Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0610399
Nº Convencional: JTRP00039350
Relator: FERNANDA SOARES
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
JUSTA CAUSA
VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA
Nº do Documento: RP200606260610399
Data do Acordão: 06/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 85 - FLS. 144.
Área Temática: .
Sumário: I- Nos termos do art. 21º, 1 do CT “o trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de carácter não profissional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio electrónico”.
II- Não viola tal direito, o superior hierárquico que acede ao endereço electrónico interno da empresa e lê um e-mail dirigido à funcionária que, por regra, acede ao referido correio electrónico, através de “passward” que revela a outros funcionários que a tenham que substituir na sua ausência.
III- As expressões usadas pela autora no referido e-mail – “e durante a prelecção sobre filosofia japonesa (que para estes gajos por acaso não é japonês mas sim chinês), pensei que devia estar sentada ao lado de algum yuppi cá da empresa.”… “Quando resolvi olhar-lhe para a tromba é que vi que era o nosso querido futuro boss” – merecem censura, mas não constituem justa causa de despedimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
B……….. instaurou no Tribunal do Trabalho de Viana do Castelo acção de impugnação de despedimento contra C……….., S.A. pedindo seja declarado a ilicitude do despedimento da Autora e a Ré condenada a) a pagar-lhe a quantia de € 1.600,54, bem como as retribuições que se vencerem até ao trânsito em julgado da decisão do Tribunal; b) a pagar-lhe a quantia de € 25.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais; c) a reintegrar a Autora no seu posto de trabalho, se não optar, entretanto pela indemnização por antiguidade; d) a pagar a quantia de € 500,00 a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na reintegração da Autora; e) a pagar os juros à taxa legal, desde a citação.
Alega a Autora que no dia 22.6.87 foi admitida ao serviço da Ré para desempenhar as funções de secretária de direcção, sendo certo que até fins de Janeiro de 2002 o seu local de trabalho foi na sede da Ré, em Vila Nova de Gaia, e a partir de Fevereiro de 2002 em Viana do Castelo onde se manteve até Dezembro de 2003, data em que regressou à sede. Acontece que na sequência de processo disciplinar que a Ré instaurou foi a Autora despedida sem justa causa, a determinar a ilicitude do despedimento.
A Ré contestou alegando a justa causa para despedir a Autora concluindo pela improcedência da acção.
Elaborado o despacho saneador, procedeu-se a julgamento, consignou-se a matéria dada como provada e foi proferida sentença a julgar a acção procedente e a condenar a Ré a) a reconhecer a ilicitude do despedimento da Autora e em consequência a reintegrá-la no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria profissional e antiguidade; b) a pagar-lhe a quantia de € 22.830,00 de remunerações vencidas até à presente data e as que se vencerem até ao trânsito em julgado da decisão; c) a pagar-lhe a quantia de € 25.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais; d) a pagar-lhe a quantia de € 500,00 a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na reintegração da Autora, nos termos do art. 829º-A do CC..
A Ré veio recorrer pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por acordão que julgue a acção improcedente, e para tal formula as seguintes conclusões:
1. O regime dos direitos de personalidade consagrado no CT não tem por escopo a defesa incondicional dos direitos de personalidade do trabalhador a todo o custo e em qualquer circunstância. E muito menos ainda tal regime não visa, nem validar actuações ilícitas do trabalhador, nem sanar, em nome dos aludidos direitos de personalidade, eventuais infracções disciplinares cometidas pelos mesmos. O que se tem em vista é garantir um justo equilíbrio entre a manutenção na esfera jurídica do trabalhador dos direitos que lhe assistem como cidadão e o princípio da liberdade de gestão empresarial.
2. O CT, sem prejuízo da manutenção do desiderato de tutela da parte mais fraca, enveredou, de forma actualista, pela afirmação da reciprocidade de direitos e deveres entre as partes contratantes e pela comunhão de interesses que existe no moderno direito do trabalho. A aplicação dos direitos de personalidade, consequentemente, deve ser feita com adequação axiológica e funcional: os direitos em causa servem para tutelar os direitos mais elementares dos trabalhadores e não para a cobertura a infracções disciplinares por estes cometidas.
