Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0432352
Nº Convencional: JTRP00032892
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: ALUGUER DE AUTOMÓVEL SEM CONDUTOR
CONTRATO
RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RP200405060432352
Data do Acordão: 05/06/2004
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - Nos contratos aluguer de veículos automóveis sem condutor é admissível a resolução extrajudicial.
II - Decorridos vários anos sem que quem alugou o veículo pague as rendas ou o restitua, deve considerar-se que existe o requisito do “periculum in mora” para, em procedimento cautelar, se proceder à apreensão da viatura.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I -
B............., com sede na Rua .............., ... – ..., ..........., veio requerer contra:
C.............. e D................, residentes na rua ..............., n.º.., ..........., o presente procedimento cautelar.

Alegou, em resumo, que:
Alugou aos requeridos, em ALD, o veículo que identifica;
Estes deixaram de pagar as rendas;
Comunicou-lhes a resolução do contrato e solicitou-lhes a entrega da viatura;
Eles não procederam a tal entrega.

O Sr. Juiz indeferiu liminarmente a petição por entender que, atento o alegado, não se verifica o pressuposto dos procedimentos cautelares, qual seja o do fundado receio de que outrem cause ao requerente lesão grave dificilmente reparável do seu direito.

Recorreu esta e este Tribunal da Relação ordenou que, em lugar do despacho de indeferimento, se proferisse despacho de aperfeiçoamento, “convidando a requerente a apresentar novo requerimento inicial com a alegação de factos relevantes, evidenciadores do propósito dos requeridos de não repararem ou dificultarem a reparação do prejuízo causado”.

Proferido tal despacho, foi apresentada nova petição.

Foi, então produzida a prova e o Sr. Juiz julgou improcedente o presente procedimento cautelar.
Entendeu que a resolução tinha que ser levada a cabo por via judicial e que não se verificava o apontado requisito.

II –
Desta decisão traz a requerente o presente agravo.

Conclui as alegações do seguinte modo:
1 - Prima facie, dir-se-á que a resolução de um contrato de aluguer de veículo sem condutor, vulgarmente designado de Aluguer de Longa Duração, como o dos autos, se pode operar por via extrajudicial, porquanto,
2 - O contrato de aluguer de veículos automóveis sem condutor, está sujeito a um regime especial fixado pelo DL 354/86 de 23 de Outubro,
3 - estabelece o artigo 17º que a empresa de aluguer, como o é a aqui agravante, tem o direito de "rescindir o contrato nos termos da Lei"
4 - Tal remissão do nº4 do art. 170, só pode entender-se como uma remissão para o regime geral da resolução dos contratos previsto nos artigos 4320 e ss. Do C. Civil, maxime a norma do artº 4360 do mesmo código que refere que "a resolução do contrato pode fazer-se mediante comunicação à outra parte".
5 - Estando assim, facultada à agravante o direito de resolver o contrato de aluguer do veículo referido por simples comunicação por escrito aos requeridos, como efectivamente o fez, ao abrigo do disposto, não só na cláusula 16ª das condições gerais do referido contrato, mas também dos artigos 432° e 436° do C. Civil.
6 - não seria consentâneo com as normas legais, considerar nulas as cláusulas que prevêem a resolução do contrato, quando é a própria lei substantiva, na parte referente aos contratos em geral - Art.432° C. Civil - que concede tal possibilidade desde que resulte de convenção, na medida em que a cláusula de resolução está expressamente prevista no contrato.
7- A factualidade alegada nos art°s 10, 20, 30, 40, 50, 60, 70, 80, 90, 100, 110 e 120 do Requerimento Inicial, foi dada como provada pelo M.mo Juiz a quo, logo, o que, de per se, leva à conclusão de existir fundado receio por parte da agravante, de ver lesado o seu direito de restituição da posse da viatura, restituição essa que, obviamente, apenas se mostra útil se for imediata, evitando danos, ou perdas, relativamente à mesma, que lhe diminuam parcial ou totalmente o valor.
8 - Por via da presente providência cautelar inominada o que se visa precaver é o direito à restituição do veículo locado e não o perigo de insolvabilidade da requerida para o pagamento das rendas em atraso e da indemnização originada na responsabilidade por incumprimento do contrato de locação, pois que, o direito que se visa proteger de tesão é de natureza real e não meramente obrigacional.
9 - Sem prescindir e por ultimo, relativamente à pretensa inexistência de prova relativamente à incapacidade financeira dos requeridos para pagamento dos alugueres em divida e indemnizações, sempre se dirá que,
10 - a prova a que ali se alude recai manifestamente no âmbito da "prova diabólica", que é aquela que abrange factos negativos cuja dificuldade é comunemente reconhecida e aceite, donde a aceitação da inversão do seu ónus.
11 - Por outro lado, os factos dados como provados associados aos demais alegados indiciam de forma clara e precisa a incapacidade da requerida para honrar a simples obrigação de pagamento dos alugueres vencidos e por maioria de razão pelas indemnizações contratualmente fixadas.
12 - Ao que acresce que, porque no domínio dos procedimentos cautelares para o seu decretamento bastará a simples e séria probabilidade da existência do direito invocado, ou seja, dos elementos indiciários que permitam a formulação de um juízo positivo e que no caso vertente se encontra profusamente presente nos autos.
13 - Ao indeferir o procedimento cautelar da agravante por entender que não se verificar um dos requisitos "periculum in mora" e ser manifestamente improcedente o pedido formulado violou o M.mo. Juiz a quo as disposições dos art°s 381º e 234º-A, n.º1 do C.P.C..

