Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1048/08.2TAVFR.P4
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: FRAUDE FISCAL
ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA
CONHECIMENTO DA INVESTIGAÇÃO
SEGREDO BANCÁRIO
REABERTURA DA AUDIÊNCIA
UNIDADE DE RESOLUÇÃO CRIMINOSA
MOMENTO DA CONSUMAÇÃO
Nº do Documento: RP201402191048/08.2TAVFR.P4
Data do Acordão: 02/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Se os indícios recolhidos suportarem uma acusação pelo crime de associação criminosa, a prova obtida através da quebra de segredo bancário determinado ao abrigo do art. 2.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2002, de 11/1 [que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira] deve valer para todos os demais crimes que estejam em conexão com o crime investigado, nomeadamente aqueles em que se traduz a atividade da associação criminosa (sob a forma de tentativa, coautoria e/ou cumplicidade), ainda que o crime investigado se não provar.
II – Mesmo que não chegue a haver acusação pelo crime investigado [de associação criminosa], os conhecimentos de investigação devem ser relevantes para a prova dos crimes objeto da atividade prosseguida, sem prejuízo de o arguido poder demonstrar que a invocação da figura da associação criminosa foi usada exclusivamente para permitir o uso de um meio de obtenção de prova que, à partida, se sabia não poder ser utilizado. Nestas condições, isto é, feita tal demonstração, a prova assim obtida deve considerar-se prova proibida, com todas as legais consequências, por falta da adequada necessidade do meio usado.
III – A reabertura da audiência de julgamento para produção de prova suplementar só é lícita (só é possível) quando for necessária para a determinação da sanção aplicável ou, então, para benefício do próprio arguido, maxime para a sua absolvição: se é possível reabrir a audiência para aplicação de lei penal mais favorável, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão condenatória, o mesmo deve ocorrer (após o encerramento da audiência) se surgir um meio de prova capaz de favorecer o arguido. IV – O art. 371.º do CPP só pode justificar a reabertura da audiência para as finalidades ali previstas, ou seja, "nos termos do n.º 2 do artigo 369.º ", o qual pressupõe a necessidade de produção de prova suplementar "para determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar".
V – No âmbito do crime de fraude fiscal, só há unidade de resolução criminosa quando o processo (ou o meio) de cometer o crime e as pessoas com as quais o crime é cometido (ainda que por largos período de tempo) sejam os mesmos. De outro modo, há pluralidade de crimes, pois há modos de execução perfeitamente autónomos.
VI – O crime de fraude fiscal cometido através de faturas falsas pode ser realizado de duas formas distintas: (i) pelo emitente das faturas que as entrega a outrem; (ii) por aquele a quem as faturas falsas são entregues e que, por seu turno, as inclui na sua conta-corrente para efeitos de IVA.
VII – Num e noutro caso o crime consuma-se em momentos diferentes: aquele que emite uma fatura falsa e a entrega a um terceiro, com a finalidade de este se aproveitar dela para cometer o crime de fraude fiscal, vê o seu crime consumado quando entrega a fatura; aquele que recebe a fatura falsa (isto é, sem que tenha havido qualquer transação) só comete o crime quando incluir a falsa operação numa declaração fiscal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 1048/08.2TAVFR.P4

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1 Relatório
No Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, procedeu-se a julgamento em Processo Comum (n.º 1048/08.2TAVFR), e perante Tribunal Colectivo, dos arguidos B… e outros, todos devidamente identificados nos autos, tendo a final sido proferido acórdão que deliberou (transcrição):
“ (…)
3 - DECISÃO
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram o Tribunal Colectivo do Círculo de Santa Maria da Feira em julgar a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e consequentemente:
3.1 – Condenam o arguido B…, como co-autor de 2 (dois) crimes de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º,nºs 1 e 2, do RGIT, nas penas parcelares de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão e 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, respectivamente, e na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.
3.2 - Condenam o arguido C…, como autor de 1 (um) crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2 do RGIT, na pena de 3 (três) anos de prisão.
3.3 – Absolvem o arguido D… da prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2, do RGIT.
3.4 – Condenam o arguido E…, como autor de 1 (um) crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2 do RGIT, na pena de 18 meses de prisão, que se substitui pela pena de prestação de 480 horas de trabalho a favor da comunidade, em condições a definir ulteriormente no âmbito de plano a elaborar pelos Serviços de Reinserção Social.
3.5 - Absolvem a arguida F… da prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts. 103.º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2, do RGIT.
3.6 - Absolvem o arguido G… da prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103.º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2, do RGIT.
3.7 - Absolvem o arguido H… da prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2, do RGIT.
3.8 - Absolvem a sociedade arguida I…, LDA. da prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts. 103.º, n.º 1, als. a) e c) e 104.º, nºs 1 e 2, do RGIT.
3.9 - Condenam o arguido J…, como autor de 1 (um) crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts.103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2 do RGIT, na pena de 15 meses de prisão, cuja execução se declara suspensa pelo período de 15 meses, sob condição de o arguido, durante aquele período, pagar ao Estado o montante de €20.000,00 (vinte mil euros), correspondente a parte das vantagens patrimoniais indevidamente obtidas com contribuição da sua conduta, em prejuízo do Estado.
3.10 – Condenam a sociedade arguida K…, LDA., como autora de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts. 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2, do RGIT, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), perfazendo o montante de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
3.11 - Condenam o arguido L..., como autor de 1 (um) crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2 do RGIT, na pena de 3 (três) anos de prisão.
3.12 - Condenam o arguido M…, como co-autor de 2 (dois) crimes de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º,nºs 1 e 2, do RGIT, nas penas parcelares de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão e 2 (dois) anos de prisão, respectivamente, e na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
3.13 – Declaram extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra o arguido N…, pela prática, enquanto gerente da sociedade “O…, Lda.”, de 1 (um) crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts. 103.º, n.º 1, als. a) e c) e 104.º, nºs 1 e 2 do RGIT.
3.14 - Condenam o arguido N…, como autor de 1 (um) crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2 do RGIT, na pena de 13 meses de prisão, que se substitui pela pena de prestação de 390 horas de trabalho a favor da comunidade, em condições a definir ulteriormente no âmbito de plano a elaborar pelos Serviços de Reinserção Social.
3.15 - Absolvem o arguido P… da prática de 2 (dois) crimes de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104.º, nºs 1 e 2, do RGIT.
3.16 - Condenam o arguido Q…, como autor de 1 (um) crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2 do RGIT, na pena de 14 meses de prisão, que se substitui pela pena de prestação de 420 horas de trabalho a favor da comunidade, em condições a definir ulteriormente no âmbito de plano a elaborar pelos Serviços de Reinserção Social.
3.17 - Absolvem o arguido S… da prática, enquanto gerente de facto da actividade empresarial declarada em nome de AE…, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts. 103.º, n.º 1, als. a) e c) e 104.º, nºs 1 e 2, do RGIT.
3.18 - Condenam o arguido S…, como autor de 1 (um) crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2 do RGIT, na pena de 2 (dois) anos de prisão, que se substitui pela pena de prestação de 480 horas de trabalho a favor da comunidade, em condições a definir ulteriormente no âmbito de plano a elaborar pelos Serviços de Reinserção Social.
3.19 - Condenam a sociedade arguida T…, LDA., como autora de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts. 103.º, n.º 1, als. a) e c) e 104.º, nºs 1 e 2, do RGIT, na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), perfazendo o montante de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros).
3.20 - Condenam o arguido U…, como autor de 1 (um) crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2 do RGIT, na pena de 16 (dezasseis) meses de prisão.
3.21 - Absolvem o arguido V… da prática de 1 (um) crimes de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto nos arts. 103º, n.º 1, als. a) e c) e 104º, nºs 1 e 2, do RGIT, por julgarem descriminalizados os factos integradores de tal tipo de crime, nos termos que deixamos vertidos sob o ponto 2.2.2).
Cada um dos arguidos condenados penalmente, vai também condenado no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça individual em 8 (oito) UC´s relativamente aos arguidos B…, C…, L… e M… e em 5 (cinco) UC´s quanto aos demais (arts. 513.º, nºs 1, 2 e 3 e 514.º, ambos do C P Penal, na redacção anterior à que lhes foi dada pela Lei n.º 34/2008, de 26/02 – Regulamento das Custas Processuais -, com as alterações introduzidas pelo art. 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, uma vez que de acordo com o art. 27.º daquela Lei, o novo regime de custas processuais só é de aplicar aos processos iniciados a partir de 20 de Abril de 2009, e arts. 82.º, n.º 1 e 85.º, n.º 1, a) do Código das Custas Judiciais).”

Inconformados com o acórdão condenatório, os arguidos B…, C…, J…, L…, M… e U… recorreram para este Tribunal da Relação.

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2.2. Matéria de direito
Foram interpostos vários recursos do acórdão condenatório, nos termos constantes das conclusões acima transcritas, apresentadas pelos arguidos/recorrentes.
Apreciaremos cada um deles separadamente.
2.2.1. Recurso do arguido B…
O arguido B… insurge-se contra o acórdão condenatório, por entender que deveria ter sido suspensa a execução da pena de prisão que lhe foi aplicada. No essencial, alega o arguido que, “salvo melhor opinião, conjugados os artigos 40°, 50°, 70°,71° e 72° do Código Penal, deveria ter sido suspensa a execução de tal pena. Na verdade (continua o arguido), “ponderadas as condições pessoais, constantes do ponto 2.1.19 do Douto Acórdão recorrido, página 19, a conduta posterior aos factos, o tempo decorrido sobre a prática do crime e a sua preparação para manter um conduta licita, o Digníssimo Tribunal a quo deveria ser aplicado uma pena única de prisão de quantum inferior ao aplicado, assim como deveria ter decido pela suspensão da execução da pena de prisão, por preenchidos os requisitos do artigo 50 do Código Penal”. Tanto mais que (continua) “o arguido adopta uma conduta conforme ao Direito há dez anos” e, “desde a data da prática dos factos que deram origem à condenação no presente processo, não é conhecida ao arguido a prática de qualquer ilícito criminal”. Por outro lado, “vive com dificuldades sócio-económicas e de saúde desde de 2003 e, ainda assim, não recorreu ou fez do ilícito criminal forma ou consequência para subsistir financeiramente ou elevar/melhorar a sua condição sócio económica e do seu agregado familiar.” “Mesmo padecendo de doença infecto-contagiosa grave, o recorrente emigrou para Inglaterra onde tentou dar um novo rumo à sua vida, por forma a melhorar as condições económicas -financeiras do seu agregado familiar, tentativa gorada, mas, ainda assim, legitima e legal”. Sublinha ainda que “Vive no limiar da sustentabilidade, auferindo, em média, cerca de 600,00€ (Seiscentos Euros) mensais, acrescidos de 150,00€ (Cento e cinquenta Euros) do rendimento social de inserção de sua esposa, contudo, o recorrente manteve-se, como se mantém, convicto numa vida segundo a legalidade e não voltou à prática de condutas criminosas”.
O MP junto do tribunal de 1ª instância pugna pela manutenção do acórdão recorrido, sublinhando que o arguido causou um prejuízo ao Estado no montante total de € 746.382,18. Há que atender (refere o MP), “em desfavor do arguido: em sede de culpa, o dolo directo de acentuada intensidade, revelada esta pela apreciável quantidade de facturas falsificadas e utilizadas e pelo período temporal dilatado em que perdurou a actividade executiva dos propósitos do arguido, o que sempre denota uma personalidade, manifestada no facto, distanciada da personalidade pressuposta no “homem fiel ao direito”; o elevado grau de ilicitude do facto, ao nível do desvalor da acção, considerando o elevado montante dos prejuízos causados ao Estado (€209.907,50, no que se refere ao crime que integra as facturas emitidas em nome da sociedade W…, Lda; €536.474,68, no âmbito do crime que contempla as facturas emitidas em nome de terceiros e utilizadas na contabilidade da sociedade gerida pelo arguido); em sede de factores relevantes ao nível da prevenção, a elevada ilicitude do facto, na vertente do desvalor de acção, atendendo ao modo de execução do crime, prolongado no tempo e com a utilização de número considerável de facturas falsas de valores economicamente muito relevantes, com repercussões negativas em sede de prevenção especial de socialização e geral de integração; as cada vez mais elevadas exigências de prevenção geral relativas ao tipo de crime em análise, atendendo à frequência com que este tipo de ilícito vem sendo praticado (particularmente na área desta comarca) e ao seu carácter altamente lesivo dos interesses da comunidade, com repercussões negativas ao nível da prevenção geral de integração; a ilicitude do facto, ao nível do desvalor do resultado, considerando a circunstância de terem sido causados prejuízos elevados ao Estado, mediante a diminuição da receita fiscal devida, com repercussões negativas em sede de prevenção geral de integração e especial de socialização; a conduta anterior ao facto, consubstanciada na prática de outros crimes de natureza fiscal, sendo um de abuso de confiança fiscal, reportado a 1995, pelo qual foi condenado por sentença transitada em 07/12/2001 (antes da consumação dos crimes aqui em causa), um outro de fraude fiscal, reportado a 1996, pelo qual foi condenado em 2008, e ainda outro de abuso de confiança fiscal, reportado a Fevereiro de 2002, pelo qual foi condenado por sentença transitada em 2010.”
