Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0656357
Nº Convencional: JTRP00040264
Relator: MARQUES PEREIRA
Descritores: AVALISTA
PACTO DE PREENCHIMENTO
Nº do Documento: RP200704230656357
Data do Acordão: 04/23/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 297 - FLS 83.
Área Temática: .
Sumário: Só o avalista que tomou parte do pacto de preenchimento da letra ou livrança pode opor ao portador a excepção de preenchimento abusivo e isto apenas na hipótese de o título se encontrar ainda no domínio das relações imediatas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

Nos Juízos de Execução do Porto, o B………., SA apresentou requerimento executivo (distribuído como execução comum n.º …../05, do ..º Juízo, ..ª secção) contra C………., D………. e E………., alegando os seguintes factos:
“O exequente é legitimo portador de uma livrança, subscrita pelo executado C………. e avalizada, pelos, também executados D………. e E………., conforme se afere das suas declarações e assinaturas apostas no documento, com o valor de € 24.659,30, vencida a 20.02.2005 – livrança que se junta como doc. n.º 1.
Apresentada a pagamento, a mesma não foi paga, nem na respectiva data de vencimento, nem posteriormente até ao presente, em parte ou na totalidade, e isto, apesar das diversas insistências do exequente para o efeito.
Assim, subsiste em divida a totalidade do capital titulado por tal documento - € 24.659,30 -, bem como os juros de mora vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento, contados à taxa legal de 4% sobre o capital, desde o vencimento do título e ainda o respectivo imposto de selo, contado sobre os juros devidos, também à taxa legal de 4%, conforme estabelecido pela Tabela do Imposto de Selo”.

A executada deduziu oposição, alegando, para tanto, essencialmente, os seguintes fundamentos:
A executada nada tem que ver com o empréstimo em causa, pelo que só a má fé do exequente pode explicar a execução.
De facto, a aqui executada, em 6 de Abril de 2001, constituiu-se fiadora de um empréstimo contraído pelo executado C………., junto do F………., SA, no valor de 10.350.000$00, destinado á aquisição do seguinte imóvel: fracção autónoma designada pela letra A, correspondente a uma habitação no r/c direito frente e lugar de garagem A-um, na cave, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ………., n.º … e … e Arruamento a designar, da freguesia e concelho de Valongo.
A aquisição do referido imóvel foi efectuada mediante contrato de “compra e venda mútuo com hipoteca e fiança”, que a opoente assinou, conforme cópia do doc. junto.
Com o referido contrato, a executada assinou, na qualidade de fiadora, a respectiva livrança, livrança esta em branco.
Nunca a executada se constituiu fiadora de qualquer outro empréstimo contraído por aquele devedor, também executado.
A livrança em causa foi utilizada indevidamente pelo exequente, num empréstimo para o qual não foi destinada.
Pediu, assim, que a execução seja julgada extinta quanto a ela.

Em seguida, foi proferido despacho liminar de indeferimento da oposição, por manifestamente improcedente, nos termos do preceituado no art. 817, n.º 1 al c) do CPC.
Considerou-se, então, que a oposição está fatalmente votada ao insucesso, porquanto, sendo o título executivo a livrança, a executada, enquanto avalista, se encontra, face ao exequente, na denominada relação mediata, o que a impossibilita de suscitar a excepção de preenchimento abusivo.

A opoente não se resignou, tendo interposto recurso de agravo, cuja alegação, terminou com as conclusões que seguem:
1.A recorrente constituiu-se fiadora de um empréstimo contraído junto do F………., SA, através de contrato de mútuo com hipoteca e fiança prestada através da assinatura de uma livrança em branco.
2.A referida livrança em branco, assinada pela fiadora, foi entregue ao respectivo credor como garantia do contrato de mútuo celebrado entre o afiançado e o F………., SA, para aquisição de um imóvel.
3.Da interpretação do respectivo pacto de preenchimento, resulta, inequivocamente, que a fiadora afiança todas as obrigações que o mutuário assuma a título de empréstimo em causa naquele mútuo.
4.Tendo havido fusão entre o F………., SA e o B………., SA passando a existir no mercado uma única instituição financeira com a denominação de G………., SA, a livrança em causa não chegou a entrar em circulação.
5.Nesse sentido, não chegou a sair do domínio das relações imediatas.
6.Nesse sentido, também, é, pois, legítima a discussão do pacto de preenchimento e da relação subjacente como excepções oponíveis à execução, como faz a recorrente.
7.Tal pacto de preenchimento foi totalmente violado pelo portador da livrança, ora recorrido, aproveitando-se de uma alteração superveniente das circunstâncias derivada da fusão acima referida, usou e preencheu abusivamente uma livrança num empréstimo para o qual não foi destinada, unicamente com o propósito de liquidar, o seu crédito mal parado.
8.Nesse sentido, ainda, o recorrido ultrapassou todos os limites impostos pela boa fé e exigíveis mesmo no domínio das relações mediatas.