Não houve contra-alegações.

III –
Ante as conclusões das alegações, importa determinar se a resolução podia ter tido lugar extrajudicialmente e se se verifica o requisito que o Sr. Juiz entendeu faltar.

IV –
Da 1ª instância vem provado o seguinte:
a) A Requerente tem por objecto o aluguer de veículos, com ou sem condutor, bem como de qualquer outro tipo de máquinas ou equipamentos.
b) No exercício dessa sua actividade, a Requerente celebrou com os Requeridos, em 02 de Junho de 1997, um contrato de Aluguer de Veículo Sem Condutor, vulgarmente designado de Aluguer de Longa Duração, tendo por objecto a viatura ligeira de marca SKODA, modelo ................, com a matrícula ..-..-IM.
c) Nos termos desse contrato, os Requeridos ficaram obrigados ao pagamento pelo prazo de 60 meses, em 60 alugueres mensais no montante de € 42.926$00 correspondente a € 214,11, valor a que acresce NA à taxa legal, a liquidar por transferência bancária.
d) A viatura referida em b) foi entregue aos Requeridos pela Requerente a 02 de Junho de 1997.
e) Os Requeridos não pagaram as mensalidades vencidas aos dias 05 dos meses de Outubro de 1998, Janeiro e Março de 1999.
f) A Requerente, em razão de tal incumprimento, interpelou os Requeridos para que liquidassem as mensalidades vencidas, por carta de 17 de Março de 1999.
g) A Requerente procedeu à resolução do contrato, resolução que foi comunicada aos Requeridos, por carta de 01 de Agosto de 1999.
h) Por meio dessa mesma carta, a Requerente interpelou os Requeridos para a restituição da viatura objecto do contrato ora ajuizado.
i) Tais cartas foram expedidas para a morada indicada pelos Requeridos, e foram devidamente recepcionadas por estes.
j) Os Requeridos não procederam à devolução da viatura ora ajuizada, nem pagaram as quantias em dívida.
k) A propriedade da viatura de matrícula ..-..-IM encontra-se registada em nome da Requerente.

V –
A requerente pede a apreensão do veículo e a sua restituição a ela.
O primeiro pressuposto para tal apreensão e restituição diz respeito à resolução do contrato.
Admitindo esta, temos a questão, de saber se se verifica o requisito exigido pelo artº381º do CPC.