Em conclusão, o MP entende que, a seu ver, é “adequada a pena aplicada ao arguido”, não lhe parecendo que se devesse “ter ponderado qualquer outra alternativa”.
Todavia, nesta Relação, o Ex.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido. No essencial, considera este Magistrado haver que vincar dois aspectos: “(…) o aspecto que é evidente e que se traduz na mudança de comportamento depois de se saberem perseguidos e condenados, o que permite a conclusão de que são sensíveis à crítica que lhes é dirigida e temerosa das reacções criminais e das penas; o segundo aspecto traduz-se na permanência e sedimentação do comportamento conforme à lei, no tempo”. Em seu entender, “(…) a personalidade revelada nestas circunstâncias permite acreditar no bom comportamento futuro dos arguidos (C…, U…, B… e J…), sujeitos que estão à ameaça do cumprimento da pena de prisão, devendo cumprir a obrigação da entrega ao Estado das quantias de que se apropriaram, na medida do que lhes for possível exigir, nos termos do art. 14º do RGIT.”.
Vejamos então.
O acórdão recorrido entendeu que o arguido B… praticou dois crime de fraude fiscal, previstos e puníveis, até 4 de Julho de 2011, pelo art. 23º, n.º 1, 2, al. a) e c), 3 a) e e) do RJIFNA, na redacção do Dec. Lei 394/93, de 24/11 e, a partir de 5 de Julho de 2011, pelos art. 103º, 1, a) e c) e 104º, n.ºs 1 e 2 do RGIT.
Na determinação da medida da pena, o Tribunal elencou as circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao arguido – fls. 25.282 e 25.283 – após o que lhe aplicou a pena de 2 anos e 6 meses de prisão relativamente ao crime sustentado nas facturas emitidas em nome da sociedade “W…, Lda” e utilizadas na contabilidade das sociedade “X… e Y…”, e a pena de 3 anos e 6 meses pelo crime referente às facturas utilizadas pela arguido na contabilidade da referida sociedade que geria W…. Em cúmulo jurídico, aplicou-lhe a pena única de 4 e anos e seis meses de prisão.
O Ex.º Procurador-geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer favorável à suspensão da execução da pena, sujeita à condição de o arguido entregar ao Estado as quantias equivalentes ao prejuízo causado, dentro das suas possibilidades económicas.
Concordamos com o Ex.º Procurador-Geral Adjunto, ou seja, entendemos também que a pena de prisão aplicada ao arguido B… deve ser suspensa na sua execução. É verdade que o artigo 14º, 1 do RGIT condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais: “a suspensão da execução da pena de prisão é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios.”
Apesar de este regime legal ter sido julgado conforme à Constituição da República, tal conformidade assentava fundamentalmente no facto de a revogação da suspensão da pena não ser automática, mas antes dependente de avaliação judicial relativamente ao cumprimento da condição – cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do T. Constitucional 256/2003, 335/2003 e 376/2003
No mesmo sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, afastando a tese da inconstitucionalidade – cfr. (entre muitos outros) os acórdãos de 08-11-2001, proc. 2988/01-5ª, 09-05-2002, proc. 1231/02-5ª e de 12-12-2002, proc. 4218/02-5ª, referindo expressamente: “Não é desconforme à Constituição o condicionamento da pena suspensa, nomeadamente ao pagamento da indemnização devida ao lesado ou do imposto em dívida ao Estado no caso de infracções tributárias”.
Posteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça publicou todavia um acórdão para fixação de jurisprudência, onde decidiu: “No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no art. 105º, n.º 1 do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art. 50º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o art. 14º, n.º 1 do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose sobre a razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.” – Acórdão do STJ n.º 8/2012, in DR, I Série, n.º 206, de 24 de Outubro de 2012.
No caso dos autos, o arguido/recorrente B… fora já condenado por crimes de natureza fiscal, praticados em 1995 e 1996.
A concreta situação económica do arguido é a seguinte:
“2.1.1.20 – No período temporal que decorreu entre 2001 e 2003, o agregado familiar do arguido integrava, como agora, o cônjuge, actualmente com 39 anos de idade, e o referido filho, actualmente com 14 anos de idade, estudante;
-vive com aqueles familiares em casa arrendada, com o que suporta a renda mensal de € 200,00, que não paga com regularidade;
-emigrou para Inglaterra em Janeiro de 2010, onde se manteve até Fevereiro deste ano, altura em que regressou a Portugal;
-após retomar acompanhamento médico, vem mantendo alguma actividade ocupacional, prestando serviços para outrem na indústria de transformação da cortiça, sem regularidade nem remuneração fixa, com o que aufere rendimento médio mensal de €600,00, o qual se destina a fazer face a todas as despesas do agregado familiar;
-a esposa não exerce actividade profissional remunerada, sofrendo de problemas de saúde da mesma natureza dos seus – doença infecto-contagiosa grave –, e beneficiando do Rendimento Social de Inserção, desde Outubro de 2011, no montante mensal de €150,00; o arguido e a sua família mantêm postura recatada no meio sócio residencial, mantendo convivência social restrita.
(…)”.
De acordo com a matéria de facto dada como provada, acima transcrita, é claro que não é possível impor ao arguido a condição de pagar ao Estado, em cinco anos, as quantias tributárias em dívida, de montante global superior a € 700.000,00 (setecentos mil euros: €209.907,50 + €536.474,68).
Na verdade, o arguido vive em condições económicas bastante precárias, auferindo a quantia de 600,00 euros mensais, a qual se destina a fazer face a todas as despesas do agregado familiar (composto por si, cônjuge e filho menor); o seu cônjuge beneficia de um subsídio mensal de 150,00 € (a título de Rendimento Social de Inserção) e sofre (tal como o arguido) de doença infecto-contagiosa grave.
Nestas condições, não se justifica de modo algum que lhe seja imposta uma condição cujo cumprimento não pode, à luz das mais elementares regras da experiência comum, ser cumprida.
Assim, tendo especialmente em conta que o arguido interiorizou já o desvalor da sua conduta e a correspondente censura penal e, desde há muitos anos, conduz a sua vida de acordo com o direito penal, justifica-se a suspensão da execução da pena de prisão.
Nestes termos, impõe-se conceder provimento ao recurso e, consequentemente suspender a execução da pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada ao arguido, por igual período (4 anos e 6 meses).
2.2.2. Recurso do arguido C…
O arguido C… insurge-se contra o acórdão condenatório essencialmente por razões de direito, invocando a nulidade da prova produzida, por violação da Lei nº. 5/2002, a inconstitucionalidade do art. 103º do RGIT, a insuficiência dos factos para a solução de direito e, ainda, a violação do art. 50º do C. Penal (conclusões 1ª e 2ª).
Vejamos cada uma das questões suscitadas.
(i) Nulidade ou proibição da prova, por violação da Lei n.º 5/2002 de 10/11
Relativamente a este ponto, alega o arguido que “A documentação bancária compilada nos anexos B, nomeadamente B-21 (extractos de conta, fichas de assinatura, cheques, depósitos, etc.) é sigilosa, nos termos do artigo 78 do RGICSF. Tendo o Mº Pº proferido despacho a fls. 266, sustentado na Lei 5/2002, determinando a quebra do segredo profissional na dupla vertente bancário-fiscal, a prova obtida através de tal quebra só poderá ser utilizada e valorada pelo Tribunal a quo se o arguido fosse acusado e condenado pela prática dum crime de catálogo (artigo 1 nº 1 da Lei 5/2002 e Lei 36/94 de 29 de Setembro).” Entende, em síntese, que “Os mecanismos previstos na Lei 5/2002, de 10/11, não são admissíveis para o crime de fraude fiscal qualificada praticada nos termos constantes da Acusação e do Acórdão condenatório pelo que toda a prova obtida por esse meio não pode ser utilizada para prova da prática de tal ilícito. A exigência do catálogo vale tanto para o momento da quebra do sigilo e do fornecimento dos documentos ao abrigo dessa mesma quebra como para momento ulterior e distinto da sua valoração. Será sempre ilegítima e ilícita a valoração de prova obtida com base na quebra de segredo bancário que, ao tempo em que a valoração é feita, não está associada à perseguição de um crime de catálogo. Não tendo o Ministério Público deduzido Acusação por crime de catálogo (artigo 1º nº s 1 e 3 da Lei 5/2002) não se pode valorar em sentença a documentação remetida pela/s entidade/s bancária/s ainda que a titulo de conhecimentos da investigação sob pena de se cometer uma autêntica fraude: poder utilizar-se os mecanismos da Lei 5/2002 para investigar ilícitos penais que à partida não admitiriam a utilização de tais mecanismos. Daí que conclua o recorrente: “ A prova constante dos anexos B foi pois obtida mediante intromissão na esfera privada (patrimonial) do arguido e das suas representadas X…, Lda. e Z…, Lda., sem o seu consentimento e sem estarem em causa crimes do catálogo logo, toda a prova constante dos Anexos B e nomeadamente a constante dos anexos B-21, é prova nula por proibida, sendo nulo o acórdão que fez uso da mesma nos termos do artigo 32º, n.º8 da CRP (as proibições de prova dão lugar a provas nulas) e artigo 118º, n.º 3, do CPP (as disposições do capítulo das nulidades não prejudicam as normas deste código relativas a proibições de prova podendo ser arguida em qualquer fase do processo) o que se argui requerendo-se desde já a declaração de tal nulidade.”
O MP junto do Tribunal “a quo” respondeu a este aspecto da motivação do recurso, pugnando pelo acerto da decisão e validade da recolha da prova. Em seu entender, “a prova foi obtida legalmente e o juízo de prognose que o Ministério Público fez na altura em que proferiu o despacho solicitando os elementos bancários era no sentido de que existiam indícios que apontavam no sentido da existência dos crimes referidos nos artigos 1º e 2º da Lei 5/2002, facto que não se veio a concretizar. Contudo tal não implica que tal prova deva sem mais ser classificada como proibida. Acresce que as diligências que são efectuadas no decurso do inquérito não são dirigidas contra A ou B mas sim com o objectivo de se apurar se houve ou não crime, qual ou quais os crimes e qual ou quais os seus autores. O facto de em determinada fase do processo existirem indícios de que só, naquele momento, A ou B podem ter praticado um crime isso não implica que posteriormente se apure que C ou D também o praticaram ou até que nenhum deles o praticou. Só no despacho de encerramento do inquérito é que fica fixado o seu objecto e os seus autores, sendo eles conhecidos.”
O Ex.º Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer no sentido de não ter sido cometida qualquer nulidade. “No caso (refere este Magistrado), o Ministério Público declarou a quebra do sigilo bancário e ordenou o livre acesso aos dados bancários que especificou no seu despacho (fls. 266 e sgs), atrás citado. Tanto basta, quanto a nós, que a prova obtida tendo por legitimação a declaração de quebra do dever de sigilo bancário, seja prova que deve considerar-se “legal” ou “não proibida” logo validamente valorável ao abrigo do artigo 125º. A questão relaciona-se com a legalidade da obtenção e se é válida é-o para os fins para que se mostrar útil. Atalhando toda a argumentação que se vem aduzindo a este respeito, prestemos atenção à prova que seja obtida com fundamento na suspeita da associação criminosa. A prova obtida com fundamento na suspeita de associação criminosa não serve, na generalidade dos casos e ainda que venha a ser formulada acusação e decidida a condenação pela associação criminosa, mas apenas para demonstração das condutas cometidas ao abrigo da associação criminosa. Colocar-se-á uma pergunta que, cremos, ficará sem resposta ou a que não poderá ser dada resposta lógica, que é a seguinte: Se a suspeita de associação criminosa, que justificou a recolha de provas e pela qual se demonstra actividade delituosa, se não prova em fase de inquérito e não é deduzida acusação quanto a ela, a prova conseguida sobre a actividade criminosa de pessoas que supostamente estavam congregadas em associação deve ou não considerar-se validamente obtida e portanto se é válida para efeitos de formação da convicção do julgador ou não? A resposta só pode ser a de que é válida essa prova e deve ser livremente valorada.” (fls. 25482/25483.)
Vejamos.
A questão foi colocada com toda a precisão e rigor pelo Ex.º Procurador-geral Adjunto nesta Relação, quando questiona a validade da prova obtida com vista à investigação de um crime que justificava aquele concreto meio de prova (acesso a dados protegidos com o sigilo bancário para prova de um crime de associação criminosa), quando os arguidos visados não são acusados da prática desse crime, nem de qualquer outro relativamente ao qual era possível (naquelas condições) a dispensa do sigilo bancário.
É certo que a quebra do sigilo bancário, no caso dos autos, até podia ter sido ordenada pela autoridade judiciária, ao abrigo do disposto no art. 135º do CPP. Mas não foi essa a via utilizada.