A parte contrária contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Foi emitido despacho tabelar de sustentação.

Nesta instância, foi admitida a junção dos dois documentos (cópia de autorização de preenchimento de livrança e de contrato de mútuo) apresentados com as contra-alegações de recurso _ os quais, foram objecto de impugnação pela parte contrária, que os considerou “totalmente incredíveis e mesmo muito estranhos” _ (art. 743, n.º 2 e 700, n.º 1 al. d), do CPC), por se entender que são susceptíveis de interessar á decisão da causa, sendo tempestiva a sua apresentação (cfr. art. 524, n.º 2, 2.ª parte, do CPC).

Foi proferida decisão sumária, nos termos do art. 705 do CPC, em concordância com a decisão recorrida, para cujos fundamentos se remeteu.

A agravante veio, porém, requerer que sobre a matéria fosse proferido um acórdão, sustentando que, tendo subscrito o acordo de preenchimento da livrança, o avalista pode opor ao portador a excepção de preenchimento abusivo, porquanto o título se mantém no domínio das relações imediatas.

Corridos os vistos, cumpre, agora, decidir.

Em vista das posições tomadas pelas partes, pela opoente, na oposição e pela exequente, nas contra-alegações de recurso (conforme, também, documentos juntos com estas), existe consonância entre ambas sobre o facto de estarmos perante uma livrança emitida em branco.
É também incontroversa a assinatura da opoente na face anterior da livrança em causa.
Configurando-se uma execução cambiária, o problema concreto que se coloca diz respeito à responsabilidade da executada, como avalista (co-avalista) da livrança exequenda.
Existindo divergência entre as partes sobre qual foi a obrigação (do subscritor) que a opoente quis garantir, com a assinatura aposta na face anterior da livrança, alegando a opoente que houve preenchimento abusivo da livrança em causa.

Como é sabido, o aval constitui um negócio cambiário unilateral, pelo qual um terceiro ou mesmo um signatário da letra (ou livrança) se obriga ao seu pagamento, como garante de um dos coobrigados cambiários (arts. 30 e 31, IV da LULL). Na falta de indicação expressa do avalizado, a lei indica supletivamente que o aval valerá a favor do sacador (art. 31, IV).
Pode assumir duas formas:
Aval completo, aquele que se exprime pelas palavras “bom para aval” ou fórmula equivalente e é assinado pelo dador do aval (art. 31, II);
Aval incompleto (aval em branco), quando resulta da simples assinatura do dador, aposta na face anterior da letra (ou livrança), desde que tal assinatura não seja do sacado, nem do sacador. É o caso dos autos.
Como refere Menezes Leitão, em Garantias das Obrigações, p. 142, “O aval tem afinidades com a fiança, mas distingue-se dela, uma vez que não constitui uma obrigação acessória, mas antes autónoma, já que a obrigação do avalista subsiste, ainda que a obrigação principal seja nula por outra razão que não seja um vício de forma (art. 32 II LULL e art. 27 II LUC)”.
O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada (art. 32, n.º 1).
O que significa que a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado.