3. O CT importou para o domínio do direito do trabalho, de forma expressa, o instituto civil da boa fé, fazendo-o a três níveis: nos preliminares da formação contratual (art.93º); ao nível da execução do contrato de trabalho (art.119º); em sede de negociação colectiva (art.547º) e de resolução de conflitos colectivos (art.582º). O instituto civil da boa fé, bem como as figuras parcelares que o informam, o abuso do direito e a boa fé na execução dos contratos perpassa todo o regime instituído no CT, sendo determinante para a interpretação e aplicação do regime nele instituído.
4. A invocação pelo trabalhador do direito à confidencialidade como forma de justificar o cumprimento defeituoso do contrato constitui uma hipótese típica de abuso do direito – art.334º do CC – enquanto figura parcelar concretizadora do instituto civil da boa fé, o qual se encontra positivado no art.119º do CT, no que tange à boa fé na execução dos contratos.
5. Admitir a validação ou ocultação de um acto censurável em nome da suposta confidencialidade do mesmo, com a agravante de o acto em causa ser susceptível, ele mesmo, de violar as mesmas normas – o regime dos direitos de personalidade – que alegadamente lhe garantem confidencialidade não é razoável, é desproporcionado e é contrário à ideia de direito e aos valores que emanam do regime legal em apreço. Até porque, como resulta do art.16º nº1 do CT o trabalhador também tem de respeitar os direitos de personalidade do empregador.
6. Existe justa causa de despedimento quando perante a ocorrência de uma determinada infracção disciplinar, dela resulte uma crise contratual de tal forma grave que deixe de ser exigível ao empregador a manutenção do trabalhador ao seu serviço, nomeadamente em casos de perda da relação de confiança. Nestes casos, justifica-se a aplicação da mais grave de todas as sanções disciplinares de que a entidade patronal pode dispor.
7. A justa causa não se cinge a comportamentos ocorridos no local e tempo do trabalho, sendo admissível o seu apuramento mesmo quando estejam em causa comportamentos que integram a intimidade da vida privada do trabalhador: assim sucede perante factos que sejam susceptíveis de pôr em causa o bom nome ou a honorabilidade da empresa, quando a relação de confiança entre as partes seja defraudada e, em todo o caso, perante comportamentos ilícitos e culposos do trabalhador que, pela sua gravidade, sejam susceptíveis de tornar praticamente inviável a subsistência da relação laboral, pelos reflexos causados no serviço e no ambiente de trabalho.
8. No caso vertente tendo ficado provado que a mensagem da Autora foi remetida para um endereço electrónico que não pertencia a ninguém em particular, mas sim à divisão de após venda da Toyota, e que não obstante ser necessária uma password para se ter acesso a tal endereço tal palavra passe podia ser utilizada por vários funcionários da referida divisão, maxime pelo respectivo Director, é legítimo concluir que o acesso a tal endereço e às mensagens para ele remetidas, em especial por parte do director da aludida divisão, era absolutamente livre, não necessitando do consentimento dos respectivos remetentes, designadamente do da Autora. Tratando-se de um endereço geral da empresa, não se descortina qualquer previsão normativa específica, legal ou contratual, que inviabilize o acesso a tal endereço por parte do Director de Divisão em apreço. Por outro lado, o acesso a tal endereço impunha-se por imperativos de racionalidade, razoabilidade e à luz de critérios de normalidade social – é evidente que o Director daquela divisão não só tem o direito, como o dever, de consultar as mensagens que são expedidas para o endereço geral da Divisão que o mesmo coordena, tanto mais que se trata da única caixa de correio electrónica de acesso geral.
9. Quando se faz apelo no nº2 do art.396º do CT, para efeitos de apreciação de justa causa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e ás demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes, obviamente se manda atender também ao grau de subordinação jurídica e aos níveis de responsabilidade e exigência associados ao trabalhador em causa, bem como à relação de confiança exigível na relação laboral em causa.
10. A Autora desempenhava o cargo de secretária pessoal da direcção da Ré, isto é, de assessoria de cargo directivo. Trata-se, indubitavelmente e por razões manifestas, de um cargo que requer uma particular relação de confiança entre as partes, em especial entre o assessor e o assessorado.
11. No caso, a aludida relação de confiança foi quebrada na sequência da mensagem remetida pela Autora, criando um embaraço tal que torna inviável, à luz de critérios de normalidade social, a convivência laboral entre a Autora e os seus superiores hierárquicos, em particular os visados na referida mensagem.