No presente caso, o meio de obtenção da prova (quebra de sigilo bancário) foi determinado ao abrigo do disposto no art. 1º, 2º e 3º da lei 5/2002 e, portanto, a sua validade depende da natureza do crime sob investigação. Nos termos do art. 1º da referida Lei, o regime aí previsto - permitindo a agilização da quebra do sigilo bancário - é aplicável aos crimes expressamente descritos nas suas alíneas (crimes do catálogo); entre esses crimes, encontra-se o de “associação criminosa” (art. 1º, al. f).
Foi com fundamento na existência de indícios de um crime de associação criminosa que foi proferido despacho pela polícia judiciária - por delegação do Ministério Público, titular do inquérito - determinando a quebra do segredo bancário (art. 2º, n.º 2 da mesma Lei n. 5/2002).
Nestes termos, uma coisa é certa: se o arguido tivesse sido condenado pela prática de um crime de associação criminosa, a prova obtida através da quebra do segredo bancário era válida e podia ser valorada, de acordo com as regras gerais de formação da convicção do tribunal.
Só que não foi isso que aconteceu.
O arguido nem sequer foi acusado do crime de associação criminosa e nenhum dos crimes por que foi acusado consta do catálogo, isto é, faz parte dos crimes relativamente aos quais é aplicável a Lei 5/2002.
Daí a questão de saber se a prova obtida (através da quebra do segredo bancário) para um crime que justificava esse invasivo meio de prova também é válida para os crimes que resultaram dessa investigação, mas que não constam do elenco dos crimes que o permitiam.
É verdade que a doutrina e a jurisprudência não têm permitido a valoração da prova obtida por meios proibidos, para a prova de crimes que não constam do elenco daqueles que a justificaram. Daí ter sido afastado o relevo da prova obtida por escutas telefónicas em processos disciplinares (cfr. acórdãos da Relação do Porto, de 10-07-2013, processo 706/11.9TTPRT.P1 e do Supremo Tribunal Administrativo, de 30-10-2008, proferido no processo) ou em inquéritos parlamentares (COSTA ANDRADE, “Escutas Telefónicas, Conhecimentos Fortuitos e Primeiro Ministro”, RLJ 139º p. 273 e 274).
Contudo, a questão que nos ocupa é diversa.
Na verdade, a questão não é a de saber qual a relevância da prova obtida num processo-crime, fora desse processo (ainda que criminal). Essa questão, relativamente às comunicações telefónicas, está hoje expressamente resolvida no art. 187, n.º 7 do CPP, ao limitar a utilização das mesmas, além do mais, para a prova de crimes que justifiquem tal meio de prova (os crimes do catálogo expressamente previstos no n.º 1 do referido preceito).
Com efeito, no presente caso, a quebra do sigilo foi usada no processo e contra o arguido relativamente ao qual foi proferido despacho determinando essa quebra.
A questão é, portanto, a de saber em que medida é admissível aproveitar os conhecimentos obtidos através desse meio de prova, para dar suporte a uma acusação por crime diverso e que só por si não justificava a dispensa de sigilo, nos termos em que foi dispensada.
Esta questão foi abordada por COSTA ANDRADE (Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal), procurando estabelecer um critério de distinção entre os “conhecimentos de investigação” e os “conhecimentos fortuitos”. Problema que surge, como adverte o autor, porque existe uma frequente impossibilidade fáctica de limitar a escuta aos conhecimentos ou factos que, à partida, determinam a sua validade” (fls. 304). Um dos exemplos-tipo estudados por este autor é, precisamente, o da investigação de um crime de associação criminosa, em que, afinal, vem a averiguar-se a existência de crimes objecto daquela actividade criminosa, mas não o suficiente para se poderem qualificar como crimes de associação criminosa (4º exemplo apresentado a fls. 305).
O autor (reportado ao direito alemão) refere a admissibilidade da valoração dos elementos recolhidos com vista à prova do crime de associação criminosa, mesmo que não venha a verificar-se este crime: “Por outro lado e complementarmente, entende (a jurisprudência alemã) que o facto de em julgamento se apurar como infundada a acusação pelo crime de associação criminosa não impede a valoração dos conhecimentos relativos aos crimes da associação. Um regime que valerá mesmo para a hipótese extremada de não vir sequer a ter lugar a acusação pelo crime de associação” (fls. 309).
O autor adverte ainda para o facto de ser possível “o expediente fácil da invocação de um crime de associação criminosa, apenas com o propósito de, em contravenção da intencionalidade da lei, estender as escutas telefónicas a crimes a que a medida não poderia, pura e simplesmente aplicar-se”. Por isso, em seu entender, devia exigir-se que, pelo menos, o crime que justificou o meio de prova tivesse consistência para suportar uma acusação.
Ora, a nosso ver, julgamos (sem qualquer dúvida) que se os indícios recolhidos suportarem uma acusação, a prova assim recolhida deve valer para todos os demais crimes que estejam em conexão com o crime de associação criminosa investigado, nomeadamente aqueles em que se traduz a actividade da associação criminosa (sob a forma de tentativa, co-autoria e/ou cumplicidade), mesmo se o crime investigado se não provar.
Entendemos ainda que, mesmo que não chegue a haver acusação pelo crime de associação criminosa, os conhecimentos de investigação devem ser relevantes para a prova dos crimes objecto da actividade prosseguida, sem prejuízo de o arguido poder demonstrar que a invocação da figura da associação criminosa foi usada exclusivamente para permitir o uso de um meio de obtenção de prova que, à partida, se sabia não poder ser utilizado. Nestas condições, isto é, feita tal demonstração, a prova assim obtida deve considerar-se prova proibida, com todas as legais consequências, por falta da adequada necessidade do meio usado.
Ora, no presente caso, a quebra do sigilo bancário era um meio de obtenção de prova possível para a investigação dos crimes objecto da actividade, através do regime previsto no art. 182º do CPP e, na altura em que foi determinada a medida (quebra do segredo), os indícios eram bastantes para suportar o juízo sobre a existência provável de um crime de associação criminosa. Deste modo, não há qualquer indício, por mais ténue que seja, no sentido de que foi falsamente invocada a figura da associação criminosa para justificar a recolha de prova de crimes que não permitiam a quebra do sigilo.
Consequentemente, entendemos que não foi cometida qualquer nulidade ao ter sido determinada a quebra do sigilo bancário, pois a prova obtida através desse meio foi lícita.

ii) Nulidade do acórdão por ter acolhido prova suplementar irregular (recurso interlocutório).
Relativamente a esta questão, importa referir que o arguido recorreu tempestiva -mente do despacho proferido pelo Tribunal Colectivo de S.ª Maria da Feira, em 5/11/2012 (cf. Acta de audiência de fls. …), indeferindo a irregularidade por si arguida, relativa ao despacho proferido nesse dia, ordenando a produção de prova/inquirição de testemunhas, após ter sido declarada encerrada a audiência de discussão e julgamento (em 8/10/2012). Tal recurso visa assim a irregularidade do despacho proferido em 5/11/2012, ordenando a produção de prova quanto à factualidade constante da acusação, após ter sido declarada encerrada a audiência, em 8/10/2012, por violação do disposto nos artigos 340º, 355º, 360º nº 4, 361º nº 2, 371º e 371º-A do CPP
Neste recurso, o arguido manifestou interesse na apreciação daquele.
Em suma, entende que “se a prova que o Tribunal a quo pretendeu produzir após o encerramento da audiência não incidir sobre questões de determinabilidade da sanção está vedada tal iniciativa processual, pelo que o despacho que determinou a inquirição violou (ou pelo menos fez uma incorrecta interpretação/aplicação) os artigos 340, 360 nº4, 361 nº 2 e 371 do CPP, devendo ser considerado irregular com as devidas e legais consequências (artigo 123 CPP), nomeadamente a invalidade dos actos subsequentes (inquirição de testemunhas e o próprio Acórdão).
De acordo com o artigo 361º do CPP, findas as alegações, o arguido pode ainda declarar em sua defesa, após o que é declarada encerrada a audiência, ficando esgotada a possibilidade do disposto nos artigos 340º ou 360º nº 4 CPP, até porque a própria redacção do artigo 361º prevê uma única possibilidade de reabertura da audiência: a prevista no artigo 371º do CPP.
A inaplicabilidade do disposto no artigo 340º do CPP (determinação de produção de prova, após o encerramento da audiência) resulta da conjugação do disposto nos artigos 360º nº 4 e 361 nº 2 do mesmo código. Na verdade, se fosse intenção do legislador estender a aplicabilidade do artigo 340º para além da fase de alegações orais, não faria sentido a consagração expressa da interrupção das mesmas, para efeitos de produção de prova, uma vez que tal estaria logicamente abrangido pelo próprio artigo 340º.
Mesmo que se considerasse que a inquirição de novas testemunhas, no momento em que foi determinada, era processualmente válida e oportuna, sempre se diria que, ainda assim, o despacho era irregular, na medida em que essa prova, ordenada oficiosamente pelo Tribunal a quo, tinha sempre que resultar da prova produzida em audiência, ou da prova que, não tendo sido produzida em audiência, podia ser valorada nos termos do artigo 355º CPP.
Resultando do acórdão recorrido que o Tribunal a quo, para dar como provada a factualidade imputada ao recorrente e relativa às operações entre a “X…, Lda” e a “W…, Lda”, valorou positivamente os depoimentos de tais testemunhas, nomeadamente de AB… e de AC…, alicerçando a formação da sua convicção nos depoimentos destas testemunhas, ambas representantes legais de empresas transportadoras e inquiridas após o encerramento da audiência de julgamento, fê-lo fundamentando-se em prova irregular.
A prova testemunhal indicada pelo Tribunal recorrido na motivação de facto, nomeadamente os depoimentos de AB… e de AC… resulta assim de inquirição feita ao abrigo do despacho de fls., proferido na audiência de discussão e julgamento do dia 5/11/2012. Sendo tal despacho irregular, nos termos alegados no recurso interlocutório de fls., deverá igualmente ser declarada a irregularidade dos actos subsequentes que possuam uma ligação lógica com o acto irregular, nomeadamente tal inquirição, a prova daí emergente, e o acórdão recorrido, na parte em que fez uso da mesma.
Conclui que o acórdão recorrido, fazendo uso de prova irregular (e que por tal motivo não podia ser valorada) e utilizando a mesma para sustentar a condenação do recorrente, é ele mesmo irregular, nos termos do artigo 123º do CPP, o que expressamente argui.
Respondeu o MP junto do tribunal “a quo”, pugnando pela improcedência do recurso, também nesta parte, referindo:
“(…) Alega o arguido (como já o fez em recurso interlocutório) como irregular o douto despacho proferido pelo Tribunal Colectivo no dia 05/11/12 que, na sequência de despacho proferido no dia 29/10/12, determinou a reabertura da audiência para proceder à inquirição de testemunhas que, no seu entender, eram importantes para a descoberta da verdade material. O arguido considera que, uma vez que as alegações já tinham sido produzidas, o tribunal apenas pode determinar a reabertura da audiência nos precisos termos que impõe o artigo 371º do CPP, isto é, quando se coloca a questão da necessidade de produzir prova suplementar nos termos do nº 2 do art.º 369º do CPP que será o da determinação da sanção concreta a aplicar ao arguido. De acordo com o disposto no art.º340º do CPP o “tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa”. Recai o dever sobre o juiz de mandar produzir todas as provas que se lhe afigurem necessárias para esclarecer os factos e fixar a verdade judicial. Deve fazer produzir todas as provas que apontem no sentido de contribuir para o esclarecimento dos factos e a responsabilidade ou irresponsabilidade do arguido. Por outro lado, na situação invocada pelo arguido para impugnar a decisão, que consta do disposto no art.º 369º do CPP, o tribunal pode determinar a reabertura da audiência para determinar a concreta sanção penal, o que quer dizer que já reuniu todos os elementos que permitem aplicar uma pena ao arguido, isto é, já formou a sua convicção acerca da culpabilidade deste. Ora se é permitido ao tribunal reabrir a audiência quando já formou a convicção sobre a culpabilidade daquele então não se compreenderia que não o pudesse fazer quando ainda tem dúvidas sobre a culpabilidade ou a inocência do arguido. Seria a nosso ver um contra-senso. Se o tribunal pode para o mais - aplicar uma sanção ao arguido – então também tem que ter possibilidade de poder produzir prova para, caso seja necessário, o inocentar. Daí que não cometeu o tribunal qualquer irregularidade antes tendo agido dentro dos seus poderes-deveres de chegar a uma conclusão para além de toda a dúvida razoável.”
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto distinguiu dois aspectos.
Relativamente à possibilidade de o juiz do julgamento efectuar diligências de prova, depois de encerrada a audiência, concluiu que tal prática não lhe parece possível; considerou todavia que, não obstante a não valoração dos depoimentos prestados, depois de encerrada a audiência, a verdade é que é válida “a convicção sobre a falsidade das transacções documentadas pelas facturas 293 e 305, conjugadas com o depoimento da testemunha AD…”. Deste modo, não obstante a prática irregular (audição de testemunhas depois de encerrada a audiência), dessa irregularidade nada resulta, pois a convicção do tribunal continua válida.
