Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0530820
Nº Convencional: JTRP00037890
Relator: GONÇALO SILVANO
Descritores: DIRECTIVA COMUNITÁRIA
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Nº do Documento: RP200504070530820
Data do Acordão: 04/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: Há lugar a responsabilidade pelos prejuízos causados a particulares por eventuais violações das Directivas comunitárias relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, decorrentes da possível desconformidade das normas nacionais que alegadamente as transpõem para o direito nacional e as normas relativas à responsabilidade civil objectiva por acidentes de viação, designadamente dos limites máximos de indemnização constantes do nº 1 do artigo 508º do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:


I- Relatório
B.........., C.......... e D.......... intentaram contra o ESTADO PORTUGUÊS, acção declarativa sob a forma de processo ordinário, pedindo seja condenado a pagar-lhes os danos que lhe causou na quantia de 29.100.000$00, ou seja, 145.150,18 €, a que acrescem os juros contados desde a citação da R. tudo perfazendo 201.258,79 €.

Alegaram em síntese que:
-são os únicos filhos de E.........., falecido a 20 de Janeiro de 1997, em consequência directa e necessária dos ferimentos que sofreu em acidente de viação, ocorrido nesse mesmo
-com fundamento no acidente que vitimou o infeliz E.........., os AA., então acompanhados de sua mãe, F.......... já falecida, intentaram, em 9 de Fevereiro de 1998, no Tribunal de Vila Nova de Famalicão, acção declarativa com processo sumário, contra a Companhia de Seguros X.........., na qual reclamaram o pagamento de uma indemnização no valor de 35.723.000$00 por entenderem ser esse o valor dos danos decorrentes da morte de seu pai e marido.
-tal Acção teve o n.º .../98 e correu termos pelo ...º Juízo Cível daquele Tribunal, e após julgamento foi proferida Sentença na qual na qual se concluiu que os danos sofridos pelos AA. e decorrentes do acidente que vitimou seu pai, ascenderam a 33.100.000$00.
-entendeu-se, porém nessa sentença que os AA. não conseguiram provar a culpa do condutor do veículo que atropelou o infeliz E.........., e decidiu-se condenar a R. Companhia de Seguros X.........., seguradora daquele veículo, com base no risco, e, com fundamento no disposto no art. 508.º, n.º 1, 1.ª parte, do Cód. Civil, na indemnização que foi reduzida a apenas 4.000.000$00.
-os autores não se conformaram com essa decisão e dela interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, centrando as suas alegações em dois fundamentos: por um lado, entendiam que havia matéria de facto que permitiria concluir pela culpa do condutor do veículo atropelante, e, por outro lado, mesmo que eventualmente se concluísse pela responsabilidade pelo risco, sempre a indemnização a atribuir aos aqui AA. não poderia ser fixada no valor arbitrado naquela Sentença, pois entendiam que tal limitação contraria o disposto na Segunda Directiva 84/5/CEE, do Conselho, relativa à aproximação das legislações dos Estados Membros respeitante ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização de obrigação de segurar esta responsabilidade, que além de entrar directamente na ordem jurídica interna, prevalece, e até substitui a norma de direito interno.

Mais invocaram os AA., nas suas alegações para o Tribunal da Relação do Porto, o disposto no nº 1, 2 e 5 do artº 1º dessa segunda Directiva; porém o Tribunal da Relação do Porto proferiu Acórdão no qual entendeu que a responsabilidade pelo risco está limitada aos montantes referidos no art. 508.º, n.º 1, do Cód. Civil, pois a citada Directiva não foi transposta para o direito interno português, pelo que, diz, a sua invocação se torna irrelevante, e manteve inalterada a decisão proferida em 1.ª Instância, que confirmou inteiramente.

Continuando inconformados com tal acórdão interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo nas suas alegações invocada a mesma argumentação que haviam apresentado para o Tribunal da Relação do Porto ,porque entendiam, e entendem ainda, os AA., que não deve haver lugar à limitação do montante de indemnização devida pela responsabilidade pelo risco, tal como ainda prescreve o art. 508.º, n.º 1, do Cód. Civil, pois a aludida Directiva Comunitária é directamente aplicável na nossa ordem jurídica, e isto, para além do Estado Português se ter obrigado, através do Tratado, inteiramente válido, a transpor para a nossa ordem jurídica, até 31 de Dezembro de 1995, a dita Directiva.
Contudo o Supremo Tribunal de Justiça, por decisão transitada no início de Outubro de 2002, confirmou o Acórdão recorrido, entendendo, em síntese, que enquanto não for transposta para o direito nacional, não tem aplicação tal Directiva.

Concluem os autores agora pela responsabilização do Estado Português por ser obrigado a transpor para o direito interno a referida Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, tendo assumido o compromisso de o fazer, na sua globalidade, até 31 de Dezembro de 1995.
Não o fazendo, e tendo todas as instâncias negado a aplicação de tal Directiva, que deveria ter sido transposta, e tendo aplicado as limitações estabelecidas pelo mencionado art. 508.º, n.º 1, atribuindo aos AA. uma indemnização de apenas 4.000.000$00, acrescida de juros que se venceram a contar da citação da R., entendem os autores ter direito a receber do Estado Português (por omissão legislativa comunitária) o valor dos danos efectivamente decorrentes do acidente que vitimou seu pai, na importância de 29.100.000$00 (33.100.000$00 - 4.000.000$00), a que acresceriam os juros entretanto vencidos desde a citação e até efectivo pagamento e isto, não obstante já terem a apresentado queixa junto da Comissão das Comunidades Europeias, para que, também a Comissão intente uma acção por incumprimento contra o Estado Português.


Em contestação o Estado Português impugnou os termos da acção, dizendo, em síntese, que os prejuízos alegados pelos autores resultam tão só da interpretação e aplicação do direito pelas instâncias judiciais, pois que a Segunda Directiva fazia já parte da ordem jurídica interna.

Foi apresentada réplica e reclamação quanto à sua admissão, mas tendo sido proferido despacho saneador tabelar, omitiu-se apreciação sobre esta questão que não mereceu impugnação das as partes sobre este aspecto.

No despacho saneador conheceu-se do mérito da acção e julgou-se a mesma totalmente improcedente por não provada, absolvendo-se o Estado Português do pedido.