Quanto á livrança em branco, cuja admissibilidade resulta dos arts. 10 e 77 da LULL, destina-se normalmente a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior, sendo a sua entrega acompanhada de poderes para o seu preenchimento, de harmonia com o chamado “pacto ou acordo de preenchimento”. [1]
O contrato de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo de vencimento, o lugar do pagamento, a estipulação de juros, etc.
Tal acordo pode ser expresso ou tácito, consoante as partes estipulem certos termos em concreto, ou apenas se encontrem implícitos nas cláusulas subjacentes á emissão do título (sobre o pacto de preenchimento, v., por exemplo, o Ac. do STJ de 13-03-2007, de que foi Relator o Ex.m.º Juiz Conselheiro Dr. Azevedo Ramos, publicado em www.dgsi.pt).
A prova do contrato de preenchimento não se confunde com a prova do contrato de empréstimo que as livranças se destinam a garantir, por serem contratos distintos (Ac. do STJ de 03.05.2005, de que foi Relator o Ex. m.º Juiz Conselheiro Dr. Azevedo Ramos, publicado em www.dgsi.pt, ponto IV do respectivo Sumário).
Este pacto não está sujeito a forma (neste sentido, v.g., Miguel J. A. Pupo Correia, Direito Comercial, Direito da Empresa, 9.ª ed., p. 472).

O ónus da prova do preenchimento abusivo do título de crédito dado à execução recai sobre o opoente (cfr. art. 342, n.º 2 do C. Civil).

Estando o título no domínio das chamadas relações mediatas, entende-se que o avalista não pode defender-se perante o portador com as excepções do avalizado, salvo no que respeita ao pagamento.
Assim, decidiu-se, por exemplo, no Ac. desta Relação e Secção, de que foi Relator o Ex. m.º Desembargador Dr. Sousa Lameira, publicado na íntegra em www.dgsi.pt que:
“I-Na oposição/embargos a execução cambiária, estando o título no âmbito das relações mediatas, os avalistas do subscritor da livrança exequenda, ainda que se discuta alegado preenchimento abusivo do título, não podem opor esse facto ao portador exequente.
II-Invocando tal defesa como fundamento da oposição, sendo ela infundada, justifica-se que tenha sido liminarmente indeferida por manifesta improcedência” (Sumário).

A matéria torna-se mais complexa, quando o título ainda não entrou em circulação.
Têm sido proferidas decisões, que não admitem a excepção do preenchimento abusivo, com fundamento no facto de o avalista não ser sujeito da relação jurídica subjacente.
Vejam-se, neste sentido, o Ac. do STJ de 11.11.2004, de que foi Relator o Ex. m.º Juiz Conselheiro Dr. Ferreira de Almeida e o Ac. desta Relação de 24.10.2006, de que foi Relator o Ex. m.º Desembargador Dr. Vieira e Cunha, ambos publicados em www.dgsi.pt.
Outras decisões, porém, admitem que o avalista possa opor ao portador (no âmbito das relações imediatas) a excepção do preenchimento abusivo, desde que tenha subscrito o acordo em causa. Veja-se, por exemplo, o Ac. do STJ de 14.12.2006, de que foi Relator o Ex. m.º Juiz Conselheiro Dr. Sebastião Povoas, publicado em www.dgsi.pt, no qual, se entendeu que:
“Se o avalista subscreveu o acordo de preenchimento, pode opor ao portador a excepção de preenchimento abusivo, estando o título no âmbito das relações imediatas” (ponto 5 do respectivo Sumário).

No caso em apreço, como vimos já, a opoente invoca a excepção do preenchimento abusivo, alegando que com a fiança prestada para garantia das obrigações do mutuário C………. (subscritor da livrança exequenda) assumidas através do “empréstimo” constantes do contrato de “compra e venda mútuo com hipoteca e fiança”, realizado por escritura de 6 de Abril de 2001 (de que juntou cópia), que assinou, a opoente assinou, também, a livrança em causa, para garantia do mesmo empréstimo, sucedendo que tal livrança em branco foi utilizada para outro fim sem o seu consentimento.
Se considerarmos que a exequente B………., SA incorporou por fusão o F……….., SA _ parte, na relação contratual que, segundo a opoente, subjaz à emissão da livrança em causa _, esse título não chegou a entrar em circulação.
A opoente não alegou, porém, factos dos quais resulte a existência de um acordo de preenchimento da livrança, em que tenha participado.
A oposição não podia deixar de ser considerada manifestamente improcedente, como foi.

Decisão:
Acorda-se em, desatender a reclamação, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela parte vencida.
Porto, 23 de Abril de 2007
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome
José António Sousa Lameira

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[1] A livrança em branco pode definir-se como sendo aquela a que falta algum dos requisitos indicados no art. 75 da LULL, mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura que tenha feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária (Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre letras e livranças, 7.ª ed., ps. 78 e 79).