VI –
Avancemos, então, para a questão da resolução.
O presente contrato - ninguém põe em dúvida - é de aluguer de veículos automóveis sem condutor.
Dele se distingue, pois, o contrato de locação financeira, que tem estrutura diferente conforme se vê, além do mais, do artº 1º do DL n.º149/95, de 24.6. (Cfr-se, a este propósito, o Ac. do STJ de 20.11.2003, vertido em www.dgsi.pt sítio onde se podem consultar também os acórdãos abaixo referidos).
Afastado este DL n.º149/95, temos em primeira linha, o artº17º, n.º4 do DL n.º354/86, de 23.10, com a seguinte redacção:
É igualmente lícito à empresa de aluguer sem condutor retirar o veículo alugado no termo do contrato, bem como rescindir o contrato, nos termos da lei, com fundamento em incumprimento das clausulas contratuais.

Temos aqui dois direitos da empresa locadora:
Um de retirar o veículo alugado no termo do contrato;
Outro de rescindir este, nos termos da lei.

Vamos deixar o primeiro para daqui a pouco e situemo-nos no segundo.

A palavra “rescisão”, muito usada em direito do trabalho, só aparece uma vez no Código Civil (no artº 702º) e equivale ao que mais vulgarmente se chama “resolução”.

Por regra, a resolução pode ser levada a cabo mediante declaração à outra parte – artº 436º do CC.
Mas, determina o artº 1047º deste mesmo diploma que a resolução do contrato de locação fundada na falta de cumprimento por parte do locatário tem de ser decretada pelo tribunal.

Então, das duas uma:
Ou aquele preceito do DL n.º354/86 faculta ao locador o regime geral de resolução extrajudicial;
Ou deixa caminho aberto para a aplicação deste artº 1047º, com exigência de intervenção judicial.

A Jurisprudência das Relações tem-se dividido.
A favor da 1ª posição podemos citar, entre muitos, os Ac.s desta Relação de 3.7.2003, 19.10.2000, 29.5.2000 e 20.1.2004;

A favor da 2ª podem-se ver, também entre muitos, os Ac.s de 15.2.2000 e 27.11.2003.

A questão já chegou ao STJ, tendo nós recolhido o Ac. de 16.4.2002, a favor da desnecessidade de recurso a juízo.
Na doutrina, ainda que sem tomar posição expressamente, não podemos deixar de ponderar as palavras do prof. Romano Martinez (Direito das Obrigações, Parte Especial, 218, nota de pé de página):
“...não tem qualquer sentido exigir-se o recurso a tribunal para resolver um contrato de aluguer, até porque, ao locatário, em caso algum, é requerido o recurso à via judicial”.

VII –
A expressão “nos termos da lei” daquele n.º4 do artº 17º, comporta qualquer dos sentidos, de modo que, qualquer que seja a nossa posição, não colidimos com o n.º2 do artº 9º do CC.
Cremos, então, dever atender à parte final do n.º1 deste mesmo preceito e considerar o que traduz, de negativo, a exigência de recurso a tribunal num contrato como este.
A economia atingiu foros de dinamismo e rapidez, os contratos fazem-se e desfazem-se com uma fluidez que o legislador dos anos sessenta não poderia imaginar e exigir a uma empresa locadora que siga para tribunal perante uma situação fundamentadora de resolução dum contrato como o de aluguer dum automóvel, parece-nos salvo o devido respeito pelas opiniões contrárias, desadequado.
Por outro lado, o artº 1047º do CC , ao impor ao locador uma exigência que em parte alguma exige ao locatário visou – vê-se claramente – a protecção deste. É que, na verdade, há situações de locação em que o locatário carece de ser “protegido”, porque estão em causa bens essenciais à vivência ou porque se trata duma pessoa mais fraca socialmente (por via de regra mais pobre) do que o locador. Mas, no caso de aluguer de automóveis nada disso tem razão de ser. O interesse do locatário não é essencial, e não se pode legitimamente pensar que quem aluga um automóvel tenha ido para o contrato numa posição de fraqueza, de desigualdade relativamente à contraparte.
Entendemos, pois, que a locadora podia resolver extrajudicialmente o contrato.
Foi o que fez e temos, assim, destruída a relação contratual.