12. Conhecida que foi, de forma lícita, a mensagem da Autora, o grau de confiança necessário à subsistência da relação laboral esfumou-se, o ambiente de trabalho entre esta e os respectivos superiores hierárquicos tornou-se insuportável e a imagem da empresa perante o concedente correu o risco de ser afectada.
13. Deixou, enfim, de ser exigível à Ré manter o contrato de trabalho da Autora, existindo justa causa de despedimento.
14. A sentença recorrida ao assim não decidir, não levando em consideração a violação dos deveres ínsitos nas als.a),c),d), e) do nº1 do art.121º e do nº2 do art.123º do CT, com referência ao disposto nos nºs.1 e 2 do art.396º do CT, violou a lei.
Com as alegações de recurso juntou a Ré um parecer da autoria do Professor Dr. Pedro Romano Martinez e do assistente Dr. Guilherme Machado Dray.
A Autora veio contra alegar pugnando pela manutenção da decisão recorrida e juntando igualmente um parecer da autoria da Dra. Sónia de Carvalho.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta junto desta Relação emitiu parecer no sentido de o recurso improceder.
A Ré veio responder pugnando pela procedência do recurso.
Admitido o recurso e corridos os vistos cumprir decidir.
***
II
Matéria dada como provada e a ter em conta na decisão do presente recurso.
A Autora foi admitida ao serviço da Ré no dia 22.6.87, data a partir da qual passou a desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de secretária de direcção, as quais, consistem, nomeadamente, em assessorar um director de divisão, marcando reuniões, gerindo a respectiva agenda, recebendo e transmitindo comunicações, sob as suas ordens, direcção e fiscalização, e mediante retribuição.
Até fins de Janeiro de 2002 o local de trabalho da Autora manteve-se na sede social da Ré.
A partir de Fevereiro de 2002 a Autora, no quadro de uma cedência ocasional, passou a trabalhar em Viana do Castelo, onde se manteve até Dezembro de 2003, data em que regressou à sede da Ré, passando a estar integrada na Divisão de Marketing e Vendas - Serviços de Comunicações, Meios e Relações Públicas.
A Autora sempre foi considerada pela Ré como uma trabalhadora zelosa, disponível para o desempenho das funções que lhe eram atribuídas, merecendo a maior consideração e apreço por parte dos seus superiores hierárquicos, e da própria administração da Ré.
A Ré por carta datada de 19.3.04 procedeu à suspensão preventiva da Autora sem perda de retribuição, informando-a de que lhe havia sido instaurado procedimento disciplinar, tendo em conta um e-mail por esta enviado para o endereço electrónico interno …………@ ………. .
Na sequência do que, por carta registada com aviso de recepção datada de 15.4.04, foi enviada à Autora nota de culpa, na qual lhe era imputada, como infracção disciplinar, o envio, durante o seu horário de trabalho e utilizando o computador da empresa, de um e-mail para o endereço electrónico interno ……@..... com o seguinte teor: «Oi fofinha, estás bem? Novidades? Ontem estive ao lado do teu querido, ou seja mais propriamente à beira do D……. . Sentei-me sem saber ao lado de quem e durante a prelecção sobre filosofia japonesa (que para estes gajos por acaso não é japonês mas sim chinês) pensei que devia estar sentada ao lado de algum yuppie cá da empresa de tal forma ele estava empertigado na cadeira. Quando resolvi olhar-lhe para a tromba é que vi que era o nosso querido futuro boss. Que giro! Ao lado esta o E…… Gente fina é outra coisa! Quanto à prelecção sobre o F……., só faltou no fim o G……. levantar-se e cantar aquela do Frank Sinatra – I did it myyyyyyy wwwwwway. Bjs.
Nessa nota de culpa foi comunicado à Autora a intenção da Ré de proceder ao seu despedimento.
Por carta registada com aviso de recepção datada de 26.5.04, a Ré enviou à Autora a decisão do processo disciplinar, na qual procedia ao seu despedimento por justa causa, por se terem provado os factos constantes da nota de culpa.
À data do despedimento a Autora auferia a quantia de €1.522,00, a título de vencimento, e € 3,74, a título de subsídio de alimentação por cada dia útil de trabalho.
A Autora efectivamente, no dia 16.3.04, cerca das 14.06 horas, dentro do horário de trabalho, usando computador pertencente à Ré e a partir do seu posto de trabalho sito na Divisão de Marketing e Vendas, enviou o e-mail referido em 6, para o endereço electrónico interno ali citado.