Inconformados com o decidido os autores recorreram, tendo concluído as suas alegações, pela forma seguinte:

I-A douta decisão não fez correcta aplicação do Direito, ao decidir julgar a acção totalmente improcedente, absolvendo-se o réu Estado Português, ora recorrido, do pedido formulado pelos A.A., ora recorrentes;
II-A douta sentença ao quo deu como assentes os factos vertidos nos seus artigos 1º a 18º, os quais os ora recorrentes também aceitam, fazendo prova quanto aos pressupostos de responsabilidade do Estado Português em sede de omissão legislativa, conforme peticionado pelos recorrentes;
III- Nos termos do disposto no artº 22º da Constituição da República Portuguesa, o Estado e demais entidades públicas são civilmente responsáveis em forma solidária com os titulares dos órgãos, funcionários ou agentes, por acção ou omissão praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem;
IV- Esta norma consagra expressamente uma responsabilidade do Estado por actos ou omissões legislativas ilícitas, isto é actos ou omissões legislativos contrários ao direito;
V-O nº 2 do artº 1º da Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (segunda Directiva), incidindo sobre o alcance da cobertura garantida pelo seguro obrigatório, fixa para o mesmo limites mínimos com o objectivo de reduzir as discrepâncias que subsistam entre as legislações dos Estados membros quanto ao alcance da obrigação de cobertura daquele seguro;
VI-O artigo 6º do DL nº 522/85 de 31 de Dezembro estabelece no seu nº 1 o montante do capital mínimo obrigatoriamente seguro;
VII- Contudo, nos termos do nº 1 do artº 508º do CC, o montante máximo de indemnização fixada é inferior ao montante mínimo do capital obrigatoriamente seguro nos casos de responsabilidade civil automóvel;
VIII- Com efeito, desde a publicação da citada Directiva tem-se entendido que os montantes mínimos de capital seguro fixados pelo nº 2 do artigo 1º da mesma, têm de ser respeitados independentemente da espécie de responsabilidade civil em jogo;
IX- Ora sucede que, não tendo o Estado Português alterado a redacção do artigo 508º nº 1 do CC, como impunha a capaz e completa transposição da Directiva, levou ao surgimento de divergências interpretativas na doutrina e na jurisprudência nacionais: para uns o disposto no artigo nº 1 do CC foi tacitamente revogado com a publicação do DL nº 522/85 e os limites máximos de indemnização a fixar seriam os limites mínimos de capital seguro; para outros, o disposto no mesmo artigo do CC continuaria em vigor, situando-se o limite máximo de indemnização no dobro da alçada da relação. Discussão só possível por a lei de forma clara não estabelecer a revogação ou alteração da redacção do artº 508º nº 1 do CC;
X-O Estado Português é sempre responsável pelas divergências de entendimentos jurisprudenciais e doutrinários, relativos ao desentendimento quanto à correcta transposição da Directiva, não sendo exigível aos recorrentes a assunção dos prejuízos que tal omissão legislativa lhes aportou;
XI- Incumbia ao Estado Português, no cumprimento da citada Directiva e aquando da redacção/publicação do DL nº 522/85 de 31 de Dezembro, como verdadeiro e competente técnico do direito, além de ter fixado o novo valor do capital seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, alterar a redacção do disposto no artº 508º nº 1 do CC, em conformidade;
XII- Incumbe ao legislador nacional na sua actividade legislar na medida e segundo a perspectiva de todo o sistema jurídico (perspectiva sistémica), por forma a legislar de forma completa e concreta;
XIII- Existe por parte do legislador nacional, do Estado Português, um dever de elevada concretização legislativa, por forma a obviar discrepâncias totalmente contraditórias, lesivas dos direitos dos particulares;
XIV-O teor integral e a ratio legis consagrada na segunda Directiva 84/5/CEE, não foram transpostos para a ordem jurídica portuguesa através do DL nº 522/85 de 31 de Dezembro;
XIV-Não se pode perspectivar a omissão legislativa em sentido estrito, deve entender-se que existe uma verdadeira omissão legislativa (material, ou parcial ou em sentido amplo) quando o legislador nacional, aquando da publicação do DL nº 522/85 de 31 de Dezembro, não “olhou” para o sistema jurídico português numa perspectiva sistémica e por esse motivo, não revogou ou alterou a redacção (como deveria ter feito de imediato) do disposto no artº 508º nº 1 do CC, alterando os limites de responsabilidade pelo risco em conformidade com o ditado pela citada Directiva europeia bem como pelo Acórdão do TJCE de 14 de Setembro de 2002 do Processo C-348/98, publicado no Boletim de Actividades do mesmo Tribunal;
XVI- Existe no caso em apreço uma omissão legislativa grosseira do Estado Português: após a publicação pelo legislador nacional do DL nº 522/85 de 13.12,nasceram grandes divergências na doutrina e na jurisprudência, relativas à vigência do disposto no artº 508º nº 1 do CC, divergências essas que deveriam ter acordado o legislador para a necessidade urgente de legislar sobre essa matéria, sanando definitivamente toda a problemática objecto de discussão, cumprindo-se na íntegra o ditado pela Segunda Directiva;
XVII- Encontram-se provados nos autos todos os pressupostos da responsabilidade civil do Estado Português, em sede de omissão legislativa, nos termos do disposto no artigo 22º da Constituição da República Portuguesa e 483º, do Código Civil.
XVIII- Devido à omissão legislativa verificada, os recorrentes viram violados os seguintes direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados:
A - O Princípio da Igualdade, consagrado no artigo 13º, da Constituição da República Portuguesa) em relação a outros AA que, nos seus processos, beneficiaram da interpretação da doutrina e da jurisprudência, no sentido da revogação tácita do artigo 508º, nº 1, do Código Civil - ou seja, em casos de responsabilização exclusiva fundada em responsabilidade objectiva, não lhe foram impostos os limites do Artº 508º nº 1 do Cód. Civil;
B - O Princípio da Confiança, da Segurança jurídica e da determinabilidade, que consagra a exigência de densidade e suficiência na regulação legal, pois, um acto legislativo que não contenha uma disciplina suficientemente concreta (densa e determinada), não oferece uma medida jurídica capaz;
C - O Princípio da garantia da via judiciária (consagrado no artigo 20º, da Constituição da República Portuguesa), uma vez que do seu verdadeiro alcance retiramos uma imposição directamente dirigida ao legislador nacional, no sentido de tornar a defesa dos direitos operacional e sem lacunas;
D - O Princípio da divisão dos poderes: a separação dos órgãos de soberania continua a ter uma função de garantia de liberdade; o autor da lei continua a ser o legislador, podendo a forma como se interpretam as leis levar à usurpação de funções, transformando o juiz em legislador activo.
XIX- Se o legislador nacional tivesse alterado/revogado quando devia (isto é, em simultâneo ou logo após publicação do DL 522/85) o disposto no artigo 508, nº 1, do CC, os recorrentes teriam recebido, ao abrigo da citada Segunda Directiva, a quantia de 33.100.000$00 acrescida de juros, por esta se enquadrar dentro dos limites mínimos de capital seguro em caso de responsabilidade civil pelo risco da condução de veículo, na data da ocorrência dos danos (1997).
XX- O que os recorrentes efectivamente receberam foi a quantia de 4.000.000$00, acrescida de juros, uma vez que, por omissão legislativa do Estado Português, lhes foi aplicado o limite máximo de indemnização imposto pelo artigo 508.0, nº 1, do CC - dobro da alçada da relação, causando o Estado Português com a sua conduta legislativa omissiva um prejuízo aos recorrentes no valor de € 201.258,79, acrescidos dos juros que se vencerem até integral pagamento.
Houve contra-alegações, onde para além de se suscitarem questões prévias a apreciar em sede de mérito, se sustentou o decidido em sentença.

