziram os presentes embargos de executado

alegando
em resumo que
- o cheque dado à execução foi apresentado a pagamento em 01.07.04;
- encontra-se, assim, prescrito;
- não produza efeitos como titulo executivo;
- os juros demora não são os peticionados

contestando
e também em resumo
a exequente/embargada alegou que
- efectivamente o cheque encontra-se prescrito;
- mas funciona como titulo executivo quirógrafo, uma vez que foi alegada a causa da divida.

Em 02,07.15 foi proferido despacho saneador, onde se julgaram os embargos improcedentes quanto à invocada excepção da prescrição e procedentes quanto aos juros de mora.

Inconformados, os embargantes deduziram a presente apelação, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

Não houve contra alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
- a única questão proposta para resolução consiste em saber o cheque dado como titulo executivo tem ou não força executiva.

Os factos

Podem dar-se como assentes os seguintes factos:
- à execução de que estes embargos são um apenso foi dado como titulo executivo um cheque;
- este foi apresentado a pagamento em 01.07.04;
- no requerimento executivo, a exequente alegou que o cheque teve como origem o pagamento de vários materiais relativos ao comércio de placas de politeterano e fibras sintéticas, com destino ao fabrico de espuma e colchões.

Os factos, o direito e o recurso

Vejamos, então, como resolver a questão.

Na sentença recorrida entendeu-se que o direito de acção da portadora do cheque dado à execução - a embargada – se encontrava prescrito, pelo que a execução não podia prosseguir enquanto execução cambiária, mas já o podia enquanto execução não cambiária, ou seja, utilizando-se o cheque como simples documento quirógrafo de crédito.

Os apelantes entendem, ao contrario, que prescrita a acção cambiária, nunca o cheque poderia ser utilizado como titulo executivo.

Cremos que não têm razão e se decidiu bem.

Vejamos porquê.

Face aos elementos acima mencionados e ao disposto no art. 52.º da Lei Uniforme sobre Cheques (LUCH) não há dúvidas que o direito do portador do cheque a utiliza-lo como titulo executivo de uma execução cambiária se encontra prescrito.

Ou seja, o cheque dado à execução não pode ser utilizado como titulo executivo cambiário.


A questão que se coloca é a de saber se, apesar de não poder ser utilizado em tal execução, o cheque em causa pode ser considerado como título executivo, agora enquanto mero quirógrafo ou simples documento particular (não cambiário), à luz do art. 46°, al. c) do Código de Processo Civil .

Nos termos desta última disposição legal, com a redacção dada pela reforma processual de 95/96, podem servir de base à execução "os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do art. 805° (...)".

O documento particular é, pois, título executivo, quer quando formaliza a constituição de uma obrigação, quer quando o devedor nele reconhece uma dívida preexistente (Lebre de Freitas “in” A Acção Executiva à Luz do Código Revisto, 2.ª ed., pág. 51).

O cheque constitui uma ordem de pagamento, como desde logo resulta da noção do titulo e dos requisitos enunciados no art. 1.º da LUCH.

O devedor, ao assinar o mesmo, está a dar uma ordem de pagamento e, ao mesmo tempo, a reconhecer a existência de uma divida preexistente para com a pessoa a favor de quem o emite - neste sentido, o acórdão da RP, de 07/05/98 “in” CJ 1998 III 181 e o acórdão da RL, de 18/12/97 “in” CJ 1997 V 129.

Mas, independentemente de tal consideração, de facto, custa aceitar e não aceitamos que diferença possa existir entre um documento, simples papel exarado com a assinatura de um quidem, em que diz "devo ou comprometo-me apagar, ou assuma a responsabilidade de pagar a quantia de Euros a fulano com data e assinatura" e o que consta do simples documento, protótipo de cheque, que também em si mesmo é agora não um titulo cambiário qua tale, mas um simples papel ou documento, em que igualmente figuram as menções "Pague por este cheque - simples designação e não o título cambiaria - a quantia de Euros ...... com o respectivo local e data da declaração à ordem de fulano ou seja aquele a quem se reconhece o direito e consubstancia a obrigação de pagar com a assinatura respectiva".

Quem apõe a sua assinatura num documento, com a determinação de uma quantia em dinheiro e o entrega a alguém que o aceita, sabe que tal emissão do documento nessas circunstâncias corresponde a uma responsabilidade que está a contrair de pagamento, de uma ordem de pagamento, por isso mesmo lhe apõe a sua assinatura de forma a individualizar-se em tal obrigação, porque no mesmo, já está a maior parte das vezes impressa tal ordem e só por isso não a exara ou escreve, o demais que é invocado em contrário, salvo o devido respeito, não logra percutir qualquer efeito no nosso convencimento.