Esse e-mail tinha como destinatária a Sra. Dra. H…….., secretária do Sr. Eng. I…….., director da Divisão de Após Venda ……., a qual é amiga de há longa data da Autora.
O endereço electrónico ……@....... está afecto à Divisão de Após Venda ….., sendo dirigidas para o referido endereço todas as mensagens que se destinem a essa divisão.
Por regra, è a Sra. Dra. H……. quem acede a esse endereço electrónico, para ver e processar as mensagens enviadas, sendo ela quem tem conhecimento privilegiado da necessária passaword, podendo alterá-la a qualquer momento.
Em todo o caso, a Sra. Dra. H……., também por regra, revela a password de acesso àquele endereço electrónico a funcionários que a tenham que substituir na sua ausência, em particular à Sra. Dra. J…… .
No dia 16.3.04, o Director da Divisão de Após Venda da Ré, por se encontrar ausente por motivo de férias a sua secretária e pretender verificar a correspondência recebida no ……..@.........., e após se ter informado da password necessária junto de um dos funcionários que dela poderiam ter conhecimento em virtude do que fica dito em 13, acedeu àquele endereço electrónico e leu a mensagem referida em 6, tendo dela dado conhecimento ao Vice Presidente do Conselho de Administração da Ré (Sr. Eng. L……).
A prelecção a que a Autora faz referência no seu e-mail consistia numa conferência a que havia sido especialmente convidada a assistir, sob o tema «…… Way» do Vice Presidente da M…….. (……) – Sr. N……… .
O «D……» a que aí se refere è o Adjunto da Administração (Sr. O……) e filho do Vice Presidente.
O «G…….» aí referido é o citado Vice Presidente - Sr. Eng. L……. .
Com o despedimento, a Autora passou a sentir-se insegura na vida, dorme mal, sente-se deprimida e ofendida na sua dignidade, necessitando de acompanhamento médico.
***
III
Questão a apreciar.
Da justa causa para despedir.
Na sentença recorrida concluiu-se que o e-mail enviado pela Autora à sua colega de trabalho tinha natureza particular e que face ao disposto no art-21º do CT não podia a Ré ter acesso ao conteúdo dessa mensagem e como tal não podia dela se servir para efeitos de instauração de procedimento disciplinar e consequente despedimento da Autora. Mais é afirmado na sentença que a admitir-se que a Ré tinha legitimidade para tomar conhecimento do conteúdo da dita mensagem certo é que o comportamento da Autora não conduz ao despedimento.
A Ré defende que a análise da questão não se põe em termos da natureza particular do e-mail mas antes se no caso concreto – e tendo em conta a matéria provada – era lícito à Ré aceder ao correio electrónico que é enviado para um endereço geral para onde são remetidas igualmente mensagens relativas à empresa e do seu interesse, concluindo que o podia fazer precisamente por se tratar de um endereço geral da empresa e ao tomar conhecimento do conteúdo da mensagem, de forma lícita, impunha-se obrigatoriamente o despedimento da Autora.
Vejamos então.
Nos termos do art.21º nº1 do CT «o trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de carácter não profissional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio electrónico», sendo certo que tal «não prejudica o poder de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa, nomeadamente do correio electrónico» - nº2 do citado artigo.
Comentando tal artigo refere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão o seguinte:…« desta disposição resulta que as comunicações do trabalhador revestem em princípio carácter pessoal, pelo que a abertura da correspondência, seja ela escrita ou electrónica, que a ele seja dirigida deve ser efectuada pelo próprio trabalhador. Apenas em situações de necessidade (designadamente para dar resposta a assuntos urgentes, em caso de ausência do trabalhador por baixa ou férias) é que a correspondência do trabalhador poderá ser aberta pela entidade patronal ou outro empregado. A confidencialidade das comunicações não autoriza, no entanto, o trabalhador a utilizar os meios de comunicação da empresa para fins a ela estranhos, pelo que se compreende a possibilidade de o empregador estabelecer regras da sua utilização, as quais, se violadas, serão susceptíveis de constituir o trabalhador em infracção disciplinar. A violação dessas regras de utilização dos meios de comunicação da empresa não permite, no entanto, ao empregador efectuar qualquer violação da confidencialidade das comunicações efectuadas pelo trabalhador. Assim, por exemplo, a indevida utilização do telefone, correio electrónico ou Internet pode ser detectada sem ter que se determinar o conteúdo das comunicações ou quais os sítios visitados» - A reforma do CT – CEJ – IGT., pg.135 e também em Temas Laborais (Estudos e Pareceres , vol.I), do mesmo Autor, p.104.