Vejamos a questão.
De acordo com a posição do Ex.º Procurador-geral Adjunto nesta Relação, há duas questões a decidir: (a) saber se é (ou não) possível produzir prova suplementar (inquirir testemunhas) depois de encerrada a audiência, para fins diversos dos previstos nos artigos 371º e 369º, 2 do CPP; (b) saber se, caso tal configure uma irregularidade processual, os factos dados como provados estão (ou não) afectados por tal irregularidade.
Quanto à primeira questão julgamos que, nos termos previstos na lei, a reabertura da audiência para produção de prova suplementar só é lícita (só é possível) quando for necessária para a determinação da sanção aplicável ou, então, para benefício do próprio arguido, maxime para a sua absolvição. Julgamos efectivamente que, se é possível reabrir a audiência para aplicação de lei penal mais favorável, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão condenatória, o mesmo deve ocorrer (após o encerramento da audiência) se surgir um meio de prova capaz de favorecer o arguido. O MP junto do tribunal “a quo” também argumentou deste modo (e a nosso ver bem), sublinhando tal possibilidade desde que o resultado da prova obtida após o encerramento da audiência seja exclusivamente a favor do arguido.
O art. 371º do CPP só pode justificar a reabertura da audiência para as finalidades ali previstas, ou seja, “nos termos do art. 369º, 2”, o qual pressupõe a necessidade de produção de prova suplementar “para determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar”.
Não tendo sido esse, no caso, o fundamento para a reabertura da audiência, tal reabertura configura uma irregularidade não consentida por lei.
A consequência da irregularidade cometida é, nos termos do art. 123º, 1, do CPP, a “invalidade do acto a que se refere e do termos subsequentes que possa afectar”. Daí que sejam inválidos os depoimentos prestados após o encerramento da audiência, bem como a valoração da prova feita com base neles.
Assim e nesta parte, o recurso deve ser julgado procedente.
A segunda questão é a de saber em que medida os factos dados como provados com base em tal prova, relativos ao arguido/recorrente, são afectados pela irregularidade cometida.
Relativamente a esta questão, o Ex.º Procurador-geral Adjunto que entendeu que não havia nenhum efeito, pois a convicção do julgador, afinal, subsistia válida mesmo sem atender aos depoimentos irregularmente obtidos.
Concordamos inteiramente com o Ex.mo Procurador-geral Adjunto.
Na verdade, a prova dos factos relevantes, designadamente dos elementos constitutivos da ilicitude (falsidade das transacções) resulta, com toda a evidência, das informações prestadas pelos documentos juntos a folhas 293 e 305, conjugadas com o depoimento da testemunha AD…. A decisão recorrida é, de resto, exaustiva na demonstração da falsidade das transacções (cfr. fls. 127 a 153 do acórdão recorrido), onde são analisadas as diversas facturas e examinados os cheques usados para pagamento. Da análise de cada uma das facturas é feito um resumo e apresentada a respectiva conclusão. Por exemplo (a factura 44, datada de 16-11-2001) demonstra-se que, para pagamento de tal factura, são usados três cheques. Analisados os mesmos verifica-se que existiu um valor de pagamento simulado, pois o seu valor retorna à conta controlada pelos responsáveis da X… (fls. 142 e 143).
A prova assim obtida resultou, como se vê, da análise dos documentos de natureza bancária (cfr. fls. 127 do acórdão). Verifica-se pois que, para a prova dos factos dados como provados, foi irrelevante o depoimento das testemunhas irregularmente ouvidas (em sede de prova suplementar), pelo que recurso do arguido, também nesta parte, deve ser julgado improcedente.
(iii) irregularidade da utilização do Relatório Técnico
Relativamente a este segmento do recurso, considera o arguido:
“O denominado “Relatório Técnico” relativo à X… (fls. 15101 e ss dos autos.) que o Tribunal a quo utilizou para dar por provada a simulação de negócios jurídicos subjacentes à emissão das facturas em causa nos autos é um texto elaborado em sede de inquérito por um inspector tributário destinado a auxiliar o titular da acção penal, não podendo ser utilizado na prova de factos.
O relatório técnico de fls. 15101 é um texto subscrito por um inspector tributário que relata aquilo que viu/analisou sendo pois um testemunho escrito que consta no inquérito que é aliás nulo por se basear na análise de prova proibida. As leituras de testemunhos durante o inquérito não são permitidas em julgamento, salvo excepções cujos pressupostos não foram invocados pelo acórdão recorrido.
Em julgamento vale apenas o depoimento prestado no decorrer da audiência (arts. 355 a 357, todos do CPP). O Tribunal a quo não faz qualquer apreciação/juízo critico do depoimento do autor do mesmo em sede de julgamento, limitando-se a dar o mesmo como verdadeiro, fazendo mero “copy paste” deste no Acórdão para, a final, concluir: Da análise dos movimentos de natureza contabilística e bancária que acabamos de transcrever, que temos por válida, ressalta com toda a clareza a simulação do pagamento das facturas.
O Tribunal deveria analisar o depoimento prestado em audiência da testemunha que subscreveu tal relatório (AD…) na medida em que da forma como se encontra sustentada a formação da convicção, o cidadão médio ficará com dúvidas se o Tribunal a quo analisou a documentação bancária e contabilística referida nesse relatório de forma a aferir se o que consta daquele é correcto ou se se limitou a dar como verdadeira a análise feira por um inspector tributário em sede de inquérito de forma acrítica. Ao não indicar os motivos de credibilidade dos depoimento do autor do relatório em sede de audiência, se o mesmo corroborou em julgamento o que consta do relatório produzido em inquérito, se foi operada uma apreciação correcta de documentação junta aos autos, não é concretamente perceptível determinar como se formou a convicção do Tribunal.
A Constituição da República Portuguesa, ao consagrar que o processo penal assegurará todas as garantias de defesa não é compatível com a mera enumeração dos meios de prova utilizados para a decisão. Logo, para que seja possível aquilatar da justeza e validade de determinada decisão é nuclear que a motivação do juízo/processo intelectual seguido em matéria de facto conste da decisão, caso contrário está aniquilado ao arguido a possibilidade de requerer o controlo da legalidade/validade da decisão pela via do recurso. As garantias de defesa do arguido, consagradas no art.º 32º, nº 1, da CRP, impõem que na sentença sejam indicados os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma a prova produzida em audiência. O Tribunal relativamente à prova dos factos imputados ao recorrente e às co-arguidas AF…, Lda., I…, Lda., K…, Lda., AG…, Lda. e respectivos representantes legais limita-se a dar como verdadeiro um documento produzido em sede de inquérito sem atender ao depoimento da testemunha em sede de audiência sendo que a motivação de facto não contém o imprescindível exame crítico que permita reconstituir o percurso lógico seguido pelo julgador. Verifica-se pois existir nulidade da sentença (379 nº 1 al. a) do CPP) por inobservância do disposto o artigo 374 nº 2 CPP tornando tal nulidade inválida a sentença proferida o que implica a sua repetição (122 CPP)”
Não tem qualquer razão.
O Tribunal a quo ouviu em audiência de julgamento a testemunha AD…, pessoa que elaborou o relatório ora em causa; e justificou a prova dos factos referidos no inquérito com a transcrição do mesmo, pois dele constavam detalhadamente as facturas e os cheques usados para pagamento, bem como a demonstração de que os mesmos documentavam operações fantasmas.
Nada mais era necessário, pois a credibilidade da testemunha que elaborou o relatório resulta da coerência do relatório e da justificação documental das respectivas conclusões. Perante a coerência do relatório e a justificação documental das respectivas conclusões, o exame crítico da prova mostra-se adequadamente feito, pelo que também nesta parte o recorrente não tem qualquer razão.
(iv) Inconstitucionalidade do art. 103º, 3 do RGIT.
O arguido considera ainda que o n.º 3 do artigo 103º do RGIT é inconstitucional. Para tanto, alega o seguinte:
“(…)
38. Consagrando o nº 3 do artigo 103º do RGIT que Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, estamos perante uma norma penal em branco verificando-se um procedimento de reenvio para legislação tributária.
39. Sendo as normas penais em branco normas que necessitam de complemento e que tal complemento há-de surgir em disposições externas que originarão uma formulação acabada viola-se o artigo 29 da CRP quando a remissão que o tipo faz para legislação tributária origina uma indefinição dos elementos objectivos da incriminação não sendo os mesmos apreendidos de forma clara pela comunidade sendo tal materialmente inconstitucional.
40. A remissão operada pelo artigo 103 nº 3 do RGIT não é compatível com o principio da legalidade já que a lei penal por si só não permite conhecer aquilo que é proibido já que só pela leitura do CIVA e pela determinação do regime de IVA aplicável ao agente é que poderemos apreender a conduta proibida.
41. O texto da lei penal por si só não dá “possibilidade de conhecimento da actuação penalmente cominada” pelo que é inconstitucional.
42. Atendendo à mutabilidade da legislação fiscal o artigo 103 nº 3 não garante a pré determinação normativa das condutas ilícitas.
43. Sendo a pré determinação das condutas ilícitas uma garantia de certeza para os cidadãos sobre que condutas constituem ilícito penal, não estando suficientemente concretizada a conduta aniquilada está a segurança jurídica.
44. O reenvio que o artigo 103º do RGIT faz para as normas tributárias poderá abarcar normas futuras que podem entrar em vigor a qualquer momento transmutando imediatamente o ilícito e as condutas puníveis. Estamos perante um indeterminação de aspectos relativos à conduta desde logo ao consagrar-se um limite de € 15000 por referência a “cada declaração a apresentar”.
45. Tal remissão não é compatível com a exigência de pré determinação (constituindo esta geralmente uma garantia de vinculação do juiz à lei) que no caso das normais penais em branco corresponderá à necessidade de evitar dificuldades de apreensão do conteúdo das normas pelos cidadãos já que tal não se alcança somente pela leitura da lei penal sendo necessário ter conhecimentos sobre obrigações tributárias acessórias, nomeadamente as obrigações declarativas e bem assim conhecimento sobre o regime de IVA
46. O artigo 103 do RGIT é materialmente inconstitucional por violar o princípio da legalidade conflituando com o artigo 29 nº 1 e 3 da CRP
(…)”
A tese do arguido é, em boa verdade, incompreensível.
O n.º 3 do artigo 103º do RGIT manda atender, para efeitos de ilicitude, ao valor que deve constar de cada declaração e não do conjunto de várias declarações.
A fraude fiscal (o tipo de ilícito) é uma conduta claramente tipificada na lei, mais concretamente nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 103 do RGIT. Os factos ilícitos são os comportamentos descritos nas referidas alíneas: ocultação ou alteração de factos ou valores que devem constar da contabilidade, ou das declarações, ou que devem ser revelados à Administração e celebração de negócios simulados, desde que a vantagem patrimonial ilícita seja superior a um determinado montantes (n.º 2).
Sendo o valor da vantagem patrimonial ilícita um elemento da infracção, o legislador tipificou ainda os termos em que esse valor é apurado, mandando ter em consideração os valores que, nos termos da legislação aplicável, devem constar de cada declaração (n.º 3).
O tipo está assim predeterminado, pois só existe crime quando em cada declaração legalmente exigida a fraude causar ao Estado um benefício ilegítimo igual ou superior a 15.000,00 euros.
Não existe pois qualquer violação do artigo 29º, 1 da CRP, pelo que, também nesta parte, o recurso deve ser julgado improcedente.
(v) Não preenchimento do tipo de ilícito
Relativamente a este ponto, a tese do arguido é a seguinte:
“(…)
47. Resultando dos factos dados como provados que “O arguido C… registou, ou fez com que fossem registadas, as referidas facturas na escrita da X…, Lda., como se titulassem transacções verdadeiras, tendo deduzido o IVA nelas mencionado nas declarações periódicas de IVA, com o objectivo de obter, tal como obteve, benefícios indevidos. (facto provado 33 – pág. 23) não se poderão dar por preenchidos os elementos do tipo do crime de fraude fiscal já que agir com objectivo de obter vantagem patrimonial não é o mesmo que agir com intenção de obter vantagem patrimonial superior a 15000 euros (ou 7500 euros) tendo em consideração que o valor é elemento do tipo.
48. O crime de fraude fiscal é um crime de perigo ao nível da estrutura típica, na medida em que não exige para a realização do tipo o efectivo prejuízo das receitas fiscais e consequente lesão do património do estado
49. Verifica-se o preenchimento dos elementos objectivos do tipo com a adopção de condutas que visem a não liquidação, entrega ou pagamento de prestação tributária ou outras vantagens patrimoniais idóneas a causarem uma diminuição de receitas tributárias (artigo 103 nº 1 a, b e c)
50. Assim as condutas tipificadas terão de ser idóneas a provocar fraude fiscal sendo que a expressão “visem” significa que as condutas terão de ser “adequadas”
51. As condutas previstas no artigo 103º do RGIT terão de ser operadas de forma idónea a originarem a não liquidação, entrega ou pagamento de prestação tributaria ou obtenção indevida de benefícios fiscais ou outras vantagens susceptíveis de causarem diminuição das receitas. O dolo do tipo tem pois de incidir sobra a idoneidade.