Corridos os vistos, cumpre decidir:

II- Fundamentos
a)-Com interesse para a decisão da causa consideraram-se assentes os seguintes factos.
1-Os A.A. são os únicos filhos de E.......... falecido a 20 de Janeiro de 1997, em consequência directa e necessária dos ferimentos que sofreu em acidente de viação, ocorrido nesse mesmo dia;
2-O E.......... era, à data do seu falecimento, casado com F.........., em únicas núpcias de ambos e sob o regime da comunhão geral de bens e não deixou testamento;
3-A F.........., mãe dos A.A. viria a falecer em 21 de Setembro de 1998 no estado de viúva do infeliz pai dos A.A. sem ter deixado testamento, sucedendo-lhe, como únicos herdeiros, os A.A., seus filhos;
4-Com fundamento no acidente que vitimou o infeliz E.......... os A.A. então acompanhados de sua mãe F.......... intentaram em 9 de Fevereiro de 1998 no Tribunal de Vila Nova de Famalicão, acção declarativa com processo sumário, contra a Companhia de Seguros X.........., na qual reclamaram o pagamento de uma indemnização no valor de 35.723.000$00, por entenderem ser esse o valor dos danos decorrentes da morte de seu pai e marido, como resulta da petição inicial que constitui o documento nº 3, junto aos autos com a petição inicial;
5-Tal acção teve o nº .../98, correu termos pelo ..º Juízo Cível daquele Tribunal, e depois de observados os tramites legais, acabou por se realizar o julgamento, tendo sido proferida sentença que constitui o documento nº 4, junto aos autos com a petição inicial.
6-Nessa sentença proferida em 1ª instância concluiu que os danos sofridos pelos A.A. decorrentes do acidente que vitimou seu pai, o infeliz E.......... ascenderam a 33.100.000$00. Porém,
7-Entendeu que os A.A. não conseguiram provar a culpa do condutor do veículo que atropelou o infeliz E.........., e decidiu condenar a Ré Companhia de Seguros X.......... seguradora daquele veículo, com base no risco, e, com fundamento no disposto no artº 508º nº 1, 1ª parte do CC, reduziu a indemnização a atribuir aos A.A. a apenas 4.000.000$00.
8-Não conformados com a descrita sentença interpuseram os A.A. recurso para o Tribunal da Relação do Porto, centrando as suas alegações em dois fundamentos: por um lado ,entendiam que havia matéria de facto que permitiria concluir pela culpa do condutor do veículo atropelante, e, por outro lado, mesmo que eventualmente se concluísse pela responsabilidade pelo risco, sempre a indemnização a atribuir aos aqui autores não poderia ser fixada no valor arbitrado naquela sentença, pois entendiam que tal limitação contraria o disposto na segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, relativa à aproximação das legislações dos Estados membros respeitante ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização de obrigação de segurar esta responsabilidade, que além de entrar directamente na ordem jurídica interna, prevalece, e até substitui a norma de direito interno;
9- Mais invocaram os AA., nas suas alegações para o Tribunal da Relação do Porto, o seguinte:
- “O art. 1.º, n.ºs 1 e 2, da Segunda Directiva, dispõe:
1 - O seguro referido no n.º 1, do art. 3.º, da Directiva 72/166 CEE, deve, obrigatoriamente, cobrir os danos materiais e os danos corporais.
2 - Sem prejuízo de montantes de garantia superiores eventualmente estabelecidos pelos Estados Membros, cada Estado Membro deve exigir que os montantes pelos quais este seguro é obrigatório, se situem, pelo menos, nos seguintes valores:
- 350.000 ECUs, relativamente aos danos corporais, quando haja apenas uma vítima, devendo tal montante ser multiplicado pelo número de vítimas, sempre que haja mais que uma vítima em consequência do mesmo sinistro;
- 100.000 ECUs por sinistro, relativamente aos danos materiais, seja qual for o número de vítimas”;
10-Alegaram ainda os AA. que: “Nos termos do n.º 5 da referida Directiva, com a redacção que lhe foi dada pelo Anexo I, Parte IX, F, que tem por epígrafe “Seguros”, do Acto relativo às condições de adesão do Reino de Espanha e República Portuguesa e às adaptações dos Tratados:
1 - Os Estados membros alterarão as suas disposições nacionais para darem cumprimento à presente Directiva o mais tardar até 31 de Dezembro de 1987, (...).
2 - As disposições alteradas nos termos acima referidos serão aplicadas, o mais tardar, até 31 de Dezembro de 1988.
3 - Por derrogação ao n.º 2:
a)-O Reino de Espanha, a República Helénica e a República Portuguesa dispõem do período até 31 de Dezembro de 1995 para aumentarem os montantes das garantias até aos montantes previstos no n.º 2 do art. 1.º
11-Contudo, e apesar das alegações produzidas pelos AA., o Tribunal da Relação do Porto proferiu Acórdão no qual entendeu que a responsabilidade pelo risco está limitada aos montantes referidos no art. 508.º, n.º 1, do Cód. Civil, pois a citada Directiva não foi transposta para o direito interno português, pelo que, diz, a sua invocação se torna irrelevante, e manteve inalterada a decisão proferida em 1.ª Instância, que confirmou inteiramente;
12-Inconformados, os AA., com o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, dele interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo nas suas alegações para aquela mais alta instância, produzido “grosso modo” as que haviam apresentado para o Tribunal da Relação do Porto;
13-Entendiam, e entendem ainda, os AA., que não deve haver lugar à limitação do montante de indemnização devida pela responsabilidade pelo risco, tal como ainda prescreve o art. 508.º, n.º 1, do Cód. Civil, pois a aludida Directiva Comunitária é directamente aplicável na nossa ordem jurídica, e isto,
14-Para além do Estado Português se ter obrigado, através do Tratado, inteiramente válido, a transpor para a nossa ordem jurídica, até 31 de Dezembro de 1995, a dita Directiva. Contudo,
15-O Supremo Tribunal de Justiça, por decisão transitada no início de Outubro de 2002, confirmou o Acórdão recorrido, entendendo, em síntese, que enquanto não for transposta para o direito nacional, não tem aplicação tal Directiva (doc. n.º 8). Ora,
16-Os A.A. apresentaram, junto da Comissão das Comunidades Europeias, queixa contra o Estado Português, para que, também a Comissão intente uma acção por incumprimento contra o Estado Português. Além disto,
17-Os AA. intentaram, em 28 do passado mês de Março, no Tribunal Administrativo de Círculo do Porto, uma acção declarativa com processo ordinário contra o Estado Português, na qual pediram a condenação deste no pagamento da quantia a que entendem ter direito, e que não receberam, por virtude da descrita conduta omissiva do Estado Português;
18-O Tribunal Administrativo de Círculo do Porto, por Douta Sentença proferida em Outubro passado, transitada em julgado há menos de trinta dias, declarou-se incompetente em razão da matéria, absolveu da instância o Estado Português, e entendeu serem competentes para dirimir este conflito os Tribunais Comuns. Daí a presente acção.