Igualmente defende Catarina Sarmento e Castro que o «acesso ao conteúdo de um e-mail deveria ser considerado ilegal: a obtenção de uma listagem de tráfego de e-mails deve considerar-se suficiente para responder à necessidade de controlo para verificação de um abuso de utilização. Por isso, sempre será desproporcionado o acesso aos respectivos conteúdos, salvo nas condições da lei penal» - Questões Laborais, ano IX, 2000,nº20, p.142.
Daqui resulta que o art.21º do CT veio de algum modo concretizar o direito consagrado no art.34º da CRP – inviolabilidade da correspondência -, direito que tem a ver com o respeito pela dignidade e privacidade do trabalhador enquanto cidadão, pessoa e ser humano (art.26º da CRP.).
E se a subordinação jurídica é precisamente o elemento que caracteriza e distingue o contrato de trabalho de outros contratos, tal subordinação está sujeita a limites quando em causa estão direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.
Por isso, importa apurar se o acesso ao e-mail enviado pela Autora a uma colega de trabalho foi ilegal.
A utilização do correio electrónico pela Autora – o endereço utilizado.
Segundo a matéria provada o e-mail foi enviado para o endereço electrónico interno ……@...... tendo como destinatária a Dra. H……... Tal endereço está afecto à Divisão de Após Venda …… para onde são dirigidas todas as mensagens que se destinem a essa divisão. A Dra. H…… é a secretária do Eng. I…… e este é o Director da referida Divisão, sendo que é esta secretária que, por regra, acede ao referido endereço electrónico através de password, que revela a outros funcionários que a tenham que substituir na sua ausência – nºs.10 a 14 da matéria dada como provada.
Salvo melhor opinião, começaremos por dizer que no caso concreto não nos parece relevante a existência de um «password» para aceder ao referido endereço electrónico, na medida em que tal endereço destina-se ao uso da Ré, a nível interno, não sendo, assim, um endereço exclusivo daquela secretária, a Dra. H……. Ou seja, no caso estamos perante um endereço partilhado e não perante um endereço exclusivo (sobre tal questão Amadeu Guerra, A Privacidade no Local de Trabalho, pg.370,371, notas 638 e 639).
E se assim é, ter-se-á de concluir que as mensagens «privadas» «caídas» nesse endereço perdem muito do seu carácter privado, não podendo o trabalhador, no caso a Autora, ter a razoável expectativa de privacidade, de que a dita mensagem apenas será lida pela destinatária.
B. O acesso ao e-mail por superior hierárquico da destinatária do mesmo.
Tendo em conta a matéria dada como provada sob os nºs.10 a 15 e o que se deixou referido em A., diremos que o Director da Divisão de Após Venda da Ré tem toda a legitimidade de aceder ao referido endereço e ler as mensagens «caídas» nesse endereço.
Mas terá igualmente legitimidade para ler «todas» as mensagens, mesmo aquelas que foram dirigidas à sua secretária, a Dra. H……., como a que a Autora enviou?
Para se responder a tal questão teremos que recorrer a critérios de razoabilidade e às regras da experiência, na medida em que se desconhece se a Ré impôs normas internas de utilização pelos trabalhadores do correio electrónico para fins particulares e em que consistiam as mesmas.
O endereço electrónico utilizado pela Autora destina-se a receber mensagens de natureza comercial respeitantes à actividade da Ré. Logo, não é exigível que o Director da Divisão a que pertence o referido endereço electrónico ao introduzir o password para aceder às mensagens tenha a preocupação de «filtrar» a natureza dessas mensagens, mesmo quando uma delas tem como destinatária a sua secretária. E porquê? Precisamente porque era a secretária daquele Director que acedia a tal endereço sendo razoável supor que muitas das mensagens viessem ao cuidado daquela ( da Dra. H…….). Por outro lado, não ficou provado, nem sequer foi alegado, que o mesmo Director tinha conhecimento que para esse endereço electrónico eram enviadas «mensagens particulares» e também não está provado que de algum modo a mensagem dirigida pela Autora à Dra. H……. vinha rotulada com a menção de «confidencial» ou até «mensagem privada/particular».