52. Sendo as condições de punibilidade externas ao ilícito, futuras e incertas não dependendo da vontade do agente, sendo pois as circunstâncias que se encontram em relação imediata com o facto mas que não pertencem nem ao tipo de ilícito nem à culpabilidade, o consagrado no artigo 103 nº2 não poderá ser dogmaticamente classificado como tal mas sim como elemento do tipo.
53. Sendo a situação tributária de um sujeito passivo apurada com base em normas tributárias que, em regra, na sua aplicação, recorrem aos dados e informações fornecidas pelo próprio contribuinte quando o agente pratica dolosamente o comportamento proibido, tem maneira de saber a quanto a sua vantagem patrimonial ilegítima poderá ascender.
54. O resultado idóneo não inferior a € 15.000 não é alheio ao domínio individual do agente, pelo que não constitui uma condição (um facto futuro e incerto) nem é objectiva, dado que não resulta plenamente alheio à vontade do autor já que no crime de fraude fiscal, com recurso a facturas falsas, o agente tem controlo absoluto sobre o valor indevidamente deduzido em sede de IVA na medida em que quando incorpora a factura sabe qual o valor de IVA constante da mesma e consequentemente o valor que irá deduzir indevidamente e quando procede à entrega da DP (declaração periódica) o agente sabe qual o montante de IVA dedutível que fez constar daquela declaração.
55. A vantagem patrimonial ilegítima de € 15.000 tem pois de estar compreendida no dolo do agente.
56. Ora não resultando provado que o Arguido representou e quis obter vantagem patrimonial superior a €7500 (actualmente €15000) não poderá o mesmo ser condenado pela prática dum crime de fraude fiscal.
57. O Tribunal a quo violou ou pelo menos fez incorrecta interpretação do artigo 103º do RGIT
(…)”
Relativamente a este ponto, é manifesto que o arguido também não tem razão.
É verdade que o valor do benefício ilegítimo é elemento do tipo. Contudo, como decorre da matéria de facto assente (ponto 2.1.35), estão descriminados os valores da vantagem patrimonial obtida, reportada a cada um dos meses em causa. No ponto 2.1.1.26 está provado que a empresa da qual o arguido era gerente de facto, estava enquadrada, para efeitos do IVA, “no regime normal de periodicidade mensal”. Assim, na enumeração dos valores de cada mês, foram realçados, a negrito, aqueles em que a vantagem ilícita ultrapassou os 15.000 euros (cfr. 23 e 24 do acórdão recorrido). Para a subsunção do comportamento do arguido no tipo de ilícito em causa nada mais era necessário provar-se, pelo que também nesta parte o recurso não pode proceder.
(vi) Determinação da pena
Quanto a este ponto, e em síntese, o arguido considera adequada a pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução.
Alega, em suma:
“61. A favor do arguido, pelo Tribunal a quo, foram ponderadas as seguintes circunstâncias: não haver registo, nos últimos 8 anos, da prática de qualquer outro ilícito de natureza criminal, bem assim o facto de beneficiar de estabilidade familiar e profissional. 62. A acrescer a estas circunstâncias seria igualmente crucial apreciar favoravelmente o facto do arguido já não ser gerente de qualquer sociedade comercial mas sim trabalhador subordinado o que diminui consideravelmente o risco de futura prevaricação tributária (nomeadamente fraude fiscal com recurso a facturação falsa.) que este nunca foi condenado anteriormente pela prática de crimes tributários; os factos em causa nos presentes autos ocorreram já há bastante tempo (dez anos); desde que cumpriu pena de prisão por falsificação de documento o arguido tem agido no estrito cumprimento dos normativos legais. 63. Pelo que tendo em consideração os factores supra enunciados julgaríamos adequado e proporcional aplicar ao arguido uma pena de 2 anos de prisão.”.
Entendemos que, também aqui, arguido não tem razão.
O arguido foi condenado na pena de 3 anos de prisão, pela prática de um único crime de fraude fiscal qualificado, p e p. pelo art. 103º, n.º1 als. a) e c) e art. 104º, n.ºs 1 e 2 do RGIT, por se ter entendido que todos os actos “se inscreveram na execução de um único plano de obtenção de vantagem patrimonial indevida”.
A fraude fiscal qualificada é punível, em abstracto, com pena de prisão de um a cinco anos (art. 104º, 1 e 2 do RGIT). Atendendo à gravidade da ilicitude (valor do prejuízo e duração da execução ilícita), justifica-se claramente uma pena a rondar o termo médio da respectiva moldura, tal como fez o acórdão recorrida.
Assim, quanto à medida concreta da pena, nada há a censurar ao acórdão recorrido.
Quanto à suspensão da sua execução, concordamos com a posição do Ex.º Procurador -geral Adjunto.
Na verdade, dado o lapso de tempo decorrido desde a prática do crime e a actual inserção (familiar, social e profissional) do arguido, é possível formular relativamente a ele um juízo de prognose favorável, pressuposto de tal pena de substituição (art. 50º do CP) e, desse modo, suspender a execução da pena de prisão aplicada, pelo período (máximo) de cinco anos.
É certo que o art. 14º, 1 do RGIT condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais: “a suspensão da execução da pena de prisão é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios.”
Apesar de este regime legal ter sido considerado julgado conforme à CRP, tal conformidade assentava no facto de a revogação da suspensão da pena não ser automática, mas antes dependente de avaliação judicial relativamente ao cumprimento da condição – cfr, entre muitos outros, os Acórdãos do TC 256/2003, 335/2003 e376/2003.
No mesmo sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, afastando a tese da inconstitucionalidade, referindo expressamente: “Não é desconforme à Constituição o condicionamento da pena suspensa, nomeadamente ao pagamento da indemnização devida ao lesado ou do imposto em dívida ao Estado no caso de infracções tributárias” – cfr. (entre muitos outros) os acórdãos de 08-11-2001, proc. 2988/01-5ª, 09-05-2002, proc. 1231/02-5ª e de 12-12-2002, proc. 4218/02-5ª.
Posteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça publicou todavia um Acórdão para Fixação de Jurisprudência, decidindo nos termos seguintes: “No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no art. 105º, n.º 1 do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art. 50º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o art. 14º, n.º 1 do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose sobre a razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.” – Acórdão do STJ n.º 8/2012, in DR, I Série, n.º 206, de 24 de Outubro de 2012.

A situação económica do arguido é, neste momento, estável, exercendo funções de encarregado-geral na empresa “AH…, Lda”, propriedade da sua companheira. A empresa tem vindo a registar crescimento e estabilidade financeira, dispondo actualmente de 24 funcionários (cfr. ponto 2.1.1.29 da matéria de facto)
Perante estes factos, é possível, neste momento, formular um juízo de prognose sobre a razoabilidade da exigência do pagamento ao Estado do prejuízo ilegitimamente causado. Deste modo, e nos termos do art. 14º, 1 do RGIT, deve ser suspensa a execução da pena de três anos de prisão, pelo período (máximo) de cinco anos, na condição de o arguido, dentro desse período de tempo, pagar ao Estado a quantia de 274.814,64 euros (DUZENTOS E SETENTA E QUATRO MIL, OITOCENTOS E CATORZE EUROS E SESSENTA E QUATRO CÊNTIMOS).
Nestes termos, o recurso do arguido deve ser parcialmente provido e, em consequência, suspender-se a execução da pena de (3 anos) prisão, pelo período de 5 anos, com a condição acima referida.

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2.2.4. Recurso do arguido L…
O arguido L… insurge-se contra o acórdão condenatório, suscitando as seguintes questões: (i) violação do caso julgado; (ii) omissão de pronúncia, por não ter sido feito o cúmulo jurídico; (iii) não concessão de liberdade condicional
Vejamos cada uma das questões.
(i) Caso julgado
Nas conclusões 1ª a 18ª o arguido sustenta que os factos deste processo deveriam ter sido integrados numa única resolução criminosa, sendo que já sofreu 23 condenações pelo crime de fraude fiscal e, para além delas, foi ainda condenado neste processo pelo crime de fraude fiscal, na pena de 3 anos de prisão. A sua argumentação é a seguinte:
“3º No caso dos autos, o Tribunal a quo entendeu haver por parte do recorrente uma única resolução criminosa, assumida no início de 2000, daí concluir pela prática de um único crime de fraude fiscal. Aliás, 4º Tal entendimento que o recorrente cometeu um único crime foi sufragado em todos os outros processos criminais em foi condenado e que acima se enumerou, apesar de, em todos esses processos, o recorrente ter emitido mais de uma factura falsa durante um determinado lapso de tempo, sendo que nalguns casos o período de tempo em que decorreu a acção criminosa foi superior ao tempo decorrido nos presentes autos. 5º Resulta também dos autos, bem como do douto acórdão em que foi efectuado o cúmulo jurídico [Proc. nº 154/96.9IDAVR, que correu seus termos pelo 1º Juízo Criminal] ao diante junto sob o nº 1, que se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, que o recorrente iniciou a sua actividade criminosa de emissão de facturas falsas no ano de 1992, pelo que a resolução criminosa terá sido tomada nesse ano de 1992. 6º Apesar da resolução criminosa do recorrente quanto ao crime de fraude fiscal ser bem conhecida do Tribunal a quo, porquanto o mesmo foi condenado 24 vezes, incluindo a condenação dos presentes autos, nesse mesmo Tribunal precisamente pelo mesmo crime de fraude fiscal. 7º Na verdade, como bem diz o douto acórdão em crise: “… cremos poder afirmar que tal comportamento mais não representou do que sucessiva execução de uma única decisão assumida pelo arguido no início de 2000 – a decisão de fazer da prática continuada de emissão de facturas falsas um modo fácil de obtenção de contrapartidas monetárias, satisfazendo com isso pelo menos alguns dos encargos normais do seu viver”. 8º O recorrente formou a sua resolução criminosa ao tomar a decisão de fazer da prática continuada de emissão de facturas falsas um modo fácil de obter contrapartidas monetárias, sendo certo que tal decisão ocorreu em 1992 e não em 2000, como resulta abundantemente, quer do certificado de registo criminal deste quer das sucessivas condenações aplicadas pelo Tribunal recorrido, neste sentido cfr Eduardo Correia in a Teoria do Concurso em Direito Criminal – Unidade e Pluralidade de Infracções, pág. 337. 9º Ora, na actividade ilícita desenvolvida pelo recorrente, quer no caso em apreço quer nos outros 23 casos que levaram a outras tantas condenações e que constam dos autos e do seu registo criminal, verifica-se que há uma sucessiva execução de uma única decisão de fazer da prática continuada de emissão de facturas falsas de modo a obter proventos económicos de tal conduta, bem sabendo que lesa o Estado. 10º Não nos parece, pois, que o recorrente de 1992 até 2000 tenha tomado 24 novas resoluções criminosas para a prática do crime de fraude fiscal, por meio de emissão de facturas falsas para com essa actividade retirar proventos monetários. 11º Em suma, como nos ensina o insigne Professor Eduardo Correia: “… Até lá, ou seja, verificado que entre as actividades do agente existe uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência comum e as leis psicológicas conhecidas, se deva presumir tê-las ele executado a todas sem renovar o respectivo processo de motivação, estamos em presença de uma unidade jurídica, de uma só infracção”. 12º Neste sentido, veja-se o douto acórdão do STJ, de 11 de Maio de 1988, proc. n.º 039480, em que foi relator José Saraiva, in www.dgsi, em que se ensina: «I – Existe unidade de resolução criminosa, quando, segundo o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que os vários actos são o resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinados por nova motivação». 13º Posto isto, certamente que o critério para aferir das resoluções criminosas não pode ser o critério de número de processos instaurados pelo Ministério Público ao ora recorrente, como infelizmente lhe tenha sucedido, por mera comodidade da entidade investigante, sob pena da violação dos mais elementares direitos de defesa do arguido. 14º Bem como parece-nos que não se verificará a renovação ou tomada de nova resolução delituosa se o utilizador das facturas for o senhor A ou o senhor B ou o senhor C, pois não dependerá do facto de ser mais de uma pessoa a receber as facturas falsas emitidas a verificação de mais de resolução criminosa. 15º Assim, o recorrente nos sucessivos julgamentos anteriores já foi julgado pela única resolução criminosa que formou ao deliberar praticar continuadamente a emissão de facturas falsas para, assim, obter de um modo fácil proventos monetários. 16º Daí, ao abrigo do princípio constitucional ne bis in idem, plasmado no art. 29º, nº 5 da Constituição “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, verificando-se in casu a excepção do caso julgado. 17º Excepção essa que, nos termos do art. 18º, nº 1 e 204º da nossa Lei Fundamental é de aplicação imediata e de conhecimento oficioso, não carecendo sequer de ser invocada. 18º Para melhor apreciação desta excepção requer-se a apensação aos presentes autos os processos nºs: 95/95.7IDAVR (ex-54/97) do 2º Juízo Criminal; 2052/01.7TBVFR (ex-114/98) do 1º Juízo Criminal; 842/99.8TBVFR (ex-146/98) do 1º Juízo Criminal; 1639/99.0TBVFR (ex-55/99) do 1º Juízo Criminal; 51/96.8IDAVR (ex-459/98) do 2º Juízo Criminal; 122/97.3IDAVR (ex-458/99) do 2º Juízo Criminal; 1968/99.3TBVFR (ex-511/99) do 1º Juízo Criminal; 36/97.7IDAVR (ex-824/99) do 2º Juízo Criminal; 2264/00.0TBVFR (ex-779/00) do 1º Juízo Criminal; 2142/00.3TBVFR do 1º Juízo Criminal; 570/01.6TBVFR (ex-460/00) do 1º Juízo Criminal; 3541/97.1TAVFR do 2º Juízo Criminal; 921/98.9 TBVFR do 1º Juízo Criminal; 759/01.8TBVFR do 1º Juízo Criminal; 104/98.8IDAVR do 2º Juízo Criminal; 1199/01.4TBVFR do 1º Juízo Criminal; 99/99.0TAVFR do 1º Juízo Criminal; 51/00.5IDAVR do 2º Juízo Criminal; 92/02.8IDAVR do 1º Juízo Criminal; 2/01.0IDAVR do 2º Juízo Criminal; 89/99.3IDAVR do 2º Juízo Criminal; 78/01.0IDAVR do 1º Juízo Criminal; 154/96.9IDAVR do 2º Juízo Criminal.”