b)-O recurso de apelação.

É pelas conclusões que se determina o objecto do recurso (arts.684º, nº 3 e 690º, nº1 do CPC), salvo quanto às questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado.
Vejamos, pois, do seu mérito.

1-O recorrido Estado Português suscita uma questão prévia relacionada com a impossibilidade, que no seu entender existe, de poder conhecer-se de questões não decididas, pois houve por parte dos recorrentes alteração, em recurso, da causa de pedir.

Quanto a esta questão há que referir que o que se vai conhecer em sede recurso é a decisão proferida em saneador sentença na base do que foi peticionado.
Mas deve desde já salientar-se que ,com respeito por opinião contrária ,a essência da questão apresentada pelos recorrentes em sede de recurso é exactamente a mesma que foi enquadrada na petição inicial, a qual foi suficientemente concretizada em termos do direito violado por parte do Estado demandado.
Trata-se ao fim e ao cabo de saber se (à data em que foram proferidas as decisões subjacentes a esta acção) a Directiva 84/5/CEE se podia ou não considerar transposta em termos de (não podendo considerar-se transposta) responsabilizar-se o réu Estado pela não alteração do artº 508º nº 1 do CC:

Sendo esta a questão, na sentença ora em recurso adoptou-se o caminho de, acompanhando o decidido no acórdão de uniformização de jurisprudência nº3/2004, concluir que era já então possível (mesmo antes da alteração legislativa a que nos referiremos) aceitar como revogado o artº 508º ,nº 1 do CC.

Este entendimento da sentença recorrida (que defende tal como no acórdão uniformizador, que o DL nº 59/2004 de 19/3 veio dar razão àquele entendimento de estar revogado o artº 508º do CC) acaba por omitir a apreciação da questão essencial aqui em causa (saber se há ou não responsabilidade do Estado por não transposição da Directiva, tal como aceite nas decisões que apreciaram o pedido dos A.A. na acção inicial) tendo adoptado uma solução que, na prática, se traduz por uma critica às decisões proferidas, neste caso, em todas as instâncias, incluindo a do STJ, transitadas em julgado (proferidas antes do Acórdão uniformizador e da publicação do próprio DL nº 59/2004 de 19/3), pois que no final se concluiu pela inexistência do direito à indemnização do Estado pedida pelos autores, porque já então se devia considerar revogado o artº 508º do CC, por interpretação conforme.


Ora a questão que ora se coloca nesta acção em apreciação, não é essa, pois que não se pode agora reapreciar o que foi decidido com transito em julgado, já que foi patente que nessas decisões fundamentadamente não se considerou transposta a referida Directiva.
E não podendo nestas circunstâncias o acórdão uniformizador interpretativo ter efeitos sobre o caso julgado daquelas decisões onde ficou expresso que não se considerou transposta a directiva em causa, resta-nos apreciar questão da responsabilidade do Estado Português, tal como colocada, em termos de saber se existiu ou não violação do direito comunitário.

Em face do peticionado pelos autores, tendo em conta a causa de pedir apresentada fundamentada na não transposição completa da Segunda Directiva temos de reconhecer que a questão agora colocada se apresenta com uma pertinente configuração jurídica, não só porque entretanto sobre ela foi necessário proferir o citado acórdão de uniformização de jurisprudência e uma alteração legislativa (DL nº 59/2004 de 19/3, publicado no DR de 13.05.2004-I Série-A), que veio a lume poucos dias antes desse mesmo acórdão uniformizador - de 25.03.2004-, (sendo de realçar que no Acórdão Uniformizador não se considerou expressamente como interpretativo o DL nº 59/2004, embora nele existam seis votos de vencido de alguns Srs. Conselheiros nesse sentido e um no sentido de que comporta aspectos evidentemente inovadores).

Portanto a questão prévia colocada pelo recorrido não pode proceder, já que o recorrente não está a alterar em sede recurso a causa de pedir com que formulou o pedido contra o réu, aumentando sim a sua argumentação, com a junção de um novo parecer para defender a sua tese de que a Directiva não estava transposta ou melhor completamente transposta e daí partir para o pedido de responsabilização do Estado, onde nas respectivas conclusões da apelação estão suficientemente concretizadas as normas que invoca terem sido violadas.

2-Mas regressemos então agora aos termos da questão que nos é colocada para apreciar.