E no caso concreto a Autora usou a casa dos outros (perdoe-se a expressão) e por isso não podia exigir o respeito pela confidencialidade da mensagem nem seria razoável exigir que o Director deixasse de abrir as mensagens «caídas» em endereço destinado a assuntos comerciais da Ré.
Mas aqui chegados poder-se-á fazer a seguinte observação: mesmo assim não tinha aquele Director legitimidade para ler a dita mensagem. Ou seja, apesar de ter acedido à mesma não deveria nem poderia ler o seu conteúdo.
Mas assim não é.
Com efeito, e não esquecendo o que deixámos referido anteriormente, a abertura do e-mail e a leitura da mensagem nele contida acabam por constituir actos simultâneos precisamente porque o Director está «à procura» de mensagens do âmbito comercial. E tais mensagens, atendendo à finalidade do endereço electrónico, poderiam precisamente existir na correspondência que a Autora e a sua colega de trabalho trocaram na qualidade de funcionárias da Ré.
De qualquer modo se dirá que quando o julgador aprecia os factos e aplica o direito aos memos não pode deixar nunca de ponderar e ter em conta a natureza humana: e quem não ficaria curioso em ler uma mensagem enviada para um correio electrónico – cujos fins já descrevemos -, que começa com palavras tão carinhosas…«Oi fofinha, estás bem?». Negar tal conduta é ir contra o que é natural e se espera das pessoas nas relações do dia a dia.
Em conclusão: a conduta do Director da Ré não violou qualquer direito da Autora, nomeadamente o direito previsto no art.21º do CT com referência aos arts.34º e 26º da CRP..
A transmissão da mensagem ao Vice-Presidente do Conselho de Administração da Ré.
Apesar da conclusão a que se chegou anteriormente considera-se oportuno analisar a questão acabada de referir, já que se pode pôr em causa a legitimidade de transmissão pelo Director de uma mensagem «privada» ao seu superior hierárquico e directamente visado no e-mail.
Logo à partida se dirá que temos muitas dúvidas quanto ao carácter privado da mensagem, atento o seu conteúdo. Na verdade, tal mensagem não fala da vida privada da Autora ou da sua amiga. O seu conteúdo versa algo que se passou numa reunião da Ré em que a Autora esteve presente. È certo que na referida mensagem não se divulga «actos comerciais» ou «negócios» efectuados pela Ré, mas antes se faz alusão a uma prelecção ocorrida nas instalações da empregadora e que a Autora achou por bem «ridicularizar».
Mas mesmo a admitir-se que a mensagem é de natureza particular então há que perguntar se a sua divulgação ao Vice-Presidente do Conselho de Administração da Ré constitui o crime previsto no art.194º nº3 do C.Penal.
Pelos motivos que já indicamos atrás nenhuma censura merece a conduta do Director ao ter consultado as mensagens constantes do referido endereço electrónico, nomeadamente a enviada pela Autora. E como a Autora não podia exigir a confidencialidade da dita mensagem - conforme se deixou dito em B -, e contendo a mesma matéria injuriosa não era exigível ao dito Director que «calasse» o seu conteúdo.
Com efeito, o envio do e-mail pela Autora – tendo em conta a natureza do endereço electrónico utilizado – poderá ser equiparado a um postal ilustrado enviado pelo correio e que de algum modo pode ser visionado e lido por terceiros. Por outras palavras: o dito postal destina-se, de facto, a ser lido pelo seu destinatário, mas como não está fechado, toda a gente pode lê-lo, nem que seja casual ou acidentalmente. E é precisamente esta «porta» meia aberta que não permite integrar a conduta da divulgação da mensagem no art.194º nº3 do C.Penal.
Por isso, a divulgação da dita mensagem e seu conteúdo à pessoa visada na mesma não constitui qualquer ilícito por parte do Director da Ré, e deste modo, não é nula a prova obtida para fundamentar o despedimento da Autora – art.32º nº8 da CRP..
D. Da justa causa para despedir.
Neste particular o Mmo. Juiz a quo concluiu que o contexto do e-mail não configura qualquer ilícito disciplinar e muito menos constitui motivo para despedir.
A Ré defende que o comportamento da Autora integra a violação dos deveres previstos nos arts.121º nº1 e 123º nº2 do CT e que no caso se verifica justa causa para despedir. Que dizer?