Assim, os cheques, são hoje amplamente reconhecidos como título executivo, tendo desaparecido as condicionantes da LUCH que lhe restringiam tal força, bastando que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.

A aceitação do cheque como titulo executivo não cambiário está de acordo com o disposto na al. c) do art. 46º do CPC e foi determinado na tentativa de se conseguir a diminuição das acções declarativas, com tudo o que isso implica de celeridade processual e redução dos respectivos custos, conforma de refere no preâmbulo do DL 329-A/95, de 12.12, que aprovou as alterações ao CPC, uma das quais foi a nova redacção da al. c) do art. 46º.

O que deve indagar-se é tão só se o cheque em causa nos autos preenche ou não os requisitos do citado artigo 46°, alínea c).

Entende Lebre de Freitas “in” ob. cit. pág. 49, que o exequente que se limita a dar à execução o título cambiário prescrito, se deste não consta a causa da obrigação, então só será título executivo se a dita causa vier a ser alegada na petição da execução.

E isto apenas no caso de essa causa ou obrigação não emergir de um negócio jurídico formal.

Pois neste caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderia constituir titulo executivo – cfr. arts. 221.º, n.º1 e 223.º n.º1, ambos do Código Civil.

Já o mesmo não acontece se a obrigação não emerge de um negócio jurídico formal, pois neste caso "a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458.º, n.º1, do Código Civil) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado (...)”.

Trata-se, no fundo, da consideração já anteriormente assumida na construção doutrinal de Castro Mendes “in” BFDL XVIII p. 119 relativamente à causa de pedir que tal como ocorre no processo declarativo é constituída pelo facto de onde emerge o direito, servindo como mero documento comprovativo desse facto jurídico o documento, contrariamente a Lopes Cardoso “in” Manual da Acção Executiva, p.p. 23 e 29 que considera ser a causa de pedir o próprio título dado à execução.

Concordamos com o entendimento do prof. Lebre de Freitas – no mesmo sentido, os acórdãos do STJ de 99.05.11 “in” CJ STJ 1999 II 88 e de 02.01.29 “in” CJ STJ I 64, da RL de 02.06.20 “in” CJ 2002 III 121 e de 97.12.18 “in” CJ 1997 V 129 e da RC de 98.12.03 “in” CJ 1998 V 33.

Com efeito e como se refere no citado acórdão do STJ de 02.01.29, a causa da obrigação exequenda deve ser invocada no requerimento inicial, como causa de pedir da acção executiva.

Ora, como a execução tem sempre por base um titulo executivo e este tem de acompanhar a petição inicial, bastará, em regra, quanto à causa de pedir, remeter para o titulo.

Mas, tratando-se de uma letra, livrança ou cheque prescritos e levantado-se a questão que ora nos ocupa, ou seja, se podem ser utilizados como documentos particulares com força executiva, a obrigação causal não consta necessariamente do titulo, face ao disposto no art. 1.º da citada LUCH.

Nestes casos, o exequente deverá alegar no requerimento executivo a causa da obrigação, condição necessária para que a mesma possa ser contestada pelo executado.

Se não fizer essa alegação, o requerimento inicial tem de ser considerado inepto, por falta de indicação da causa de pedir.

Vejamos o caso concreto em apreço.

Foi dado como titulo executivo à execução um cheque, alegando a exequente que o mesmo foi emitido para pagar mercadorias que forneceu.

Tratando-se de documento contendo assinatura não a rogo, o único requisito para a exequibilidade do cheque consistiria em dele constar a obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético de entrega de coisa móvel ou de prestação de facto - cfr. art. 46º. al. c) do CPC.

Ora, tendo em conta o que acima se disse acerca da autonomia do cheque em face da obrigação exequenda e sobre a presunção da existência desta até prova em contrário (art. 458º, nº1, do Código Civil) temos de o admitir como titulo executivo apesar de ter perdido o seu valor cambiário, uma vez que o negócio jurídico subjacente não reveste o carácter formal, sendo certo que a causa da obrigação foi invocada no requerimento inicial da execução.

De tudo o que ficou dito concluímos, pois, que nenhuma censura merece a sentença recorrida.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em julgar improcedente a presente apelação e assim, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

Porto, 20 de Fevereiro de 2003
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
José Viriato Rodrigues Bernardo
João Luís Marques Bernardo