À data em que foi proferida a sentença em primeira instância (28-05-2001) que reduziu a 4.000.000$00 a atribuição da indemnização aos autores [Na sentença de 1ª instância transitada neste aspecto, declarou-se expressamente (fls. 34) que “não havia que fixar qualquer repartição de contribuição do risco dos intervenientes no acidente, visto que apenas o veículo é gerador de riscos próprios que justificam a aplicação do regime da responsabilidade objectiva”], por virtude da aplicação dos limites que o artº 508º,nº 1 do CC consignava, ocorriam largas divergências, quer na doutrina, quer na jurisprudência ,como de resto veio a dar conta o referido acórdão uniformizador de jurisprudência.
Em concreto, como ali é referido, discutia-se se depois da publicação da Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983 (relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação automóvel) e sobretudo após as alterações do art. 6º do DL nº 522/95, de 31 de Dezembro, advindas do DL nº 3/96, de 25 de Janeiro (e, mais tarde, do DL nº 301/2001, de 23 de Novembro), se ainda se devia considerar aplicável aos casos como o dos autores, o preceituado naquele art. 508º, nº 1.
Para uns, o art. 508º do CC permanecia em vigor e é, nos seus precisos termos, aplicável aos casos de responsabilidade objectiva, isto é, às situações em que, ocorrido um acidente de viação sem culpa do responsável, importa fixar o montante indemnizatório a atribuir ao lesado.
Em contrapartida, para outros, o art. 508º do CC era inaplicável por ter sido tacitamente revogado pelo DL nº 3/96, que alterou o art. 6º do DL nº 522/85”.

Nós próprios como relator e acompanhados dos mesmos ora adjuntos subscrevemos neste Tribunal da Relação do Porto em 14-02-2002, o acórdão nº 31/2002-3ª secção- (citado na nota 6 do Acórdão uniformizador em referência), onde se defendeu que o artº 508º do CC não se encontrava revogado.

Perante toda a controvérsia jurisprudencial instalada (de perto acompanhada pela doutrina nacional) [Vejam-se as várias referências doutrinais e jurisprudenciais que foram desenvolvida sobre esta matéria, sintetizadas no artigo de Adriano Garção Soares- Cadernos de Direito Privado- nº 3 - ano 2003, pág.24. e a conclusão final de que já então (2003) se esperava que o Estado Português reconhecesse que não cumpriu completamente a sua obrigação de transposição da Directiva 84/5//CEE de 30.12.1983, devendo revogar expressamente o nº 1 do artº 508º do CC e adequar os limites da responsabilidade pelo risco aí previstos aos dos valores mínimos fixados para o seguro obrigatório.] veio a ser fixada o acórdão uniformizador com o seguinte conteúdo:
"Sumário: O segmento do art. 508º, nº 1, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo art. 6º do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo DL nº 3/96, de 25 de Janeiro”.

Mas isso ocorreu em 25-03-2004 e este acidente dos autos é de 20 de Janeiro de 1997, tendo a sentença onde foi aplicada a indemnização do artº 508º do CC sido proferida em 1ª instância, em 28-05-2001, a qual veio a ser confirmada na Relação (21-01-2002) e no STJ em 19-09-2002.

Por isso importa analisar aqui a questão de saber se assiste razão aos recorrentes na forma como configuram esta acção.

3-Resulta do acórdão do STJ de 19-09-2002 que confirmou o Acórdão da Relação que por sua vez confirmara a sentença da 1ª instância, que a argumentação em que incidiu foi no sentido de não aplicação do efeito directo horizontal e de não aplicação do princípio da interpretação conforme [Sobre estes conceitos, que aqui não importa agora desenvolver pode consultar-se em pormenor, de toda essa evolução interpretativa sobre as directivas em múltiplos casos apreciados pelo TJCE, as obras de: Paula Quintas - Da Problemática do Efeito Directo nas Directivas Comunitárias - editora Dixit; Maria José Rangel de Mesquita - Efeitos dos Acórdãos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias proferidos no Âmbito de uma acção de Incumprimento; José Simões Patrício - Do Euro ao Código Civil Europeu - Aspectos da Convergência Legislativa e Cruz Vilaça - Cadernos de Justiça Administrativa, nº 30,pág. 3 a 19-CEJUR] ao direito comunitário invocado no caso, com referência à questão prejudicial colocada pelo Tribunal Judicial de Setúbal em processo que aí correu [Conferir sobre os princípios estruturantes do Direito Comunitário de criação jurisprudencial todas as decisões constantes da Colecção - Divulgação do Direito Comunitário, editada pelo Ministério da Justiça - gabinete de Direito Europeu - Ano 11, nº 32-ano 2000].
Por isso, declarou-se expressamente que enquanto a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30/12/83, não estivesse transposta para o direito nacional, não haveria que julgar revogado o artº 508º nº 1 do CC.

Alcançou-se, por conseguinte, a conclusão da não revogação do artº 508º e atribuiu-se aos autores apenas da indemnização dentro dos limites que ali se encontravam previstos.

Ora desde logo neste aspecto os recorrentes ao verem apreciado o seu direito com esta interpretação se viram privados da indemnização a que se julgam com direito e como tal, nessa perspectiva, tem de admitir-se que sofreram prejuízos, já que lhes foi reafirmado que a Directiva não se encontrava transposta para estes efeitos.
Assim sendo não é correcto afirmar-se, como se fez na sentença em recurso, que a única via era já então a da interpretação conforme, tal como se veio a concluir no acórdão uniformizador, cuja razão de ser foi contudo a de por termo às divergências existentes quanto à questão existentes no próprio Supremo Tribunal de Justiça.

Tem, assim, de admitir-se não só que a questão era discutível, resultando isso mesmo inequivocamente do referido acórdão uniformizador e quanto a nós da própria alteração legislativa que veio a ser introduzida ao artº 508º , nº 1 do CC pelo citado DL nº 59/2004 de 19/3.

Foi precisamente por existirem essas divergências que foi necessário proferir acórdão uniformizador interpretativo, não podendo contudo a sua doutrina ter qualquer influência no desfecho desta acção, já que se pede a responsabilização do Estado Português pela omissão de legislar claramente quanto ao alcance da Directiva relativamente à responsabilidade civil contemplada no artº 508, nº 1 em causa, num período em que não existia essa interpretação uniforme de jurisprudência, nem a alteração legislativa introduzida nesse mesmo artº 508º nº 1 do CC.

Como aos recorrentes foi dito em sentença transitada em julgado que não podiam obter a indemnização pedida com base na revogação tácita do artº 508º nº 1 do CC por força do direito comunitário inserido naquela Directiva não totalmente transposta, então só lhes resta pedir responsabilidades ao Estado por violação das suas obrigações nesse âmbito.