O MP junto na 1ª instância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, referindo a propósito:
“Entendemos que não lhe assiste razão. Não se pode pensar que o arguido desde logo formulou uma única vontade de delinquir, no caso, de emitir todas e quaisquer facturas que lhe fossem pedidas e que não correspondessem a transacções reais. Por um lado, entre os vários crimes que praticou dentro do período que cita existiu sempre um hiato de tempo que por assim dizer corta a tal vontade de praticar o ilícito. O arguido entre 1992 e 2002 não esteve sempre a emitir facturas falsas. Durante largos períodos de tempo (felizmente) esteve por assim dizer inactivo o que como já se disse corta a tal vontade. Por outro lado tem que se considerar que o arguido emitiu facturas para um sem número de pessoas que o interpelaram em diversas ocasiões, lugares e circunstâncias. Pensa-se assim que sempre que o arguido era interpelado pelas mais diversas pessoas, dos mais diversos lugares, sempre teria que ponderar se devia ou não emitir a factura ou facturas que lhe pediam o que quer dizer que teria que renovar o processo volitivo. Creio assim que não lhe pode assistir razão.
Entendemos também que o arguido não tem aqui qualquer razão.
Na verdade, não é concebível, em termos jurídicos, a formulação de uma única resolução criminosa com o objectivo de cometer um só crime de fraude fiscal, ao longo da sua vida útil. Em rigor, há uma pluralidade de resoluções criminosas sempre que o agente lese, com autonomia, um bem jurídico. Se essa lesão for repetida no tempo, há tantas resoluções quanto as violações sucessivas do mesmo bem jurídico. Em situações como a presente, a unidade ou pluralidade de infracções resulta, a nosso ver, do período temporal e também dos meios utilizados. Há duas infracções de fraude fiscal quando um agente se conlui primeiro com A e mais tarde com B. As resoluções são distintas pois envolvem processos de formação da vontade diversos, ora acordando com A, ora acordando com B.
Portanto, só há unidade de resolução criminosa, no âmbito do crime de fraude fiscal, quando o processo (ou o meio) de cometer o crime e as pessoas com as quais o mesmo crime é cometido (ainda que por largos período de tempo) sejam as mesmas. De outro modo, há pluralidade de crimes, pois há modos de execução perfeitamente autónomos.
Ora, no presente caso, constatamos que as pessoas envolvidas nos crimes de fraude fiscal por que foi condenado o arguido não são aquelas com quem se envolveu para cometer o crime destes autos. Assim, e sem necessidade, de outras considerações, o recurso deve ser julgado improcedente, nesta parte.
(ii) Cúmulo jurídico – nulidade por omissão de pronúncia
Podemos desde já adiantar que, neste ponto, o recorrente tem razão. Devia efectivamente ter sido proferida decisão sobre a integração (ou não) da pena aplicada nestes autos, no cúmulo jurídico com anteriores condenações.
Com efeito, na determinação da medida concreta da pena importa ter em atenção o disposto no art. 78º do Cód. Penal, devendo ser aplicada uma única pena aos crimes em concurso. Não tendo sido apreciada e decidida esta questão, o Tribunal a quo incorreu na nulidade prevista no art. 379º, n.º 1, al. c) do CPP.
Em consequência, deve ser declarada, nesta parte, a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379º, n.º 1 al. c) do CPP, devendo o Tribunal “a quo” apreciar e decidir a questão do cúmulo jurídico da pena aplicada nestes autos, nos termos do art. 79º do C. Penal.
(iii) liberdade condicional
O arguido/recorrente não se encontra preso à ordem deste processo, pelo que as questões suscitadas sobre a não concessão da liberdade condicional não fazem parte do objecto destes autos e, por essa via, também não podem (obviamente) fazer parte do objecto do presente recurso,
2.2.5. Recurso do arguido M…
O arguido M… insurge-se contra o acórdão condenatório, pondo em causa a decisão proferida sobre matéria de facto (questionando parte dos factos dados como provados) e sobre matéria de direito (pugnando pela qualificação dos factos num só crime e pela aplicação de uma pena menos gravosa, suspensa na respectiva execução).
Vejamos cada um desses aspectos.
(i) Recurso da matéria de facto.
O arguido, como ele próprio refere, “não põe em causa factualidade provada quanto às faturas em que são emitentes L…, AI…, AJ… e ao arguido P…, já o mesmo não acontece quanto à facturas (nºs 588 e 589) emitidas pelo arguido AK…, que o arguido/recorrente contabilizou na escrita da sociedade que geria, a AL…, Lda.”.
Delimita assim a sua discordância aos factos a que se referem as facturas números 588 e 589, emitidas pelo arguido AK… e que o recorrente contabilizou na escrita da sociedade que geria, “AL…, Lda.”. Justifica, por seu turno, a discordância da decisão sobre matéria de facto, nos seguintes termos:
“6. O tribunal recorrido assentou a sua convicção, quanto a esta duas faturas de AK… (cfr. pág. 163, do acórdão), essencialmente na inspecção tributária levada a cabo pela testemunha AN…, especificamente sobre o arguido AK…, enquanto empresário em nome individual e no respetivo depoimento prestado em audiência. 7. Considerou o acórdão (cfr. pág. 163) que “... a referida estrutura empresarial, segundo a referida testemunha seria insuficiente para justificar a mercadoria nas quantidades e valores mencionados nas facturas em causa, tanto no que se refere às facturas emitidas em nome da sociedade como no que respeita às facturas emitidas por AK… enquanto empresário em nome individual”. 8. Porém, o tribunal recorrido desconsiderou criminalmente as faturas emitidas pela sociedade AM…, mas não fez o mesmo quanto às duas faturas emitidas por AK…; 9. Sendo certo que própria testemunha AN… depôs [depoimento prestado em 4-7-2012, das 10:11:22 até 11:25:36, em especial a partir do minuto 14:20], quando se refere à sociedade AM… e a AK…, que “estas duas empresas, estas duas sociedades, uma em nome individual e outra sociedade, são no fundo a mesma pessoa, tinham as mesmas instalações, utilizavam o mesmo equipamento, o pessoal também era o mesmo...”. 10. O que também é assumido pelo próprio M.P., na instância à dita testemunha [sessão de 4-7-2012, das 10:11:22 até 11:25:36, em especial a partir do minuto 16:07]; 11. E confirmado, também, pela testemunha AD… [depoimento prestado em 18-6-2012, das 14:51:08 até 17:32:25, a partir de 02:03:50];12. O acórdão recorrido alicerça a sua convicção que as faturas em que é emitente AK… seriam falsas, na circunstância evidenciada pela testemunha AN… de que o dito emitente não poderia vender fardos de cortiça, referidos nas faturas, uma vez que as compras só poderiam encontrar sustentação em vendas de AJ… e de P…, sendo que estes nada poderia vender em tal medida.13. Contudo, a testemunha em causa afirmou [depoimento prestado em 4-7-2012, das 10:11:22 até 11:25:36, a partir do minuto 1:12:05]: que “a maior parte das compras do AK… também estavam suportadas por documentos emitidos por terceiros sobre os quais recaem indícios de facturação falsa, nomeadamente o AJ…, nomeadamente o P… ... .“; 14. Desde logo, afirmar que “a maior parte” não é igual, não é o mesmo, que a totalidade das compras, pelo que é possível que as compras do dito AK… não fossem todas “fictícias”; 15. Assim, existem fundadas dúvidas sobre se as faturas emitidas por AK…, contabilizadas pela sociedade gerida pelo recorrente, tal como o tribunal recorrido considerou, quanto às faturas emitidas pela “AM…”, “não resultaram de negócios de compra e venda reais.” 16. Inexiste, pelo exposto, suporte probatório bastante ou, pelo menos, existe uma séria e inultrapassável incerteza sobre a proveniência da cortiça vendida pelo AK…, pelo que não pode o tribunal recorrido, face ao alegado, formar “convicção suficientemente segura” de que as faturas que ostentam como emitente AK…, contrariamente às emitidas pelas sociedade “AM…”, não resultaram de negócios de compra e venda reais.17. Consequentemente, as duas faturas (nºs 588 e 589) emitidas pelo arguido AK…a, que o arguido/recorrente contabilizou na escrita da sociedade que geria, a AL…, Lda, pela pelas razões apontadas, não devem ser consideradas como falsas, quanto mais não seja por aplicação do princípio in dúbio pro reo, impondo-se, por isso, a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto nos precisos termos em que foi impugnada.”

O Acórdão recorrido, relativamente às facturas emitidas pela “AM…”, considerou que “(…) não logrou o tribunal formar convicção suficientemente segura de que as facturas que ostentam como emitente a sociedade “AM…” não resultaram de negócios de compra e venda reais”. (fls. 163).
Contudo, no que diz respeito às facturas n.ºs 588 e 589, o Tribunal disse o seguinte:
“Já quanto às facturas em que surge emitente AK…, aos meios de prova que deixamos já enunciados, acresce a circunstância, de resto evidenciada pela testemunha AN… em audiência de julgamento, que o referido emitente não poderia nunca ter disponível para venda o que constava das facturas (fardos de cortiça), porquanto as correspondentes compras só poderiam encontrar sustentação em facturas timbradas em nome de AJ… e em nome de P…, e estes por sua vez, conforme deixamos enunciado e melhor explicitaremos infra, não tinham capacidade para vender em tal medida” (cfr. fls. 163 do acórdão).
A nosso ver, o arguido tem razão.
O Tribunal julgou insuficiente a prova da falsidade das facturas emitidas pela sociedade “AM…”, não obstante ter referido que a “referida unidade empresarial (…) seria insuficiente para justificar a mercadoria nas quantidades e valores mencionados nas facturas em causa”. Esta circunstância não foi no entanto bastante para dissipar as dúvidas sobre a eventual falsidade das transacções. Assim, o Tribunal a quo não podia, logo a seguir, concluir pela falsidade das transacções documentadas, com o fundamento que anteriormente indicou com não tendo sido suficiente para afastar a dúvida razoável.
Daí que deva dar-se como não provada a matéria inserida no ponto 2.1.1.118 (fls. 62 do acórdão e 25.138 dos autos), relativa às facturas n.ºs 588 e 589, emitidas por AK….
Contudo, dado que tais facturas estavam incluídas numa actividade considerada (nesta parte) como um único crime, a alteração da matéria de facto, neste ponto, apenas tem apenas relevância na gravidade da ilicitude e, eventualmente, na medida concreta da pena.
(ii) Unidade ou pluralidade de resoluções criminosas
Sustenta o recorrente que devia ter sido condenado apenas pela prática de um único crime de fraude fiscal, uma vez que, quer em nome individual, quer em nome da sociedade, formulou uma só resolução de cometer os factos que integravam o crime de burla tributária.
Invoca, em abono da sua tese, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.10.2011, proferido no processo 1441/07.8JDLSB.L1, disponível em www.dgsi.pt, e o facto de existir coincidência temporal ou, pelo menos, um encadeamento no tempo, nas datas das facturas contabilizadas enquanto empresário em nome individual e enquanto gerente da sociedade “AL…, Lda”.