As expressões usadas pela Autora no referido e-mail só em parte são ofensivas para a Ré, mais precisamente para os seus quadros superiores, como vamos explicar.
O emprego das expressões «D……» e «G…….», em si, não contêm nada de injurioso ou de desrespeitoso. Na verdade, não podemos esquecer que a Autora estava a dirigir-se a uma amiga, e que, em princípio, tratar as pessoas por diminutivos não constitui ofensa ou desrespeito.
Também a parte final do e-mail – «quanto à prelecção sobre o …. Way»…-, é apenas a imaginação da Autora a funcionar e não passa de uma brincadeira entre as palavras Way e o título da canção do Frank Sinatra (My Way), sem qualquer carga injuriosa ou ofensiva.
Em nossa opinião a carga ofensiva reside nas seguintes palavras:..« e durante a prelecção sobre filosofia japonesa (que para estes gajos por acaso não é japonês mas sim chinês), pensei que devia estar sentada ao lado de algum yuppie cá da empresa»…« Quando resolvi olhar-lhe para a tromba é que vi que era o nosso querido futuro boss»….
Assim, conclui-se que a Autora faltou ao respeito ao seus superiores hierárquicos, colocando-os a ridículo, ao afirmar que eles «gajos» estavam ali na prelecção mas para eles aquilo era «chinês», violando, deste modo, o dever previsto no art.121º nº1 al.a) do CT..
Nos termos do art.396º nº1 do CT «o comportamento culposo de trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho constitui justa causa de despedimento».
Por sua vez o nº2 do mesmo artigo refere que «para apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes».
Veio o legislador, neste particular, manter o princípio anteriormente consagrado na LCCT – art.9º nº1: a regra é a manutenção da relação laboral e não a sua cessação pelo que só o comportamento culposo que torne impossível a subsistência da relação de trabalho conduz ao despedimento.
Em resumo, a justa causa só pode ter-se por verificada quando não seja exigível ao empregador o uso de medida disciplinar que possibilite a permanência do contrato» - M. Fernandes, Direito do Trabalho, 13º edição, p.580.
Também Motta Veiga refere a tal respeito o seguinte: «A impossibilidade, e não a simples dificuldade, de subsistência da relação laboral, deve também ser valorada perante o condicionalismo da empresa, e em vista o critério acima referido»…«de não ser objectivamente possível aplicar à conduta do trabalhador sanção menos grave» - Lições de Direito do Trabalho, pgs.537 e 538.
No mesmo sentido é a posição de Pedro Furtado Martins (Cessação do Contrato de Trabalho, pg.85) e de Joana Vasconcelos (Concretização do Conceito de Justa causa, em Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, vol.3, pgs.209 e 210) e igualmente o acordão do STJ de 19.3.03 publicado na CJ, acordãos do STJ, ano 2003, tomo 1, pg.277.
Tudo ponderando cumpre referir que não está provado que o envio do e-mail e as expressões nele contidas tivessem sido do conhecimento dos demais trabalhadores da Ré, ou que por alguma forma, o ocorrido tivesse sido «comentado» na empresa.
Não se dúvida que no futuro, quer o Eng. I……, quer os Engenheiros P…… e L…….. olhem «de lado» para a Autora ou com cara de «poucos amigos». Mas o que aconteceu não permite concluir -salvo sempre melhor opinião-, objectivamente, que ficou irremediavelmente perdida a confiança na Autora (em termos de correcta execução do seu contrato de trabalho) e que o convívio entre ela e os seus superiores hierárquicos está prejudicado para sempre.
Isto não quer dizer que a conduta da Autora não é censurável. A sua actuação merece censura e castigo, mas atendendo ao circunstancialismo descrito, entendemos que a censura não deve ser a sanção máxima: o despedimento.
Com efeito, não existe matéria de facto que permita a este tribunal concluir que o teor do e-mail determinou para a Ré, de forma definitiva, a perda de confiança na Autora.
E assim sendo inexiste justa causa para despedir.
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Termos em que, e ainda que por fundamentos diversos, se julga a apelação improcedente e se confirma a sentença recorrida.
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Custas a cargo da apelante.
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Porto, 26 de Junho de 2006
Maria Fernanda Pereira Soares
Manuel Joaquim Ferreira da Costa
Domingos José de Morais (votei a decisão)