4-No acórdão que proferimos em idêntica situação em 14.03.2002 (acima identificado) já então ao concluir pela não revogação do artº 508º, apontámos o caminho de resolução destas situações, ou seja, aí referimos que “Afigura-se-nos que a situação existente é de omissão legislativa na perspectiva de que o Estado Português perante esta jurisprudência do TJCE terá de complementar a legislação sobre seguros, por forma a contemplar os mesmos limites de seguro obrigatório, também no caso de responsabilidade pelo risco. Poder-se-á dizer, em suma, que as directivas em causa ainda não se encontram completamente transpostas para o direito interno português, introduzindo-lhe este tipo de responsabilidade cujos montantes de indemnização vêm sendo resolvidos por recurso ao disposto no artº 508 do CC”.
Concluímos aí então que a situação não é a de considerar revogada a norma consagrada no CC no artº 508º que contempla o regime de responsabilidade pelo risco alargado às actividades nele definidas, mas sim de o Estado Português complementar legislação sobre seguros, onde também na interpretação agora defendida pelo TJCE, seja previsto no direito nacional cobertura por um seguro que respeite os montantes mínimos de garantia fixados no artº 1º nº 2 da 2ª Directiva Comunitária (84/5/CEE).

Noutra perspectiva foi também entendido por Adriano Garção Soares na Revista do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados - ano 2001, nº 19, pág.60/61 e Marta Chantal da Cunha Machado Ribeiro - Da Responsabilidade do Estado por Violação do Direito Comunitário, pág. 154 e ss, que no caso de o Estado Português não dar cumprimento a alteração do seu direito interno, sujeita-se a que contra ele seja proposta acção por incumprimento, nos termos dos artigos 226º a 229º do Tratado de Amesterdão.

5-O Estado Português pelo citado DL nº 59/2004 de 19/3, veio, quanto a nós, (entendimento que não foi seguido na sentença recorrida) reconhecer implicitamente essa violação do direito comunitário, ao não fazer uma transposição completa e clara da segunda Directiva, sendo certo que devia conhecer, desde há anos, que essa controvérsia jurisprudencial estava instalada sobre a questão.

Pode concluir-se, assim, que as decisões que antecederam esta acção e que apreciaram o direito dos recorrentes, impondo-lhes o limite de indemnização do artº 508º ,nº 1 do CC então em vigor, tiveram como pressuposto que a Directiva em causa não foi completamente transposta até ao surgimento do citado DL nº 59/2004 de 19/3.

Na verdade, como já se referiu, na apreciação do direito dos autores através das várias instâncias foi dito expressamente que o artº 6º do DL 522/85 e o nº 1 do artº 508 não importavam interpretação conforme capaz de levar a entender como revogado tacitamente este último, por se inserirem em planos diferentes.

Como tal impunha-se ao Estado que atempadamente tivesse transposto a referida segunda directiva para não originar as divergentes interpretações e tornar claro que o artº 508 tinha limites mínimos para a responsabilidade pelo risco, acautelando também dessa forma os responsáveis pelo pagamento de indemnizações no ajustamento dos respectivos contratos, o que não aconteceria se de um momento para o outro ficassem responsabilizados em termos quase idênticos quer se tratasse de caso de responsabilidade com culpa ou simplesmente pelo risco.

6-Em que termos pode então ser aferida a responsabilidade do Estado pelos prejuízos causados a particulares pelo facto de violações das obrigações que lhe incumbem por força do direito comunitário?

A jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre esta matéria encontra-se profusamente ilustrada no Parecer que foi junto aos autos subscrito por José Luís Cruz Vilaça e Luís Miguel Romão, donde se extrai que há lugar a responsabilidade pelos prejuízos causados a particulares por eventuais violações das Directivas comunitárias relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, decorrentes da possível desconformidade das normas nacionais que alegadamente as transpõem para o direito nacional e as normas relativas à responsabilidade civil objectiva por acidentes de viação, designadamente dos limites máximos de indemnização constantes do nº 1 do artigo 508º do Código Civil.

Sobre esta questão da responsabilidade de um Estados pelos prejuízos causados a particulares por danos decorrentes da violação das obrigações que lhe incumbem por força do direito comunitário imputáveis a uma autoridade pública nacional, o Tribunal de Justiça recorrendo aos princípios fundamentais do sistema jurídico comunitário, pronunciou-se efectivamente diversas vezes, no sentido da existência dessa responsabilidade (cfr. entre outros o Acórdão de 5 de Março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame, C-46/93 e C-48/93, Colectânea, nºs 25, 27 , 31, 32, 33 e 34; British Telecomunications, C-392/93, Colectânea, nº 38).

Mas foi no acórdão do Tribunal de Justiça das CE de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o., C-6/90 e C-9/90, Colectânea, nº 35 que essa questão ficou clara já que aí se afirmou que “a responsabilidade pelos prejuízos causados aos particulares por violações do direito comunitário imputáveis a uma autoridade pública nacional constitui um princípio inerente ao sistema do Tratado CEE” .

Assim, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, incumbe a cada um dos Estados-membros assegurar que os particulares obtenham a reparação do prejuízo que lhes causou a violação do direito comunitário, qualquer que seja a autoridade pública que tenha cometido essa violação e qualquer que seja aquela a quem incumbe, em princípio, o ónus dessa reparação.

Marta Chantal, na sua obra Da Responsabilidade do Estado pela Violação do Direito Comunitário, designadamente a pág.81 e 154 e ss (conferir também as conclusões a fls. 183 e ss), refere expressamente que foi com o Acórdão Francovich que se fez a consagração do princípio geral de responsabilização do Estado pela violação do direito comunitário, visto tratar-se de uma questão que, até então, era alvo de grande controvérsia.

Também José Luíz Caramelo Gomes- O Juiz Nacional e o Direito Comunitário, pág.105 e ss se refere a esta mesma matéria, comentando todos os restantes casos de jurisprudência acima referidos Brasserie du pécheur e Factortame (páginas 112 a 115), e British Telecomunícations (pág.116 e ss), concluindo no sentido da mesma orientação da aplicação do princípio da responsabilidade do Estado pelos danos causados aos particulares pelas violações do Direito comunitário que lhe são imputáveis é inerente ao sistema do Tratado.

E quanto aos prejuízos dos particulares que devem ter-se como acautelados pelo direito comunitário vem sendo entendido que da interpretação do disposto nas Directivas referidas, designadamente do n.º 1 do artigo 3.º da Primeira Directiva e o n.º 2 do artigo 1.º da Segunda Directiva que as regras de direito comunitário aí consignadas têm por objecto conferir direitos aos particulares, no sentido de que o seguro automóvel obrigatório deve, permitir aos terceiros vítimas de um acidente causado por um veículo ser indemnizados de todos os danos emergentes de lesões corporais e dos danos patrimoniais sofridos dentro dos montantes fixados no artigo 1º nº 2 da segunda directiva.
De outro modo ao permitir-se a limitação da indemnização dos terceiros vítimas de um acidente de viação, nos casos de responsabilidade pelo risco, estar-se-ia a aceitar disparidades de tratamento entre as vítimas consoante o local do Estado membro em que o acidente ocorresse, situação que as directivas têm precisamente como objectivo evitar, com isso se frustrando o efeito útil (artº 3º nº 1 da Primeira directiva) ficaria assim privado do seu efeito útil.