O MP junto do tribunal “a quo” respondeu, defendendo a existência de dois crimes de fraude fiscal, nos termos seguintes:
“(…)
Quanto ao número de crimes praticados acompanhamos o decidido no douto acórdão (fls. 198) no qual se diz que “a actividade empresarial exercida em nome individual pelo arguido assume naturalmente autonomia relativamente à actividade da pessoa colectiva AL…, em nome e no interesse de quem o arguido actuava. Estamos, pois, perante dois sujeitos tributários distintos. Nestas circunstâncias, julgamos ser de considerar que as determinações de vontade de actuação do arguido, o mesmo é dizer as suas resoluções, são, relativamente a uma e outra das ditas actividades empresariais, naturalmente distintas, afirmação que resulta de algum modo reforçada se atendermos ao facto de terem sido manifestadas em momentos temporais diversos. Já no que concerne a cada uma das actividades empresariais em questão, julgamos que a matéria de facto nos autoriza a afirmar, na mesma linha de raciocínio que deixamos expressa a propósito de outros arguidos, que a actuação do arguido M… mais não representou que a execução sucessiva de uma única resolução criminosa. Resumindo e concluindo, o arguido M… constituiu-se autor dos dois crimes de fraude fiscal de que vinha acusado, e por eles deverá ser punido.”
Vejamos a questão.
Em primeiro lugar, deve dizer-se que o acórdão do STJ, citado pelo arguido, se reportava a um caso que nada tem de semelhante com o presente. Nesse acórdão, não estava em causa uma situação de concurso de crimes de fraude fiscal (mas sim de associação criminosa, burla e falsificação de documentos) e, muito menos, um concurso entre a actividade prosseguida pelo agente, a título pessoal, e pelo mesmo agente na qualidade de sócio-gerente de uma sociedade comercial. Portanto, a primeira conclusão é a de que esse acórdão é, para o nosso caso, inaplicável.
Em segundo lugar, deve dizer-se que não existe, em termos jurídicos, uma só resolução criminosa genérica para toda a vida, ou mesmo para um período de tempo delimitado. Na verdade (e como é óbvio), não existe uma só infracção se alguém decidir dedicar-se exclusivamente a praticar crimes de fraude fiscal.
Em termos rigorosos, o agente comete tantas fraudes fiscais quantas as resoluções que possam juridicamente ser autonomizadas. Ora, as resoluções são autonomizadas sempre que os meios usados também tenham autonomia e sempre que a forma do crime seja diversa (autoria, cumplicidade, co-autoria).
Na situação ora em causa, o agente praticou factos que integram o crime de fraude fiscal por si só, isto é, emitindo facturas falsas em seu nome, e cometeu alguns factos que integram o crime de fraude fiscal, em nome da sociedade de que é sócio-gerente. Note-se que, como resulta da matéria de facto, estão em causa factos diversos, isto é, as facturas emitidas em nome pessoal não são as mesmas que emitiu em nome da sociedade de que é sócio-gerente.
Verifica-se assim que, no caso, existe uma pluralidade de formas de cometer o crime: num caso, o autor (agente) do crime é o arguido sozinho; no outro, o autor do crime é ele (arguido) e a sociedade que representa.
No plano interno (psicológico), onde se desenrola o processo volitivo, há total autonomia, sendo perfeitamente perceptível a existência de duas vontades (resoluções) diferentes. Essas vontades também são juridicamente diferentes, pois cada uma delas envolve processos distintos, designadamente em termos de contabilidade. Mais, a gravidade da ilicitude é também diferente, na medida em que, com a multiplicação de formas diversas, o agente lesa com maior gravidade a ordem jurídica, pois emite, no mesmo período de tempo, facturas falsas em seu nome e em nome da sociedade.
Julgamos assim que o facto de o agente, num determinado período temporal, ter tido intenção de agir por si e em seu nome, e ter tido também intenção de agir em nome da sociedade de que era sócio-gerente, mostra que formulou diferentes resoluções criminosas, na medida em que lesou o bem jurídico também de diferentes formas.
Deste modo, consideramos que os factos cometidos pelo arguido, em seu nome, podem corresponder a uma só infracção, unificada pela mesma forma, pelo mesmo bem jurídico e pela mesma pessoa com quem se relacionou para cometer tais factos. Os diversos factos cometidos pelo recorrente, como gerente da sociedade, configuram também uma só infracção, unificada pela mesma forma, pelo mesmo bem jurídico e pela pessoa com quem se relacionou para cometer tais fatos.
Cada um destes grupos de resoluções criminosas configura um crime de fraude fiscal e, portanto, o arguido (tal como decidiu o acórdão recorrido) cometeu dois crimes de fraude fiscal.
Assim, e relativamente a este ponto, o recurso deve ser julgado improcedente.
(iii) Medida concreta da pena
O arguido foi condenado como autor de dois crimes de fraude fiscal, p. e p. arts 103º, n.ºs 1 als. a) e c) e 104º n.ºs 1 e 2 do RGIT, nas penas parcelares de 4 anos e seis meses de prisão (pelo crime cometido enquanto empresário em nome individual) e de 2 anos de prisão (enquanto gerente da sociedade “AL…, Lda”). Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.
O arguido pugna pela aplicação de uma pena inferior, referindo:
“29. Considerando a moldura penal do crime de fraude fiscal p. e p. no artigo 104.º do RGIT, bem como os critérios estabelecidos no art.º 71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, é opinião do recorrente que as penas parcelares ajustadas ao caso concreto não deverão ser superiores a 3 anos e 6 meses, e a 1 ano e 6 meses de prisão por cada crime de fraude fiscal qualificada porque foi condenado. 30. E a pena única, apelando aos critérios do artigo 77.º, nºs 1 e 2, do Código Penal, não deverá se superior a 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão. 31. Devendo ainda esta pena ser suspensa na sua execução (…)”.
O MP junto na 1ª instância respondeu à motivação do recurso, pugnando pela sua improcedência, sublinhando:
“(…) Também o elevado grau de ilicitude do facto, ao nível do desvalor da acção, considerando o elevado montante dos prejuízos causados ao Estado (€1.280.210,77, enquanto empresário em nome individual; €112.813,14, enquanto gerente da referida sociedade); A elevada ilicitude do facto, na vertente do desvalor de acção, atendendo ao modo de execução do crime, prolongado no tempo e com a utilização de número considerável de facturas falsas de valores economicamente muito relevantes -, com repercussões negativas em sede de prevenção especial de socialização e geral de integração; as cada vez mais elevadas exigências de prevenção geral relativas ao tipo de crime em análise, atendendo à frequência com que este tipo de ilícito vem sendo praticado (particularmente na área desta comarca) e ao seu carácter altamente lesivo dos interesses da comunidade, com repercussões negativas ao nível da prevenção geral de integração; a ilicitude do facto, ao nível do desvalor do resultado, considerando a circunstância de terem sido causados prejuízos elevados ao Estado, mediante a diminuição da receita fiscal devida, com repercussões negativas em sede de prevenção geral de integração e especial de socialização; a conduta anterior ao facto, consubstanciada na prática de outros crimes de natureza fiscal, sendo um de fraude fiscal e outro de abuso de confiança fiscal; a conduta ulterior ao facto, que se reflecte na condenação por mais um crime de abuso de confiança fiscal, reportado a 2004.”
Sobre esta questão, importa ter em atenção que a matéria de facto foi aqui alterada, não se considerando provado o ponto 2.1.1.118, isto é, que às facturas n.ºs 588 e 598 (fls. 62 do acórdão e 25.138 do processo) fossem “falsas”, pelo que a ilicitude da conduta é menor. Assim, o arguido, agindo em nome individual, não causou ao Estado um prejuízo ilegítimo no valor de €1.280.210,77, (um milhão, duzentos e oitenta mil, duzentos e dez euros e setenta e sete cêntimos), mas sim um prejuízo menor (devendo subtrair-se àquele valor os montantes de € 25.585,00 (factura 588) e de € 26.775,00 (factura 598). Em rigor, o prejuízo causado ao Estado (gravidade do ilícito) é de € 1.227.850,77 (um milhão duzentos e vinte e sete mil oitocentos e cinquenta euros e setenta e sete cêntimos).
Apesar da alteração dos factos e da gravidade do ilícito, a conduta do arguido não deixa de ser muito grave. Na verdade, causar ao Estado Português (isto é, a toda a sociedade portuguesa) um prejuízo de valor superior a UM MILHÃO DE EUROS, não pode deixar de se considerar especialmente grave.
O dolo foi directo e o meio utilizado foi, em si mesmo, também muito reprovável (falsificação de facturas). Finalmente, não houve reparação do mal causado à sociedade com a prática do crime, pelo que se justifica claramente uma pena de prisão bastante superior ao termo médio, na justa medida em que a gravidade do ilícito dolosamente cometido também ultrapassa (em muito) o limiar da criminalidade (15.000,00 euros).
Deste modo, tendo em conta a alteração da matéria de facto provada (nos termos acima expostos) e a moldura abstracta da pena aplicável (prisão de 1 a 5 anos), justifica-se plenamente a condenação na pena de 4 anos de prisão (ligeiramente inferior à condenação em 1ª instância).

Relativamente ao crime cometido pelo arguido, na qualidade de sócio-gerente da sociedade “AL…, Lda”, a ilicitude é menos grave, pois diz respeito a um período de tempo bem menor (4º trimestre de 2002, 1º e 3º trimestre de 2003), sendo que o valor do prejuízo causado ao Estado é também menor (€112.813,14).
Assim, tendo fundamentalmente em conta a gravidade do ilícito, a modalidade do dolo (directo) e o valor do prejuízo causado, entendemos adequada a pena aplicada na 1ª instância (inferior ao termo médio, ainda que superior ao mínimo), isto é, a pena de 2 (dois) anos de prisão.
Procedendo ao cúmulo jurídico, julgamos adequada a pena de cinco anos de prisão.
Atendendo à actual situação económica do arguido, ao lapso de tempo já decorrido e às demais circunstâncias referidas nos pontos 2.1.1.128 e 2.1.1.129 dos factos provados, concordamos com o parecer do Ex.º Procurador-geral Adjunto, no sentido de que é possível formular um juízo de prognose favorável e, nessa medida, decidimos suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido, ao abrigo do disposto no art. 50º,1 do C. Penal, pelo período de cinco anos.
Tendo em conta o Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência, n.º 8/2012, in DR, I Série, n.º 206, de 24/10/2012, e a situação económica do arguido constante da matéria de facto provada, ponto 2.1.1.128 (“… está desempregado e não perspectiva colocação laboral, consubstanciando essa opinião nos diferentes esforços que afirma ter encetado nesse sentido, sem sucesso, vindo a ajudar o irmão no café de que o mesmo é proprietário, sobretudo no período da noite (…) no que aufere cerca de € 300 por mês; o cônjuge recebe uma pensão de invalidez no montante de €379, fazendo face a encargos fixos na ordem dos €115; o arguido e o cônjuge sentem a situação económica como deficitária, assumindo desfrutar uma situação de pobreza envergonhada …), não se fixa uma condição de pagamento das quantias equivalentes ao prejuízo causado ao Estado, por ser desde já possível formular um juízo de prognose sobre a manifesta impossibilidade de tal condição poder ser cumprida.
Deste modo, julga-se parcialmente procedente o recurso, devendo em consequência:
a) Alterar-se a matéria de facto, nos termos acima referidos;
b) Revogar-se o acórdão recorrido quanto à medida concreta da pena parcelar e do cúmulo jurídico, condenando-se o arguido pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, na qualidade de empresário em nome individual, na pena de quatro anos de prisão. Em cúmulo jurídico, deve condenar-se o arguido na pena única de cinco anos de prisão.
c) Suspender-se a execução da pena de prisão aplicada ao arguido, pelo período de cinco anos.
e) Manter, em tudo o mais, a decisão recorrida.
2.2.6. Recurso do arguido U…
O recorrente U… insurge-se contra o acórdão condenatório, sustentando que (i) ocorreu a prescrição do procedimento criminal; (ii) há erro na apreciação da matéria de facto e (iii) erro na determinação da medida da pena.
Vejamos cada uma das questões suscitadas.
(i) Prescrição do procedimento criminal
O arguido considera que o crime que lhe foi imputado não se consumou em 05-08-2001 (data em que o contribuinte dá conhecimento … às autoridades fiscais da declaração fraudulenta), mas sim em 27-Junho-2001, data da emissão da última das facturas falsas. Invoca, neste sentido, o AC da Relação do Porto de 05/01/2011-proc 110/98.2IDAVR:PI; o Ac do STJ para fixação de jurisprudência n.º 3/2003, de 7 de Maio 2003, e o Ac do STJ de 27-11-2007.
A relevância da data da consumação do crime é neste caso decisiva, na medida em que o RGIT entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, ocorrida em 05-06-2001.
Na verdade, se for aplicável o RGIT, o prazo de prescrição é de dez anos (art. 118º, n.º 1, al. b) do C. Penal e arts. 21º, n.º2 e 104º do RGIT).
Deste modo, se o crime se tiver consumado (como entendeu a decisão recorrida) em 05-08-2001, já se consumou na vigência do RGIT e toda a argumentação do recorrente cai pela base.