VIII –
Destruída a relação contratual, assistia-lhe o direito de vir a juízo pedir a apreensão e entrega do veículo.
Mister é agora saber se se verifica o “fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável” a tal direito, essencial para ela poder vir com um procedimento cautelar – artº 381º do CPC.
Os factos não são particularmente explícitos.
Mas, todos sabemos, é lícito ao julgador extrair presunções de facto. Partir dos factos conhecidos e, atentas as regras da vida, do normal evoluir dos acontecimentos (cfr-se Prof. Manuel de Andrade, NEPC, 215), chegar a factos desconhecidos.
Ora, na aferição deste evoluir normal dos acontecimentos, temos de dar, mais uma vez, especial atenção ao normal da vida quotidiana. O que também nos é permitido pelo recurso aos factos de conhecimento geral a que alude o artº 514º, n.º1 do CPC.

IX –
O contrato foi efectuado em 1997.
Em 1998 e 1999, os requeridos deixaram de pagar as mensalidades.
Foi-lhes pedida a restituição do veículo e não a levaram a cabo.
Já decorreram vários anos.

As relações contratuais deste tipo levam-se a cabo hoje com uma facilidade enorme e com correlativo desconhecimento da pessoa com quem se contrata.
Este é um cliente que aparece no estabelecimento, que fornece elementos, é certo, mas que logo que em poder do veículo pode passar sem qualquer controle várias fronteiras, que pode ter uma vida desconhecida, e que tem possibilidade de aparecer ou desaparecer, sem que seja facilmente localizado.
Neste quadro, o incumprimento das prestações passa a assumir um indício muito forte de que algo de negativo se pode passar. Se ele for reiterado em vez de anulado por pagamento posterior avolumam-se legitimamente as suspeitas. E, se passar a assumir foros de recusa de entrega do veículo, ainda mais é de suspeitar.
E contra isto não se argumente que a empresa que contrata devia averiguar com “quem contrata”. Seria altamente bloqueante da economia e atingidor dos direitos pessoais de reserva. Além de inviável.
Aliás, repare-se num pormenor:
O contrato teve lugar em 2.6.1997 e tem como “prazo de aluguer” 60 meses.
Em 2002 terminou tal prazo e a entrega podia ser obtida “motu proprio”, nos termos do artº17, n.º4 referido.
Os requeridos deixaram passar mesmo o termo previsto do contrato. Ainda que à margem de eventual discussão sobre a resolução, eles têm com eles um veículo que já deviam ter devolvido, mesmo que sempre tivessem pago as mensalidades.
Qualquer cidadão normal colocado no lugar da requerente teria receio de não mais obter o automóvel (que até já deve ter perdido a maior parte do valor, vistos os anos decorridos) e de, de pessoas que assim procedem, não obter qualquer reparação.
Temos, então, que chegamos aos factos integradores do requisito em causa por presunção natural, estando a nossa construção, em consonância com a que fez maioria no Ac. desta Relação de 30.10.2003.

XI –
Aliás, levando a cabo uma ponderação muito simples e sempre com a devida consideração por opiniões diferentes, atentemos no que está aqui em causa.
Os requeridos não pagam as mensalidades, não devolvem um automóvel sobre o qual não têm quaisquer direitos e vão passando anos nessa situação. Não se justifica uma reacção urgente do ordenamento jurídico?

XII –
Nesta conformidade:
Concede-se provimento ao agravo, determinando-se que o Sr. Juiz substitua o despacho recorrido por outro que decrete a providência requerida.
Sem custas –al. o) do n.º1 do artº 2º do Código das Custas Judiciais.
Porto, 6 de Maio de 2004
João Luís Marques Bernardo
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida (Vencido, por não subscrever a fundamentação do douto acórdão quanto à segunda questão analisada: verificação, no caso, do fundado meio de lesão grave e dificilmente reparável do direito da requerente. Ficou apenas demonstrado o incumprimento contratual por parte dos requeridos, incluindo a não restituição do veículo, apesar da resolução do contrato, o que se me afigura insuficiente para aquele efeito, como entendi no acórdão proferido no agravo nº 4449/03, desta secção, de que fui relator (cfr. também, neste sentido, os acs. da Rel. de Lisboa de 7.11.2002 e da Rel. do Porto de 30.09.2003, CJ XXVII, 5, 65 e XXVIII, 4, 177, respectivamente). Negaria, por isso, provimento ao agravo.)