7- Mas para que possa responsabilizar-se o Estado quanto à reparação de prejuízos aos particulares torna-se necessário que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, se verifiquem três condições:

A primeira é que haja sido violada uma regra de direito comunitário que tenha por objecto conferir direitos aos particulares;
A segunda é que essa violação seja suficientemente caracterizada; e
A terceira é que exista um nexo de causalidade directo entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado-membro e o prejuízo sofrido pelas pessoas lesadas.


A-No caso dos autos, e relativamente à primeira das condições, há que atentar no seguinte:

Como sabemos pela Primeira Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972 (Jornal Oficial das Comunidades Europeias nº L 103/1 de 2-05-72), relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, previu-se a abolição dos controlos nas fronteiras da carta verde e a criação, em todos os Estados-Membros, de um seguro obrigatório de responsabilidade civil que cobrisse os danos causados no território de todos os Estados Membros.
Adoptando o princípio da indemnização das vítimas de acidentes de viação, desde que demonstrada a existência de responsabilidade, o artigo 3º nº 1, da Directiva 72/166 dispõe que "Cada Estado-Membro... adopta todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um segura. Essas medidas devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro”.

A Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, (Jornal Oficial das Comunidades europeias nº L 8/17 de 11-01-84) relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, diz respeito ao âmbito de cobertura do seguro obrigatório e fixa os montantes mínimos deste.
E logo no art. 1.º, n.ºs 1 e 2, da Segunda Directiva, se dispõe que:
1 - O seguro referido no n.º 1, do art. 3.º, da Directiva 72/166 CEE, deve, obrigatoriamente, cobrir os danos materiais e os danos corporais.
2 - Sem prejuízo de montantes de garantia superiores eventualmente estabelecidos pelos Estados Membros, cada Estado Membro deve exigir que os montantes pelos quais este seguro é obrigatório, se situem, pelo menos, nos seguintes valores:
- 350.000 ECUs, relativamente aos danos corporais, quando haja apenas uma vítima, devendo tal montante ser multiplicado pelo número de vítimas, sempre que haja mais que uma vítima em consequência do mesmo sinistro;
- 100.000 ECUs por sinistro, relativamente aos danos materiais, seja qual for o número de vítimas”;
Nos termos do n.º 5 da referida Directiva, com a redacção que lhe foi dada pelo Anexo I, Parte IX, F, que tem por epígrafe “Seguros”, do Acto relativo às condições de adesão do Reino de Espanha e República Portuguesa e às adaptações dos Tratados:
1 - Os Estados membros alterarão as suas disposições nacionais para darem cumprimento à presente Directiva o mais tardar até 31 de Dezembro de 1987, (...).
2 - As disposições alteradas nos termos acima referidos serão aplicadas, o mais tardar, até 31 de Dezembro de 1988.
3 - Por derrogação ao n.º 2:
a)-O Reino de Espanha, a República Helénica e a República Portuguesa dispõem do período até 31 de Dezembro de 1995 para aumentarem os montantes das garantias até aos montantes previstos no n.º 2 do art. 1.º.

B-Ora como já referimos a violação existente é a da não transposição completa da segunda Directiva ,já que as decisões que limitaram a indemnização aos recorrentes se apoiaram nesse entendimento, ou seja, de que a Directiva era por si insusceptível de produzir efeitos directos horizontais.

A existência de diversos acórdãos contraditórios, quer nas Relações, quer no próprio Supremo Tribunal de Justiça, sobre o facto de a Segunda Directiva ter ou não sido completamente transposta para o direito português é, por si só, demonstrativa de que tal transposição, não foi correctamente efectuada pelo legislador português.
No caso dos autos o Estado Português só através do DL nº 59/2004, de 19 de Março, veio finalmente a proceder à alteração da redacção do nº 1 do artigo 508º do Código Civil, por forma a dar cabal cumprimento ao disposto na Segunda Directiva.
E nesse DL ,com respeito por opinião contrária, reconhece-se a necessidade de proceder à alteração da norma em causa para pôr finalmente termo à discrepância de critérios quanto aos montantes mínimos do capital seguro fixados pelo nº 2 do artº 1º da Segunda Directiva independentemente da espécie de responsabilidade civil em jogo.


C-Por conseguinte o Estado Português não cumpriu o disposto no nº 3 do artigo 5º da Segunda Directiva e dos artigos 249º (ex-artigo 189º) e 10.º (ex-artigo 5º) do Tratado CEE, tal como interpretados pelo Tribunal de Justiça.
E como se referiu, decorre da uma jurisprudência dos tribunais comunitários que a obrigação de um Estado-Membro adoptar todas as medidas necessárias para alcançar o resultado imposto por uma directiva é uma obrigação coerciva (de resultado) imposta pelo artigo 249º do Tratado CEE (ex-artº 189).
O que resulta dos diversos acórdãos do Tribunal de Justiça em interpretação das primeira e segunda Directivas é o princípio de que a partir do momento em que se admite que existe responsabilidade civil e uma vez que a indemnização deve cobrir os danos efectivos provocados (danos pessoais e patrimoniais), os montantes mínimos do capital seguro ali fixados têm de ser respeitados, independentemente da espécie de responsabilidade civil aplicável e como tal obstam à existência de uma legislação nacional que prevê montantes máximos de indemnização inferiores a esses montantes mínimos de garantia fixados.


Houve assim uma clara violação do direito comunitário, por parte do Estado Português, o qual tinha a obrigação de transpor, correcta e integralmente, a referida Segunda Directiva até 31.12.1995 e não o fez, pois que foi o próprio Supremo (no acórdão uniformizador referido) que expressamente admitiu e se referiu à manifesta divergência doutrinal e jurisprudencial existente em Portugal sobre a transposição ou não da Segunda Directiva para o direito português.

D-O Legislador procedeu, com o citado DL nº 59/2004 de 19/3, à transposição do artigo 1º,nº 2 da Segunda Directiva.
Não obstante considerar, no preâmbulo do referido Decreto-Lei, que o artigo 6.º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 3/96, de 25 de Janeiro, e 301/2001, de 23 de Novembro, foi o pressuposto da necessidade de proceder à alteração dos termos do nº 1 do artigo 508º do Código Civil que esteve presente neste diploma, para pôr finalmente fim à discrepância de critérios quanto aos montantes mínimos do capital seguro fixados pelo nº 2 do artº 1º da Segunda Directiva, independentemente da espécie de responsabilidade civil em jogo.