A decisão recorrida deu como provado que “em termos declarativos, a sociedade AO…, Lda remeteu aos serviços do IVA as declarações periódicas do IVA referentes aos períodos de imposto em questão nestes (anos de 2001 e 2002) sendo que, relativamente ao 2º trimestre de 2001, a respectiva declaração foi apresentada aos serviços do IVA em 5/8/2001 – cfr. Ponto 2.1.1.229.
Tratando-se de um único crime englobando todos os actos sob uma única resolução criminosa, a prescrição começa a correr a contar da data em que se consuma o último acto de execução (“desde o dia em que cessar a consumação”) – art. 119º, 1, a) do C. Penal.
O MP Junto do tribunal “a quo” respondeu, defendendo a tese oposta à do arguido. Em seu entender, “O crime de falsificação apenas se pode ter por praticado quando o agente, após fabricar o documento falso, o põe em circulação pois só assim obtém o benefício que pretende. Se por hipótese o agente fabrica um documento que não corresponde à verdade e o não usa, como por exemplo, o deixar guardado numa gaveta, então não se pode ter por configurado o crime pois ele não produziu todos os efeitos úteis que se pretendiam, isto é, o agente não obteve qualquer benefício e por isso me parece não poder ser ele penalizado com o facto de ter na gaveta um documento falso que não usou. De certa forma estaria a punir-se a nuda cogitatio”
Vejamos.
A nosso ver, o crime de fraude fiscal cometido através de facturas falsas pode ser realizado de duas formas distintas: (i) pelo emitente das facturas que as entrega a outrem; (ii) por aquele a quem as facturas falsas são entregues e que, por seu turno, as inclui na sua conta-corrente para efeitos de IVA.
Num e noutro caso o crime consuma-se em momentos diferentes: aquele que emite uma factura falsa e a entrega a um terceiro, com a finalidade de este se aproveitar da factura, para cometer o crime de fraude fiscal, vê o seu crime consumado quando entrega a factura; aquele que recebe a factura falsa (isto é, sem que tenha havido qualquer transacção) só comete o crime quando incluir a falsa operação numa declaração fiscal.
O arguido/recorrente está neste último grupo e, portanto, o seu crime só se consumou quando entregou a declaração para efeitos de IVA, reportando transacções inexistentes, justificadas (além do mais) com as facturas falsas.
Nem poderia ser de outro modo, em termos lógicos e de teleologia político-criminal. O agente que, para ocultar uma operação comercial inexistente, recebe de outrem uma factura falsa, até à entrega da declaração fiscal pode arrepiar caminho e apresentar uma declaração fiscal exacta (sem incluir a operação fantasma). Nesta hipótese, à luz das regras do direito penal que pune o facto (e não a mera intenção) não se pode considerar o crime consumado. Com efeito, antes da declaração fiscal chegar ao conhecimento da Administração Tributária, o crime pode nunca chegar a ocorrer, o que mostra que o mesmo não se consumou. Não pode (como é óbvio) considerar-se consumado um crime que pode chegar a não existir.
Importa ainda dizer que o acórdão para fixação de jurisprudência citado, não é relevante para esta questão. Tal acórdão refere tão só que, na vigência do Dec. Lei 20-A/90 de 15/1, não há concurso real entre os crimes de fraude fiscal e falsificação e burla previstos no Código Penal. Desta doutrina nada decorre quanto ao momento da consumação do crime de fraude fiscal. O acórdão da Relação do Porto, também citado pelo arguido (acórdão de 05-01-2011, proferido no processo 110/98IDAVR.91), reporta-se ao momento da consumação do crime de fraude fiscal por aquele que emite (e não aquele que utiliza) as facturas falsas. Aliás, o acórdão citado distingue claramente as duas situações, acolhendo entendimento semelhante ao acima exposto: “(…) A consumação ocorre, no caso das alíneas a) e b) do art.23º do RJIFNA no momento da recepção da declaração e, no caso, da alínea c) da mesma norma, no momento da celebração do negócio simulado. (…)”.
Deste modo, o arguido não tem qualquer razão, pois o crime por que foi condenado consumou-se já depois da entrada em vigor do RGIT e, portanto, o prazo de prescrição aplicável é o previsto tendo em conta a moldura penal do crime.
Improcede assim, e nesta parte, o recurso do arguido.
(ii) Recurso da matéria de facto
O recorrente considera incorrectamente julgados os factos descritos nos pontos 2.1.1.230; 2.1.1.231; 2.1.1.232; 2.1.1.233; 2.1.1.234; 2.1.1.235; 2.1.1.236;2.1.1.237; 2.1.1.238 da matéria provada. Na sua óptica, o acórdão justificou a prova dos aludidos factos em regras da experiência inaceitáveis no presente caso.
Assim, “relativamente às facturas que apresentam como emitente AJ…, o acórdão refere que este não reunia manifestamente condições materiais para dispor de produtos com as características e valores descrito nas facturas, pelo que naturalmente concluímos pela inexistência efectiva dos negócios correspondentes”. Porém (continua o arguido), no caso do ora recorrente, os produtos com as características e valores descrito nas facturas são perfeitamente enquadráveis na actividade que o AJ… exercia, que apesar de escassa era desenvolvida por dois empregados e com 4 máquinas (duas brocas, uma rabaneadeira e uma topejadeira), sendo que tal foi reconhecido pelo seu pai nas declarações e às quais o presente acórdão se refere folhas 25243. Estamos a falar de valores que rondam entre os €17.000,00 e os €34.000,00 perfeitamente enquadráveis na indústria, ainda que escassa, do AJ… e do próprio arguido que a exerceu até Agosto de 2003, conforme consta do facto 2.1.1.228 dado como provado e que constata que o arguido tinha imobilizado, matérias primas e produtos acabados. O acórdão realça “a circunstância de as facturas com os nºs 623 e 626, datadas de 04/06/2001 e 15/06/2001, respectivamente fazerem parte de um livro de facturas que, à luz do que se pode ler no documento de fls. 389 do Anexo F-29-B, foi requisitado por AJ… na AP.… em data ulterior àquelas, mais exactamente no dia 19.06.2001. Tal facto,... contribuiu para reforçar a convicção do tribunal no sentido que deixamos afirmado”. O recorrente também aqui não concorda com esta posição; o facto poderia ter relevância se a requisição do livro se verificasse muitos dias depois da data da emissão da factura. No presente caso não, a distância que medeia entre a data da factura e da requisição do livro é de 15 dias numa factura e 4 dias noutra. Tal facto não é assim tão anómalo, pois o tribunal não poderá deixar de pôr a hipótese do livro de facturas anterior ter terminado”.
A argumentação do arguido é manifestamente inconcludente.
O acórdão recorrido justificou a prova da inexistência dos factos documentados pelas facturas, invocando dois argumentos.
Um deles, assentou na circunstância de o fornecedor das facturas não apresentar uma organização que suportasse, em termos de razoabilidade, as operações documentadas; o outro, baseou-se na circunstância de o livro de facturas ter sido requisitado em data ulterior à da emissão das facturas.
Para refutar estes argumentos, o arguido alega que (quanto ao primeiro) não é decisivo que assim seja, pois o fornecedor das facturas tinha, afinal, alguma organização económica; quanto ao segundo, o livro de facturas foi, afinal, adquirido pouco tempo depois das facturas, o que tornaria a divergência irrelevante.
Ora, como é bom de ver, nenhum dos argumentos do arguido é bastante para abalar a convicção do julgador, principalmente se tivermos em conta os dois aspectos da justificação do tribunal: o fornecedor das facturas não apresentava uma organização empresária adequada aos fornecimentos e os mesmos estavam documentados em facturas cujo livro de onde foram retiradas tinha sido adquirido em data posterior.
Como é bom de ver, a convicção de que as facturas foram usadas para documentar operações inexistentes é não só possível como a mais plausível (adequada). Não se compreende, de facto, a emissão de facturas antes da data da sua aquisição, pois o tempo é irreversível. É claro que, não havendo qualquer transacção subjacente às facturas, as mesmas podiam ser emitidas com qualquer data, o que não aconteceria se as mesmas documentassem operações reais.
A crítica feita ao acórdão recorrido quanto à formação da sua convicção não tem pois qualquer razão de ser, pelo que, também nesta parte, o recurso não merece provimento.
(iii) Medida concreta da pena
Relativamente à medida concreta da pena, o recorrente entende que a pena aplicada de 16 meses de prisão, pelo crime de fraude fiscal p. e p. pelos arts. 103º, n.º1 als. a) e c) e 104, n.ºs 1 e 2 do RGIT, deve ser suspensa na sua execução, ou substituída por trabalho a favor da comunidade.
Para tanto, alega que o próprio acórdão reconhece “que as exigências de prevenção geral não se fazem sentir de forma tão patente, (no caso do arguido U…) em virtude de o prejuízo causado ao Estado assumir valores bem mais modestos”.
A nosso ver, o recurso deve proceder nesta parte, pelas razões aduzidas pelo próprio arguido, designadamente a estabilidade do seu ambiente familiar, a sua modesta condição económica e a menor gravidade do ilícito (o prejuízo causado foi de 22. 227,05 euros e reportou-se apenas a uma declaração do trimestre de 2001). Perante estas circunstâncias, é de esperar que a mera censura do facto e ameaça da prisão realizem adequadamente as finalidades da punição (art. 50º do C. Penal), afastando o arguido definitivamente da prática de futuros crimes.
É certo que o arguido já cometeu outros crimes de natureza idêntica, mas todos eles ocorridos há cerca de dez anos (entre 1999 e 2004) e no mesmo período de tempo a que se reportam os factos deste processo. Desde aí, tem mantido um comportamento sem registo criminal.
É verdade que o artigo 14º, 1 do RGIT determina que a suspensão da execução da pena seja condicionada ao pagamento das quantias equivalentes ao benefício indevidamente obtido.
No entanto, e como já acima referimos na análise dos recursos de outros co-arguidos, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência nos seguintes termos:
“No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no art. 105º, n.º 1 do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art. 50º,n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o art. 14º, n.º 1 do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose sobre a razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.” – Acórdão do STJ n.º 8/2012, in DR, I Série, n.º 206, de 24 de Outubro de 2012.
No presente caso, atenta a situação económica do arguido, “descrita como desfavorecida”, estando actualmente desempregado, sendo a sua mulher doméstica (ponto 2.1.1.240), pode com toda a certeza formular-se um juízo de prognose sobre a impossibilidade de pagamento, no prazo de suspensão da pena, da quantia de € 22.227,05 e acréscimos legais.
Justifica-se assim, como também entendeu o Ex.º Procurador-geral Adjunto no seu parecer, a suspensão da execução da pena de 16 (dezasseis) meses prisão, por igual período de tempo, nos termos do art. 50º, 1º do C. Penal
Nestes termos, o recurso deve ser parcialmente provido e, consequentemente, suspender-se a execução da pena de 16 meses de prisão aplicada ao arguido, pelo período da sua duração, mantendo-se em tudo o mais o acórdão recorrido.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam:
3.1. Relativamente ao recurso de B…
a) Julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, suspender a execução da pena aplicada de 4 anos e seis meses de prisão, por igual período.
b) Manter, em tudo o mais, o acórdão recorrido.
Sem custas.
3.2. Relativamente ao recurso de C…
a) Julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, suspender a execução da pena aplicada de três anos de prisão, por um período de cinco anos (art. 14º, 1 do RGIT), na condição de, no período da suspensão, pagar ao Estado a quantia de € 274.814,64 (duzentos e setenta e quatro mil, oitocentos e catorze euros e sessenta e quatro cêntimos).
b) Manter, em tudo o mais, o acórdão recorrido.
Sem custas.
3.3. Relativamente ao recurso de J…
a) Negar provimento ao recurso e, consequentemente, manter o acórdão recorrido.
Custas pelo arguido, fixando a taxa de justiça em 4 UC.
3.4. Relativamente ao recurso de L…
a) Julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, declarar a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia (art. 379º, nº 1 al. c) do CPP), nos termos acima expostos, devendo o tribunal “a quo” apreciar e decidir a questão do cúmulo jurídico da pena aplicada neste processo, tendo em conta as anteriores condenações atendíveis.
b) Manter, em tudo o mais, o acórdão recorrido.
3. 5. Relativamente ao recurso de M….
a) Conceder parcial provimento ao recurso e alterar a matéria de facto nos termos acima expostos;
b) Revogar o acórdão recorrido, na parte relativa à medida concreta da pena parcelares e do cúmulo jurídico e, assim:
c) Condenar o arguido pela prática, na qualidade de empresário em nome individual, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. 103º, n.º1 als. a) e c) e 104º, n.ºs 1 e 2 do RGIT, na pena de quatro anos de prisão;
d) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de cinco anos de prisão.
e) Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido, pelo período de cinco anos.
f) Manter, em tudo mais, o acórdão recorrido.
Sem custas.
3.6. Relativamente ao recurso de M…
a) Conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente, suspender a execução da pena de 16 meses de prisão aplicada ao arguido, por igual período.
b) Manter, em tudo o mais, o acórdão recorrido.
Sem custas.

Porto, 19/02/2014
Élia São Pedro
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