Entendemos também, tal como se defende no douto Parecer juntos aos autos a que já nos referimos, que esta posição do Estado Português com este DL constitui a assunção da discrepância entre o disposto no nº 2 do artigo 1º da Segunda Directiva e a legislação nacional constante do artigo 508º do CC, já que aí se alude expressamente ao propósito de “Procurando obviar-se a esta discrepância, fixou-se um novo critério de determinação dos limites máximos de indemnização…”.

Daí que não obstante o Acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ de 25 de Março de 2004 tenha reconhecido que era possível fazer interpretação diferente da segunda Directiva quanto aos montante mínimos a fixar em caso de responsabilidade pelo risco, por entenderem estar revogado tacitamente o nº 1 do artº 508º do CC de acordo com o artigo 6.º do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro na redacção dada pelo DL nº 3/96, de 25 de Janeiro, o certo é que o Estado alguns dias antes, pelo DL nº 59/2004 de 19 de Março de 2004, veio reconhecer a anterior desconformidade entre o direito nacional e o direito comunitário relevante.

E-Consideramos, pois, que se encontra verificada a primeira das condições acima referidas relativamente ao pressuposto para a existência de responsabilidade civil do Estado Português por incumprimento do direito comunitário por violação do disposto nos artigos 10º e 249º do Tratado CEE e do nº 2 do artigo 1º e nº 3 do artigo 5º da Segunda Directiva, na redacção que dela acima se transcreveu.

Em consequência deste pressuposto está aberto caminho para os autores poderem receber indemnização pelos montantes que foram definidos na acção, mas que lhe não foram atribuídos pela existência dos limites constantes do nº 1 do artº 508º do CC.

8-Mas vejamos se também se verificam as duas outras condições que acima enunciámos:

Quanto à segunda das condições respeitante à efectivação da responsabilidade do Estado relativamente à existência de uma violação suficientemente caracterizada.

Socorrendo-nos da doutrina desenvolvida por Marta Chantal, na obra citada, pág.93 e ss, com referência à jurisprudência que emergiu do Acórdãos Brasserie du pêcheur e Factortame e sobretudo Francovich mencionados por José Caramelo, op. cit. pág.105 e ss, a violação ao direito comunitário a tomar em conta tem de ser suficientemente caracterizada para poder aferir-se da omissão de não transposição da Directiva, nos termos em que se invoca na petição inicial.

No caso dos autos, já referimos que temos como bem definido que existiu uma violação caracterizada do direito comunitário, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça citada pois que não foi completamente transposta a Segunda Directiva nos aspectos apontados.
Impunha-se ao Estado Português que harmonizasse legislativamente nesta matéria, não só os montantes de garantia pelos quais o seguro seria obrigatório (como fez), mas também que esses montantes eram igualmente aplicáveis aos casos de responsabilidade objectiva, face às obrigações que se lhe impunham no cumprimento da Segunda Directiva, devendo alterar, em consequência (o que não fez atempadamente) o nº 1 do artº 508º do CC.
E isso começou a impor-se, pelo menos a partir do momento em que o Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar-se sobre tais questões em sede de reenvio prejudicial ou em casos concretos (onde se afirmava que o n.º 2 do artigo 1.º da Segunda Directiva se opunha a uma legislação nacional, como a portuguesa, que previa montantes máximos de indemnização inferiores aos montantes mínimos de garantia fixados por aqueles artigos quando, não havendo culpa do condutor do veículo que provocou o acidente, só houvesse lugar a responsabilidade civil pelo risco) e sobretudo porque na jurisprudência interna em todas as instâncias, passaram a existir fortes divergências sobre a questão em causa.

Por isso também neste aspecto temos como verificada também a segunda das condições que vimos analisando, ou seja, a de que existe uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário, que leva a concluir por culpabilidade do Estado.

9-Finalmente quanto à existência da condição respeitante ao nexo de causalidade directo entre a violação da obrigação que incumbiria ao Estado Português de transpor, de uma forma correcta e completa as Directivas em causa e o prejuízo sofrido pelos Recorrentes.

Neste aspecto resulta claro da parte decisória da sentença que atribuiu apenas a indemnização de 4.000.000$00 aos recorrentes, que tal foi feito em obediência à 2ª parte do nº 1 do artº 508º do CC, já que a indemnização que lhes era devida, não fora esta redução, seria de um total de 33.100.000$00.
São, pois, patentes e decorrentes da situação de não transposição da Segunda Directiva os prejuízos sofridos pelos recorrentes, uma vez que têm a ver directamente com a sua não aplicação pelos tribunais (por não a considerarem transposta) em termos de se manter a validade dos limites máximos (nº 1 do artº 508º do CC) na indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável.
Estes prejuízos devem-se ao facto da conduta omissiva do Estado Português ao não cumprir as suas obrigações de legislar a que se encontrava adstrito desde 31 de Dezembro de 1995, em virtude das Primeira e Segunda Directivas e do disposto nos actuais artigos 249º e 10º do Tratado CEE.

Existe, pois, nexo de causalidade directo entre a violação da obrigação que incumbia ao Estado Português de transpor, de uma forma correcta e completa as Directivas em causa e o prejuízo sofrido pelos Recorrentes.
Como tal incumbe ao Estado reparar as consequências dos prejuízos causados aos recorrentes que consistem no pagamento da diferença entre a indemnização a que tinham direito de 33.100.000$00 menos a que lhes foi atribuída de 4000.000$00,ou seja, de 29.100.000$00 = 145.158,18€, acrescida dos juros legais em vigor no período decorrente desde a data da citação na acção da 1ª instância onde lhe foram aplicados os limites do nº 1 do artº 508º do CC, até efectivo e integral pagamento.


III-Decisão
Nos termos expostos julga-se a acção totalmente procedente por provada, revogando-se a sentença e, em consequência, condena-se o Estado Português a pagar aos autores a quantia de 145.158,18€, acrescida dos juros legais em vigor no período decorrente desde a data da citação na acção da 1ª instância onde lhe foram aplicados os limites do nº 1 do artº 508º do CC, até efectivo pagamento.
Sem custas

Porto, 7 de Abril de 2005
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida
João Carlos da Silva Vaz